1. EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO, DO EGRÉGIO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ref.: Inquérito nº 4.831/DF
RANDOLPH FREDERICH RODRIGUES ALVES, brasileiro, divorciado,
Senador da República, portador da cédula de identidade nº 050360, inscrito
no CPF sob o nº 431.879.432-68, com endereço profissional na Praça dos
Três Poderes, Palácio do Congresso Nacional, Senado Federal, Anexo I, 9º
andar, CEP 70160-900;
FABIANO CONTARATO, brasileiro, casado, Senador da República, portador
da cédula de identidade nº 682250, inscrito no CPF sob o nº 863.645.617-72,
com endereço profissional na Praça dos Três Poderes, Palácio do Congresso
Nacional, Senado Federal, Anexo 2, Ala Afonso Arinos, Gabinete 6, CEP
70160-900;
JOENIA BATISTA DE CARVALHO, brasileira, Deputada Federal, indígena
Wapichana, portadora da cédula de identidade nº 90475, inscrita no CPF sob
o nº 323.269.982-00, com endereço profissional na Praça dos Três Poderes,
Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete nº 231, Brasília/DF, CEP
70160-900;
ALESSANDRO LUCCIOLA MOLON, brasileiro, casado, Deputado Federal,
inscrito no CPF sob o nº 014.165.767-70, com endereço profissional no
Anexo IV da Câmara dos Deputados, Gabinete nº 304, via S2, Brasília/DF,
CEP 70160-900;
2. vêm apresentar, por meio do advogado infra-assinado, com fulcro no art. 5º,
inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, no art. 27 do Código de
Processo Penal, no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal) e na Lei de Crime de Responsabilidade,
PEDIDO
para que este Egrégio Tribunal solicite à Procuradoria-Geral da República o
pedido de abertura de inquérito em face do Sr. RICARDO DE AQUINO
SALLES, brasileiro, advogado, Ministro de Estado do Meio Ambiente, inscrito
no CPF sob o nº 149.226.428-89, com domicílio legal no Esplanada dos
Ministérios, Bloco B, 5º andar CEP 70068-900 - Brasília - DF, pelos fatos e
fundamentos que passa a expor.
1. DO FATO A SER NOTICIADO
Na data de 22 de maio de 2020, o Ministro Celso de Mello autorizou o
acesso quase integral aos vídeos gravados na reunião ministerial ocorrido em
22 de abril do corrente ano, sendo estes meios de prova no Inquérito nº
4.831-STF.
O referido material foi objeto de análise no LAUDO DE PERÍCIA
CRIMINAL FEDERAL Nº 1204/2020-INC/DITEC/DPF, o qual também foi
disponibilizado na presente data.
A referida reunião apresenta um conjunto de tramas, ofensas e
ameaças, em meio em expressões indecorosas, grosseiras e
constrangedoras, contra pessoas, povos, instituições e contra o meio
ambiente. Destacamos, na presente peça, a conduta do Sr. Ricardo Salles.
3. Nos vídeos e na transcrição apresentada no referido Laudo, o Sr.
Ricardo Sales sugere que o governo federal aproveite o momento de
"tranquilidade", em que imprensa está com atenção voltada para a cobertura
da pandemia do novo coronavírus, para 'passar reformas infralegais de
desregulamentação' e simplificar normas, nos seguintes dizeres:
"A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos
dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as
reformas infralegais de desregulamentação, simplificação,
todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se
referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo,
cobrou da Teresa, cobrou do Tarcísio, cobrou de todo mundo."
- (LAUDO Nn 1242/2020 - INC/DITEC/PF, pg 19/20)
Em outra fala, o Ministro Salles explica os itens que teriam sido
cobrados dos representantes do governo nas viagens internacionais. Diz que
elas podem ser feitas em atos de governo e que as mudanças são mais
questionadas dentro do Ministério do Meio Ambiente:
"A segurança jurídica, da previsibilidade, da simplificação, essa
grande parte dessa matéria ela se dá em portarias e norma dos
ministérios que aqui estão, inclusive o de Meio Ambiente. E que são
muito difíceis, e nesse aspecto eu acho que o Meio Ambiente é o
mais difícil de passar qualquer mudança infralegal em termos de
infraestrutura, é instrução normativa e portaria, porque tudo que a
gente faz é pau no judiciário, no dia seguinte.
"Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto
estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura
de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e
mudando todo o regramento e simplificando normas. De
IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio
Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora
de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório
que nós precisamos, em todos os aspectos." (LAUDO Nn
1242/2020 - INC/DITEC/PF, pg 20)
4. Não é demais lembrar que se trata de uma reunião oficial do Governo
Federal, com a presença das mais importantes autoridades do Executivo
Federal. As palavras e o contexto demonstram claramente, em alto e bom
som, a intenção do Sr Ministro do Meio Ambiente de afrouxar, de maneira
sorrateira, as normas estatais relacionadas ao meio ambiente,
aproveitando-se de um momento tão crítico da história da saúde pública
nacional.
O próprio histórico do Ministro do Meio Ambiente milita em seu
desfavor. Vale lembrar que o Sr. Ricardo Salles já foi condenado em
primeira instância em ação de improbidade administrativa. Segundo a
acusação do MP-SP, acatada pelo juiz, durante esse processo de elaboração
do plano de manejo da área, "foram cometidas diversas irregularidades pelos
demandados", com alterações que podem prejudicar o meio ambiente, além
de intimidação de funcionários e modificação de documentos.
Ademais, alguns atos praticados na área ambiental durante a pandemia
evidenciam que a manifestação do Ministro na reunião teve efeitos práticos.
O Decreto 10.341, de 6 de maio de 2020 , que conta com o referendo1
do Ministro, por exemplo, tirou o poder de comando do Ibama e do ICMBio
nas operações de suas atribuições em defesa do meio ambiente, passando
para o Ministério da Defesa.
Em 11 de Maio de 2020 o governo lançou a Operação Verde Brasil 2,
que se estenderá até 10 de Junho. Coerentemente com os gastos efetuados
em sua primeira versão, esta operação tem custo previsto de R$ 60 milhões e
está ancorada no Decreto nº 10.341 de 06/05/2020. Além dos custos
1
Disponível em <
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=07/05/2020&jornal=515&pagina=7 >.
Acesso em 23/5/20.
5. altíssimos, a reedição da GLO chama a atenção por subordinar os
especialistas dos órgãos ambientais, ao comando das Forças Armadas (Art.
4º Parágrafo único).
Subordinar a coordenação das ações de fiscalização ambiental às
Forças Armadas é um contra senso que pode trazer enormes prejuízos ao
meio ambiente. Assim como a PM, as FA não têm a competência legal para
tomarem a frente de ações de combate ao crime ambiental. Além disso, não
têm os conhecimentos técnicos necessários para tal. Embora o apoio de
forças militares nas operações de fiscalização ambiental seja importante e
necessário, do ponto de vista da proteção ambiental, não há como aceitar a
subordinação da fiscalização ambiental às Forças Armadas.
Tivemos ainda o Despacho MMA 4.410/2020, citado na reunião pelo
Ministro, que reconhece como consolidadas as áreas de preservação
permanentes (APPs) desmatadas e ocupadas até julho de 2008, provocando
reação da sociedade civil e do Ministério Público Federal.
Segundo o Ministério Público Federal, o ‘cumprimento e aplicação da
medida de Salles traz como consequência o risco iminente do cancelamento
indevido de milhares de autos de infração ambiental e termos de embargos
lavrados a partir da constatação de supressões, cortes e intervenções
danosas e não autorizadas em Áreas de Preservação Permanente situadas
no bioma Mata Atlântica.”
Para a ação movida contra Salles, “A emissão do Despacho MMA
4.410/2020 aniquila significativa parcela da proteção de vegetação nativa da
Mata Atlântica, proporciona uma fragilização ainda maior da segurança
hídrica em tempos de mudanças climáticas e de notórios, recorrentes e cada
vez mais intensos episódios de escassez hídrica e racionamento do
fornecimento de água potável”.
6. 2. DO DIREITO APLICÁVEL
O § 3º do artigo 225 da CF destaca que as condutas e atividades
lesivas ao meio ambiente serão responsabilizadas administrativa e
penalmente.
