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A Crítica da Razão Pura e a Descoberta das Categorias do
Entendimento
1. A Crítica da Razão Pura
A Crítica da Razão Pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) tem por
finalidade determinar os limites da razão pura, bem como determinar se a
metafísica pode ser uma ciência, isto é, se a metafísica chega a proposições
verdadeiras, seguras e necessárias, como é o caso para as proposições da
matemática e da física.
A razão chega a certas questões sobe o livre-arbítrio, o mundo, a alma, e
Deus, necessariamente, mas não é capaz de ter ciência à seu respeito; porque
não tem deles qualquer intuição, condição necessária aos juízos sintéticos a
priori, que são juízos necessários à constituição dos princípio de qualquer
ciência.
Ao contrário de Descartes, Kant rejeita a intuição intelectual, fundamental
ao projeto racionalista, e afirma que o conhecimento é a síntese entre forma e
matéria. A primeira dessas formas são as formas puras de intuição, o espaço e
o tempo, que impõem temporalidade e espacialidade a tudo o que percebemos;
assim, espaço e tempo não estão “lá fora”, mas são formas necessárias pelas
quais o sujeito organiza o que lhes aparece. A segunda dessas formas, são as
categorias do entendimento, pelas quais o entendimento organiza os objetos que
são percebidos. Assim, tudo o que podemos conhecer é o que nosso aparato
constrói a partir da matéria dada por um mundo exterior; podemos saber que há
um mundo exterior, porque ele é condição necessária para o conhecimento, mas
não podemos conhece-lo em si mesmo por causa desse duplo filtro imposto pelo
nosso aparato cognitivo. É por isso que Deus, alma, livre-arbítrio, e o mundo
como totalidade, estão fora do escopo do conhecimento humano; embora
possam ser pensados, não podemos ter deles qualquer intuição. Sem ela, a
razão pura vê-se metida em confusões, paralogismos e antinomias.
Fundamental ao seu projeto é a já mencionada noção de juízos sintéticos
a priori. Para Kant, juízos são predicações de sujeitos. Os sintéticos são
definidos em oposição aos analíticos: nos analíticos o predicado está contido na
definição do sujeito ou pode ser derivado pela mera aplicação do princípio de
não contradição, são aquele tipo tautológico, que não acrescentam nada à mera
definição, do tipo “solteiro são não casados”; os sintéticos, por outro lado, são
aqueles cujo predicado não está contido na definição do predicado, como “os
solteiros são mais felizes que os casados”. Os priori, são definidos em oposição
aos posteriori, que são aqueles cuja verdade carece de verificação empírica,
como a proposição de que chove agora na UFMG. Assim, os priori são aqueles
que não carecem deste tipo de verificação, como as tautologias. Quanto aos
sintéticos a posteriori e os analíticos a priori, Kant não coloca qualquer problema,
estes já eram conhecidos pela tradição; os sintéticos a priori é que são uma
inovação kantiana. Como mencionado acima, para ele os juízos que constituem
princípios de uma ciência, como as leis de Newton, de Lavoisier, são “sintéticas
a priori”. Não podem ser descobertas pela mera análise conceitual, tampouco
podem ser descobertas pela intuição sensível, como os a posteriori; eles
demandam lançar mão da intuição pura, que é a intuição das formas de intuição,
associada a aplicação das categorias do entendimento, que são a priori. Como
1) a intuição é um tipo não conceitual de acesso cognitivo, e 2) as formas puras
de intuição são priori, isto é, anteriores a qualquer matéria empírica para o
conhecimento; temos que por 1 os juízos são sintéticos e por 2 os juízos são
priori, por conjunção, sintéticos a priori. Um exemplo são os princípios da
geometria euclidiana, que não demandam qualquer conhecimento de matéria
empírica do conhecimento, pois dizem respeito à intuição pura do espaço; e
tampouco são puramente conceituais, por causa do recurso à intuição.
Fundamental ao sintético a priori kantiano foi ter recusado a tese empirista de
que chegamos ao tempo e ao espaço por abstração, mas tê-los considerado
formas puras de intuição, que permitem uma intuição pura; a priori, portanto.
