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2
A Arthur Sato Gregório, meu melhor amigo!
3
Agradecimentos
A minha orientadora, Malu, por ter acreditado em meus devaneios...
A minha família, pelo amor incondicional...
A Tianinha, pelo sorriso sempre presente...
A Bu, Ron e Tantra, pelo carinho, pela companhia e pelos pêlos no colo e nas
páginas dos livros de pesquisa...
A Valéria, Ricardo, Sophia, Nina e Lucas de Faria Cristofaro, por tudo de bom...
A Alessandro Corrêa, pela leitura sensível e poética...
A Eduardo Borges, pelo talento e entusiasmo...
Ao Marcel pelo amor e proteção...
A todos os amigos, por compartilharem com alegria este meu episódio
nonsense...
Aos colegas de mestrado, por fazerem a diferença no curso...
A família Daibert, nas pessoas de Eveline e Sr. Alciones, pela generosidade em
compartilhar comigo Arlindo e sua bela obra...
Ao Núcleo de Integração Cultural da UFJF, por valorizar e vestir a camisa deste
projeto...
Aos que acreditam nas diferentes formas de criação artística...
A Lewis Carroll, John Tenniel e Arlindo Daibert, pela inspiração e por tornar a
nossa vida mais bela com sua poesia nas diferentes linguagens.
4
[... quando] este trabalho começou a ser
desenvolvido, claro, era uma paixão minha pelo
livro, mas coincidiu também com um projeto de
pesquisa que estou a fim [sic] de desenvolver, que é
exatamente o projeto de tradução gráfica do texto
literário. [...] um projeto de pesquisa da área
integrada de literatura e artes plásticas.
Arlindo Daibert
[...] and what is the use of a book without pictures or conversation?
Alice (in Wonderland)
5
RESUMO
Esta pesquisa consiste em leituras dos livros Alice no país das maravilhas
(Alice’s adventures in wonderland, 1865) e Através do espelho (Through the
looking glass, 1871), do escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898). Inclui as
ilustrações originais, realizadas pelo cartunista inglês John Tenniel (1820-1914)
e a série de desenhos compostos a partir das duas obras pelo artista plástico
juizforano Arlindo Daibert (1952–1993), na década de 1970. O resultado da
pesquisa foi apresentado na forma escrita e das artes visuais, esta com a
finalidade de reforçar o estímulo à leitura das obras. A pesquisa teórica
focalizou o leitor-criador que lê, julga e constrói um novo texto, atuando como
finalizador da obra. São discutidos, ainda, a leitura de imagens, a ilustração de
livros, o texto de ficção, a ilustração crítica, a tradução de linguagens e a
associação de literatura e imagem. Buscou-se com isso atualizar a leitura de
um autor de ficção infanto-juvenil clássico do século XIX e com isso colocar
suas obras em pauta, estimulando as novas gerações de leitores a conhecer e
re-conhecer Alice, além de tomar conhecimento da arte de John Tenniel e
Arlindo Daibert.
Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil, leitura imagética, ilustração de texto,
artes visuais.
6
ABSTRACT
This research consists on the readings of Alice’s adventures in wonderland
(1865) and Through the looking glass (1871), by Lewis Carroll (1832-1898), of
the original illustrations, by John Tenniel (1820-1914) and the serie of drawings
created by the fine artist Arlindo Daibert (1952–1993), from Juiz de Fora, Minas
Gerais, Brazil, on 1970’s. The result of this research is presented in different
languages: by writing and as a fine arts exibition to reinforce the strategy to
stimulate the reading of the books. The theory is foccused on the “creator
reader”, who reads, makes its own judgements and builds its own new text,
working as the final stage of the compositions. There were considered other
concepts as image reading, book illustration, ficcional literature reading, critical
illustration, languages translation and the association literature-image. The
intention is to update the reading of a classic fiction literature from XIXth century
and to bring the books near to the eyes of the contemporary readers, by
stimulating the new generation to know and to recognize Alice books, and also
to have contact with the art of John Tenniel and Arlindo Daibert.
Key-words: Literature for child and teen ages, text and image reading, book
illustration, fine arts
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................
.... 7
LER
ALICE....................................................................................................... 14
1.1 Regras para o nonsense.................................................................... 24
1.2 Nonsense contra as regras............................................................... 28
VER
ALICE....................................................................................................... 33
2.1 Alice de Tenniel.................................................................................. 36
2.2 Alice de Daibert.................................................................................. 43
EXPOR
ALICE.................................................................................................. 52
3.1 Tradução............................................................................................. 53
3.2 Transposição...................................................................................... 56
3.3 Composição....................................................................................... 58
CONCLUSÃO...........................................................................................
........ 82
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................
.. 86
8
INTRODUÇÃO
A relação entre a literatura e as demais artes é um lugar comum de
discussão desde a Antigüidade. A Poética, de Aristóteles, está repleta de
comparações entre a poesia e as demais artes, mas sobretudo com as artes
visuais. Essas comparações foram feitas também por outros autores da
Antigüidade clássica, como Platão, Horácio e Simonides de Ceos, que afirmou,
no século V a.C., que "a pintura é uma poesia muda; a poesia uma pintura que
fala” (apud LESSING, 1998). Horácio fez uma comparação entre a poesia e a
pintura que se tornou o lema de uma longa história de comparações e
aproximações dessas duas formas artísticas. Seu verso ut pictura poesis
(poesia é como pintura), de Ars Poetica, é citado constantemente em tratados
sobre poesia e pintura do século XVI até os dias de hoje (LESSING, 1998).
Mário Praz (1970), em seu livro Mnemosine: paralelo entre la literatura y las
artes visuales comenta que a idéia de irmandade entre as artes tem estado tão
enraizada na mente humana, desde a Antigüidade mais remota, que deve
existir nela algo mais profundo do que uma simples especulação, algo que
atormenta e não deseja ser descartado rapidamente1
.
1
“Poder-se-ia (sic) dizer que, ao investigar estas relações misteriosas, os homens acreditam
estar próximos de todo o fenômeno da inspiração artística”.
9
No Renascimento, a comparação entre a poesia e a pintura também
serviu para se tentar conquistar estatuto digno para a atividade do pintor, que
era considerada inferior à do poeta. O artista plástico era visto mais como um
artesão do que como intelectual. Leonardo da Vinci escreveu um tratado
comparando essas duas artes, em que defende a superioridade da pintura
sobre a poesia (PRAZ, 1970). Com esse trabalho Da Vinci encontra-se entre os
precursores de um longo debate - ainda em pauta nos dias atuais - entre as
artes visuais e as artes "verbais", que recebeu o nome de paragone
(comparação, em italiano, mas que também tem relação com a idéia de
competição ou luta: agon, em grego). A partir do Renascimento, recuperou-se
também a tradição clássica da poesia descritiva (PRAZ, 1970), ou seja, pinta-
se desde o século XV de um modo eminentemente intertextual: os quadros
representavam idéias que estavam na Bíblia, nas narrativas mitológicas e
históricas, em tratados sobre comportamento e tipos humanos, como é caso
dos retratos (MANGUEL, 2001). Nesse contexto, a pintura histórica é a mais
valorizada (GOMBRICH, 1999); por outro lado, a própria poesia descritiva
aponta para uma tentativa do texto em atingir o mesmo efeito de espacialidade
e de presença concreta, características típicas das artes plásticas (PRAZ,
1970).
Apenas no início do século XVIII essa tradição - de estudar
comparativamente as artes, buscando impor a superioridade de uma ou de
outra - foi posta em questão. Isso ocorreu a partir do momento em que se
questionou a imitação (mimesis) na criação artística: se o artista passa a ser
visto como criador, então sua obra deve ser única e não simples cópia. Por
outro lado, também o aspecto material das obras passa a ser levado em conta:
10
na pintura valoriza-se cada vez mais a cor, e na poesia o trabalho com a
linguagem. Ao invés de se pensar a proximidade e convertibilidade das artes,
passa-se a pensar as diferenças entre elas (LESSING, 1998).
Assim, Lessing escreveu, em 1766, seu livro Laocoonte ou sobre as
fronteiras da poesia e da pintura, no qual defende a distinção dos campos de
cada arte. Para ele, a poesia deveria se limitar à representação de ações e a
pintura a representar figuras em repouso. Ele observa, ainda, que a
representação pictórica pertence ao espaço, sendo, desta forma, estática;
enquanto que a poesia pertence ao tempo sendo, portanto, dinâmica e
progressiva. Para o autor, as artes plásticas deveriam se abster de representar
as idéias, que só se deixariam expressar pela palavra; e a poesia deixar de
representar os corpos, salvo pela descrição por meio das ações dos
personagens, posição francamente aristotélica. Meios distintos, com propósitos
distintos (LESSING, 1998). Mas, apesar dessa tentativa de separação entre as
artes, o efeito dessa reflexão sobre a diferença entre os diversos meios de
cada campo artístico foi o de semear a idéia de uma obra de arte total,
sinestésica, ou seja, que atingiria mais de um dos nossos sentidos (MELLO,
2003).
No século XX a mistura entre as diversas artes faz parte dos
projetos estéticos das vanguardas. Uma das marcas no trabalho dos
vanguardistas, desde os seus primeiros momentos, é a reflexão sobre a
linguagem artística. Os cubistas como Picasso e Braque, por exemplo,
desconstroem a estrutura representativa e ilusionista da pintura com a quebra
da perspectiva, a recusa do trabalho realista com as cores e transformação da
tela e da pintura em uma espécie de campo escritural. Não por acaso eles
11
introduziram nesse processo a colagem e, sobretudo a colagem de letras e
palavras (A História Da Arte.Com, 2005).
Na segunda metade do século XX, desenvolveu-se cada vez mais
um novo campo para a poesia e para as artes a partir da incorporação das
assim chamadas novas tecnologias, os processos de digitalização e
transmissão eletrônica, que significaram espaços férteis para a interação entre
as diferentes artes na construção do que hoje chamamos de hipermídia.
Esse desenvolvimento simbiótico das artes não pode ser dissociado
da nova imagem do homem que se traça em um século de guerras, genocídio
e das descobertas da ciência. A separação rígida entre literatura e artes
plásticas correspondia a uma visão de mundo que isolava o corpo da mente. O
que hoje não é mais possível, pois a manifestação intersemiótica, que
ultrapassa a divisão entre os campos das artes e das letras é a arte do homem
contemporâneo. É sua forma de se expressar.
Utilizaremos aqui esta associação como recurso para apresentar a
leitura das obras de literatura fantástica infanto-juvenil Alice no país das
maravilhas (Alice’s adventures in wonderland, 1864-66) e Através do espelho
(Through the looking glass, 1871), do escritor inglês Lewis Carroll (pseudônimo
do matemático Charles Ludwig Dodgson).
Este estudo tem como abordagem principal a leitura das ilustrações
originais de Alice2
(de autoria do cartunista político inglês John Tenniel) e os
desenhos do artista plástico juizforano Arlindo Daibert, criados na década de
1970. Busca-se, também, conhecer e difundir parte dos estudos feitos sobre os
2
Tal como o estudioso de Lewis Carroll, Martin Gardner, em seu livro Alice comentada, decidiu-
se adotar, nesta dissertação, apenas o nome Alice, em itálico, quando o texto se refere a
ambos os livros simultaneamente: Alice no país das maravilhas e Através do espelho.
Quanto se referindo apenas à personagem, Alice, sem itálico.
12
processos de leitura de imagens, tradução de linguagens e de produção
artística envolvendo literatura e artes visuais. Espera-se com isso incitar a
curiosidade para estes caminhos de pesquisa e, se possível, estimular novos
trabalhos que, como este, levem à prática da associação da literatura com
diferentes áreas do conhecimento.
O projeto inicial previa apenas materializar estas respostas e as
impressões resultantes delas, utilizando formas artísticas criadas a partir da
leitura dos textos, mas a riqueza do assunto e novas associações de idéias
naturalmente transformaram o exercício de reunir literatura e artes plásticas em
uma dissertação de mestrado em Teoria de Literatura, somando às imagens
criadas uma pesquisa metódica sobre o tema.
Durante as primeiras leituras para esta pesquisa foi descoberto o
interesse do artista plástico juizforano Arlindo Daibert por Alice, do qual
resultou uma série de desenhos que passaram a compor parte importante da
pesquisa. Formado em Letras no Instituto de Ciências Humanas e Letras da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Daibert foi professor do
Departamento de Artes desta universidade e sua obra ficou caracterizada
também pelo resultado desta convergência: literatura e artes visuais. Ainda que
não existam registros conhecidos sobre a série Alice no país das maravilhas,
segundo a família do artista e outros pesquisadores, as publicações sobre
Arlindo Daibert, seus depoimentos e estudos de sua autoria acerca de outras
produções artísticas serviram como fontes de pesquisa para conhecer seu
processo de criação.
Ler as imagens criadas para Alice por John Tenniel, por sua vez,
significa um passeio pelo Período Vitoriano, sob a ótica não apenas de um
13
ilustrador de livros infantis, mas de um chargista político atuante em seu tempo,
crítico dos costumes da sociedade da época e, portanto, atualizado sobre as
personagens reais e acontecimentos pertencentes ao contexto em que as
aventuras de Alice tiveram origem. Estes detalhes tornam ainda mais particular
o ponto de vista de Tenniel.
Além dos livros de Alice e seu contexto de criação - o Período
Vitoriano na Inglaterra do século XIX - as referências ao tempo presente que
surgiram durante o processo de tradução de linguagens foram exploradas
sempre que se mostraram coerentes com a pesquisa.
A parte prática desta leitura de Alice, apresentada na forma de uma
exposição de artes plásticas, inclui outros recursos técnicos além do desenho;
o processo de concepção das peças utilizou como princípio a imagem como
um agente questionador, inaugural (MELLO, 2003). Foram projetados 17
trabalhos plásticos, todos ilustrados e comentados no capítulo 3 desta
dissertação.
Procurou-se evitar uma leitura puramente psicanalítica do autor,
como já propuseram outros inúmeros estudiosos - certamente mais habilitados
para tal tarefa - ou restringir o estudo ao possível perfil de pedófilo atribuído a
Carroll que, apesar de exaustivamente explorado, nunca foi comprovado
(GARDNER, 2003). Evitou-se também a associação direta das biografias de
Lewis Carroll/Charles Ludwig Dodgson, do ilustrador John Tenniel, de Alice
Liddell, que inspirou as obras, ou de Arlindo Daibert, com a pesquisa,
considerando apenas as informações biográficas relacionadas diretamente aos
textos, às imagens e sua concepção.