O elemento subjetivo de todo e qualquer crime está definido no Código
Penal, e dividido entre dolo ou culpa. A definição de crime doloso está
prevista no artigo 18, I do Código Penal. Ele ocorre quando o agente quer o
resultado de suas ações, ou quando assume o risco de produzi-lo. Sendo
assim, está englobado o dolo direto, e o dolo indireto, que pode se dividir em
alternativo e eventual. No alternativo, o agente prevê as consequências de
seus atos, e quer um dos possíveis resultados que sua ação possa causar. Já
no dolo eventual, o agente assume o risco de um possível resultado, pouco
se importando se ele ocorrerá ou não.
No caso em tela, o Ministro Ricardo Salles demonstrou todo o dolo para
atacar regras de um meio ambiente sustentável e desprezo pelo princípio da
precaução ambiental, que deveria guiar um Ministro de Estado do Meio
Ambiente. O princípio da precaução foi formulado pelos gregos e significa ter
cuidado e estar ciente.
Precaução relaciona-se com a associação respeitosa e funcional do
homem com a natureza. Trata das ações antecipatórias para proteger a
saúde das pessoas e dos ecossistemas. Precaução é um dos princípios que
guia as atividades humanas e incorpora parte de outros conceitos como
justiça, eqüidade, respeito, senso comum e prevenção.
Pelo Princípio da Precaução, as decisões estatais devem ser
democráticas, transparentes e ter a participação dos interessados no produto
7. ou processo. Como fica evidente pelos trechos destacados, o propósito do Sr.
Ricardo Salles vai exatamente de encontro a este princípio, que deve servir
como fio condutor na tomada de decisões de um agente público responsável
pela conservação e defesa do meio ambiente. E S. Exª sequer pode alegar
desconhecimento de tal conceito, uma vez que se trata de advogado,
portanto, com conhecimentos jurídicos, além do que um artigo sobre o
Princípio da Precaução se encontra publicado na própria página na internet
do Ministério do Meio Ambiente , pasta da qual é o titular.2
Somada a isso, a intenção do Ministro Ricardo Sales de alterar
importantes regras ambientais em favor de interesses privados ou
particulares, e em detrimento do interesse público, é conduta tipificada pelo
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - o nosso Código Penal.
Com efeito, em seu artigo 321, ele descreve o delito de advocacia
administrativa e prevê, como conduta criminosa, o ato de um servidor público
defender interesses particulares, junto ao órgão da administração pública
onde exerce suas funções. A pena prevista é detenção de 1 a 3 meses e
multa. A lei prevê pena mais alta para o caso de o interesse defendido não
ser legítimo, neste caso a pena pode ser de 3 meses a 1 ano e multa.
É o que diz o Código:
Advocacia administrativa
Art. 321 - Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado
perante a administração pública, valendo-se da qualidade de
funcionário:
Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.
Parágrafo único - Se o interesse é ilegítimo:
Pena - detenção, de três meses a um ano, além da multa.
2
https://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-camada-de-ozonio/item/7512 acessado em 22/5/2020
8. Outra conduta igualmente tipificada na legislação penal é o crime de
passar os interesses meramente privados à frente do público. Trata-se da
prevaricação, que também é perfeitamente aderente à declaração do Sr.
Ministro Salles, que claramente desvirtua a finalidade pública - proteção
ambiental via princípio da precaução - em favor de interesses pessoais
escusos e ilegítimos e de interesses econômicos de grupos interessados.
Veja-se o que diz o Código:
Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de
ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para
satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Ainda na linha dos crimes comuns, é possível enquadrar a declaração
do Ministro do Meio Ambiente em diversas condutas tipificadas na Lei de
Crimes Ambientais. Fala-se aqui, principalmente, nos crimes descritos entre
os artigos 38 a 53 e 66 a 69-A da Lei nº 9.605/98, cuja transcrição literal aqui
se dispensará, por economia vocabular. Nesse ponto, aliás, se se fala na
tipificação da conduta concreta de “destruir a floresta”, mais penalmente
reprovável ainda é a conduta daquele gestor que incentiva a devastação da
flora de modo abstrato, ao criar normas que permitem isso, em um verdadeiro
anseio de legalismo autocrático. Isso se dá pelo próprio alcance devastador
dos incentivos normativos.
Noutro giro, aliás, além dos crimes comuns, o Sr. Ricardo Salles
também incorreu na prática de verdadeiros crimes de responsabilidade,
cuja denúncia, nos termos de jurisprudência do Eg. STF, cabe àquela
Procuradoria-Geral. O julgamento, frise-se, será dado pelo próprio
9. Supremo Tribunal (art. 102, I, c, da Constituição), mas o processo
precisa ser provocado, isso é, iniciado por aquela Procuradoria.
Com efeito, a Lei nº 1.079/50, que define os crimes de
responsabilidade, prevê entre seus crimes tipificados dois que se adequam às
condutas praticadas pelo Ministro Ricardo Salles no caso em tela:
Lei 1.079/50
Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na
administração; (...)
4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às
disposições expressas da Constituição; (...)
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o
decoro do cargo.
Como fica evidente por meio dos trechos destacados, a fala do Ministro
Salles pode ser compreendida como uma verdadeira requisição ministerial ao
Presidente da República para descumprir o disposto no art. 225 da
Constituição Federal, que determina que "Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado", assim como mostra um Ministro de Estado com
conduta absolutamente incompatível com a defesa do meio ambiente e o
interesse público.
Somado a isso, o propósito cabalmente explicitado pelo Ministro Salles
de mudar o regramento ambiental, "passando uma boiada", em suas
palavras, enquanto toda a atenção da sociedade está voltada para a crise
econômica e social provocada pela pandemia por coronavírus, demonstra a
clara ofensa ao princípio da transparência administrativa, um desdobramento
do princípio constitucional da moralidade.
Transparência não é apenas disponibilizar dados, uma vez que
obrigatoriamente são publicados no Diário Oficial da União, mas fazê-lo em
linguagem clara e acessível e chamar a sociedade para participar dos rumos
10. do Estado. A transparência vai além da divulgação dos atos administrativos,
ela também é acompanhada de motivação em suas decisões. E o discurso
proferido pelo Ministro do Meio Ambiente na reunião em questão reforça a
intenção de omitir o tanto quanto possível eventual desregulamentação das
normas ambientais.
Vê-se, então, que o Sr. Ricardo Salles também cometeu crime de
responsabilidade apto a ensejar o julgamento pelo Eg. STF. Como os
crimes, comum e de responsabilidade, têm, naturalmente, dimensões
distintas - um é infração político-administrativa, ao passo que o outro é
infração penal -, não configura bis in idem a pretensão de buscar a
responsabilização no dúplice vértice. E isso, frise-se, independentemente
de a jurisprudência do STF entender que o crime de responsabilidade de
Ministro de Estado ser denunciados privativamente por aquela
Procuradoria-Geral.
Portanto, vê-se que, indubitavelmente, a conduta do Sr. Ricardo Salles
é claramente incompatível com o cargo de Ministro de Estado do Meio
Ambiente enquanto agente público, com violações diretas ao Código Penal,
que conceitua o crime de advocacia administrativa, e à Lei de Crime de
Responsabilidade. Dessa forma, não há dúvidas de que o Sr. Ricardo Salles
deve ser responsabilizado pelos atos criminosos publicamente praticados.
3. DOS PEDIDOS
Nesse sentido, solicitamos a Vossa Excelência, na qualidade de
Ministro responsável pela condução do Inquérito que deu motivo à divulgação
do vídeo em que constavam os inúmeros ilícitos cometidos pelo Sr. Ricardo
Salles, oficie à Procuradoria-Geral da República para que aquela promova a
abertura de inquérito a fim de apurar a licitude do comportamento de
11. RICARDO SALLES, Ministro de Estado do Meio Ambiente, em relação aos
fatos narrados na presente representação.
Solicita-se, desde logo, a tomada de depoimento do Sr. Ministro
RICARDO SALLES e o seu imediato afastamento do cargo, dentro do poder
geral de cautela atribuível aos Magistrados em geral, para que se evitem
maiores danos ambientais imensuráveis, na linha do princípio da precaução
em matéria ambiental.