Para atingir seu objetivo, Kant empreende um ambicioso projeto de
investigação da estrutura formal da razão, isto é, da razão despojada de toda o
conteúdo advindo da experiência; por isso seu objeto é a razão pura.
A Crítica da Razão Pura tem a seguinte estrutura:
Dedicatória
Prefácio à 2ª edição
Introdução (B1-
29)
I. Da distinção entre conhecimento puro e empírico (B1-3)
II. Somos possuidores de certos conhecimentos a priori e mesmo o entendimento comum jamais está
desprovido deles (B3-6)
III. A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e o âmbito de todo
conhecimento a priori (B6-10)
IV. Da distinção entre juízos analíticos e sintéticos (B10-4)
V. Em todas as ciências teóricas da razão estão contidos, como princípios, juízos sintéticos a priori
(B14-8)
VI. Problema geral da razão pura (B19-24)
VII. Ideia e divisão de uma ciência especial sob o nome de uma Crítica da razão pura (B24-9)
I. Doutrina
Transcendental
dos
Elementos (B31-
732)
Parte Primeira.
Estética
Transcendental (B33-
72)
1. Seção: do Espaço (B37-45)
2. Seção: do Tempo (B46-58)
Considerações gerais sobre a Estética Transcendental (B59-72)
Conclusão da estética transcendental (B72)
Parte Segunda.
Lógica
Transcendental (B74-
349)
Introdução. Ideia de uma lógica transcendental (B74-88)
Divisão Primeira.
Analítica
Livro Primeiro.
Analítica dos
CAP. I. Do fio condutor para a
descoberta de todos os conceitos
puros do entendimento (B91-116)
transcendental (B89-
349)
conceitos
(B90-169)
CAP. II. Da dedução dos conceitos
puros do entendimento (B116-69)
Livro
Segundo.
Analítica dos
princípios
(B169-349)
Introdução. Da capacidade
transcendental de julgar em geral
(B171-5)
CAP. I. Do esquematismo dos
conceitos puros do entendimento
(B176-87)
CAP. II. Sistema de todos os
princípios do entendimento puro
(B187-294): Axiomas da intuição,
Antecipações da percepção,
Analogias da experiência,
Postulados do pensamento
empírico em geral.
CAP. III. Do fundamento da
distinção de todos os objetos em
geral
em phaenomena e noumena (B294-
324)
Nota à anfibiologia dos conceitos de
reflexão (B324-49)
Divisão Segunda.
Dialética
transcendental (B349-
732)
Introdução
(B349-66)
I. Da ilusão transcendental (B349-
55)
II. Da razão pura como sede da
ilusão transcendental (B355-66)
Livro Primeiro. Dos conceitos da razão pura (B366-
96)
Livro
Segundo. Das
inferências
dialéticas da
razão pura
(B396-732)
CAP. I. Dos paralogismos da razão
pura (B399-428), sobre a psicologia
racional
Nota geral sobre a transição da
psicologia racional à cosmologia
(B428-32)
CAP. II. A antinomia da razão pura
(B432-595), sobre a cosmologia
racional
CAP. III. O ideal da razão pura
(B595-670), sobre a teologia
racional
Apêndice à
dialética
transcendental
(B670-732)
Do uso regulado das ideias da
razão pura (670-96)
Do projeto final da dialética natural
da razão humana (B697-732)
II. Doutrina
Transcendental
do
Método (B733-
884)
Introdução (B735-6)
CAP. I. A disciplina da razão pura (B736-822)
CAP. II. O cânone da razão pura (B823-59)
CAP. III. A arquitetônica da razão pura (B860-79)
CAP. IV. A história da razão pura (B880-4)
2. A Lógica e a Analítica Transcendental
a) Lógica Transcendental
Todo o conhecimento humano é constituído de dois elementos
fundamentais, intuição e conceito. A intuição é aquele elemento direto, não
discursivo e particular do conhecimento, é algo como os dados do sentido; os
conceitos são os objetos cognoscentes pensados, construídos pelo
entendimento, dotados de generalidade e orientadores de nossa cognição; de
certo modo, são os conceitos que organizam o que intuímos. Tanto o
entendimento quanto os conceitos podem ser puros ou empíricos, são puros
quando nada de empírico está misturado neles. Intuição e conceito constituem
os dois grandes “órgãos” do nosso conhecimento, a sensibilidade por um lado,
o entendimento por outro. Embora codependentes, enquanto constituintes do
conhecimento, estes não se misturam, e foi essa a razão para Kant ter dividido
a Doutrina Transcendental dos Elementos em Estética e Lógica transcendentais,
que são respectivamente as regras da sensibilidade e do entendimento.