14
A conclusão da pesquisa apresenta o resultado desta leitura
utilizando a linguagem das artes plásticas associada à escrita. Este processo
de ilustração se serve do conceito de “leitor-sujeito” (GÓES, 2003), ou seja, o
leitor criador, que interfere, interpreta o que lê. A essa forma mais conceitual de
ilustração resultante da leitura de um texto, Daibert chama de “ilustração
crítica” (DAIBERT, 2000).
No caso desta pesquisa, a resposta às leituras de Carroll, Tenniel e
Daibert, expressa na forma de imagens escultóricas, pretende cumprir a função
original das ilustrações de livros que é estimular a leitura da obra escrita ou
estender e prolongar sua vida além do literário. A ilustração cumpre este papel
a partir do momento em que apresenta elementos que, se por um lado
independem do livro, por outro o enriquecem ampliando suas possibilidades de
leitura.
As leituras de Alice de Lewis Carroll, John Tenniel e Arlindo Daibert,
a interpretação destas leituras e a utilização das artes visuais como linguagem
para apresentar esta leitura pessoal compõem, resumidamente, a seqüência
deste trabalho. Além dos motivos supracitados, busca-se aqui apresentar
formas alternativas de leitura de uma literatura clássica com elementos que a
aproximam da linguagem contemporânea.
15
1. LER ALICE
Apenas o leitor faz da Bíblia, Bíblia
Friedrich SCHELEGEL
Assim que o homem conseguiu um instrumento para registrar a sua
interpretação sobre a vida ao seu redor, ele o fez, tornando-a perpétua e
acessível aos demais. O primeiro desejo de registrar e compartilhar
experiências com o outro, ou seja, de se comunicar, está gravado nas paredes
das cavernas com os desenhos rupestres. Calcula-se que há 40 mil anos a.C.
o ser humano começou a criar formas que reproduziam a realidade,
exprimindo, pela primeira vez, suas angústias e pavores. São consideradas as
primeiras manifestações artísticas escultóricas por trazerem significado
simbólico que vai além da função prática (READ, 1967).
Deste início deriva a chamada “força do olhar” que descobre,
percebe, apreende e devolve. Trata-se de um diálogo entre imaginação e
realidade. Nos dias atuais, esta relação da leitura com a sua própria expressão
encontra-se muito presente em livros que combinam a palavra-verbal com a
palavra-imagem, entendendo-se “palavra” como alusão a linguagem (GÓES,
2004).
16
Por esta peculiaridade, o livro é considerado um dos objetos
artísticos mais plenos. Tem a característica de ser lido da maneira que o leitor
preferir e nunca será decifrado da mesma forma. Por ser um objeto, ainda pode
ser modificado fisicamente pelo leitor e, apesar disso, seu conteúdo
permanece, mesmo à distância, como forma de conhecimento (MELLO, 2003).
Numa sociedade cada vez mais dominada pela cultura da imagem,
ao se discutir a relação texto-imagem e a consciência estética e representativa
expressa nesta relação, é preciso esclarecer que se trata de abordar o tema
tendo em vista uma melhor compreensão da literatura, e não preteri-la em favor
da imagem. A finalidade, neste caso, é enfatizar a importância da leitura como
interpretação e para isso, é necessário definir alguns conceitos.
Não existe leitura que não seja interpretativa. Toda aproximação
com o mundo - textual ou não - é um processo complexo onde se entrecruzam
o singular e o conceitual: toda leitura é releitura e apropriação, conforme
enfatiza SELLIGMAN-SILVA (2005).
A leitura interpretativa deve ser vista antes de tudo como um ato de
atualização, de apropriação de um texto atemporal no presente do leitor. Há um
deslocamento produtivo em todo ato interpretativo, que sempre responde a
certas exigências e necessidades impostas pelo contexto, ou seja, esse tempo
presente da leitura. As estratégias de interpretação dependem deste contexto e
de um universo de referencialidades individual e único. Uma das
conseqüências dessa interação com o presente do leitor é a pluralidade: para
cada leitor há uma leitura. Isto, porém, não significa que toda interpretação seja
válida.
17
Há o que Seligmann-Silva (2005) chama de ética da interpretação,
que prevê um compromisso de harmonia entre o texto/discurso e o
contexto/tempo presente do leitor. O que significa que toda interpretação é
passível de discussão e transita o tempo todo entre texto e contexto: o texto
deve ser lido como uma resposta ao contexto da criação da obra e a leitura
deve dialogar com o contexto do leitor, espontaneamente. É na interação entre
os diferentes pontos de vista que se chega a uma leitura que, por sua vez,
pode ser revista por outros indivíduos, em outras épocas e lugares.
Toda a escritura tem em si uma leitura potencial que vai depender
necessariamente de cada leitor que entrar em contato com a obra. É na leitura
que o ciclo da produção da obra se fecha, para logo depois se abrir em
múltiplas leituras. Nenhum texto permite uma leitura única e acabada
justamente porque cada leitura é determinada pelo contexto do leitor, que é,
nesta instância, um agente de criação da obra. Ler é sempre reler, não existe
uma primeira leitura absolutamente inocente: lemos palavras e idéias que
sempre ligamos a outras palavras e idéias e nunca associamos essas palavras
e idéias do mesmo modo (SELIGMANN-SILVA, 2005):
Portanto, um mesmo leitor lerá sempre de modo
diferente um mesmo texto. [...] quanto mais nos
aproximamos das várias camadas que compõem o
texto literário e quanto melhor as compreendemos,
mais a leitura fica rica, inteligente e interessante.
Neste sentido, o olhar do artista3
como leitor contribui para levantar
questionamentos, propor novos conceitos e “expor a complexidade humana”
(GÓES, 2004). O ato de ler relaciona cada texto lido aos demais seus
antecessores (contexto individual + outros textos já lidos) para reconhecê-los,
3
O termo artista aqui se refere inclusive ao ilustrador-crítico do texto, que vai narrá-lo com
outra linguagem que não a escrita.
18
significá-los, assimilá-los. É este processo que dota o leitor da capacidade de
admiração e o torna um leitor-sujeito de sua própria história. Ato de que é
revolucionário, pois “transforma o leitor passivo em leitor ativo, um co-autor,
doador de sentidos” (GÓES, 2004).
Assim como aplicável à literatura, esta definição de leitura é o
conceito básico, grosso modo, do ready-made, criação de Duchamp que define
a arte contemporânea no ocidente. Para Marcel Duchamp, a arte está em
perceber o potencial artístico de um objeto, sendo o conceito mais importante
do que a própria realização da obra (MELLO, 2003):
A forma definitiva! Foi mais ou menos isso que o
artista plástico Marcel Duchamp disse, ao olhar
uma hélice de avião. Essa não foi a primeira hélice
da vida de Duchamp. Mas ele a olhou, como pela
primeira vez, como uma criança perplexa, porque
percebeu naquela hélice [...] a forma pura. A arte
iguala artista e criança através da perplexidade. O
que mudou não foi a hélice [...]. Quem mudou foi o
artista, o seu modo de olhar a mesma hélice.
Ou seja, a leitura não se restringe a decodificar os elementos
narrativos, simbólicos, e o contexto em que se insere o objeto artístico. A leitura
do olhar é dinâmica por ser interpretativa por natureza. A interpretação não
pode ter em vista uma verdade isolada do objeto analisado, mas se assumir
como um processo multideterminado por fatores como a estética, a cultura e a
política. A leitura deve ser vista como um ato de apropriação de um conteúdo.
Nela ocorre uma transformação do contexto. Assim como para cada leitor há
uma leitura, para cada leitura, ainda que feita pelo mesmo leitor, há um novo
texto. Ao direcionar o olhar, o leitor escolhe sua verdade própria, seu ponto de
vista (MELLO 2003).
19
Ao inaugurar pontos de vista, o artista discute as individualidades,
utilizando sua arte como instrumento de experimentação e reflexão. Ele é
considerado um experimentador porque lê significados sem ignorar as outras
possibilidades; tem o olhar inaugural que vai despertar outros olhares para o
que não estava sendo percebido, provocando ações e atitudes. “Antes de mais
nada, o artista é um artista porque lê” (MELLO 2003).
Falando sobre texto e imagem na literatura infanto-juvenil a escritora
Ana Lúcia (2004) reitera a importância do artista como leitor, partindo do
princípio de que a ilustração é uma forma de linguagem que dialoga com a
linguagem verbal:
O bom ilustrador é sempre um excelente leitor de
literatura. [...] A literatura é um texto
plurissignificativo. Por isso exige que o ilustrador
seja um grande leitor de literatura, ou ele achata as
possibilidades do texto escrito por meio de uma
interpretação fechada e chapada. Isto é dirigismo.
O grande ilustrador deixa espaço para o imaginário
do leitor. Ele não lhe entrega todas as imagens
possíveis dadas pelo texto verbal. A ilustração [...]
passou de ornamento a linguagem.
Ela acrescenta ainda que é papel do livro “educar esteticamente” o
leitor quanto ao texto por meio de uma proposta estética bem realizada, que irá
criar um ritmo de leitura único. Desta forma, cria-se não apenas um bom leitor,
mas um bom fruidor de arte, que se expresse bem também visualmente, já que
dialoga com tudo o que vê/lê.
Um bom leitor também será introduzido ao mundo da escrita de
maneira positiva. Ao ler, o leitor de literatura alimenta o imaginário, o que o leva
ao desenvolvimento das capacidades de observar, analisar, refletir, criticar e
criar, com mais senso de humor e liberdade. A literatura, “munida de suas
potencialidades provocadoras do pensamento”, é o ponto de partida para a
20
formação de leitores. Nela a ficção se integra com a realidade, pois sua
matéria-prima é a experiência, a observação, a reflexão e o sonho. Ao unir
realidade e fantasia, o livro de literatura abarca temas da vida, mobilizando o
interesse de qualquer pessoa, em qualquer idade: “Não há instrumento mais
completo para levar à reflexão, à crítica e à criação do que a literatura” (SERRA
2001).
A decisão de apresentar um resultado imagético como conseqüência
desta dissertação procura chamar a atenção do leitor para uma das inúmeras
possibilidades de recontar uma obra literária, além de provocar
questionamentos, colocar as obras de Carroll em pauta e despertar a
curiosidade de ler - ou reler - Alice. Esta interpretação das histórias fantásticas
de Carroll passando pelas imagens busca, especialmente, uma aproximação
das obras com o leitor contemporâneo, uma vez que, embora famosas, as
aventuras de Alice são, ao mesmo tempo, cada vez menos lidas pelas novas
gerações de leitores de literatura infanto-juvenil, concorrendo com outros meios
de comunicação, oriundos do desenvolvimento tecnológico
(SCHOLLHAMMER, 2001).
Abundante em detalhes e enigmas, alguns compreensíveis apenas
para próprio Carroll e algumas de suas amigas crianças, os dois livros de Alice
têm 12 capítulos cada, envolvendo uma nova aventura em cada um deles,
dezenas de personagens com perfis elaborados, além de poemas e diálogos
nonsense. Talvez por sua complexidade as obras sejam mais lembradas pelos
leitores na atualidade através de personagens e cenas isoladas do que como
história, em seqüência convencional de começo, meio e fim. É freqüente a
mistura entre os conteúdos de Alice no país das maravilhas e Através do
21
espelho (este menos conhecido), não raramente tratados como uma única
história. Uma das referências mais populares sobre as aventuras de Alice, por
exemplo, a adaptação de Walt Disney para animação cinematográfica4
, reforça
essa confusão: o desenho animado combina cenas de ambos os livros e se
intitula Alice in wonderland, referência à primeira das duas aventuras.
Ao observar as obras mais de perto, o fenômeno desta leitura não
convencional aponta outros possíveis fatores. Tanto Alice no país das
maravilhas quanto Através do espelho são histórias fragmentadas, cujos
capítulos são quase independentes entre si. Ambas foram escritas a partir de
uma primeira versão oral5
, Alice's adventures under ground (As aventuras
subterrâneas de Alice) criada de improviso por Carroll em um de seus passeios
com Alice Liddell e suas irmãs, conforme conta o reverendo Robinson
Duckworth, amigo de Carroll, que os acompanhou no passeio
(COLLINGWOOD apud GARDNER, 2002:9):
Eu remava na popa e ele na proa da famosa
viagem a Godstow durante as férias longas, em que
as três senhoritas Liddell eram nossas passageiras,
e a história foi de fato composta e contada sobre
meu ombro para o entretenimento de Alice Liddell,
que estava servindo de “timoneiro” de nosso barco.
Lembro de me virar e dizer: “Isso é um romance
improvisado seu, Dodgson?” E ele respondeu: “É,
estou inventando a medida em que avançamos”.
O declarado interesse de Carroll pelos enigmas e nonsense ajuda a
tornar seu estilo característico, conforme ele mesmo confessa em uma carta
dirigida aos leitores de Alice no país das maravilhas, publicada ao final do livro,
na Páscoa de 1876 (CARROLL, 1876:150):
4
O primeiro longa-metragem em animação na história do cinema, de acordo com The
encyclopedia of Walt Disney's Animated Characters, de John Grant
5
Que teve uma versão manuscrita e ilustrada pelo próprio escritor (1862-1864) a ser discutida
adiante.
22
São estranhas estas palavras vindas de um escritor
de contos do tipo de 'Alice'? E é esta uma carta
estranha para se encontrar em um livro sobre
nonsense? Pode ser. Alguns talvez possam me
culpar por misturar coisas graves e alegres; (...)
mas eu acho - não, eu tenho certeza - de que
algumas crianças vão ler isto de forma gentil e
carinhosa, e com o espírito com o qual eu escrevi6
No artigo “The making of Alice in wonderland - the background &
history of Alice in wonderland”, do site Bedtime stories, é possível identificar
razões que reforçam tais características nos contos de Carroll: ele escreveu
quatro versões de Alice, sempre acrescentando personagens e episódios a
cada reescritura.
O primeiro manuscrito, Alice's adventures under ground, foi perdido
em 1864, mesmo ano em que Carroll/Dodgson presenteou Alice Liddell, no
Natal, com uma versão mais elaborada do conto, ilustrada com 37 desenhos
feitos de próprio punho. Este manuscrito vai dar origem à primeira aventura,
Alice’s adventures in wonderland. Traduzido no Brasil como Alice no país das
maravilhas, este primeiro livro narra as aventuras da menina Alice, aos sete
anos de idade, numa terra fantástica onde animais e objetos agem como
humanos e bolos e licores fazem o corpo crescer ou encolher de tamanho.
Neste livro, a protagonista interage com a corte da Rainha de Copas, cujos
personagens são inspirados nas cartas do baralho. São deste livro também o
Coelho Branco, o Gato de Cheshire, a Lebre de Março, o Chapeleiro Louco e a
Duquesa.