Termos em que pede deferimento.
Brasília, 23 de maio de 2020.
RANDOLFE RODRIGUES
Senador da República (REDE-AP)
FABIANO CONTARATO
Senador da República (REDE-ES)
OAB/ES 31.672
JOENIA WAPICHANA
Deputada Federal (REDE-RR)
ALESSANDRO MOLON
Deputado Federal (PSB-RJ)
FABIANO
CONTARATO
Assinado de forma digital
por FABIANO CONTARATO
Dados: 2020.05.23 13:13:05
-03'00'
12. EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
RANDOLPH FREDERICH RODRIGUES ALVES, brasileiro, divorciado,
Senador da República, portador da cédula de identidade nº 050360, inscrito
no CPF sob o nº 431.879.432-68, com endereço profissional na Praça dos
Três Poderes, Palácio do Congresso Nacional, Senado Federal, Anexo I, 9º
andar, CEP 70160-900;
ALESSANDRO LUCCIOLA MOLON, brasileiro, casado, Deputado Federal,
inscrito no CPF sob o nº 014.165.767-70, com endereço profissional no
Anexo IV da Câmara dos Deputados, Gabinete nº 304, via S2, Brasília/DF,
CEP 70160-900;
FABIANO CONTARATO, brasileiro, casado, Senador da República, portador
da cédula de identidade nº 682250, inscrito no CPF sob o nº 863.645.617-72,
com endereço profissional na Praça dos Três Poderes, Palácio do Congresso
Nacional, Senado Federal, Anexo 2, Ala Afonso Arinos, Gabinete 6, CEP
70160-900;
JOENIA BATISTA DE CARVALHO, brasileira, Deputada Federal, indígena
Wapichana, portadora da cédula de identidade nº 90475, inscrita no CPF sob
o nº 323.269.982-00, com endereço profissional na Praça dos Três Poderes,
Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete nº 231, Brasília/DF, CEP
70160-900;
vêm apresentar, com fulcro no art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da
Constituição Federal, no art. 27 do Código de Processo Penal, na Lei de
Segurança Nacional, Lei 7.716, de 1989, e na Lei de Crime de
Responsabilidade,
REPRESENTAÇÃO
13. em face do Sr. ABRAHAM BRAGANÇA DE VASCONCELLOS
WEINTRAUB, brasileiro, casado, economista, Ministro de Estado da
Educação, inscrito no CPF sob o nº 149.226.428-89, com domicílio legal no
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Brasília – DF, CEP 70047-900, pelos
fatos e fundamentos que passa a expor.
1. DO FATO A SER NOTICIADO
Hoje, o Ministro Celso de Mello autorizou o acesso quase integral aos
vídeos gravados na reunião ministerial ocorrido em 22 de abril do corrente
ano, sendo estes meios de prova no Inquérito nº 483 1-STF.
O referido material foi objeto de análise no LAUDO DE PERÍCIA
CRIMINAL FEDERAL Nº 1204/2020-INC/DITEC/DPF, o qual também foi
disponibilizado na presente data.
A referida reunião apresenta um conjunto de ofensas e ameaças, -
expressas ou veladas -, em expressões indecorosas, grosseiras e
constrangedoras, contra pessoas, povos e instituições. Destacamos, na
presente peça, a conduta do Sr. Abraham Bragança de Vasconcellos
Weintraub.
Nos vídeos e na sua transcrição apresentada no referido Laudo, o Sr.
Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub destila ódio, em termos
claros, enfáticos e chocantes, contra o povo indígena e o povo cigano, nos
seguintes dizeres:
“… odeio o termo ‘povos indígenas’, odeio esse termo.
Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país.
Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem
um povo. Pode ser preto, pode ser branco, pode ser
japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que ser
14. brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e
privilégios.” (LAUDO Nn 1242/2020 - INC/DITEC/PF, pg
54)
Em outro trecho, na sequência, ao criticar Brasília como “cancro de
corrupção, de privilégio”, dirige-se ao Supremo Tribunal Federal, em absoluto
desrespeito à instituição: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na
cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca.” (LAUDO N. 1242/2020 -
INC/DITEC/PF, pg 54).
Não é demais lembrar que se trata de uma reunião oficial do Governo
Federal, com a presença das mais importantes autoridades do Executivo
Federal. Não só as palavras, mas o contexto e a entonação demonstram o
desprezo profundo do Sr Ministro da Educação tanto pelos povos ciganos e
indígena, como pelo Supremo Tribunal Federal e seus honrosos membros.
Tais demonstrações graves de descaso pela democracia, pela
diversidade, pelos Poderes Constitucionais não merecem prosperar, sendo
necessária a atuação desta Procuradoria-Geral da República, conforme os
fundamentos de direito a seguir delineados.
2. DO DIREITO APLICÁVEL
De início, é importante conceber o adequado funcionamento do Poder
Judiciário como uma das balizas intransponíveis ao funcionamento do regime
democrático. Afinal, os Tribunais representam importante papel no exercício
contramajoritário, ao preservar os direitos fundamentais de minorias.
Com efeito, o regime democrático é um dos pilares de qualquer estado
ocidental moderno. Sem alongamento excessivo no tocante às bases da
democracia, atualmente cinco critérios básicos vêm sendo aferidos para
assegurar o grau democrático de um país: o processo eleitoral e pluralismo,
15. as liberdades civis, o funcionamento do governo, a participação política e a
cultura política.
Usando exatamente esses critérios, a revista The Economist calcula,1
anualmente, um ranking de “índice democrático”. E a nossa posição não é
muito animadora: nossa democracia é classificada como “falha”, com uma
nota entre 6.00 e 6.99 em uma escala de 0.00 a 10.00 (em 2018). O que
esperar do nosso índice democrático após essas declarações autoritárias de
um Ministro de Estado? Qual imagem, interna e externa, queremos passar?
Certamente, não é das melhores com esse ímpeto antidemocrático.
Essa percepção de que a democracia é melhor forma de governo que
temos – materializada na ilustre frase de Churchill – já subsiste há alguns
séculos, ou não se discutiria a democracia grega. Embora hoje se faça uma
série de críticas à efetiva participação popular naquele regime, não se nega
que as discussões lá postas foram o verdadeiro embrião democrático.
Contudo, o Sr. Abraham Weintraub parece ignorar quase 3.000 anos de
evolução no pensamento filosófico e jurídico, ao desconsiderar a diversidade
intrínseca aos povos cigano e indígena, bem como à mais alta Côrte do
Poder Judiciário do Brasil.
Especificamente no Brasil, a Proclamação da República em 1889
significou o início de um suspiro democrático. Efetivamente, contudo, o
primeiro presidente eleito por meio de votos diretos foi Prudente de Morais,
em 1894. De lá para cá, houve uma sucessão de incursões autoritárias, na
Era Vargas, República Nova e Ditadura Militar.
Desde a redemocratização – cujo ápice se deu com a Constituição de
1988 –, não mais se cogitou de qualquer ímpeto antidemocrático, por mais
que sempre houvesse vozes defendendo o autoritarismo. Contudo, o que
sempre representou uma voz distante – que, justamente por vivermos em
1
Disponível em: <https://www.eiu.com/topic/democracy-index>. Acesso em: 31/10/2019.
16. uma democracia, nunca foi cerceada – tornou-se realidade mais transparente
e próxima com o resultado das eleições de 2018.
Pois bem. O Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe, em
seu preâmbulo, o objetivo nuclear do estabelecimento de um quadro de
instituições democráticas, fundado em um regime de liberdade pessoal e de
justiça social, com foco no respeito dos direitos humanos essenciais. E
também previa, como cláusula geral interpretativa, que as disposições do
próprio Pacto não poderiam afastar direitos e garantias que decorrem da
forma democrática representativa de governo. A ênfase democrática era
enorme, justamente pelo sombrio passado autoritário vivido na porção
latino-americana do continente.
Ademais, verifica-se que coube à Corte Interamericana de Direitos
Humanos decidir em diversos casos pela proteção de minorias,
condenando Estados que violassem os direitos dos povos indígenas,
para tanto vide: Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingi vs. Nicarágua, Caso
Chacina Plan de Sánchez vs. Guatemala, Caso Comunidade Moiwana vs.