Aqui será objeto somente a lógica. A lógica pode ser dividida em lógica
particular ou geral, e a geral em pura e aplicada. A lógica geral diz respeito às
regras absolutas para pensar corretamente, em oposição à particular que
fornece regras para se pensar corretamente a respeito de assuntos específicos.
Já a lógica pura é a lógica despida de toda condição empírica, psicológica ou
linguística. Diz respeito somente às regras a priori por meio das quais opera o
entendimento. A lógica aplicada é simplesmente a lógica in concreto, em suas
condições reais de uso.
A lógica transcendental é a ciência que trata das regras do entendimento,
mas somente enquanto trata de objetos a priori, que tem origem somente no
conhecimento. Difere da lógica pura, que trata somente de regras gerais do
pensamento como o terceiro excluído e princípio de não contradição, sem ter
nada a ver com qualquer intuição a priori; e da lógica aplicada, já que abstrai de
toda a empiria. A lógica transcendental está para o entendimento puro, como a
estética transcendental está para a intuição pura. É a ciência que investigar as
condições de possibilidade do entendimento.
Esta deve ser dividida em analítica e dialética transcendentais. A dialética
transcendental é a parte da lógica transcendental em que está contida sua
famosa crítica à metafísica. A dialética transcendental consiste naquela parte da
lógica transcendental, que os usos do entendimento para além de seus domínios
são desmascarados. Embora de enorme interesse na obra kantiana como um
todo, a dialética transcendental não será objeto aqui. A analítica transcendental,
por sua vez, é a parte da lógica em que a anatomia da forma pura do
entendimento é esmiuçada.
b) Analítica Transcendental e Analítica dos Conceitos
Kant nos fala de 4 condições para a analítica transcendental:
1. Que os conceitos sejam puros e não empíricos.
2. Que não pertençam à intuição nem à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento.
3. Que sejam conceitos elementares e sejam bem distintos dos derivados ou dos compostos de
conceitos elementares.
4. Que a sua tábua seja completa e abranja totalmente o campo do entendimento puro.
A analítica transcendental deve, portanto, isolar o entendimento, tratar de
seus elementos em minúcia e abarcar a totalidade de forma do entendimento.
Já a analítica dos conceitos tem por finalidade esmiuçar, não as operações do
entendimento, mas os conceitos, que jazem nele a priori, como disposições a ser
atualizadas pelo conteúdo empírico. Como dito, o conteúdo empírico está fora
de questão aqui, embora seja condição para o funcionamento in concreto do
entendimento.
3. A Descoberta dos conceitos Puros
O entendimento puro, faculdade que conhece de modo estritamente
conceitual e discursivo, é constituído de conceitos puros, que podem ser
reunidos numa lista mais ou menos pormenorizada. A filosofia transcendental
tem a vantagem e a obrigação de fornecer uma método para descoberta de
conceitos, superior ao modo casual como os conceitos são geralmente
elencados.
Tal método passa pela noção de que conceitos assentam-se em funções,
do mesmo que intuições assentam-se em afecções. Esta função consiste no
ordenamento de múltiplas representações, numa única representação comum.
Por isso os conceitos constituem juízos. O juízo de que “toda mudança tem uma
causa”, por exemplo, reúne várias representações num único juízo ordenado,
que pode ser enunciado, daí seu caráter discursivo. Kant divide os juízos na
seguinte tábua:
1.Quantidade: Universais, Particulares, Singulares; 2.Qualidade: Afirmativos, negativos
e infinitos; 3.Relação: Categóricos, hipotéticos, Disjuntivos 4. Modalidade: Problemáticos,
Assertóricos, Apodíticos.