O segundo livro, Através do espelho, reúne personagens inspirados
no jogo de xadrez e outros provenientes do imaginário infantil, lendas ou de
6
Are these strange words from a writer of such tales as 'Alice'? And this is a strange letter to
find in a book of nonsense? It may so. Some perhaps may blame me for thus mixing together
things grave and gay; (...) but I think - nay, I am sure - that some children will read this gently
and lovingly, and in the spirit in which I have written it.
23
outros contos infantis da época. São eles, a Rainha Vermelha e a Rainha
Branca, a Tartaruga Falsa, o Grifo, o Jabberwocky (Pargarávio), os gêmeos
Tweedledum e Tweedledee, Humpty Dumpty, o Cavaleiro Branco, o Leão e o
Unicórnio, as Flores que Falam.
Ambas as aventuras consistem em “visitas” de Alice a universos
paralelos ao real, e ambos têm como passagem de acesso o sonho. Como na
construção onírica, estas visitas não têm uma seqüência obrigatória de fatos
que exijam do leitor uma leitura linear, capítulo a capítulo, para que haja
compreensão da história. Os capítulos são escritos como se fossem episódios
completos dentro de uma série.
Tal é a clareza desta forma de escrita que, em Alice comentada,
Gardner apresenta um episódio inédito escrito para Através do espelho, “O
marimbondo de peruca”. Ele foi excluído do livro, antes de sua publicação, sem
prejuízo para a história. O episódio foi descartado por Carroll, segundo
Gardner (2002), a pedido de John Tenniel, que se recusou a ilustrá-lo, como
comprova uma correspondência do cartunista endereçada a Carroll:
Meu caro Dodgson, [...] Não me considere brutal,
mas sinto-me obrigado a dizer que o capítulo do
‘marimbondo’ não me interessa em absoluto, e não
consigo imaginar como ilustrá-lo. Se quer [sic]
encurtar o livro, não posso deixar de pensar – com
toda a submissão – que aí está sua
oportunidade.[...] Sinceramente seu, John Tenniel.
Ler Carroll e ver Tenniel em Alice inevitavelmente aciona uma ponte
de espaço e tempo entre o contemporâneo – onde e quando se realiza esta
pesquisa – e a Inglaterra do século XIX, ou seja, o Período Vitoriano. No caso
de Carroll, as características literárias e costumes da época da rainha Vitória
serviram de referência tanto para finalidades educacionais quanto para duras
24
críticas, feitas com ironia e humor negro – como será discutido em seguida - o
que torna a obra singular e mais compatível com os leitores nos dias de hoje do
que outros contos infantis mais convencionais.
Soma-se a isso o fato de que o cartunista John Tenniel não apenas
foi contemporâneo de Lewis Carroll como foi seu amigo pessoal, e também por
isso eleito pelo próprio escritor como o ilustrador das duas obras de Alice, sob
a orientação e o olhar crítico do mesmo. Tenniel, por sua vez, impunha sua
visão, adicionando traços de seu perfil de caricaturista e muitas vezes entrando
em conflito com as idéias concebidas pelo próprio Carroll.
Juntos, Carroll e Tenniel são os criadores de um clássico universal
que resulta de discussões exaustivas sobre ambas as produções – literária e
visual – a ponto de se desentenderem e trocarem críticas mútuas. Mas o que
permanece historicamente é o fato de que Alice é um marco na literatura
infanto-juvenil universal por se tratar de uma revolução conceitual.
Para os especialistas em histórias infanto-juvenis a publicação de
Alice no país das maravilhas marca a liberação desta literatura dos rígidos
valores morais vigentes até então. O pesquisador Harvey Darton (2003) foi
além, ao chamar a obra de Carroll de “primeira aparição apologética da
‘liberdade de pensamento’ nos livros infantis”. Sobre o prazer do texto observou
que:
[...] de agora em diante o medo se foi, e com ele
uma inquietação tímida. [Os livros de Alice]
proporcionam horas de prazer livres do medo do
valor moral, do ponderável, do valor calculado e da
delimitação do prazer em si. Têm de ser
desfrutados é até mesmo divulgados sem prudência
nem remorso.
25
Fato curioso a respeito da Alice de Lewis Carroll é que em nenhum
dos dois livros o autor faz a descrição da aparência da personagem. As poucas
menções sobre o assunto, em ambos os livros de Alice, não são suficientes
para descrevê-la ou para conduzir o leitor a imaginar/visualizar sua aparência
física. No segundo capítulo de Alice no país das maravilhas, “The pool of tears”
(“Lago de lágrimas”) ao especular se havia se transformado em outra pessoa,
Alice faz referência aos seus cabelos que “não têm cachos” (CARROLL, 1994);
este é um dos poucos momentos em que o autor fornece informações sobre a
aparência de Alice. Isto é, o rigor com que os desenhos de Tenniel foram
controlados por Carroll tem como referência apenas a fotografia de outra
criança indicada pelo escritor7
e, principalmente, as instruções deste.
1.1 Regras para o nonsense
Alguns aspectos marcam as duas aventuras de Alice e podem ser
interpretados como temas e regras gerais predominantes abordados
conscientemente por Carroll (GARDNER, 2002; GRADESERVER, 2005).
Essas regras parecem determinar alguns padrões relacionados ao processo de
amadurecimento infantil na Inglaterra do século XIX, tomando como exemplo
Alice Liddell, amiga criança de Carroll. A menina era evidente alvo de uma
atenção especial do escritor, que por isso estabeleceu estreita convivência não
apenas com Alice como com toda a família Liddell (GARDNER, 2003).
7
Sobre Mary Hilton Badcock vide página 39, no segundo capítulo desta dissertação.
26
Essas regras contraditoriamente organizam um conjunto de “leis”
que regem a aparente dinâmica caótica dos mundos fantasiosos das duas
aventuras vividas pela personagem Alice:
♦ Passagem para o mundo adulto: É o tema central dos dois livros. As
aventuras de Alice fazem o paralelo entre a infância e a idade adulta. Ela
experimenta várias situações novas em que a capacidade de adaptação
é indispensável para seu sucesso. E vai demonstrando progressos no
decorrer do livro. No início ela mal consegue manter o controle para não
chorar, mas no final da primeira aventura ela está tão confiante que tem
segurança para enfrentar com determinação as regras impostas naquele
universo desconhecido que é o “País das Maravilhas” e que, portanto,
foge ao seu controle. A relação de Alice com a maioria dos personagens
lembra a relação das crianças com os adultos. Isso é reforçado pelas
reações da protagonista quanto ao caráter autoritário dos animais e
demais personagens de ambos os livros: “- Nunca recebi tanta ordem
em toda a minha vida!”, exclama no capítulo 9, “A história da tartaruga
falsa”, de Alice no país das maravilhas. No capítulo seguinte, “A
quadrilha da lagosta”, acrescenta: “- Como as criaturas dão ordens à
gente e nos fazem decorar lições! É como se eu estivesse na escola
neste momento.”;
♦ Mudança de tamanho: Ligada diretamente ao tema anterior, a mudança
de tamanho é um assunto recorrente, especialmente no primeiro livro.
As mudanças dramáticas de tamanho podem ser associadas
diretamente às alterações do corpo durante a adolescência. A chave,
27
mais uma vez, é a adaptabilidade. Incluem-se aqui os atos de comer e
beber para modificar o tamanho, necessário para as crianças do mundo
real alcançarem o universo adulto. As mudanças de tamanho de Alice
também significam, no livro, mudanças de perspectiva, que fazem com
que Alice veja o mundo de outros pontos de vistas. Na última cena,
ainda no “País das Maravilhas”, seu crescimento parece refletir seu
crescimento interior, já que ela se torna mais forte e confiante, capaz de
discordar das leis nonsense daquele lugar isto é, da face absurda de
qualquer lei, já que sua validade decorre, sempre, de sua transgressão;
♦ Sonho: Em ambas as aventuras Alice está dentro de um sonho. No
primeiro livro, em seu próprio sonho; no segundo, a questão fica mais
complexa: Alice fica em dúvida se é ela ou o Rei Vermelho quem sonha.
Neste caso, Gardner (2002) interpreta a questão como uma “estranha
espécie de regressão ao infinito”, onde o Rei sonha com Alice, que
sonha com o Rei, que sonha com Alice, como o efeito provocado ao se
posicionar dois espelhos frente a frente, de forma que os reflexos se
multiplicam infinitamente. Aí a introdução da dúvida e da alteridade
Alice/Rei Vermelho sugere o confronto entre as personalidades de
criança e adulto. Esta discussão sobre a alteridade também se
apresenta nas situações em que Alice discute consigo mesma,
discordando de seus próprios pensamentos. Estariam os limites (as
regras do nonsense) no mundo real já cristalizados em cada indivíduo,
tornando cada um sua própria autoridade?
28
♦ Morte: Este tema está muito presente nos livros. Alice freqüentemente
se refere a sua própria morte inconscientemente. Um exemplo é a cena
em que Alice verifica se há a inscrição “veneno” no licor que bebe e a
faz encolher (primeiro capítulo de Alice no país das maravilhas), ou
quando comenta que pode encolher até “acabar” como uma vela. Na
visão de Carroll, a infância parece ser um período perigoso: as crianças
são vulneráveis e o mundo apresenta muitas armadilhas fatais.
Um dos aspectos da morte mencionados no livro é sua
inevitabilidade, ou seja, uma vez que a mudança de tamanho é um
assunto freqüentemente discutido, a morte conseqüentemente é um
tema abordado, já que é a etapa final do crescimento. Esta atração por
temas grotescos é uma das características da literatura e das artes
plásticas no Período Vitoriano uma vez que, tal como a fantasia, o
grotesco é considerado um mundo à parte. O tema causava fascínio
entre os escritores da época, influenciados pelos avanços científicos de
que eram testemunhas, já que a origem da psicanálise e a teoria da
evolução das espécies eram alguns dos episódios que compunham
aquele contexto (The Victorian Web, 2004) e rediscutiam valores como a
fé e o estatuto do Homem em relação à natureza;
♦ Aprender regras/jogos: nos dois livros, todo novo encontro de Alice
com algum personagem relaciona-se com o ato de jogar e aprender
novas regras. Os jogos são parte constante da vida no “País das
Maravilhas” ou dentro do espelho. Desde a “corrida em comitê” (“caucus
race”) até o jogo de críquete, o fato da corte ser composta por cartas de
29
baralho, na primeira aventura, até o jogo de xadrez da segunda
aventura, quando a inteligência racional e consciente traça o rumo das
peças determinando o destino do jogador, a estrutura simbólica do jogo
está presente. Todos os jogos não poderiam deixar de ter regras
absurdas às quais Alice tem de se adaptar como qualquer jogador
iniciante. Aprender novas regras pode ser considerado aqui como uma
metáfora às adaptações às regras sociais do mundo adulto, vividas
pelas crianças quando crescem e pelos adultos por toda a vida. Downey
(THE VICTORIAN WEB, 2004) interpreta o jogo de xadrez, que
determina a dinâmica de Através do espelho, como uma metáfora para
demonstrar a necessidade de preservar as hierarquias sociais e
políticas, observando o papel das peças do jogo. Administrando as
novas regras, Alice amadurece no decorrer das histórias e avança, como
em qualquer jogo;
♦ Experiências com a linguagem e a lógica: Carroll gostava de enigmas
e trocadilhos. Os livros de Alice são repletos de jogos de palavras que
confundem a protagonista e entretêm os leitores. Os jogos e os
personagens demonstram todo o tempo as confusões para a
compreensão da linguagem de um modo geral e da língua inglesa
especificamente. É o caso, por exemplo, da discussão durante o chá na
casa da Lebre de Março, no primeiro livro: “Seria como dizer que ‘vejo o
que [eu] como’ é a mesma coisa que ‘[eu] como o que vejo’” (CARROLL
apud GARDNER, 2002, p.68). Jogos de palavra e de sentido, feitos por
Carroll, discutem o que é considerado racional pelos adultos, mesmo
que pareça contraditório.
30
Todos estes aspectos apontados acima têm relação direta com a
questão da educação na infância, e se encaixam com facilidade à postura
rígida dos adultos em relação às crianças no Período Vitoriano, quando os
livros foram escritos. Um paradoxo na narrativa de Carroll, é que, ao mesmo
tempo em que ele cita regras de comportamento da época, ele as desconstrói
com sua ironia.
1.2 Nonsense contra as regras
O Período Vitoriano ficou conhecido por seus valores conservadores
e repressores (The Victorian Web, 2004). Por seu comportamento distinto
dentro da sociedade da época – era uma pessoa solitária e tímida – Lewis
Carroll tinha uma visão diferente destes valores e dos conceitos de moral
vigentes (GARDNER, 2002). Esta pode ser a razão de seu isolamento e de sua
predileção pela matemática – onde não se lida com regras criadas pelas
sociedades - e pelas crianças, seres ainda não contaminados pelos valores
morais dos adultos.
Esta postura à parte da sociedade teve reflexos em sua literatura.
Tanto que seus personagens, diferentes de outros personagens de contos de
fadas, se destacam pela amoralidade, por se colocarem além dos limites do
que é considerado socialmente correto. Não há distinção, em Alice, entre
heróis e vilões. O final dos contos equivale ao despertar de um sonho8
,
diferente do “final feliz” tradicional da literatura infanto-juvenil tradicional. Ao
contrário, as obras de Carroll ridicularizam os contos de fadas mais
8
Até que ponto seriam considerados sonhos, já que o próprio ato de despertar repentino
durante um momento de tensão da história (que ocorre tanto em Alice no país das
maravilhas quanto em Através do espelho) caracteriza o pesadelo?
31
conservadores da época. Basta observar que os poemas de lógica absurda,
presentes nos dois livros, são paródias de poemas e canções tradicionais
daquele período, caso do poema “You are old father William”, recitado por Alice
no capítulo 5 de Alice no país das maravilhas, uma paródia do antigo poema
didático de Robert Southey (1774-1843) “The old man’s comforts and how he
gained them” (GARDNER, 2002).
Os personagens, em sua maioria, são mal-humorados e impacientes
com Alice e muitos a tratam com desrespeito ou indiferença. Seria uma crítica
de Carroll ao comportamento dos adultos em relação às crianças de sua
época?
Talvez por valorizar a infância e menosprezar os adultos – Alice
sempre se manifesta corajosamente ao discordar de alguma regra que
considera absurda, enfrentando, inclusive, rainhas e personagens “adultos” –
ambos os livros de Alice tenham tido sucesso imediato ao serem lançados, no
século XIX, e permaneçam como clássicos até os dias de hoje, inclusive entre
os adultos. Têm sido objeto de estudos nas mais diversas áreas do
conhecimento humano, da física à psicologia. Tema de montagens teatrais,
adaptações para o cinema, trilhas sonoras, artes visuais, material didático,
tendo sido traduzido em mais de 60 idiomas (The University Of British
Columbia Web, 2005). Por suas características próprias, mantém-se atualizado
aos olhos dos leitores contemporâneos – “a geração Internet” - que se
aventuram toca do coelho adentro ou através do espelho, junto com Alice.