Suriname, Caso Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, dentre
diversos outros.2
Inspirada no Pacto, a Constituição Federal de 1988, também em seu
preâmbulo, dispõe que o objetivo dos constituintes é a instituição de um
“Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Não apenas isso, e aqui em direta oposição ao pensamento dizimador
e contra os direitos de povos e minorias do Ministro Weintraub, é no âmbito
2
PAIVA; Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 3ª
Ed. Belo Horizonte: CEI, 2020.
17. nacional que observamos medidas como a do STJ de assegurar os
benefícios conferidos à Fazenda Pública como prazo em dobro às
comunidades indígenas, fortalecendo a proteção às minorias.3
Na sequência, a Constituição estabelece que a defesa das instituições
democráticas é de competência comum entre todos os entes federados,
justamente por se tratar de uma preocupação difusa. Não à toa, também se
estabelece, no texto constitucional, que uma das funções essenciais do
Ministério Público é justamente a defesa do regime democrático. E é
justamente sob essa égide que se promove a presente representação.
Com efeito, a Lei nº 7.170/83 define os crimes contra a segurança
nacional – curiosamente, uma lei editada justamente sob a égide da ditadura
militar e sem nenhuma alteração até hoje, justamente porque, no regime
democrático, nunca se cogitou de qualquer possibilidade de ato atentatório à
própria democracia, naturalmente tida como um consenso mínimo em toda a
sociedade.
Entre outros crimes, a Lei prescreve condutas que lesam ou expõem a
perigo de lesão o regime representativo e democrático (art. 1º, II). Entre os
tipos penais específicos, o Sr. Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub
potencialmente incorre em alguns deles. Veja-se:
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave
ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da
União ou dos Estados.
Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.
Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da
ordem política ou social;
II - de discriminação racial, de luta pela violência entre as
classes sociais, de perseguição religiosa;
3
AgRg no AgRG no REsp 990.085, rel. Min. Francisco Falcão, 1ª Turma, j. 19.02.2008
18. IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
§ 1º - A pena é aumentada de um terço quando a propaganda
for feita em local de trabalho ou por meio de rádio ou
televisão.
Art. 23 - Incitar:
I - à subversão da ordem política ou social;
II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e
as classes sociais ou as instituições civis;
III - à luta com violência entre as classes sociais;
IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. (grifos nossos)4
Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do
Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do
Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido
como crime ou fato ofensivo à reputação.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.
Não se deve ignorar o fato de que, dada a sua posição, o Ministro da
Educação tem um potencial de incentivo muito grande. Isso é, qualquer
cidadão que apóie pretensões autoritárias pode se sentir convidado a
externalizar, inclusive de modo violento, o seu ímpeto antidemocrático.
Justamente por isso, a Lei de Segurança Nacional prescreve como
criminosa a conduta de fazer propaganda ou incitações para tentativas de
lesionar o regime representativo e democrático (leitura sistemática dos arts.
22, 23 e 1º, II).
Na seara dos crimes comuns, observa-se, ainda, que o Ministro
praticou o crime previsto no art. 20 da Lei 7.716 de 1989. Mesmo já
suficientemente consolidado nos normativos constitucionais e até mesmo
4
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>. Acesso em: 31/10/2019.
19. internacionais, a Lei nº 7.716 de 1989 dispõe acerca de crimes resultantes de
preconceito de raça, cor ou de procedência nacional. Com a redação dada
pela Lei 9.459, de 1997, o referido normativo prevê, em seu art. 20:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
Em reforço argumentativo, cumpre detalhar a abrangência dos termos
que compõem o tipo:
DISCRIMINAR: significa promover qualquer tipo de
distinção, exclusão, restrição ou preferência. Também
discrimina quem não reconhece as diferenças culturais das
diversas etnias que compõem o tecido social, tencionando
eliminá-las de forma antidemocrática. Consiste na negação dos
princípios da igualdade e do pluralismo, mediante imposição de
restrições ou exigências desarrazoadas. Torna-se perceptível
no momento da exteriorização objetiva de uma conduta no
mundo exterior (práxis), estando sempre ligada a um resultado
concretamente verificável ou em vias de concretizar.
A ação discriminatória dirige-se a outra pessoa no sentido
privá-la (ou dificultar ou limitar) do acesso ou gozo de
determinado bem ou direito.
A estrutura do comportamento discriminante reclama a
presença mínima de dois sujeitos, daquele que discrimina e
daquele que é discriminado, sem excluir a hipótese em que
todo um grupo de pessoas é discriminado.
A relevância penal do racismo depende da constatação de
uma prática discriminatória, ou seja, de uma ação ou omissão
que produza (ou ameace produzir) um dano concreto a
alguém.
[...]
20. As Três Condutas Previstas no Artigo 20 - “praticar”; “induzir”
ou “incitar’:
“Praticar discriminação’ – é conduta abrangente o bastante
para reunir os verbos ‘impedir”, “recusar”, “negar” e “obstar”,
como qualquer outra forma menos explícita de comportamento
discriminatório.
“Induzir” – significa conduzir, levar para dentro, inspirar, incutir,
arrastar. Neste caso, o agente cria no outro a disposição para
a prática do crime.
“Incitar” – provocar, desafiar, estimular, açular, mover, impelir.
Aqui, o agente limita-se a reforçar uma disposição já existente.5
Conforme se observa, a conduta do Ministro da Educação se amolda
de forma quase didática ao tipo penal consignado no art. 20 da Lei 7.716 de
1989, ao induzir e incitar a discriminação do indígena e do Cigano, no Brasil.
Noutro giro, aliás, além dos crimes comuns, o Sr. Abraham
Bragança de Vasconcellos Weintraub também incorreu na prática de
verdadeiros crimes de responsabilidade, cuja denúncia, nos termos de
jurisprudência do Eg. STF, cabe a essa Procuradoria-Geral. O
julgamento, frise-se, será dado pelo próprio Supremo Tribunal (art. 102,
I, c, da Constituição), mas o processo precisa ser provocado, isso é,
iniciado por essa Procuradoria.
Com efeito, fala-se aqui na Lei nº 1.079/50, que prevê algumas
condutas que, com clareza solar, se adéquam ao proceder o Ministro.
Veja-se:
5
Disponível
em:<https://mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/nucleos/ned/Estudo_Comentarios_Lei_7716_89.pdf>.
Acesso em: 22.05.2020.
21. Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentarem contra a
Constituição Federal, e, especialmente, contra:
(...)
II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;
Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre
exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes
constitucionais dos Estados:
(...)
5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do
Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos
seus atos, mandados ou sentenças;
6 - usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou
jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença
ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;
Vê-se, então, que o Sr. Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub
também cometeu crime de responsabilidade apto a ensejar o julgamento pelo
Eg. STF. Como os crimes, comum e de responsabilidade, têm,
naturalmente, dimensões distintas - um é infração
político-administrativa, ao passo que o outro é infração penal -, não
configura bis in idem a pretensão de buscar a responsabilização no
dúplice vértice. E isso, frise-se, independentemente de a jurisprudência do
STF entender que o crime de responsabilidade de Ministro de Estado ser
denunciável privativamente por essa Procuradoria-Geral.
Portanto, vê-se que, indubitavelmente, a conduta do Sr. Abraham
Bragança de Vasconcellos Weintraub é claramente incompatível com o
regime democrático, com violações diretas à Lei de Segurança Nacional à Lei
que preceitua os crimes de preconceito e racismo, à Lei de Crime de
Responsabilidade. Afinal, o que ele pretende nem mesmo é permitido ao
22. poder constituinte de reforma, pois a Constituição estabelece como cláusula
pétrea a separação dos Poderes e garante o direito das minorias.
Ou seja, a fala de um dos principais ministros do Governo de Jair
Bolsonaro é inaceitável e anacrônica. Não se pode permitir, de forma alguma,
qualquer tipo de ameaça contra a democracia e contra minorias. O Ministro
precisa se compor e aceitar que está sob a égide do Estado Democrático de
Direito. Não há espaço para ameaças às instituições e à Constituição Federal.
Dessa forma, não há dúvidas de que o Sr. Abraham Weintraub deve
ser responsabilizado por tal ato, inclusive para se coibir qualquer ímpeto
antidemocrático em nossa sociedade. Não se trata aqui de uma pretensão
contrária à liberdade de expressão, mas de legítima preocupação para que o
discurso não ganhe coro e gere verdadeira “guerra civil”.