Uma marcante diferença entre a sensibilidade e o entendimento é que a
sensibilidade consiste em receber afecções do mundo, enquanto o entendimento
age sobre as intuições, como um ordenador. Este ato é o que Kant chama de
síntese. A síntese pura, sem conteúdos empíricos ou particulares, é que dá o
conceito puro do entendimento, que referem-se a priori aos objetos por meio das
intuições puras do espaço e o tempo, por meio da tábua de juízos anterior, que
organiza e dá unidade às intuições puras do espaço e do tempo. A unidade da
função dos juízos e das intuições puras, é o que dá os conceitos puros do
entendimento.
Os conceitos puros também são chamados de categorias, seguindo a
Metafísica de Aristóteles, considerando que num certo sentido seu objetivo é
idêntico, descobrir os conceitos generalíssimos, irredutíveis a outros, por meio
dos quais o entendimento organiza o conteúdo empírico. Com a importante
diferença de que Aristóteles via as categorias como ontológicas, enquanto Kant,
não via nelas nada mais do que a maneira como o entendimento, por meio de
formas puras da intuição, organiza as intuições numa síntese, que permite fazer
juízos com conteúdos.
As categorias do entendimento também são ordenadas numa tábua:
1. Da quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade; 2. Qualidade: Realidade, negação, limitação;
3. Da Relação: Inerência e subsistência, Causalidade e dependência (causa e efeito) e
Comunidade (ação recíproca entre o agente e o paciente) 4. Da Modalidade: Possibilidade —
Impossibilidade Existência — Não-existência Necessidade — Contingência.
A tábua pode ser divida em duas partes, 1 e 2 refere-se aos objetos da
intuição, empírica e pura; 3 e 4 às suas existências, tanto em sua relação entre
si quanto à sua relação com o entendimento. As primeiras duas podem ser
chamadas de matemáticas, as últimas de dinâmicas. Somente a segunda,
contém correlatos, como a causalidade e comunidade.
A descoberta das categorias puras do entendimento constituem grande
inovação na filosofia. Se antes as categorias eram vistas como aspectos
generalíssimos da realidade, do ser enquanto ser, Kant as coloca em nosso
entendimento. São elas que permitem completar a estética transcendental, e
fornecer um fundamento não meramente empírico paras as ciências, escapando
das consequências céticas de Hume; bem como preparar o caminho para a
dialética transcendental, onde sua famosa crítica à metafísica está contida.

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A Crítica da Razão Pura de Kant e as categorias do entendimento

  • 1. João Victor Ferreira de Almeida 2021011709 A Crítica da Razão Pura e a Descoberta das Categorias do Entendimento 1. A Crítica da Razão Pura A Crítica da Razão Pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) tem por finalidade determinar os limites da razão pura, bem como determinar se a metafísica pode ser uma ciência, isto é, se a metafísica chega a proposições verdadeiras, seguras e necessárias, como é o caso para as proposições da matemática e da física. A razão chega a certas questões sobe o livre-arbítrio, o mundo, a alma, e Deus, necessariamente, mas não é capaz de ter ciência à seu respeito; porque não tem deles qualquer intuição, condição necessária aos juízos sintéticos a priori, que são juízos necessários à constituição dos princípio de qualquer ciência. Ao contrário de Descartes, Kant rejeita a intuição intelectual, fundamental ao projeto racionalista, e afirma que o conhecimento é a síntese entre forma e matéria. A primeira dessas formas são as formas puras de intuição, o espaço e o tempo, que impõem temporalidade e espacialidade a tudo o que percebemos; assim, espaço e tempo não estão “lá fora”, mas são formas necessárias pelas quais o sujeito organiza o que lhes aparece. A segunda dessas formas, são as categorias do entendimento, pelas quais o entendimento organiza os objetos que são percebidos. Assim, tudo o que podemos conhecer é o que nosso aparato constrói a partir da matéria dada por um mundo exterior; podemos saber que há um mundo exterior, porque ele é condição necessária para o conhecimento, mas não podemos conhece-lo em si mesmo por causa desse duplo filtro imposto pelo nosso aparato cognitivo. É por isso que