Lewis Carroll - e John Tenniel, como se verá mais adiante - mantém-
se atual justamente por romper com o controle do “horizonte de expectativas”
(JAUSS apud SELIGMANN-SILVA, 2005) do leitor em qualquer tempo: Alice e
32
seus parceiros de aventuras estão longe de serem modelos de bom
comportamento e mesmo sua aparência, criada por Tenniel, não corresponde à
meiguice e delicadeza dos tradicionais personagens de contos de fadas.
O conceito de horizonte de expectativas foi introduzido pelo teórico
alemão Hans Robert Jauss nos anos 60. Com ele indicam-se os pressupostos
culturais, ou seja, as leituras já existentes (sociais, estéticas, literárias etc.) e
que estão por detrás da leitura presente. Cada obra é defrontada com certa
expectativa por parte do leitor: por outro lado, as obras literárias mais
consistentes seriam responsáveis por quebras e alterações nesse horizonte.
Na modernidade, toda a literatura - e as artes de um modo geral -
são caracterizadas por essa busca na quebra do horizonte de expectativas
(SELIGMANN-SILVA, 2005) como forma de transgressão com as formas
tradicionais de mimese controlada do real.
Nesse sentido outros teóricos já haviam pensado de uma forma ou
de outra, esse aspecto da criação artístico-literária. Caso dos formalistas
russos, para quem o procedimento da literatura é, antes de qualquer coisa, o
estranhamento, a que Hegel denomina grotesco ou arabesco (KAISER, 1957).
A linguagem da literatura deveria, conforme essa corrente crítica, atuar como
quebra da linguagem automática do cotidiano, construindo assim o traço da
literariedade. Para Jauss (apud Seligmann-Silva, 2005) a literatura seria o
campo de experimentação da linguagem, onde ela se abre para o novo e se
revela como construção constante de si mesma.
Esse encantamento provocado pela quebra do horizonte de
expectativa pode ser exemplificado, na obra de Carroll, pelo Gato de Cheshire,
personagem de Alice no país das maravilhas que, segundo Gardner (2002),
33
seria a representação do próprio Lewis Carroll no conto: “- Oh! É inevitável,
somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca [...] Só pode ser, ou não
teria vindo parar aqui”, diz ele a Alice.
O fascínio pelo mistério de ruptura das fronteiras entre a razão e a
loucura era outra tônica vitoriana - marcada pela revolução científica deste
período em que viveu Charles Darwin, por exemplo - que permanece
seduzindo pensadores contemporâneos. O que combina com perfeição ao
comentário do filósofo Sócrates sobre a razão (SÓCRATES apud GARDNER,
2002):
Vês, portanto, que uma dúvida sobre a realidade
dos sentidos é facilmente suscitada, já que pode
haver dúvida até quanto estarmos despertos ou
num sonho. E como nosso tempo é igualmente
dividido entre o sono e a vigília, em ambas as
esferas da existência a alma sustenta que os
pensamentos presentes em nossas mentes no
momento são verdadeiros [...]. E não pode o
mesmo ser dito da loucura e das outras desordens?
A única diferença é que os tempos não são iguais.
34
2. VER ALICE
A criação vive como gênese sob a superfície do visível da obra.
Para trás, todos os espíritos enxergam;
à frente – no futuro – só os criadores.
Paul KLEE
De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa (2005), a origem da expressão ilustrar data do século XV e traz,
entre seus significados, “tornar
ilustre, glorioso ou adquirir lustre, glória, celebridade; glorificar(-se);
transmitir ou adquirir conhecimentos; instruir(-se); tornar compreensível;
esclarecer, elucidar, comentar, explicar; enfeitar um texto com figura ou
estampa ou ainda servir como exemplo, demonstrar, exemplificar”; e tem
origem do latim illustro, “tornar claro, dar brilho, enfeitar”.
35
O termo, portanto, já em sua origem, representa muito mais do que
apenas sinônimo de certa figura que desempenha papel secundário diante do
texto. Para Fraga (2003), a ilustração tem a “sublime e ingrata” missão de
servir de convite ao esclarecimento e à reflexão, tendo o verbo ilustrar sentido
reflexivo por apontar para o ato de ilustrar e simultaneamente de ilustrar-se. Ele
lembra ainda outra referência, esta atribuída pela religião: em sua significação
divina, ilustração é o mesmo que inspiração.
A arte de ilustrar, neste caso, consiste em um estímulo ao
pensamento e à própria atividade criadora, cuja fonte encontra-se na inspiração
divina. A associação com o Iluminismo (século XVIII) estabelece a conexão da
ilustração com a filosofia. Os filósofos deste período defendiam que a razão
humana deveria libertar-se de todos os preconceitos e superstições e seguir
em direção a um modo de vida condizente com a modernidade (FRAGA, 2003):
Quando vemos uma boa ilustração, devemos
encará-la como um testemunho em defesa da
liberdade e da autonomia de pensamento, pois esta
ultrapassa e muito a visão particular do artista
responsável por sua criação. Representa [...] um
convite à instrução, à iluminação e – por que não? –
à filosofia.
A expressão “imagem” é uma das mais abrangentes e ao mesmo
tempo compreensíveis no vocabulário de língua portuguesa. Segundo Joly
(1996), embora nem sempre remeta ao visível, a imagem busca no visual
alguns de seus traços e depende de um sujeito que a produza ou reconheça,
seja de forma imaginária ou de forma concreta. Resumidamente, uma das mais
antigas definições de imagem, a do filósofo grego Platão, associa o termo ao
sentido de reflexo de um objeto original, uma representação (PLATÃO, 1956):
Que te parece agora que ele responderia a quem
lhe dissesse que até então só havia visto
36
fantasmas, porém que agora, mais perto da
realidade e voltado para objetos mais reais, via com
mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe
alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos,
o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que,
na sua grande confusão, se persuadiria de que o
que antes via era mais real e verdadeiro que os
objetos ora contemplados?
Para Joly (1996), porém, a imagem é uma representação dinâmica
que será determinada de acordo com o olhar do leitor, ainda que este leitor
seja, ele mesmo, o artista criador da imagem (entendendo-se aqui imagem em
conceito mais amplo, seja na forma escrita, na forma de desenhos e pinturas
bidimensionais, de objetos tridimensionais e até mesmo de objetos virtuais). O
próprio ato de imitar as pessoas e os objetos do mundo real utilizando um
esquema visual representativo indica a interferência do artista, sua forma
particular de leitura daquilo que busca representar. A autora vai além,
associando o conceito de imagem com a metáfora, que utiliza uma palavra por
outra, em virtude de sua relação analógica ou de comparação (JOLY, 1996):
[...] a ‘imagem’ ou a metáfora também pode ser um
procedimento de expressão extremamente rico,
inesperado, criativo e até cognitivo, quando a
comparação de dois termos (explícita e implícita
[sic]) solicita a imaginação e a descoberta de
pontos comuns insuspeitados entre eles. Esse foi
um dos princípios de funcionamento da ‘imagem
surrealista’ na literatura, é claro, mas também, por
extensão, na pintura (Magritte, Dali) ou no cinema
(Buñuel).
Retomando Fraga (2003), a imagem no processo educacional é um
poderoso recurso para tornar mais leve e atrativo o texto escrito, o que “em
uma sociedade cujo modelo educacional ainda tem como alicerce a repetição
a-crítica (sic) das idéias de poucos privilegiados” é uma tarefa complexa. A
utilização da imagem aproxima o educando e o leva a pensar de modo
37
autônomo, já que consiste em cativar o leitor primeiramente pelo seu sentido
mais imediato e desenvolvido, segundo Fraga, a visão.
Ainda em relação à educação visual, considerar os criadores de
imagens, as técnicas, os procedimentos, informações históricas, relações
culturais e sociais envolvidas na complexidade dos modos de produção de
imagem vai contribuir para a formação de um olhar mais crítico e criativo sobre
o contexto imagético em que se está inserido. Com a ampliação deste universo
perceptivo, torna-se mais fácil selecionar, distinguir qualidades, compreender
criticamente e até mesmo se comunicar por imagens (LOPES, 2001).
O exercício do olhar, de perceber o diferente, de desvendar os
significados, exige um trabalho continuado de educação, para que ele articule
percepção, imaginação, conhecimento, produção artística e, ao mesmo tempo,
valorize e respeite a multiplicidade e diversidade de pontos de vista, dos modos
de ver e estar no mundo. Percebemos a realidade de forma distinta porque
somos diferentes, nossas emoções, conhecimentos e experiências interferem
nas formas de ver e acarretam diferentes olhares sobre a realidade.
Referindo-se aos novos veículos de informação, como o hipertexto,
Schollhammer (2001) atenta para o fato de que atualmente é impossível
distinguir entre o elemento visual e o textual do signo. Isso cria uma nova
dimensão de significados não redutível nem ao sentido literal da linguagem
escrita nem à semelhança mimética da imagem.
Nenhuma imagem, hoje, representa um sentido em função da sua
pura visibilidade, mas encontra-se sempre inscrita num texto e também em um
contexto cultural maior, abrindo para formas diferentes de leitura, cujas
fronteiras ainda não percebemos com clareza. Em outras palavras, não se
38
pode tratar a imagem como ilustração da palavra nem o texto como explicação
da imagem. O conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo
fundamental para a compreensão das condições representativas de forma
geral.
2.1. Alice de Tenniel
A Alice do ilustrador e cartunista político John Tenniel (1820-1914) é
filha de um contexto que avança além dos limites da ilustração de um livro
infantil convencional. Trata-se do resultado de uma pesquisa que envolveu
orientações do próprio autor, de quem era amigo e que acompanhou de perto o
processo de ilustração, sugerindo e criticando os esboços e opinando sobre as
soluções apresentadas pelo cartunista.
Tal é o envolvimento de ambos neste processo que, por diversas
vezes, eles se desentenderam quanto à concepção de imagens-chave, como a
aparência da própria Alice, personagem principal (GARDNER, 2003). É do
próprio Carroll o comentário sobre os desenhos de Alice feitos por Tenniel:
O senhor Tenniel é o único artista que desenhou
para mim que se recusou resolutamente a usar um
modelo, declarando que tinha tão pouca
necessidade de um quanto eu de uma tabuada de
multiplicar para resolver um problema matemático!
Arrisco-me a pensar que estava errado e que, por
falta de um modelo, desenhou várias imagens de
‘Alice’ completamente desproporcionais – cabeça
evidentemente grande demais e pés evidentemente
pequenos demais.9
O livro realmente resulta das demandas exigidas pelo escritor e pelo
ilustrador, que discutiam freqüentemente a relação imagem/texto. Carroll
insistiu em dar as instruções detalhadas a respeito de seu tema, descrevendo
9
Trecho de carta citada em Alice comentada, p. 11.
39
detalhes como o tamanho das figuras, posição na página, exigindo que Tenniel
executasse precisamente o que ele tinha em mente.
O perfeccionismo de Carroll estendeu-se a cada aspecto do
processo de produção, da seleção da encadernação (preferiu o vermelho
brilhante como o mais atrativo às crianças) até à embalagem dos livros e ficou
satisfeito com a impressão da primeira edição.
Mas John Tenniel também impunha sua opinião: quando ouviu que o
artista ‘estava inteiramente descontente’ com a impressão das gravuras, Carroll
fez um exame crítico sério e decidiu se desfazer da edição inteira (GARDNER,
2002).
Curiosamente, a aparência da Alice de Tenniel não retrata a menina
Alice Liddell, que inspirou os livros, por orientação do próprio Lewis Carroll.
Liddel tinha cabelos escuros, lisos e curtos (imagem 1).
Por opção do escritor, a John Tenniel foi sugerido que utilizasse uma
fotografia de outra criança conhecida de Carroll, Mary Hilton Badcock (imagem
2). De cabelos longos, claros e ondulados.
Aliás, esta figura também coincide com a versão do próprio Carroll
(imagem 3) em seus desenhos destinados à versão manuscrita presenteada a
Alice Liddell, e que em muito se assemelha à versão de Tenniel (imagem 4).
1. Alice Liddell por Lewis Carroll. Fotografia, s/d;
40
2. Mary Hilton Badcock por Lewis Carroll. Fotografia, s/d;
3. As aventuras subterrâneas de Alice, manuscrito de Lewis Carroll. Desenho, 1864;
4. Alice de John Tenniel. Xilografia colorida, 1889
Os 42 desenhos de Tenniel para Alice nos país das maravilhas e os
49 para Através do espelho, ainda hoje são os mais famosos apesar da lista de
mais de 200 artistas que já ilustraram os livros de Carroll e que inclui nomes
como o de Salvador Dali.
Originalmente publicados em preto e branco, 20 das ilustrações de
Alice ganhariam cor apenas dezoito anos depois da publicação de Através do
espelho, no livro The nursery Alice (algo como A babá Alice, em português).
41
Uma versão adaptada de Alice no país das maravilhas, por Lewis Carroll para
crianças menores (GARDNER, 2003).
Tal é a importância das ilustrações de Tenniel sobre a obra de Lewis
Carroll que George Landow (2004), um estudioso do período vitoriano chega a
levantar a seguinte questão:
Desde que o autor do texto verbal (Dogson/Carroll)
influenciou (controlou?) tão intensamente as
imagens que acompanham a obra, será possível
interpretar o texto ignorando o visual? O que, em
outras palavras, é Alice no país das maravilhas e
Através do espelho – o texto verbal sozinho ou a
combinação entre palavra e imagem?
Em um período considerado como os anos dourados das ilustrações
de livros na Inglaterra, a John Tenniel foi atribuída a fama de elevar o estatuto
das charges políticas ao grau de composição clássica. A ponto de influenciar,
com suas imagens, as discussões nos meios mais cultos da Europa, mais até
que os escritos dos intelectuais de seu tempo (GARDNER, 2003).
Associar Tenniel com a crítica social e política é citar parte
fundamental de sua carreira, já que foi como cartunista da revista inglesa
Punch que o desenhista se manteve produtivo por boa parte de sua vida: nada
menos que 51 anos. Para a revista, criou mais de duas mil caricaturas e
ilustrações.
Entre os personagens que criou para as obras de Carroll encontram-
se algumas caricaturas de personagens reais, caso, por exemplo, da Duquesa
(imagem 5), supostamente inspirada em Margaret da Caríntia e do Tirol, cuja
grande semelhança de traços e de vestimentas pode ser constatada em seu
retrato executado pelo pintor flamengo Quentin Matsys, e que ficou conhecida
como “a mulher mais feia da História” (imagem 6).