3. DOS PEDIDOS
Nesse sentido, solicitamos a Vossa Excelência, na qualidade de chefe
do Ministério Público da União, que requisite a instauração de inquérito para
apurar a licitude do comportamento de ABRAHAM BRAGANÇA DE
VASCONCELLOS WEINTRAUB, Ministro de Estado da Educação, em
relação aos fatos narrados na presente representação.
Termos em que pede deferimento.
Brasília, 22 de maio de 2020.
23. RANDOLFE RODRIGUES
Senador da República (REDE-AP)
ALESSANDRO MOLON
Deputado Federal (PSB-RJ)
JOENIA WAPICHANA
Deputada Federal (REDE-RR)
FABIANO CONTARATO
Senador da República (REDE-ES)
24. EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO, DO EGRÉGIO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ref.: Inquérito nº 4.831/DF
RANDOLPH FREDERICH RODRIGUES ALVES, brasileiro, divorciado,
Senador da República, portador da cédula de identidade nº 050360, inscrito
no CPF sob o nº 431.879.432-68, com endereço profissional na Praça dos
Três Poderes, Palácio do Congresso Nacional, Senado Federal, Anexo I, 9º
andar, CEP 70160-900;
FABIANO CONTARATO, brasileiro, casado, Senador da República, portador
da cédula de identidade nº 682250, inscrito no CPF sob o nº 863.645.617-72,
com endereço profissional na Praça dos Três Poderes, Palácio do Congresso
Nacional, Senado Federal, Anexo 2, Ala Afonso Arinos, Gabinete 6, CEP
70160-900;
JOENIA BATISTA DE CARVALHO, brasileira, Deputada Federal, indígena
Wapichana, portadora da cédula de identidade nº 90475, inscrita no CPF sob
o nº 323.269.982-00, com endereço profissional na Praça dos Três Poderes,
Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete nº 231, Brasília/DF, CEP
70160-900;
ALESSANDRO LUCCIOLA MOLON, brasileiro, casado, Deputado Federal,
inscrito no CPF sob o nº 014.165.767-70, com endereço profissional no
Anexo IV da Câmara dos Deputados, Gabinete nº 304, via S2, Brasília/DF,
CEP 70160-900;
vêm apresentar, com fulcro no art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da
Constituição Federal, no art. 27 do Código de Processo Penal, na Lei de
25. Segurança Nacional, Lei 7.716, de 1989, e na Lei de Crime de
Responsabilidade,
PEDIDO
para que este Egrégio Tribunal solicite à Procuradoria-Geral da República o
pedido de abertura de inquérito em face da Sra. MINISTRA DE ESTADO DA
MULHER, DA FAMÍLIA E DOS DIREITOS HUMANOS, Sra. Damares
Regina Alves, autoridade sediada no Setor Comercial Sul - Quadra 9 - Lote
C - Bloco B - Ed. Parque Corporate - Torre A - 10º andar - Sala 1005 B - CEP
70.308-200 - BRASÍLIA/DF, pelos fatos e fundamentos que passa a expor.
1. DO FATO A SER NOTICIADO
Em 22 de maio de 2020, o Ministro Celso de Mello autorizou o acesso
quase integral aos vídeos gravados na reunião ministerial ocorrido em 22 de
abril do corrente ano, sendo estes meios de prova no Inquérito nº 483 1-STF.
O referido material foi objeto de análise no LAUDO DE PERÍCIA
CRIMINAL FEDERAL Nº 1204/2020-INC/DITEC/DPF, o qual também foi
disponibilizado na referida data.
A referida reunião apresenta um conjunto de inverdades, ofensas e
ameaças, - expressas ou veladas -, em expressões indecorosas, grosseiras e
constrangedoras, contra pessoas, povos e instituições. Destacamos, na
presente peça, a conduta da Sra. Damares Regina Alves.
26. Nos vídeos e na sua transcrição apresentada no referido Laudo, a Sra.
Damares Regina Alves fez duras críticas à ação de governadores e prefeitos
favoráveis à manutenção do distanciamento social e, sem dar detalhes nem
informar aos demais como faria isso, disse que a sua pasta já estaria
solicitando a prisão de alguns governadores. Ao proferir tais críticas, a
Ministra ignorou a decisão proferida no Plenário do Supremo Tribunal Federal
(STF), por unanimidade, que confirmou, no último dia 15 de abril de 2020, o
entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida
Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não
afastam a competência concorrente nem a tomada de providências
normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos
municípios. A decisão foi tomada no referendo da medida cautelar deferida
em março pelo ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 6341.
Em momento em que mais de 20.000 pessoas já foram vitimadas no
Brasil pela pandemia causada pelo Covid-19 e em que há praticamente um
consenso quanto à importância das medidas de isolamento social para seu
enfrentamento, a Ministra se apoiou em fatos inexistentes e em inverdades
para ameaçar governadores e prefeitos com o eventual ajuizamento de
processos e com a prisão. Voltou-se contra aqueles que têm, em seus
respectivos estados e municípios, orientado a população a obedecer às
recomendações de isolamento social oriundas da ciência médica para o mais
efetivo combate à pandemia. Eis seus dizeres:
“Idosos estão sendo algemados e jogado dentro de
camburões no Brasil. Mulheres sendo jogadas no chão e
sendo algemadas por não terem feitos nada... feito nada.
Nós estamos vendo padres sendo multados em noventa
mil reais porque estavam dentro da igreja com dois fiéis. A
maior violação de direitos humanos da história do Brasil
nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento,
27. mas nós estamos tomando providências. A pandemia vai
passar, mas governadores e prefeitos responderão
processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de
governadores e prefeitos. E nós tamo subindo o tom e
discursos tão chegando. Nosso ministério vai
começar a pegar pesado com governadores e
prefeitos. Nunca vimos o que está acontecendo hoje...”
(LAUDO Nn 1242/2020 - INC/DITEC/PF, pg 47)
Em outro trecho, na sequência, a Ministra faz menção específica ao
governador do Piauí, Sr. Wellington Dias, para espalhar informação
comprovadamente inverídica sobre o mandatário, difamando-o. Segundo a
Ministra, o governador teria decretado a possibilidade de a polícia entrar em
residências sem mandado judicial, em violação aos direitos humanos dos
piauienses. Eis o trecho em que ela profere as palavras absolutamente
desrespeitosas e falsas a respeito do ato do Governador:
“Se eles falavam que nós éramos violadores de direitos,
eles estão, inclusive, o governador Wellington, agora,
ontem, determinou que a polícia poderá entrar nas
casas. Vocês não... imagina o que ele vai fazer! (...)
Assinou! A polícia poderá entrar na casa sem mandato
(sic). Então, assim, as maiores violações estão
acontecendo nesses dias. Então, nós estamos fazendo um
enfrentamento, mais de cinco procedimentos o nosso
ministério já tomou iniciativa e nós tamos pedindo inclusive
a prisão de alguns governadores.” (LAUDO N. 1242/2020 -
INC/DITEC/PF, pg 47).
Não é demais lembrar que se trata de uma reunião oficial do Governo
Federal, com a presença das mais importantes autoridades do Executivo
Federal. Não só as palavras, mas o contexto e a entonação demonstram o
desprezo profundo da Sra. Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos tanto pela verdade dos fatos quanto pelo comportamento
28. responsável dos governadores e prefeitos, que estão cumprindo com seu
mister institucional.
As demonstrações graves de descaso pela democracia e pelas
providências normativas e administrativas adotadas pelos governadores e
prefeitos devem ser coibidas. Nesse sentido, faz-se necessária a atuação
desta Procuradoria-Geral da República, conforme os fundamentos de direito a
seguir delineados.
2. DO DIREITO APLICÁVEL
O Colendo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 6341, reconheceu que as medidas adotadas pelo
Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento
do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada
de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito
Federal e pelos municípios. Naquela oportunidade, restou fixado o
entendimento sobre a necessidade de que o artigo 3º da Lei 13.979/2020
também seja interpretado de acordo com a Constituição, a fim de deixar claro
que a União pode legislar sobre o tema, mas que o exercício desta
competência deve sempre resguardar a autonomia dos demais entes. No seu
entendimento, a possibilidade do chefe do Executivo Federal definir por
decreto a essencialidade dos serviços públicos, sem observância da
autonomia dos entes locais, afrontaria o princípio da separação dos poderes.