Deus, alma, livre-arbítrio, e o mundo como totalidade, estão fora do escopo do conhecimento humano; embora possam ser pensados, não podemos ter deles qualquer intuição. Sem ela, a razão pura vê-se metida em confusões, paralogismos e antinomias. Fundamental ao seu projeto é a já mencionada noção de juízos sintéticos a priori. Para Kant, juízos são predicações de sujeitos. Os sintéticos são definidos em oposição aos analíticos: nos analíticos o predicado está contido na definição do sujeito ou pode ser derivado pela mera aplicação do princípio de não contradição, são aquele tipo tautológico, que não acrescentam nada à mera definição, do tipo “solteiro são não casados”; os sintéticos, por outro lado, são aqueles cujo predicado não está contido na definição do predicado, como “os solteiros são mais felizes que os casados”. Os priori, são definidos em oposição aos posteriori, que são aqueles cuja verdade carece de verificação empírica, como a proposição de que chove agora na UFMG. Assim, os priori são aqueles que não carecem deste tipo de verificação, como as tautologias. Quanto aos sintéticos a posteriori e os analíticos a priori, Kant não coloca qualquer problema,
  • 2. estes já eram conhecidos pela tradição; os sintéticos a priori é que são uma inovação kantiana. Como mencionado acima, para ele os juízos que constituem princípios de uma ciência, como as leis de Newton, de Lavoisier, são “sintéticas a priori”. Não podem ser descobertas pela mera análise conceitual, tampouco podem ser descobertas pela intuição sensível, como os a posteriori; eles demandam lançar mão da intuição pura, que é a intuição das formas de intuição, associada a aplicação das categorias do entendimento, que são a priori. Como 1) a intuição é um tipo não conceitual de acesso cognitivo, e 2) as formas puras de intuição são priori, isto é, anteriores a qualquer matéria empírica para o conhecimento; temos que por 1 os juízos são sintéticos e por 2 os juízos são priori, por conjunção, sintéticos a priori. Um exemplo são os princípios da geometria euclidiana, que não demandam qualquer conhecimento de matéria empírica do conhecimento, pois dizem respeito à intuição pura do espaço; e tampouco são puramente conceituais, por causa do recurso à intuição. Fundamental ao sintético a priori kantiano foi ter recusado a tese empirista de que chegamos ao tempo e ao espaço por abstração, mas tê-los considerado formas puras de intuição, que permitem uma intuição pura; a priori, portanto. Para atingir seu objetivo, Kant empreende um ambicioso projeto de investigação da estrutura formal da razão, isto é, da razão despojada de toda o conteúdo advindo da experiência; por isso seu objeto é a razão pura. A Crítica da Razão Pura tem a seguinte estrutura: Dedicatória Prefácio à 2ª edição Introdução (B1- 29) I. Da distinção entre conhecimento puro e empírico (B1-3) II. Somos possuidores de certos conhecimentos a priori e mesmo o entendimento comum jamais está desprovido deles (B3-6) III. A filosofia precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os princípios e o âmbito de todo conhecimento a priori (B6-10) IV. Da distinção entre juízos analíticos e sintéticos (B10-4) V. Em todas as ciências teóricas da razão estão contidos, como princípios, juízos sintéticos a priori (B14-8) VI. Problema geral da razão pura (B19-24) VII. Ideia e divisão de uma ciência especial sob o nome de uma Crítica da razão pura (B24-9) I. Doutrina Transcendental dos Elementos (B31- 732) Parte Primeira. Estética Transcendental (B33- 72) 1. Seção: do Espaço (B37-45) 2. Seção: do Tempo (B46-58) Considerações gerais sobre a Estética Transcendental (B59-72) Conclusão da estética transcendental (B72) Parte Segunda. Lógica Transcendental (B74- 349) Introdução. Ideia de uma lógica transcendental (B74-88) Divisão Primeira. Analítica Livro Primeiro. Analítica dos CAP. I. Do fio condutor para a descoberta de todos os conceitos puros do entendimento (B91-116)