42
5. A Duquesa no desenho de John Tenniel. Xilogravura colorida, 1889
6. A duquesa feia, pintura de Quentin Matsys, óleo sobre tela, séc. XIV
Outro registro histórico inserido por Tenniel é a presença de um
macaco entre os animais que saem do lago de lágrimas com Alice, no primeiro
capítulo das aventuras no “País das Maravilhas”. Embora não seja citado no
texto, ele aparece em duas das ilustrações desse capítulo (imagens 7 e 8) e,
na segunda delas, seria uma cópia exata de uma caricatura que Tenniel
publicou na revista Punch, em 1856, de Ferdinando II, rei das Duas Sicílias
(GARDNER, 2002).
43
7. e 8. A presença do macaco, registrada por Tenniel em duas ilustrações para Alice
no país das maravilhas. Xilogravura, 1865.
Ainda mencionando animais, um dos temas prediletos de Tenniel em
suas criações como caricaturista, uma característica é fortemente marcada em
Alice: a antropomorfia. Os personagens apresentados na forma de animais
sempre trazem características humanas, como mãos e pés humanos. Os
naturalmente quadrúpedes - como o Coelho Branco e a Lebre de Março, do
“País das Maravilhas”, e o Leão e o Unicórnio de Através do espelho - apóiam-
se sobre duas pernas, além do uso de vestimentas e calçados.
É o caso, inclusive, de Jabberwocky que, apesar de ser citado
apenas como um monstro dentro de um livro em Através do espelho, foi vestido
por Tenniel com um colete. A presença de animais antropomórficos é outra
marca do estilo vitoriano, também adotado por Carroll, que concede o dom da
fala e do raciocínio aos animais personagens dos dois livros, ainda que com
uma lógica nonsense.
Em seu processo de criação, Tenniel não gostava de utilizar
modelos, embora isso fosse prática comum em sua época. Para Alice, Carroll
orientou Tenniel para que ilustrasse os animais a partir das referências da vida
real, mas o cartunista insistiu em suas próprias criações fantasiosas. Em
44
entrevista realizada em 1889 (Spartacus Educational School Net, 2004) Tenniel
descreve seu processo de trabalho:
Eu encaminho meu trabalho da seguinte forma: Eu
nunca uso modelos ou a natureza para a
personagem, tecidos ou qualquer outra coisa. Mas
tenho uma memória maravilhosa para observação –
não para datas, mas tudo o que vejo memorizo.
As ilustrações de Tenniel foram consideradas tão sofisticadas e ricas
em detalhes que Walt Disney, ao realizar o longa-metragem de animação Alice
in wonderland, desistiu da idéia inicial de utilizar seus originais: a grande
quantidade de traços nos desenhos encareceria grandemente a produção (La
Página De Lewis Carroll, 2005).
Vale a pena lembrar que o método utilizado por John Tenniel, a
xilogravura, passava por um processo que consistia em desenhos preliminares
a lápis. Eram, então, passados a limpo com tinta sobre papel chinês branco
para transferência dos traços na matriz em madeira por entalhe artesanal.
Para a reprodução em série, esta matriz é copiada, ainda uma última
vez, em eletrotipos para clichês tipográficos. Um trabalho minucioso cuja
precisão e fidelidade ao desenho original depende também da habilidade dos
executores do entalhe. No caso de Alice, este trabalho foi executado pelos
Irmãos Dalzier (GARDNER, 2003).
2.2. Alice de Daibert
Arlindo Daibert Amaral (1952-1993) foi professor do Departamento
de Artes da UFJF e teve sua formação acadêmica em Letras pela UFJF,
departamento onde este mestrado foi desenvolvido. Estudioso das artes e
exímio desenhista (foi aclamado pela Associação Paulista de Críticos de Arte
45
(APCA) como Melhor Desenhista (1979) e autor da Melhor Exposição de
Desenho (1990)). Ao invés de transitar entre a literatura e as artes visuais,
optou por conjugá-las em estudos híbridos, que por vezes envolviam a
pesquisa histórica.
Caso de Macunaíma de Andrade, em que a série de ilustrações
críticas traz, além do livro, referências da biografia de Mário de Andrade, da
Semana de Arte Moderna e seus protagonistas: estes, mais que
contemporâneos, amigos do autor de Paulicéia desvairada (1922).
Seu interesse pelas duas linguagens artísticas o envolveu
naturalmente na criação do Centro de Estudos Murilo Mendes, do qual é
idealizador ao lado do artista plástico Leonino Leão. Criado em 1994, o centro
cultural reúne, em Juiz de Fora, Minas Gerais, a biblioteca particular e o acervo
de artes plásticas do poeta Murilo Mendes. Este acervo é considerado uma das
mais importantes coleções de Arte Moderna do Brasil.
A série Alice no país das maravilhas é formada por pelo menos 60
trabalhos identificados, entre desenhos e estudos. Inéditos em publicação, os
originais de Daibert encontram-se atualmente no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro, como parte do acervo da coleção Gilberto Chateaubriand. Para
os estudos desta dissertação, foram utilizadas reproduções fotográficas dos
desenhos da série, disponibilizadas pela família do artista.
Curiosamente, Daibert também intitula sua série de desenhos,
inspirada em Lewis Carroll, como Alice no país das maravilhas, embora nela
inclua as duas obras ora estudadas. Em entrevista publicada no livro Arlindo
Daibert: depoimento (2000), ele não faz distinção entre Alice no país das
maravilhas e Através do espelho, embora a série inclua imagens ou referências
46
a personagens como os gêmeos Tweedledum e Twedledee, Humpty Dumpty,
Jabberwocky, o Leão e o Unicórnio, todos do segundo livro.
O principal motivo de identificação deste trabalho com o do artista
juizforano é a comunicação entre as mesmas linhas de pesquisa: literatura e
artes visuais. Este caminho de produção de Daibert é uma de suas
características mais marcantes, sendo representado por outros trabalhos como
Macunaíma de Andrade (1981-82) (imagem 9), série de ilustrações em técnica
mista e inspirada em Macunaíma, de Mário de Andrade; e Imagens do Grande
Sertão (1973-76) (imagem 10), com ilustrações em técnicas que vão dos
desenhos às colagens, passando pelas xilogravuras, sobre Grande Sertão
Veredas, de Guimarães Rosa (SILVA e RIBEIRO, 2000). Ambos publicados na
forma de livro pela Editora da UFJF.
9.(Direita) O filho encarnado, Arlindo Daibert, lápis sobre papel, 1982 e 10. (Esquerda)
Pacto de Grande Sertão Veredas, de Arlindo Daibert. Xilogravura, 1984
O processo de criação de Daibert em suas obras visuais é definido,
pelo próprio artista, como “uma recriação do texto com os recursos da
linguagem gráfica” (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000) e não como
ilustrações literais dos livros. O que se evidencia quando afirma que a idéia de
47
realizar um trabalho gráfico a partir de Macunaíma, de Mário de Andrade, não
tem a pretensão de esgotar o livro ou de procurar ilustrá-lo literalmente.
Ele aponta a complexidade da composição do livro, a riqueza dos
diferentes climas poéticos, humorísticos e críticos e, principalmente, o uso da
língua como um instrumento de afirmação nacional, como os pontos que mais
o interessaram (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000):
Afastei a idéia de ilustrar o livro e preferi uma
recriação das possibilidades e limitações das
diferentes linguagens gráficas. [...] Os 58 desenhos
a partir do Macunaíma representam somente uma
das inúmeras possibilidades de trabalhar o texto
que permanecerá magicamente aberto a outras
interpretações. Cada vez mais vivo e vital, como o
próprio Mário: “Tem mais não”.
São poucos os registros escritos de Arlindo Daibert sobre sua série
Alice no país das maravilhas (1976-79), formada por desenhos em grafite e
lápis de cor sobre papel. Juntamente com as séries Gran circo alegria de viver
(imagens 11 e 12), Persephone (imagem 13 - detalhe) e Ofício das trevas
(imagem 14), a série Alice no país das maravilhas (imagem 15) foi apresentada
publicamente em exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro em 1977. Provocou, segundo Daibert, “uma reação normal a
qualquer exposição que acontece” (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000).
11 e 12. Da série Gran circo alegria de viver, Arlindo Daibert, crayon e lápis de cor
sobre papel, 1976;
48
13. (Esquerda) Da série Persephone, técnica mista sobre papel, 1975 e 14. (Direita)
Da série Ofício das trevas, crayon e lápis de cor sobre papel, 1977
15. “... burning with curiosity she...”, da série Alice no país das maravilhas; grafite e
lápis de cor sobre papel, 1977
Esta recepção indiferente ocorreu, em sua opinião, porque “a crítica
tem uma certa má vontade nessa [sic] relação entre artes plásticas e literatura”.
A exposição exibia o resultado de sua experiência na França, onde morou,
entre outubro de 1975 e junho de 1976, com bolsa de estudos concedida pelo
governo francês. A bolsa correspondia ao prêmio Ambassade de France,
conquistado no II Salão Global de Inverno de Belo Horizonte, em 1974. Em
Paris, Daibert especializou-se, principalmente, em técnicas de gravura em
metal, curso realizado no atelier Calevaet-Brun.
Apesar da exposição no MAM-RJ, o desejo confesso de Daibert era
publicar sua série Alice no país das maravilhas como álbum, o que nunca
ocorreu. Essa parecia ser a tendência do artista na destinação de suas
49
produções visuais: publicá-las em livros mais do que expô-las em mostras de
museus e galerias. É o caso da série Macunaíma de Andrade, sobre a qual
comenta:
Sendo um trabalho feito a partir do livro, com certo
rigor de livro, numa seqüência lógica de leitura, é
um projeto para edição. Quando comecei a
trabalhar Macunaíma, tinha a intenção de que fosse
editado como álbum. É um trabalho que parte de
um livro. [...] Eventualmente, poderá ser impresso
(DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000).10
Os desenhos de Alice no país das maravilhas de Daibert trazem, já à
primeira vista, evidentes diferenças em relação à versão original de Tenniel,
esta mais comprometida com a representação das idéias de Carroll, como já foi
dito anteriormente.
A série do artista juizforano foi construída em circunstâncias muito
diferentes, com total liberdade de criação e sob um outro olhar, o
contemporâneo. O distanciamento de Daibert da obra de Carroll não se dá
apenas quanto ao tempo, mas também ao espaço e outros elementos como
idioma e contextos social, geográfico e histórico. Ao mesmo tempo em que,
apesar destas distâncias, a obra de Carroll encontre-se nos traços de Daibert,
por alguma afinidade do artista contemporâneo brasileiro com essa obra de
literatura infantil inglesa do século XIX, eleita como objeto de estudo.
Tão figurativa quanto a versão de Tenniel, a série de Arlindo Daibert
aprofunda-se no aspecto fantástico, dando origem a imagens tão enigmáticas
quanto os textos de Carroll, mas de um ponto de vista distinto. Em Daibert,
Alice é rica em referências eróticas: desde as rendas e estampas delicadas nos
ingênuos e sugestivos lingeries até as glandes saltando da cabeça de Alice e
10
A previsão de Daibert sobre a publicação da série Macunaíma de Andrade concretizou-se
apenas em 2000, após sua morte.
50
bocas em forma de vaginas de onde brotam pênis articulados como dedos
(imagem 14). Uma Alice para adultos.
16.”I must be getting somewhere near the centre of the earth!”, da série Alice no país
das maravilhas, Arlindo Daibert. Grafite e lápis de cor sobre papel, 1977.
A leitura de Alice feita por Daibert reconta as aventuras escritas por
Carroll e vai além, criando situações que não existem nas histórias originais.
Ainda que não se tenha notícia de registros escritos do artista sobre sua versão
de Alice, é possível perceber os novos elementos através de “pistas” deixadas
por Daibert como, por exemplo, as frases e expressões retiradas dos livros de
Alice para cada desenho realizado. Anotadas de forma manuscrita pelo próprio
artista junto às fotografias dos desenhos originais, podem ser considerados
títulos para cada ilustração.
Com exceção do título da série, todos os outros, individuais, estão
no original em inglês. O uso de expressões do livro como títulos dirige a leitura
das imagens para cada episódio, uma vez que algumas referências imagéticas
não são literais à primeira vista. É o caso, por exemplo, de “Tea for two”
51
(imagem 17), uma possível citação do filme musical norte-americano
homônimo (1950), adaptado de uma peça de Nicolas Cage, exibida na
Broadway (1924). Nela, as referências ao texto de Carroll se resumem à
palavra “tea” (chá) e à presença do rato, um dos personagens do capítulo VII
de Alice no país das maravilhas, “Mad tea-party”, ou “Um chá maluco”, na
tradução de Maria Luiza Borges para Alice comentada.
Em “Serpent! scream the pigeon” (imagem 18), Daibert vai além,
dando outro desfecho para a cena em que Alice com o pescoço alongado é
confundida com uma cobra por uma pomba. Na obra de Carroll – Alice no país
das maravilhas – a ave teme que a “cobra” devore o ovo que está em seu
ninho, mas nada ocorre além de uma discussão entre ela e Alice. Na versão de
Daibert, elas duelam com pistolas, e a imagem da mão de Alice esmagando
outro pássaro indica que a violência foi cometida como temia a pomba.
Além da presença do erotismo nos desenhos de Daibert, já
mencionado anteriormente, a morte é outro tema explorado nesse e em outros
desenhos, como na imagem 19, em que a cabeça decapitada de Alice é
servida à mesa. O assunto é outro fator de aproximação do artista
contemporâneo com o universo literário de Lewis Carroll e do período vitoriano,
conforme discutido no capítulo anterior desta dissertação.
Coincidência ou não, Daibert ilustra Alice tal como na história bíblica
sobre a morte de São João Batista, que no século XIX, mais especificamente
em 1893, inspirou o escritor irlandês Oscar Wilde a escrever a polêmica peça
teatral “Salomé” (WILDE, 1893), ilustrada por Aubrey Beardsley (imagem 20).
52
17. (Direita) “Tea for two” e 18. (Esquerda) “Serpent! Screamed the pigeon”, Arlindo
Daibert, grafite e lápis de cor sobre papel, 1977
19. (Direita) “Off with her head! Off with her...”, Arlindo Daibert, grafite e lápis de cor
sobre papel, 1977 e 20. (Esquerda) “The dancer’s reward” (detalhe). Aubrey
Beardsley, nankin, 1893
53
3. EXPOR ALICE
Há traduções cheias de boas intenções que são quase
falsificações, porque banalizaram involuntariamente o texto,
não sabendo exprimir-lhe o movimento corajoso e alegre, que
gosta de transpor com um salto os perigos das coisas e das
palavras.