Verifica-se, portanto, que não ficam afastados os atos a serem
praticados pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, que têm
competência concorrente para legislar sobre saúde pública (artigo 23, inciso
II, da Constituição). Diante disso, a grande maioria dos entes federativos
29. supracitados adotaram medidas de isolamento social, voltando-as ao coletivo,
ou seja, à saúde pública, mostrando-se interessados pelo bem-estar de todos
os cidadãos. Isso decorre, em grande medida, das orientações advindas da
Organização Mundial da Saúde (OMS), que ao longo de todo o período
decorrido desde o início da pandemia tem defendido o isolamento social
como, inclusive, “a única opção que temos”, segundo palavras de seu
diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus.
As medidas adotadas por estados, municípios e Distrito Federal têm se
revelado como uma verdadeira operação de guerra. Decretos foram editados
com orientações como a obrigatoriedade da utilização de máscaras de
proteção facial, em todos os espaços públicos, vias públicas, equipamentos
de transporte público coletivo e estabelecimentos comerciais, industriais e de
serviços, sem prejuízo das referidas recomendações de isolamento social e
daquelas expedidas pelas autoridades sanitárias; alguns normativos
estipularam multas para infratores das regras, inclusive alertando para a
possibilidade de acarretar a incidência do crime de infração de medida
sanitária preventiva de que trata o art. 268 do Código Penal. Os mais diversos
órgãos e instituições públicas estão envolvidos nas operações contra a
pandemia, como as Secretarias estaduais/municipais de saúde, de vigilância
sanitária, de transporte, agricultura, abastecimento, meio ambiente,
departamentos de trânsito, além dos corpos de bombeiros, de policiais civis e
militares, dentre outros.
A partir do acima exposto, é imperioso ressaltar o quão fundamental é o
comportamento dos cidadãos e instituições em momento excepcional pelo
qual se atravessa. Tal comportamento é lastreado no regime democrático, um
dos pilares de qualquer estado ocidental moderno. Sem alongamento
excessivo no tocante às bases da democracia, atualmente cinco critérios
básicos vêm sendo aferidos para assegurar o grau democrático de um país: o
30. processo eleitoral e pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do
governo, a participação política e a cultura política.
Usando exatamente esses critérios, a revista The Economist calcula,1
anualmente, um ranking de “índice democrático”. E a nossa posição não é
muito animadora: nossa democracia é classificada como “falha”, com uma
nota entre 6.00 e 6.99 em uma escala de 0.00 a 10.00 (em 2018). O que
esperar do nosso índice democrático após as ameaças despropositadas a
governadores e prefeitos por parte de uma Ministra de Estado? Qual imagem,
interna e externa, queremos passar? Certamente, não é das melhores com
esse ímpeto antidemocrático.
Essa percepção de que a democracia é melhor forma de governo que
temos – materializada na ilustre frase de Churchill – já subsiste há alguns
séculos, ou não se discutiria a democracia grega. Embora hoje se faça uma
série de críticas à efetiva participação popular naquele regime, não se nega
que as discussões lá postas foram o verdadeiro embrião democrático.
Contudo, a Sra. Damares Regina Alves parece ignorar quase 3.000 anos de
evolução no pensamento filosófico e jurídico, ao desconsiderar o
entendimento da mais alta Côrte do Poder Judiciário do Brasil.
Especificamente no Brasil, a Proclamação da República em 1889
significou o início de um suspiro democrático. Efetivamente, contudo, o
primeiro presidente eleito por meio de votos diretos foi Prudente de Morais,
em 1894. De lá para cá, houve uma sucessão de incursões autoritárias, na
Era Vargas, República Nova e Ditadura Militar.
Desde a redemocratização – cujo ápice se deu com a Constituição de
1988 –, não mais se cogitou de qualquer ímpeto antidemocrático, por mais
que houvesse vozes defendendo o autoritarismo. Contudo, o que sempre
representou um discurso distante – que, justamente por vivermos em uma
1
Disponível em: <https://www.eiu.com/topic/democracy-index>. Acesso em: 31/10/2019.
31. democracia, nunca foi cerceado – tornou-se realidade mais transparente e
próxima com o resultado das eleições de 2018.
O Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe, em seu
preâmbulo, o objetivo nuclear do estabelecimento de um quadro de
instituições democráticas, fundado em um regime de liberdade pessoal e de
justiça social, com foco no respeito dos direitos humanos essenciais. E
também previa, como cláusula geral interpretativa, que as disposições do
próprio Pacto não poderiam afastar direitos e garantias que decorrem da
forma democrática representativa de governo. A ênfase democrática era
enorme, justamente pelo sombrio passado autoritário vivido na porção
latino-americana do continente.
Inspirada no Pacto, a Constituição Federal de 1988, também em seu
preâmbulo, dispõe que o objetivo dos constituintes é a instituição de um
“Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Não apenas isso, e aqui em direta oposição ao pensamento intimidador
e desprovido de verdade proferido pela Ministra Damares, - no que tange às
adequadas medidas adotadas por governadores e prefeitos de todo o país,
que estão verdadeiramente preocupados com os direitos dos cidadãos - é de
se louvar o entendimento proferido pelo STF quando do julgamento da ADI
6341. Convém aqui sucintamente expor o quão “respeitosamente” a Ministra
se manifestou relativamente à Corte Suprema, quando da realização da
reunião ministerial do dia 22 de abril do corrente ano:
“Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a
palhaçada do STF trazer o aborto de novo para a pauta,
e lá tava a questão de ... as mulheres que são vítima do
zika vírus vão abortar, e agora vem do coronavírus? Será
32. que vão querer liberar que todos que tiveram coronavírus
poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral?” (LAUDO
Nn 1242/2020 - INC/DITEC/PF, pg 46)
Deve-se sempre sublinhar que a defesa das instituições democráticas,
segundo a Constituição, é de competência comum entre todos os entes
federados, justamente por se tratar de uma preocupação difusa. Não à toa,
também se estabelece, no texto constitucional, que uma das funções
essenciais do Ministério Público é justamente a defesa do regime
democrático. E é justamente sob essa égide que se promove o presente
pedido.
Com efeito, a Lei nº 7.170/83 define os crimes contra a segurança
nacional – curiosamente, uma lei editada justamente sob a égide da ditadura
militar e sem nenhuma alteração até hoje, justamente porque, no regime
democrático, nunca se cogitou de qualquer possibilidade de ato atentatório à
própria democracia, naturalmente tida como um consenso mínimo em toda a
sociedade.
Entre outros crimes, a Lei prescreve condutas que lesam ou expõem a
perigo de lesão o regime representativo e democrático (art. 1º, II). Entre os
tipos penais específicos, a Sra. Damares potencialmente incorre na previsão
contida em seu art. 18. Veja-se:
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave
ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da
União ou dos Estados.
Pena: reclusão, de 2 a 6 anos. (grifos nossos)2
2
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>. Acesso em: 31/10/2019.
33. Não se deve ignorar o fato de que, dada a sua posição, a Ministra da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem um potencial de incentivo
muito grande. Isso é, qualquer cidadão que compartilhe suas pretensões
contrárias às medidas de isolamento e adotadas por governadores e prefeitos
pode se sentir convidado a externalizar, inclusive de modo violento, o seu
ímpeto antidemocrático.
Justamente por isso, a Lei de Segurança Nacional prescreve como
criminosa a conduta de fazer propaganda ou incitações para tentativas de
lesionar o regime representativo e democrático (leitura sistemática dos arts.
22, 23 e 1º, II).
Na seara dos crimes comuns, observa-se, ainda, que a Ministra
praticou o crime previsto no art. 139 do Código Penal, relativamente à
declaração sobre o governador Wellington Dias, do Piauí:
Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa..
Da mesma forma, como descumpriu decisão do STF, incorreu no crime
de desobediência previsto no art. 359 do Código Penal:
Desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de
direito
Art. 359 - Exercer função, atividade, direito, autoridade ou
múnus, de que foi suspenso ou privado por decisão judicial:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, ou multa.