  • 3. transcendental (B89- 349) conceitos (B90-169) CAP. II. Da dedução dos conceitos puros do entendimento (B116-69) Livro Segundo. Analítica dos princípios (B169-349) Introdução. Da capacidade transcendental de julgar em geral (B171-5) CAP. I. Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento (B176-87) CAP. II. Sistema de todos os princípios do entendimento puro (B187-294): Axiomas da intuição, Antecipações da percepção, Analogias da experiência, Postulados do pensamento empírico em geral. CAP. III. Do fundamento da distinção de todos os objetos em geral em phaenomena e noumena (B294- 324) Nota à anfibiologia dos conceitos de reflexão (B324-49) Divisão Segunda. Dialética transcendental (B349- 732) Introdução (B349-66) I. Da ilusão transcendental (B349- 55) II. Da razão pura como sede da ilusão transcendental (B355-66) Livro Primeiro. Dos conceitos da razão pura (B366- 96) Livro Segundo. Das inferências dialéticas da razão pura (B396-732) CAP. I. Dos paralogismos da razão pura (B399-428), sobre a psicologia racional Nota geral sobre a transição da psicologia racional à cosmologia (B428-32) CAP. II. A antinomia da razão pura (B432-595), sobre a cosmologia racional CAP. III. O ideal da razão pura (B595-670), sobre a teologia racional Apêndice à dialética transcendental (B670-732) Do uso regulado das ideias da razão pura (670-96) Do projeto final da dialética natural da razão humana (B697-732) II. Doutrina Transcendental do Método (B733- 884) Introdução (B735-6) CAP. I. A disciplina da razão pura (B736-822) CAP. II. O cânone da razão pura (B823-59) CAP. III. A arquitetônica da razão pura (B860-79) CAP. IV. A história da razão pura (B880-4) 2. A Lógica e a Analítica Transcendental
  • 4. a) Lógica Transcendental Todo o conhecimento humano é constituído de dois elementos fundamentais, intuição e conceito. A intuição é aquele elemento direto, não discursivo e particular do conhecimento, é algo como os dados do sentido; os conceitos são os objetos cognoscentes pensados, construídos pelo entendimento, dotados de generalidade e orientadores de nossa cognição; de certo modo, são os conceitos que organizam o que intuímos. Tanto o entendimento quanto os conceitos podem ser puros ou empíricos, são puros quando nada de empírico está misturado neles. Intuição e conceito constituem os dois grandes “órgãos” do nosso conhecimento, a sensibilidade por um lado, o entendimento por outro. Embora codependentes, enquanto constituintes do conhecimento, estes não se misturam, e foi essa a razão para Kant ter dividido a Doutrina Transcendental dos Elementos em Estética e Lógica transcendentais, que são respectivamente as regras da sensibilidade e do entendimento. Aqui será objeto somente a lógica. A lógica pode ser dividida em lógica particular ou geral, e a geral em pura e aplicada. A lógica geral diz respeito às regras absolutas para pensar corretamente, em oposição à particular que fornece regras para se pensar corretamente a respeito de assuntos específicos. Já a lógica pura é a lógica despida de toda condição empírica, psicológica ou linguística. Diz respeito somente às regras a priori por meio das quais opera o entendimento. A lógica aplicada é simplesmente a lógica in concreto, em suas condições reais de uso. A lógica transcendental é a ciência que trata das regras do entendimento, mas somente enquanto trata de objetos a priori, que tem origem somente no conhecimento. Difere da lógica pura, que trata somente de regras gerais do pensamento como o terceiro excluído e princípio de não contradição, sem ter nada a ver com qualquer intuição a priori; e da lógica aplicada, já que abstrai de toda a empiria. A lógica transcendental está para o entendimento puro, como a estética transcendental está para a intuição pura. É a ciência que investigar as condições de possibilidade do entendimento. Esta deve ser dividida em analítica e dialética transcendentais. A dialética transcendental é a parte da lógica transcendental em que está contida sua famosa crítica à metafísica. A dialética transcendental consiste naquela parte da lógica transcendental, que os usos do entendimento para além de seus domínios são desmascarados. Embora de enorme interesse na obra kantiana como um todo, a dialética transcendental não será objeto aqui. A analítica transcendental, por sua vez, é a parte da lógica em que a anatomia da forma pura do entendimento é esmiuçada. b) Analítica Transcendental e Analítica dos Conceitos Kant nos fala de 4 condições para a analítica transcendental:
  • 5. 1. Que os conceitos sejam puros e não empíricos. 2. Que não pertençam à intuição nem à sensibilidade, mas ao pensamento e ao entendimento. 3. Que sejam conceitos elementares e sejam bem distintos dos derivados ou dos compostos de conceitos elementares. 4. Que a sua tábua seja completa e abranja totalmente o campo do entendimento puro. A analítica transcendental deve, portanto, isolar o entendimento, tratar de seus elementos em minúcia e abarcar a totalidade de forma do entendimento. Já a analítica dos conceitos tem por finalidade esmiuçar, não as operações do entendimento, mas os conceitos, que jazem nele a priori, como disposições a ser atualizadas pelo conteúdo empírico. Como dito, o conteúdo empírico está fora de questão aqui, embora seja condição para o funcionamento in concreto do entendimento. 3. A Descoberta dos conceitos Puros O entendimento puro, faculdade que conhece de modo estritamente conceitual e discursivo, é constituído de conceitos puros, que podem ser reunidos numa lista mais ou menos pormenorizada. A filosofia transcendental tem a vantagem e a obrigação de fornecer uma método para descoberta de conceitos, superior ao modo casual como os conceitos são geralmente elencados. Tal método passa pela noção de que conceitos assentam-se em funções, do mesmo que intuições assentam-se em afecções. Esta função consiste no ordenamento de múltiplas representações, numa única representação comum. Por isso os conceitos constituem juízos. O juízo de que “toda mudança tem uma causa”, por exemplo, reúne várias representações num único juízo ordenado, que pode ser enunciado, daí seu caráter discursivo. Kant divide os juízos na seguinte tábua: 1.Quantidade: Universais, Particulares, Singulares; 2.Qualidade: Afirmativos, negativos e infinitos; 3.Relação: Categóricos, hipotéticos, Disjuntivos 4. Modalidade: Problemáticos, Assertóricos, Apodíticos. Uma marcante diferença entre a sensibilidade e o entendimento é que a sensibilidade consiste em receber afecções do mundo, enquanto o entendimento age sobre as intuições, como um ordenador. Este ato é o que Kant chama de síntese. A síntese pura, sem conteúdos empíricos ou particulares, é que dá o conceito puro do entendimento, que referem-se a priori aos objetos por meio das intuições puras do espaço e o tempo, por meio da tábua de juízos anterior, que organiza e dá unidade às intuições puras do espaço e do tempo. A unidade da função dos juízos e das intuições puras, é o que dá os conceitos puros do entendimento. Os conceitos puros também são chamados de categorias, seguindo a Metafísica de Aristóteles, considerando que num certo sentido seu objetivo é idêntico, descobrir os conceitos generalíssimos, irredutíveis a outros, por meio dos quais o entendimento organiza o conteúdo empírico. Com a importante diferença de que Aristóteles via as categorias como ontológicas, enquanto Kant,
  • 6. não via nelas nada mais do que a maneira como o entendimento, por meio de formas puras da intuição, organiza as intuições numa síntese, que permite fazer juízos com conteúdos. As categorias do entendimento também são ordenadas numa tábua: 1. Da quantidade: Unidade, Pluralidade, Totalidade; 2. Qualidade: Realidade, negação, limitação; 3. Da Relação: Inerência e subsistência, Causalidade e dependência (causa e efeito) e Comunidade (ação recíproca entre o agente e o paciente) 4. Da Modalidade: Possibilidade — Impossibilidade Existência — Não-existência Necessidade — Contingência. A tábua pode ser divida em duas partes, 1 e 2 refere-se aos objetos da intuição, empírica e pura; 3 e 4 às suas existências, tanto em sua relação entre si quanto à sua relação com o entendimento. As primeiras duas podem ser chamadas de matemáticas, as últimas de dinâmicas. Somente a segunda, contém correlatos, como a causalidade e comunidade. A descoberta das categorias puras do entendimento constituem grande inovação na filosofia. Se antes as categorias eram vistas como aspectos generalíssimos da realidade, do ser enquanto ser, Kant as coloca em nosso entendimento. São elas que permitem completar a estética transcendental, e fornecer um fundamento não meramente empírico paras as ciências, escapando das consequências céticas de Hume; bem como preparar o caminho para a dialética transcendental, onde sua famosa crítica à metafísica está contida.