NIETZSCHE
A escolha das artes visuais como uma forma alternativa para
apresentar a “trans-leitura” feita sobre as Alices de Carroll, Tenniel e Daibert é
encarada como um exercício de tradução de linguagens. A opção por esta
forma de apresentação se justifica no sentido de propor uma estratégia
diversificada para aguçar a curiosidade do receptor sobre a obra literária.
Também por entender que a linguagem das artes visuais, em sua riqueza de
elementos materiais e suas possibilidades de efeitos sinestésicos, tem estreita
relação com o estilo de escritura de Carroll. Isto se reflete também na leitura
das imagens de Tenniel e Daibert.
Tal como o texto ao ser traduzido de um idioma para outro, a
transposição da palavra para imagem busca aqui lançar mão de artifício que
ajude a estabelecer a comunicação de forma a instigar o receptor. Este recurso
parte do conceito de Jauss de “quebra” do horizonte de expectativas, no
sentido de provocar o interesse do interlocutor (neste caso, o leitor de imagens)
pela forma inusitada de recontar as obras de Carroll: usando as artes visuais
como idioma.
Assim como um texto ao ser registrado através da escritura, o objeto
artístico ao ser construído busca uma audiência, busca estabelecer contato
com o olhar alheio. Neste caso, o contato extrapola o caráter de mero receptor
do leitor de imagens, o contato busca neste olhar a complementação da obra.
O espectador finaliza a obra de arte.
54
3.1 Tradução
No prefácio do livro Limites da traduzibilidade – coletânea de textos
sobre tradução – Laranjeira (apud COSTA, 1996) reitera esta forma de
entendimento pelo fato de que, nos textos literários, os elementos formais
materiais são captáveis pelo sentido. Afirma que aspectos como sonoridades,
linearidade ou quebra discursiva, caracteres tipográficos, disposição gráfica,
“mancha” do texto, branco da página, ilustrações, textura do papel ou de outro
suporte que o substitua, cor, montagem do livro ou do objeto significante, entre
outros, não são meros acessórios, mas integram o seu modo específico de
produzir sentidos.
Os textos literários, que trabalham com o que ele chama de “material
significante”, funcionam como um jogo em que a ambigüidade constitui-se em
princípio ativo na geração de leituras polivalentes e de sentidos “explodidos ou
desviados” da referencialidade meramente lingüística:
Não se traduz mais o sentido, mas a significância
do texto. Busca-se uma retextualização na língua-
cultura de chegada que seja homóloga ao texto de
partida, não tanto em seus elementos conceituais e
de referenciação, mas nas tensões produtivas
geradas pelo jogo dos significantes disponíveis na
língua de chegada.
Neste caso, na linguagem de chegada. Na mesma coletânea,
Schnaiderman (apud COSTA, 1996) define a tradução literária como uma arte:
“[...] toda tradução de poesia ou prosa literária é um ato artístico e como tal
deve ser encarado”. O grau de realização artística é que fará com que se tenha
ou não uma “tradução digna” (SCHNAIDERMAN apud COSTA, 1996), o que se
encaixa com a proposta de apresentar a leitura de Alice na forma de arte
visual.
55
No artigo “Traduzindo uma pós-graduação”, Lavallé e Caffé (apud
COSTA, 1996) complementam que a participação do tradutor - que “lemos”
aqui como o criador da obra dentro de um outro código artístico, o da imagem -
é fundamental nos meios científico, tecnológico e cultural. Isto favorece o
intercâmbio entre segmentos diferenciados da sociedade, permitindo-lhes o
acesso a informações igualmente diversificadas.
O tradutor cria elos entre “produtores” e “usuários” do saber,
permitindo o estabelecimento de fluxos regulares de conteúdos e a sua
assimilação por um número sempre crescente de leitores. O tradutor é um
agente facilitador do desenvolvimento e aperfeiçoamento de experiências que
contribuem para o intercâmbio dos conhecimentos e para a definição de uma
política de comunicação “sempre mais harmoniosa, dinâmica e profícua entre
os povos” (LAVALLÉ e CAFFÉ apud COSTA, 1996).
Sobre a problemática da fidelidade ao texto de origem, o tradutor
não é apenas um mediador entre duas línguas. A especificidade de sua
produção reside não somente na busca lexical, na complexidade da estrutura
da língua de partida, mas, sobretudo em questões de ordem estética e cultural.
A reconstrução da linguagem literária torna-se risco, aventura, inscrevendo-se
como recriação e reescritura (ALMEIDA, 1996).
Arrojo (apud COSTA, 1996) afirma que a tradução assim como a
leitura são atividades essencialmente produtoras de significados que serão
aceitos como legítimos e adequados por aqueles que constituem a comunidade
cultural na qual pretendem atuar tanto o tradutor quanto o leitor e o escritor.
O tradutor, portanto, deve se conscientizar do papel essencialmente
autoral que exercerá ao traduzir qualquer texto, por mais simples e
56
despretensioso que seja, assumindo a responsabilidade que esse papel
implica. Sua visão de mundo determina necessariamente suas leituras e,
conseqüentemente, as traduções que produz. Quanto mais enriquecida e
aberta puder ser essa visão, maior será o repertório a partir do qual poderá
produzir leituras e traduções (ARROJO apud COSTA, 1996).
Evidentemente as definições organizadas acima se referem à
tradução poética, literária, teórica. Santos (apud COSTA, 1996), atenta para
este enfoque, apesar de discutir a distinção “um tanto didática e teórica” entre o
que se chama de tradução técnica (ou referencial) e a tradução literária:
Essa dicotomia – infelizmente arraigada dentro e
fora da universidade – é suavizada quando
pensamos em um continuum entre dois extremos
puramente teóricos, calibrados pelo menor ou maior
grau de ambigüidade, ficcionalidade, univocidade
ou opacidade, qual seja o enfoque adotado.
Notadamente quando se fala em tradução há,
seguramente, uma concentração de atenções sobre
o texto literário. A tradução referencial é um pouco
“prima pobre” da tradução poética.
Bourjea (apud COSTA, 1996) refere-se à tradução sob a abordagem
do respeito à alteridade, no caso o texto de origem. Em seu depoimento sobre
a tradução de Clarice Lispector, a tradutora lembra que toda atividade de
tradução é testemunha da capacidade de se estabelecer relações com o
“outro” e desvenda uma política, e até uma poética, dessa relação. Enfatiza a
importância de respeitar as transgressões do autor no que elas têm de mais
perturbador, de mais irredutível. O tradutor tem que ser capaz de trazer para a
linguagem-alvo esta estranheza: “Isso é uma questão de ética ou simplesmente
de honestidade”.
Laranjeira (apud COSTA, 1996) acrescenta:
57
[...] quem traduz traduz o texto original, mas
também se traduz. A originalidade do texto
traduzido está em ser ele, sempre e
necessariamente, o Mesmo e o Outro a coexistir
numa tensão dinâmica.
O traduzir deve considerar a pluralidade do texto de origem assim
como a singularidade da tradução. Diante da polissemia, da polivalência, da
ambigüidade, o tradutor terá que fazer sua escolha e esta resultará
inevitavelmente numa perda. “Isto explica o fascínio e o tormento da tradução
poética, em que algo sempre tem que ser sacrificado, e vem nos lembrar que a
melhor das traduções nada mais é do que aproximação” (MORTARA apud
COSTA, 1996).
Concluindo esta relação de conceitos sobre a tradução literária, cabe
aqui a definição de Praz (1970) sobre a interpretação:
Toda a avaliação estética representa um encontro
de duas sensibilidades, a do autor da obra de arte e
do intérprete. O que chamamos de interpretação é,
dito de outro modo, o resultado do filtrar da
expressão de outro através de sua própria
personalidade.
3.2 Transposição
Partindo destes conceitos, organizou-se uma combinação das
leituras sobre Alice de Lewis Carroll (literatura), Alice de Tenniel e de Daibert
(imagem) que será apresentada de duas formas: numa seqüência de registros
imagéticos e textos explicativos dentro desta dissertação e na exposição das
peças artísticas ao vivo, no Espaço Cultural da Reitoria da Universidade
Federal de Juiz de Fora, realizada no período de 3 a 24 de junho de 2005.
Importante enfatizar que a necessidade de anexar textos escritos
junto às imagens das obras tem como objetivo específico estabelecer a
58
conexão do trabalho teórico à produção prática, completando o ciclo da
pesquisa. As peças escultóricas foram concebidas de forma a independer de
descrição ou explicação para sua exibição pública. Ou seja, na dissertação, as
obras atuam como resultado das leituras interpretativas de Alice e, na mostra,
valorizam o papel estético/visual.
Em algumas das peças, a utilização da palavra constitui um rico
complemento, enfatizando idéias, reforçando a ironia sempre presente no texto
de partida. Em todos os casos, a começar pelo convite da exposição (figura
21), toda a grafia foi concebida de trás para frente, como se fosse refletida no
espelho de Alice. Além da menção direta a Através do espelho, o recurso exige
maior atenção e, portanto, detém por mais tempo o olhar do leitor diante das
imagens, o que exercita o decifrar de cada mensagem; como Alice ao ler o
poema “Jabberwocky” utilizando o reflexo do espelho, no primeiro capítulo do
mesmo livro.
21. Convite da exposição “Leituras de Alice” (da esquerda: capa e face interna). Arte
executada por Aline Coutinho (2005)
59
Dar título a cada peça também contribuiu com a leitura das imagens.
Alguns copiam o nome de capítulos específicos dos dois livros e a opção pela
versão original em inglês é uma homenagem a Carroll, na literatura, e a Arlindo
Daibert, que assim nominou seus desenhos.
3.3 Composição
O projeto da exposição dos objetos foi submetido a uma pré-seleção
e aprovado pelo Núcleo de Integração Cultural (NIC) da UFJF, responsável
pela organização da agenda de exposições desta universidade.
Inicialmente esta pesquisa de mestrado previa a realização da
exposição e da defesa da dissertação simultaneamente, sendo a mostra prática
parte complementar da teórica. Essa impossibilidade – a exposição foi
realizada antes da defesa – que por um lado mostrou-se desfavorável à
apresentação do trabalho teórico, por outro significou um benefício. À pesquisa
escrita acrescenta-se, com isso, a impressão do público visitante: o “leitor-
criador” discutido no primeiro capítulo desta pesquisa.
De acordo com o NIC, a proporção de espectadores que se
registram11
no livro de visitação corresponde a uma média de 10 por cento do
total de visitantes durante o período das exposições. A partir do número de
assinaturas no livro de presença desta exposição, foram registrados 246
visitantes, entre estudantes, professores e funcionários da UFJF e público em
geral.
11
A assinatura do livro não é obrigatória. Ele permanece durante todo o período de uma
mostra na galeria do Espaço Cultural da Reitoria da UFJF, inclusive no dia de abertura,
quando a visitação é mais intensa.
60
Os resultados a seguir são baseados nestes registros, onde constam
nome, endereço ou e-mail e comentários dos visitantes. Eles constituem a
única fonte comprobatória para embasar esta etapa do trabalho, que procurou
destacar os comentários cujas referências foram compreendidas como
respostas à proposta deste trabalho, ou seja, à identificação do leitor que
completa o objeto que contempla. Desta forma, poucos adjetivos se prestaram
ao contexto da pesquisa teórica.
Um deles é a palavra “instigante” presente em seis dos comentários,
no dicionário descrito como “que ou o que [...] incita, desperta, estimula”, o que
a aproxima de “interessante”, ou seja “que é intrigante, curioso, que instiga”
(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2005). Registrado 17 vezes, esta
palavra demonstra uma reação predominante do espectador. Uma
demonstração de que se estabeleceu um diálogo com as peças escultóricas,
como abordado na pesquisa?
Outros dois adjetivos foram levados em consideração por também
demonstrarem a reação do leitor das imagens se comunicando com os objetos:
“estranho” e “esquisito”. Estas duas expressões, especificamente, remetem às
características do estilo vitoriano também presentes na obra nonsense de
Lewis Carroll e John Tenniel e com evidentes reflexos em Arlindo Daibert.
Também foram registradas as palavras: “esquizofrênico” e “complicadíssimo”.
Alguns comentários mencionam impressões pessoais descritas em expressões
como “nostalgia”, “alma”, “introspecção”.
Sete visitantes assinaram e comentaram em escrita de trás para
frente, como todos os escritos presentes nas obras12
e no convite da
12
A ser detalhado na descrição das mesmas a seguir.
61
exposição13
. Ainda sobre a obra pesquisada e sua relação com o material
exposto, leitores de Alice se manifestaram diretamente: ”[...] compreensível por
se tratar de obras que falam”; “Metáforas [...], imagens e símbolos”; “[...]
espírito da obra de Lewis Carroll”; “[...] reprodução da ficção no real”; “Alice é
retratada [...]”; “[...] exportar em objetos”.
Entre os comentários, avaliações como “péssimos nomes”, a
respeito dos títulos dados às peças; “Embasado teoricamente[...]”; “Não vi
muito propósito e creio que a explicação poda muito o espectador [...]” e:
Nunca vi tanto mau gosto. Deveria haver um padrão
ou pelo menos um critério de seleção para a
escolha das exposições. Infelismente [sic] isso não
é arte, corromper a arquitetura do prédio com esse
véu que não tem nada a ver com o estilo.14
Um comentário foi escrito na forma de poesia, o que inverte o
percurso desta pesquisa, que parte da literatura (linguagem escrita) para os
objetos escultóricos (linguagem predominantemente visual) e aponta para a
discussão sobre a combinação das diferentes áreas do conhecimento, proposta
aqui previamente.
As diferentes opiniões, oriundas de diferentes pontos de vista,
complementam a exposição como um elemento “vivo”, no sentido de dinamizar
a série de objetos com a reação do público, e até mesmo de prolongá-la. É o
que ocorre com os registros escritos, em vídeo e fotografia derivados da
exposição, realizados por estudantes dos cursos de Comunicação Social e
Artes da UFJF; Filosofia, do Centro de Ensino Superior (CES); e de Cinema, da
Universidade Salgado de Oliveira (Universo), de Juiz de Fora.
13
Já discutido na página 58.