Noutro giro, aliás, além dos crimes comuns, a Sra. Damares Regina
Alves também incorreu na prática de verdadeiros crimes de
responsabilidade, cuja denúncia, nos termos de jurisprudência do Eg.
STF, cabe a essa Procuradoria-Geral. O julgamento, frise-se, será dado
34. pelo próprio Supremo Tribunal (art. 102, I, c, da Constituição), mas o
processo precisa ser provocado, isso é, iniciado por essa Procuradoria.
Com efeito, fala-se aqui na Lei nº 1.079/50, que prevê algumas
condutas que, com clareza solar, se adéquam ao proceder da Ministra.
Veja-se:
Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do
Presidente da República que atentarem contra a
Constituição Federal, e, especialmente, contra:
(...)
II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder
Judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados;
III - O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre
exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes
constitucionais dos Estados:
(...)
5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do
Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos
seus atos, mandados ou sentenças;
6 - usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou
jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença
ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;
Vê-se, então, que a Sra. Damares Regina Alves também cometeu
crime de responsabilidade apto a ensejar o julgamento pelo Eg. STF. Como
os crimes, comum e de responsabilidade, têm, naturalmente, dimensões
35. distintas - um é infração político-administrativa, ao passo que o outro é
infração penal -, não configura bis in idem a pretensão de buscar a
responsabilização no dúplice vértice. E isso, frise-se, independentemente
de a jurisprudência do STF entender que o crime de responsabilidade de
Ministro de Estado ser denunciável privativamente por essa
Procuradoria-Geral.
Portanto, vê-se que, indubitavelmente, a conduta da Sra. Damares
Regina Alves é claramente incompatível com o regime democrático, com
violações diretas à Lei de Segurança Nacional e à Lei de Crime de
Responsabilidade. Afinal, o que ela pretende é intimidar governadores e
prefeitos no cumprimento de seu mister institucional, opondo-se
diretamente e por fatos ao entendimento proferido no julgamento da (ADI)
6341 pelo STF.
Ou seja, a fala de uma das principais ministras do Governo de Jair
Bolsonaro é inaceitável e anacrônica. Não se pode permitir, de forma alguma,
qualquer tipo de ameaça contra a democracia. A Ministra precisa se compor e
aceitar que está sob a égide do Estado Democrático de Direito. Não há
espaço para incitar a população contra seus governantes, para ameaçar as
instituições e a Constituição Federal.
Dessa forma, não há dúvidas de que a Sra. Damares Regina Alves
deve ser responsabilizada por tal ato, inclusive para se coibir qualquer ímpeto
antidemocrático em nossa sociedade. Não se trata aqui de uma pretensão
contrária à liberdade de expressão, mas de legítima preocupação para que o
discurso não ganhe coro e gere verdadeira “desobediência civil”.
3. DOS PEDIDOS
36. Nesse sentido, solicitamos a Vossa Excelência, na qualidade de
Ministro responsável pela condução do Inquérito que deu motivo à divulgação
do vídeo em que constavam os inúmeros ilícitos, oficie à Procuradoria-Geral
da República para que aquela promova a abertura de inquérito a fim de
apurar a licitude do comportamento de DAMARES REGINA ALVES, Ministra
de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em relação aos
fatos narrados no presente pedido.
Solicita-se, desde logo, a tomada de depoimento da Sra. Ministra
DAMARES REGINA ALVES e o seu imediato afastamento do cargo, dentro
do poder geral de cautela atribuível aos Magistrados em geral, para que se
evitem maiores danos à Democracia e às investigações.
Termos em que pede deferimento.
Brasília, 23 de maio de 2020.
RANDOLFE RODRIGUES
Senador da República (REDE-AP)
ALESSANDRO MOLON
Deputado Federal (PSB-RJ)
JOENIA WAPICHANA
Deputada Federal (REDE-RR)
FABIANO CONTARATO
Senador da República (REDE-ES)
OAB/ES 31.672
FABIANO
CONTARATO
Assinado de forma digital por
FABIANO CONTARATO
Dados: 2020.05.23 13:15:36
-03'00'
37. EXCELENTÍSSIMO SENHOR PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
RANDOLPH FREDERICH RODRIGUES ALVES, brasileiro, divorciado, Senador da
República, portador da cédula de identidade nº 050360, inscrito no CPF sob o nº
431.879.432-68, com endereço profissional na Praça dos Três Poderes, Palácio do Congresso
Nacional, Senado Federal, Anexo I, 9º andar, CEP 70160-900;
ANDRÉ PEIXOTO FIGUEIREDO LIMA, brasileiro, divorciado, Deputado Federal,
portador da cédula identidade 10656 OAB/CE, , inscrito no CPF sob o nº 259.055.033-20,
com endereço profissional na Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete nº 940,
Brasília-DF, CEP 70160-900;
ALESSANDRO LUCCIOLA MOLON, brasileiro, casado, Deputado Federal, portador da
Cédula de Identidade nº 075.754.143 IFP/RJ e do CPF nº 014.165.767-70, com endereço
profissional na Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete 304, Brasília – DF, CEP:
70160-900.
vêm apresentar, com fulcro no art. 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, no
art. 27 do Código de Processo Penal, na Lei de Segurança Nacional, e na Lei de Crime de
Responsabilidade,
REPRESENTAÇÃO
em face do Sr. AUGUSTO HELENO RIBEIRO PEREIRA, brasileiro, casado, Ministro de
Estado Chefe do Gabinete de Segurança Institucional, inscrito no CPF sob o nº
178.246.307-06, com domicílio legal no Palácio do Planalto - 4º andar - Sala 406 - Praça dos
Três Poderes - Brasília - DF, CEP: 70150-900, pelos fatos e fundamentos que passa a expor.
38. 1. DO FATO A SER NOTICIADO
Na data de hoje, 22 de maio de 2020, o Sr. Augusto Heleno publicou, em sua conta
pessoal no Twitter , a seguinte “nota à imprensa”:1
1
Disponível em: <https://twitter.com/gen_heleno/status/1263896941349535746/photo/1>. Acesso em
22/5/2020.
39. Tal nota se insere no contexto de uma pretensa resposta institucional do Ministro
Heleno ao envio, pelo Ministro Celso de Mello a esta Procuradoria-Geral, de análise pedido
de busca e apreensão do celular pessoal do Sr. Presidente da República.
Como se vê, contudo, a resposta do Sr. Ministro Heleno transborda as balizas do
ordenamento jurídico, na medida em que há verdadeira ameaça ao adequado funcionamento
do órgão máximo de um Poder Constituído. Afinal, ninguém sabe o que esconde o termo
“consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Seguindo essa linha, essa verdadeira demonstração de descaso do Ministro Heleno
pelas instituições democraticamente constituídas demanda a pronta atuação desta
Procuradoria-Geral da República, conforme os fundamentos de direito a seguir delineados.
2. DO DIREITO APLICÁVEL
De início, é importante conceber o adequado funcionamento do Poder Judiciário
como uma das balizas intransponíveis ao funcionamento do regime democrático. Afinal, os
Tribunais representam importante papel no exercício contramajoritário, ao preservar os
direitos fundamentais de minorias.
Com efeito, o regime democrático é um dos pilares de qualquer estado ocidental
moderno. Sem alongamento excessivo no tocante às bases da democracia, atualmente cinco
critérios básicos vêm sendo aferidos para assegurar o grau democrático de um país: o
processo eleitoral e pluralismo, as liberdades civis, o funcionamento do governo, a
participação política e a cultura política.
Usando exatamente esses critérios, a revista The Economist calcula, anualmente, um2
ranking de “índice democrático”. E a nossa posição não é muito animadora: nossa
democracia é classificada como “falha”, com uma nota entre 6.00 e 6.99 em uma escala de
0.00 a 10.00 (em 2018). O que esperar do nosso índice democrático após essas declarações
2
Disponível em: <https://www.eiu.com/topic/democracy-index>. Acesso em: 31/10/2019.
40. autoritárias de um Ministro de Estado? Qual imagem, interna e externa, queremos passar?
Certamente, não é das melhores com esse ímpeto antidemocrático.