14
Referência à instalação “The Queen of Hearts’ Roses” (descrição e foto à página XX). Livro
de assinaturas da exposição “Leituras de Alice”, Núcleo de Integração Cultural, junho de
2005
62
The Queen of Hearts’
Roses (100cm x 60cm x
60cm (balde em madeira)):
Esta instalação exigiu um
local específico para sua
63
montagem: o jardim da reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG,
onde esta dissertação foi desenvolvida. Trata-se de uma caricatura que
simboliza a autoridade da Rainha de Copas no episódio em que os jardineiros
do “País das Maravilhas” pintam as rosas brancas plantadas por engano, de
vermelho, como ordenou a Rainha de Copas (Capítulo VIII, “O campo de
críquet da rainha”, de Alice no país das maravilhas). Uma versão ampliada de
um balde de tinta “derrama” um tecido vermelho que cobre as roseiras já
existentes naquele jardim, que por estar localizado junto ao prédio da reitoria
da universidade, também faz uma associação irônica da autoridade da Rainha
de Copas com a autoridade do órgão máximo de poder da instituição, a reitoria.
Evidentemente não se trata de qualquer referência individual, mas uma alusão
ao perfil crítico social do cartunista John Tenniel.
Do cats eat bats, do
cats eat bats? Do bats
eat cats? (360cm x
30cm x 30cm): Luminária
confeccionada em tricô e
espaguete plástico que
representa o início da
aventura de Alice no país
das maravilhas, também
interpretado aqui como
um ritual de passagem.
O longo cilindro maleável
feito em tecido elástico
64
representa ao mesmo tempo a toca do coelho, por onde Alice chega ao “País
das Maravilhas”, e metaforicamente o canal por onde é "dada à luz" a Alice,
ilustrando a transição da infância para a idade adulta. O tecido em tricô, além
de contribuir para a composição formal do objeto, também é referência ao
capítulo V de Através do espelho, “Lã e água”, onde, transformada em ovelha,
a Rainha Branca aparece tricotando. A forma esférica feita em espaguete
plástico vermelho, iluminada por uma lâmpada, representa o momento de
nascimento/chegada de Alice ao “País das Maravilhas”. No cilindro branco
estão fixadas frases que Alice repete para si mesma: "Do cats eat bats, do cats
eat bats? Do bats eat cats?" ("Gatos comem morcegos, gatos comem
morcegos? Morcegos comem gatos?") enquanto cai pela toca do Coelho
Branco.
The Heart Court (150cm x 246cm): Um tapete feito em pintura sobre lona
reproduz uma carta de baralho, ou seja, a corte da Rainha de Copas. A posição
de tapete é uma ironia ao estatuto da tela de pintura e da hierarquia social,
65
própria do ser humano, seja no Período Vitoriano inglês, na
contemporaneidade brasileira ou no “País das Maravilhas”. Assim como a
escolha da carta de número 2, menor valor no jogo de baralho. A ironia da
expressão “2 de paus” (expressão popular que ilustra o sujeito submisso,
apático) reforça a idéia de submissão das cartas menores em relação às cartas
que correspondem à corte, conforme descrito em Carroll. A forma de tapete
leva o espectador a baixar os olhos para observar a peça, que fica no chão,
alterando o ponto de vista convencional de uma obra artística, normalmente
elevada à altura dos olhos de quem observa.
Drink me! (18cm x 10cm x 7cm):
Uma taça traz em seu interior
vestígios da bebida que faz
encolher de tamanho. O efeito
espelhado representa a magia da
bebida usada por Alice para tentar
chegar ao jardim da Rainha de
Copas. A presença do vermelho
se desdobra em diversas direções:
desejo, perda da inocência,
agressividade, além do fato de
simbolizar a nobreza e o poder
também no período Vitoriano. O objeto substitui a garrafa de licor descrito por
Lewis Carroll e ilustrado por John Tenniel em Alice no país das maravilhas pelo
cálice utilizado por Arlindo Daibert em sua versão (“Eat me! Drink me!”) para o
episódio. A escolha deste objeto também se refere à embriaguez dos sentidos
66
através da ingestão de álcool, uma prática socialmente aceita na maioria das
culturas e que tem como única finalidade o efeito de entorpecimento. O cálice é
exposto em uma pequena peanha (suporte de parede usualmente utilizado
para imagens sacras). A união dos dois objetos – o copo de bebida para servir
o entorpecente e o suporte de origem religiosa – insinua uma heresia, que
reforça a transgressão de Alice, uma criança, ao provar uma bebida alcoólica.
Até mesmo o efeito de mudança de tamanho pode ser relacionado ao estado
de razão alterada pela bebida, no mundo real.
Eat me! (30cm x
40cm x 40cm): O
bolo que vai
alterar o tamanho
de Alice traz a
palavra Coma-me
e faz referência
literal ao livro e
também à
expressão vulgar associada ao ato sexual, novamente citando a transição de
Alice da infância à idade adulta e finalmente tocando no erotismo dos desenhos
de Daibert. O padrão de letra do refrigerante é referência à vulgarização do
consumo (comercial e sexual); a faca espetada é referência literal de Através
do espelho, na ilustração de Tenniel de Alice ao servir o bolo de ameixas ao
Leão e o Unicórnio. Ao mesmo tempo em que consiste em símbolo fálico de
apelo visual agressivo que combina com a proposta da peça (perda da
virgindade); o laço cor-de-rosa chama para a simbologia da perda da inocência:
67
nó a desatar, perda da proteção, perda da virgindade, reforçado pelo tecido
vermelho que, sólido, busca a aparência líquida do sangue. Três pontas são a
representação do nonsense das histórias, trata-se de um laço impossível de
ser feito; as ostras referem-se ao poema “A morsa e o carpinteiro”, do capítulo
IV de Através do espelho, intitulado “Tweedledum e Tweedledee”. Dentro
delas, ao invés de pérolas, as glandes presentes nos desenhos de Daibert. A
peça foi desenhada de forma a lembrar um bolo de aniversário de 15 anos,
reforçando a alusão ao ritual de passagem.
Tweedledum and Tweedledee
(30cm x 40cm x 40cm): Uma das
três peças que seguem o padrão
do souvenir (juntamente com
The White Queen e The looking
glass adventure). Neste caso,
representa os gêmeos
Tweedledum e Tweedledee. A
peça tem como suporte um
globo de vidro tal como os
souvenires de lugares turísticos.
A intenção é fazer referência ao “País das Maravilhas” como mais um roteiro
turístico, banalizando a aventura de Alice do mesmo modo que a própria
personagem, quando diz que toda a corte da
Rainha de Copas “não passa de um simples
jogo de baralhos”. Uma fôrma antiga,
utilizada originalmente para confecção de
68
bonecas, relaciona o objeto ao conceito de readymade, de Marcel Duchamp. A
forma com duas faces lembra imediatamente o desenho de Daibert criado para
os personagens de Através do espelho. A idéia de “guardar” a cabeça de duas
faces em um globo de vidro também buscou inspiração nos troféus de caça
feitos com cabeças de animais empalhados. A peça repete a sensação de
aberração somada ao efeito de reflexo de espelho percebido no desenho de
Daibert. Identificação da questão do duplo, presente na obra de Lewis Carroll.
The looking glass adventure
(30cm x 40cm x 40cm):
Terceira peça da série de
souvenires desta exposição
traz um globo de vidro
espelhado, um espelho
esférico. A peça brinca com o
movimento do espectador de
aproximação e afastamento,
causando o efeito de
ampliação/redução do próprio
reflexo, o que acaba por
combinar dois elementos centrais dos livros de Alice: o espelho em Através do
espelho e a alteração de tamanho de Alice no país das maravilhas. A
deformação provocada pelo formato do espelho representa uma indefinição
que se refere ao estado de sonolência ou despertar de um sonho, outro
elemento chave em ambos os livros: as duas aventuras de Alice ocorrem
dentro de sonhos. No caso de Através do espelho, os dois últimos capítulos
69
Leituras de Alice por Tenniel e Daibert
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Leituras de Alice por Tenniel e Daibert

  • 1. Universidade Federal de Juiz de Fora Sandra Minae Sato Garcia Leituras de Alice Juiz de Fora 2005 1
  • 3. Sandra Minae Sato Garcia Leituras de Alice Dissertação para obtenção do grau de mestre em Teoria da Literatura pelo Departamento de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob orientação da professora doutora Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro Juiz de Fora 2005 2
  • 4. A Arthur Sato Gregório, meu melhor amigo! 3
  • 5. Agradecimentos A minha orientadora, Malu, por ter acreditado em meus devaneios... A minha família, pelo amor incondicional... A Tianinha, pelo sorriso sempre presente... A Bu, Ron e Tantra, pelo carinho, pela companhia e pelos pêlos no colo e nas páginas dos livros de pesquisa... A Valéria, Ricardo, Sophia, Nina e Lucas de Faria Cristofaro, por tudo de bom... A Alessandro Corrêa, pela leitura sensível e poética... A Eduardo Borges, pelo talento e entusiasmo... Ao Marcel pelo amor e proteção... A todos os amigos, por compartilharem com alegria este meu episódio nonsense... Aos colegas de mestrado, por fazerem a diferença no curso... A família Daibert, nas pessoas de Eveline e Sr. Alciones, pela generosidade em compartilhar comigo Arlindo e sua bela obra... Ao Núcleo de Integração Cultural da UFJF, por valorizar e vestir a camisa deste projeto... Aos que acreditam nas diferentes formas de criação artística... A Lewis Carroll, John Tenniel e Arlindo Daibert, pela inspiração e por tornar a nossa vida mais bela com sua poesia nas diferentes linguagens. 4
  • 6. [... quando] este trabalho começou a ser desenvolvido, claro, era uma paixão minha pelo livro, mas coincidiu também com um projeto de pesquisa que estou a fim [sic] de desenvolver, que é exatamente o projeto de tradução gráfica do texto literário. [...] um projeto de pesquisa da área integrada de literatura e artes plásticas. Arlindo Daibert [...] and what is the use of a book without pictures or conversation? Alice (in Wonderland) 5
  • 7. RESUMO Esta pesquisa consiste em leituras dos livros Alice no país das maravilhas (Alice’s adventures in wonderland, 1865) e Através do espelho (Through the looking glass, 1871), do escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898). Inclui as ilustrações originais, realizadas pelo cartunista inglês John Tenniel (1820-1914) e a série de desenhos compostos a partir das duas obras pelo artista plástico juizforano Arlindo Daibert (1952–1993), na década de 1970. O resultado da pesquisa foi apresentado na forma escrita e das artes visuais, esta com a finalidade de reforçar o estímulo à leitura das obras. A pesquisa teórica focalizou o leitor-criador que lê, julga e constrói um novo texto, atuando como finalizador da obra. São discutidos, ainda, a leitura de imagens, a ilustração de livros, o texto de ficção, a ilustração crítica, a tradução de linguagens e a associação de literatura e imagem. Buscou-se com isso atualizar a leitura de um autor de ficção infanto-juvenil clássico do século XIX e com isso colocar suas obras em pauta, estimulando as novas gerações de leitores a conhecer e re-conhecer Alice, além de tomar conhecimento da arte de John Tenniel e Arlindo Daibert. Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil, leitura imagética, ilustração de texto, artes visuais. 6
  • 8. ABSTRACT This research consists on the readings of Alice’s adventures in wonderland (1865) and Through the looking glass (1871), by Lewis Carroll (1832-1898), of the original illustrations, by John Tenniel (1820-1914) and the serie of drawings created by the fine artist Arlindo Daibert (1952–1993), from Juiz de Fora, Minas Gerais, Brazil, on 1970’s. The result of this research is presented in different languages: by writing and as a fine arts exibition to reinforce the strategy to stimulate the reading of the books. The theory is foccused on the “creator reader”, who reads, makes its own judgements and builds its own new text, working as the final stage of the compositions. There were considered other concepts as image reading, book illustration, ficcional literature reading, critical illustration, languages translation and the association literature-image. The intention is to update the reading of a classic fiction literature from XIXth century and to bring the books near to the eyes of the contemporary readers, by stimulating the new generation to know and to recognize Alice books, and also to have contact with the art of John Tenniel and Arlindo Daibert. Key-words: Literature for child and teen ages, text and image reading, book illustration, fine arts 7
  • 9. SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................ .... 7 LER ALICE....................................................................................................... 14 1.1 Regras para o nonsense.................................................................... 24 1.2 Nonsense contra as regras............................................................... 28 VER ALICE....................................................................................................... 33 2.1 Alice de Tenniel.................................................................................. 36 2.2 Alice de Daibert.................................................................................. 43 EXPOR ALICE.................................................................................................. 52 3.1 Tradução............................................................................................. 53 3.2 Transposição...................................................................................... 56 3.3 Composição....................................................................................... 58 CONCLUSÃO........................................................................................... ........ 82 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................. .. 86 8
  • 10. INTRODUÇÃO A relação entre a literatura e as demais artes é um lugar comum de discussão desde a Antigüidade. A Poética, de Aristóteles, está repleta de comparações entre a poesia e as demais artes, mas sobretudo com as artes visuais. Essas comparações foram feitas também por outros autores da Antigüidade clássica, como Platão, Horácio e Simonides de Ceos, que afirmou, no século V a.C., que "a pintura é uma poesia muda; a poesia uma pintura que fala” (apud LESSING, 1998). Horácio fez uma comparação entre a poesia e a pintura que se tornou o lema de uma longa história de comparações e aproximações dessas duas formas artísticas. Seu verso ut pictura poesis (poesia é como pintura), de Ars Poetica, é citado constantemente em tratados sobre poesia e pintura do século XVI até os dias de hoje (LESSING, 1998). Mário Praz (1970), em seu livro Mnemosine: paralelo entre la literatura y las artes visuales comenta que a idéia de irmandade entre as artes tem estado tão enraizada na mente humana, desde a Antigüidade mais remota, que deve existir nela algo mais profundo do que uma simples especulação, algo que atormenta e não deseja ser descartado rapidamente1 . 1 “Poder-se-ia (sic) dizer que, ao investigar estas relações misteriosas, os homens acreditam estar próximos de todo o fenômeno da inspiração artística”. 9