Pois bem. Essa percepção de que a democracia é melhor forma de governo que temos
– materializada na ilustre frase de Churchill – já subsiste há alguns séculos, ou não se
discutiria a democracia grega. Embora hoje se faça uma série de críticas à efetiva participação
popular naquele regime, não se nega que as discussões lá postas foram o verdadeiro embrião
democrático. Contudo, o Sr. Augusto Heleno parece ignorar quase 3.000 anos de evolução no
pensamento filosófico e jurídico, ao pretender suplantar nosso já frágil regime democrático
por pretensões pessoais de alguma espécie de ato institucional para conter determinado viés
ideológico.
Especificamente no Brasil, a Proclamação da República em 1889 significou o início
de um suspiro democrático. Efetivamente, contudo, o primeiro presidente eleito por meio de
votos diretos foi Prudente de Morais, em 1894. De lá para cá, houve uma sucessão de
incursões autoritárias, na Era Vargas, República Nova e Ditadura Militar.
Desde a redemocratização – cujo ápice se deu com a Constituição de 1988 –, não mais
se cogitou de qualquer ímpeto antidemocrático, por mais que sempre houvesse vozes
defendendo o autoritarismo. Contudo, o que sempre representou uma voz distante – que,
justamente por vivermos em uma democracia, nunca foi cerceada – tornou-se realidade mais
transparente e próxima com o resultado das eleições de 2018.
Pois bem. O Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, dispõe, em seu preâmbulo, o
objetivo nuclear do estabelecimento de um quadro de instituições democráticas, fundado em
um regime de liberdade pessoal e de justiça social, com foco no respeito dos direitos
humanos essenciais. E também previa, como cláusula geral interpretativa, que as disposições
do próprio Pacto não poderiam afastar direitos e garantias que decorrem da forma
democrática representativa de governo. A ênfase democrática era enorme, justamente pelo
sombrio passado autoritário vivido na porção latino-americana do continente.
Inspirada no Pacto, a Constituição Federal de 1988, também em seu preâmbulo,
dispõe que o objetivo dos constituintes era a instituição de um “Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
41. bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Na sequência, a Constituição estabelece que a defesa das instituições democráticas é
de competência comum entre todos os entes federados, justamente por se tratar de uma
preocupação difusa. Não à toa, também se estabelece, no texto constitucional, que uma das
funções essenciais do Ministério Público é justamente a defesa do regime democrático. E é
justamente sob essa égide que se promove a presente representação.
Com efeito, a Lei nº 7.170/83 define os crimes contra a segurança nacional –
curiosamente, uma lei editada justamente sob a égide da ditadura militar e sem nenhuma
alteração até hoje, justamente porque, no regime democrático, nunca se cogitou de qualquer
possibilidade de ato atentatório à própria democracia, naturalmente tida como um consenso
mínimo em toda a sociedade.
Dentre outros crimes, a Lei prescreve condutas que lesam ou expõem a perigo de
lesão o regime representativo e democrático (art. 1º, II). Dentre os tipos penais específicos, o
Sr. Augusto Heleno potencialmente incorre em alguns deles. Veja-se:
Art. 16 - Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de
classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime
vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o
emprego de grave ameaça.
Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.
Art. 17 - Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça,
a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.
Parágrafo único.- Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena
aumenta-se até a metade; se resulta morte, aumenta-se até o dobro.
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave
ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos
Estados.
Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.
42. Art. 22 - Fazer, em público, propaganda:
I - de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem
política ou social;
IV - de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.
§ 1º - A pena é aumentada de um terço quando a propaganda for feita
em local de trabalho ou por meio de rádio ou televisão.
Art. 23 - Incitar:
I - à subversão da ordem política ou social;
II - à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes
sociais ou as instituições civis;
III - à luta com violência entre as classes sociais;
IV - à prática de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. (grifos nossos)3
Não se deve ignorar o fato de que, dada a sua posição, o General Heleno tem um
potencial de incentivo muito grande. Isso é, qualquer cidadão que tenha mínimo apreço pela
ideia autoritária pode se sentir convidado a externar, inclusive de modo violento, o seu
ímpeto antidemocrático.
Justamente por isso, a Lei de Segurança Nacional prescreve como criminosa a
conduta de fazer propaganda ou incitações para tentativas de lesionar o regime representativo
e democrático (leitura sistemática dos arts. 22, 23 e 1º, II). Há inclusive a previsão de uma
majorante justamente pelo potencial difuso da propaganda: nada com maior capilaridade
social do que as redes sociais, principalmente a de um Ministro de Estado, que utilizou-se do
Twitter para incentivar alguma atuação contrária ao STF.
3
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm>. Acesso em: 31/10/2019.
43. Noutro giro, aliás, além do crime comum pelo atentado a inúmeros tipos penais
constantes da Lei de Segurança Nacional, o Sr. Augusto Heleno também incorreu na
prática de verdadeiros crimes de responsabilidade, cuja denúncia, nos termos de
jurisprudência do Eg. STF, cabe a essa Procuradoria-Geral. O julgamento, frise-se, será
dado pelo próprio Supremo Tribunal (art. 102, I, c, da Constituição), mas o processo
precisa ser provocado, isso é, iniciado por essa Procuradoria.
Com efeito, fala-se aqui na Lei nº 1.079/50, que prevê algumas condutas que, com
clareza solar, se adéquam ao proceder o Ministro. Veja-se:
Art. 4º São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da
República que atentarem contra a Constituição Federal, e,
especialmente, contra:
(...)
II - O livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e
dos poderes constitucionais dos Estados;
Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos
poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos
Estados:
(...)
5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder
Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos,
mandados ou sentenças;
6 - usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado,
a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a
fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício;
Art. 13. São crimes de responsabilidade dos Ministros de Estado;
1 - os atos definidos nesta lei, quando por eles praticados ou
ordenados;
44. Vê-se, então, que o Ministro Heleno também cometeu crime de responsabilidade, apto
a ensejar o julgamento pelo Eg. STF. Como os crimes, comum e de responsabilidade, têm,
naturalmente, dimensões distintas - um é infração político-administrativa, ao passo que o
outro é infração penal -, não configura bis in idem a pretensão de buscar a responsabilização
no dúplice vértice. E isso, frise-se, independentemente de a jurisprudência do STF entender
que o crime de responsabilidade de Ministro de Estado ser denunciável privativamente por
essa Procuradoria-Geral.
Portanto, vê-se que, indubitavelmente, a conduta do Sr. Augusto Heleno é claramente
incompatível com o regime democrático, com violações diretas à Lei de Segurança Nacional
e à Lei de Crime de Responsabilidade. Afinal, o que ele pretende nem mesmo é permitido ao
poder constituinte de reforma, pois a Constituição estabelece como cláusula pétrea a
separação dos Poderes.
Ou seja, a fala de um dos principais ministros do Governo de Jair Bolsonaro é
inaceitável e anacrônica. Não se pode permitir, de forma alguma, qualquer tipo de ameaça
contra a democracia. O Ministro precisa se compor e aceitar que está sob a égide do Estado
Democrático de Direito. Não há espaço para ameaças às instituições e à Constituição Federal.
Dessa forma, não há dúvidas de que o Sr. Augusto Heleno deve ser responsabilizado
por tal ato, inclusive para se coibir qualquer ímpeto antidemocrático em nossa sociedade. Não
se trata aqui de uma pretensão contrária à liberdade de expressão, mas de legítima
preocupação para que o discurso não ganhe coro e gere verdadeira “guerra civil”.
3. DOS PEDIDOS
Nesse sentido, solicitamos a Vossa Excelência que, na qualidade de chefe do
Ministério Público Federal, requisite a instauração de inquérito para apurar a licitude do
comportamento do Sr. AUGUSTO HELENO, Ministro de Estado, em relação aos fatos
narrados na presente representação, tanto sob a ótica de crime comum, quanto de crime de
responsabilidade.
45. Termos em que pedem deferimento.
Brasília, 22 de maio de 2020.
RANDOLFE RODRIGUES
Senador da República (REDE-AP)
ANDRÉ FIGUEIREDO
Deputado Federal (PDT-CE)
ALESSANDRO MOLON
Deputado Federal (PSB-RJ)