  • 11. No Renascimento, a comparação entre a poesia e a pintura também serviu para se tentar conquistar estatuto digno para a atividade do pintor, que era considerada inferior à do poeta. O artista plástico era visto mais como um artesão do que como intelectual. Leonardo da Vinci escreveu um tratado comparando essas duas artes, em que defende a superioridade da pintura sobre a poesia (PRAZ, 1970). Com esse trabalho Da Vinci encontra-se entre os precursores de um longo debate - ainda em pauta nos dias atuais - entre as artes visuais e as artes "verbais", que recebeu o nome de paragone (comparação, em italiano, mas que também tem relação com a idéia de competição ou luta: agon, em grego). A partir do Renascimento, recuperou-se também a tradição clássica da poesia descritiva (PRAZ, 1970), ou seja, pinta- se desde o século XV de um modo eminentemente intertextual: os quadros representavam idéias que estavam na Bíblia, nas narrativas mitológicas e históricas, em tratados sobre comportamento e tipos humanos, como é caso dos retratos (MANGUEL, 2001). Nesse contexto, a pintura histórica é a mais valorizada (GOMBRICH, 1999); por outro lado, a própria poesia descritiva aponta para uma tentativa do texto em atingir o mesmo efeito de espacialidade e de presença concreta, características típicas das artes plásticas (PRAZ, 1970). Apenas no início do século XVIII essa tradição - de estudar comparativamente as artes, buscando impor a superioridade de uma ou de outra - foi posta em questão. Isso ocorreu a partir do momento em que se questionou a imitação (mimesis) na criação artística: se o artista passa a ser visto como criador, então sua obra deve ser única e não simples cópia. Por outro lado, também o aspecto material das obras passa a ser levado em conta: 10
  • 12. na pintura valoriza-se cada vez mais a cor, e na poesia o trabalho com a linguagem. Ao invés de se pensar a proximidade e convertibilidade das artes, passa-se a pensar as diferenças entre elas (LESSING, 1998). Assim, Lessing escreveu, em 1766, seu livro Laocoonte ou sobre as fronteiras da poesia e da pintura, no qual defende a distinção dos campos de cada arte. Para ele, a poesia deveria se limitar à representação de ações e a pintura a representar figuras em repouso. Ele observa, ainda, que a representação pictórica pertence ao espaço, sendo, desta forma, estática; enquanto que a poesia pertence ao tempo sendo, portanto, dinâmica e progressiva. Para o autor, as artes plásticas deveriam se abster de representar as idéias, que só se deixariam expressar pela palavra; e a poesia deixar de representar os corpos, salvo pela descrição por meio das ações dos personagens, posição francamente aristotélica. Meios distintos, com propósitos distintos (LESSING, 1998). Mas, apesar dessa tentativa de separação entre as artes, o efeito dessa reflexão sobre a diferença entre os diversos meios de cada campo artístico foi o de semear a idéia de uma obra de arte total, sinestésica, ou seja, que atingiria mais de um dos nossos sentidos (MELLO, 2003). No século XX a mistura entre as diversas artes faz parte dos projetos estéticos das vanguardas. Uma das marcas no trabalho dos vanguardistas, desde os seus primeiros momentos, é a reflexão sobre a linguagem artística. Os cubistas como Picasso e Braque, por exemplo, desconstroem a estrutura representativa e ilusionista da pintura com a quebra da perspectiva, a recusa do trabalho realista com as cores e transformação da tela e da pintura em uma espécie de campo escritural. Não por acaso eles 11
  • 13. introduziram nesse processo a colagem e, sobretudo a colagem de letras e palavras (A História Da Arte.Com, 2005). Na segunda metade do século XX, desenvolveu-se cada vez mais um novo campo para a poesia e para as artes a partir da incorporação das assim chamadas novas tecnologias, os processos de digitalização e transmissão eletrônica, que significaram espaços férteis para a interação entre as diferentes artes na construção do que hoje chamamos de hipermídia. Esse desenvolvimento simbiótico das artes não pode ser dissociado da nova imagem do homem que se traça em um século de guerras, genocídio e das descobertas da ciência. A separação rígida entre literatura e artes plásticas correspondia a uma visão de mundo que isolava o corpo da mente. O que hoje não é mais possível, pois a manifestação intersemiótica, que ultrapassa a divisão entre os campos das artes e das letras é a arte do homem contemporâneo. É sua forma de se expressar. Utilizaremos aqui esta associação como recurso para apresentar a leitura das obras de literatura fantástica infanto-juvenil Alice no país das maravilhas (Alice’s adventures in wonderland, 1864-66) e Através do espelho (Through the looking glass, 1871), do escritor inglês Lewis Carroll (pseudônimo do matemático Charles Ludwig Dodgson). Este estudo tem como abordagem principal a leitura das ilustrações originais de Alice2 (de autoria do cartunista político inglês John Tenniel) e os desenhos do artista plástico juizforano Arlindo Daibert, criados na década de 1970. Busca-se, também, conhecer e difundir parte dos estudos feitos sobre os 2 Tal como o estudioso de Lewis Carroll, Martin Gardner, em seu livro Alice comentada, decidiu- se adotar, nesta dissertação, apenas o nome Alice, em itálico, quando o texto se refere a ambos os livros simultaneamente: Alice no país das maravilhas e Através do espelho. Quanto se referindo apenas à personagem, Alice, sem itálico. 12
  • 14. processos de leitura de imagens, tradução de linguagens e de produção artística envolvendo literatura e artes visuais. Espera-se com isso incitar a curiosidade para estes caminhos de pesquisa e, se possível, estimular novos trabalhos que, como este, levem à prática da associação da literatura com diferentes áreas do conhecimento. O projeto inicial previa apenas materializar estas respostas e as impressões resultantes delas, utilizando formas artísticas criadas a partir da leitura dos textos, mas a riqueza do assunto e novas associações de idéias naturalmente transformaram o exercício de reunir literatura e artes plásticas em uma dissertação de mestrado em Teoria de Literatura, somando às imagens criadas uma pesquisa metódica sobre o tema. Durante as primeiras leituras para esta pesquisa foi descoberto o interesse do artista plástico juizforano Arlindo Daibert por Alice, do qual resultou uma série de desenhos que passaram a compor parte importante da pesquisa. Formado em Letras no Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Daibert foi professor do Departamento de Artes desta universidade e sua obra ficou caracterizada também pelo resultado desta convergência: literatura e artes visuais. Ainda que não existam registros conhecidos sobre a série Alice no país das maravilhas, segundo a família do artista e outros pesquisadores, as publicações sobre Arlindo Daibert, seus depoimentos e estudos de sua autoria acerca de outras produções artísticas serviram como fontes de pesquisa para conhecer seu processo de criação. Ler as imagens criadas para Alice por John Tenniel, por sua vez, significa um passeio pelo Período Vitoriano, sob a ótica não apenas de um 13
  • 15. ilustrador de livros infantis, mas de um chargista político atuante em seu tempo, crítico dos costumes da sociedade da época e, portanto, atualizado sobre as personagens reais e acontecimentos pertencentes ao contexto em que as aventuras de Alice tiveram origem. Estes detalhes tornam ainda mais particular o ponto de vista de Tenniel. Além dos livros de Alice e seu contexto de criação - o Período Vitoriano na Inglaterra do século XIX - as referências ao tempo presente que surgiram durante o processo de tradução de linguagens foram exploradas sempre que se mostraram coerentes com a pesquisa. A parte prática desta leitura de Alice, apresentada na forma de uma exposição de artes plásticas, inclui outros recursos técnicos além do desenho; o processo de concepção das peças utilizou como princípio a imagem como um agente questionador, inaugural (MELLO, 2003). Foram projetados 17 trabalhos plásticos, todos ilustrados e comentados no capítulo 3 desta dissertação. Procurou-se evitar uma leitura puramente psicanalítica do autor, como já propuseram outros inúmeros estudiosos - certamente mais habilitados para tal tarefa - ou restringir o estudo ao possível perfil de pedófilo atribuído a Carroll que, apesar de exaustivamente explorado, nunca foi comprovado (GARDNER, 2003). Evitou-se também a associação direta das biografias de Lewis Carroll/Charles Ludwig Dodgson, do ilustrador John Tenniel, de Alice Liddell, que inspirou as obras, ou de Arlindo Daibert, com a pesquisa, considerando apenas as informações biográficas relacionadas diretamente aos textos, às imagens e sua concepção. 14
  • 16. A conclusão da pesquisa apresenta o resultado desta leitura utilizando a linguagem das artes plásticas associada à escrita. Este processo de ilustração se serve do conceito de “leitor-sujeito” (GÓES, 2003), ou seja, o leitor criador, que interfere, interpreta o que lê. A essa forma mais conceitual de ilustração resultante da leitura de um texto, Daibert chama de “ilustração crítica” (DAIBERT, 2000). No caso desta pesquisa, a resposta às leituras de Carroll, Tenniel e Daibert, expressa na forma de imagens escultóricas, pretende cumprir a função original das ilustrações de livros que é estimular a leitura da obra escrita ou estender e prolongar sua vida além do literário. A ilustração cumpre este papel a partir do momento em que apresenta elementos que, se por um lado independem do livro, por outro o enriquecem ampliando suas possibilidades de leitura. As leituras de Alice de Lewis Carroll, John Tenniel e Arlindo Daibert, a interpretação destas leituras e a utilização das artes visuais como linguagem para apresentar esta leitura pessoal compõem, resumidamente, a seqüência deste trabalho. Além dos motivos supracitados, busca-se aqui apresentar formas alternativas de leitura de uma literatura clássica com elementos que a aproximam da linguagem contemporânea. 15
  • 17. 1. LER ALICE Apenas o leitor faz da Bíblia, Bíblia Friedrich SCHELEGEL Assim que o homem conseguiu um instrumento para registrar a sua interpretação sobre a vida ao seu redor, ele o fez, tornando-a perpétua e acessível aos demais. O primeiro desejo de registrar e compartilhar experiências com o outro, ou seja, de se comunicar, está gravado nas paredes das cavernas com os desenhos rupestres. Calcula-se que há 40 mil anos a.C. o ser humano começou a criar formas que reproduziam a realidade, exprimindo, pela primeira vez, suas angústias e pavores. São consideradas as primeiras manifestações artísticas escultóricas por trazerem significado simbólico que vai além da função prática (READ, 1967). Deste início deriva a chamada “força do olhar” que descobre, percebe, apreende e devolve. Trata-se de um diálogo entre imaginação e realidade. Nos dias atuais, esta relação da leitura com a sua própria expressão encontra-se muito presente em livros que combinam a palavra-verbal com a palavra-imagem, entendendo-se “palavra” como alusão a linguagem (GÓES, 2004). 16
  • 18. Por esta peculiaridade, o livro é considerado um dos objetos artísticos mais plenos. Tem a característica de ser lido da maneira que o leitor preferir e nunca será decifrado da mesma forma. Por ser um objeto, ainda pode ser modificado fisicamente pelo leitor e, apesar disso, seu conteúdo permanece, mesmo à distância, como forma de conhecimento (MELLO, 2003). Numa sociedade cada vez mais dominada pela cultura da imagem, ao se discutir a relação texto-imagem e a consciência estética e representativa expressa nesta relação, é preciso esclarecer que se trata de abordar o tema tendo em vista uma melhor compreensão da literatura, e não preteri-la em favor da imagem. A finalidade, neste caso, é enfatizar a importância da leitura como interpretação e para isso, é necessário definir alguns conceitos. Não existe leitura que não seja interpretativa. Toda aproximação com o mundo - textual ou não - é um processo complexo onde se entrecruzam o singular e o conceitual: toda leitura é releitura e apropriação, conforme enfatiza SELLIGMAN-SILVA (2005). A leitura interpretativa deve ser vista antes de tudo como um ato de atualização, de apropriação de um texto atemporal no presente do leitor. Há um deslocamento produtivo em todo ato interpretativo, que sempre responde a certas exigências e necessidades impostas pelo contexto, ou seja, esse tempo presente da leitura. As estratégias de interpretação dependem deste contexto e de um universo de referencialidades individual e único. Uma das conseqüências dessa interação com o presente do leitor é a pluralidade: para cada leitor há uma leitura. Isto, porém, não significa que toda interpretação seja válida. 17
  • 19. Há o que Seligmann-Silva (2005) chama de ética da interpretação, que prevê um compromisso de harmonia entre o texto/discurso e o contexto/tempo presente do leitor. O que significa que toda interpretação é passível de discussão e transita o tempo todo entre texto e contexto: o texto deve ser lido como uma resposta ao contexto da criação da obra e a leitura deve dialogar com o contexto do leitor, espontaneamente. É na interação entre os diferentes pontos de vista que se chega a uma leitura que, por sua vez, pode ser revista por outros indivíduos, em outras épocas e lugares. Toda a escritura tem em si uma leitura potencial que vai depender necessariamente de cada leitor que entrar em contato com a obra. É na leitura que o ciclo da produção da obra se fecha, para logo depois se abrir em múltiplas leituras. Nenhum texto permite uma leitura única e acabada justamente porque cada leitura é determinada pelo contexto do leitor, que é, nesta instância, um agente de criação da obra. Ler é sempre reler, não existe uma primeira leitura absolutamente inocente: lemos palavras e idéias que sempre ligamos a outras palavras e idéias e nunca associamos essas palavras e idéias do mesmo modo (SELIGMANN-SILVA, 2005): Portanto, um mesmo leitor lerá sempre de modo diferente um mesmo texto. [...] quanto mais nos aproximamos das várias camadas que compõem o texto literário e quanto melhor as compreendemos, mais a leitura fica rica, inteligente e interessante. Neste sentido, o olhar do artista3 como leitor contribui para levantar questionamentos, propor novos conceitos e “expor a complexidade humana” (GÓES, 2004). O ato de ler relaciona cada texto lido aos demais seus antecessores (contexto individual + outros textos já lidos) para reconhecê-los, 3 O termo artista aqui se refere inclusive ao ilustrador-crítico do texto, que vai narrá-lo com outra linguagem que não a escrita. 18
  • 20. significá-los, assimilá-los. É este processo que dota o leitor da capacidade de admiração e o torna um leitor-sujeito de sua própria história. Ato de que é revolucionário, pois “transforma o leitor passivo em leitor ativo, um co-autor, doador de sentidos” (GÓES, 2004). Assim como aplicável à literatura, esta definição de leitura é o conceito básico, grosso modo, do ready-made, criação de Duchamp que define a arte contemporânea no ocidente. Para Marcel Duchamp, a arte está em perceber o potencial artístico de um objeto, sendo o conceito mais importante do que a própria realização da obra (MELLO, 2003): A forma definitiva! Foi mais ou menos isso que o artista plástico Marcel Duchamp disse, ao olhar uma hélice de avião. Essa não foi a primeira hélice da vida de Duchamp. Mas ele a olhou, como pela primeira vez, como uma criança perplexa, porque percebeu naquela hélice [...] a forma pura. A arte iguala artista e criança através da perplexidade. O que mudou não foi a hélice [...]. Quem mudou foi o artista, o seu modo de olhar a mesma hélice. Ou seja, a leitura não se restringe a decodificar os elementos narrativos, simbólicos, e o contexto em que se insere o objeto artístico. A leitura do olhar é dinâmica por ser interpretativa por natureza. A interpretação não pode ter em vista uma verdade isolada do objeto analisado, mas se assumir como um processo multideterminado por fatores como a estética, a cultura e a política. A leitura deve ser vista como um ato de apropriação de um conteúdo. Nela ocorre uma transformação do contexto. Assim como para cada leitor há uma leitura, para cada leitura, ainda que feita pelo mesmo leitor, há um novo texto. Ao direcionar o olhar, o leitor escolhe sua verdade própria, seu ponto de vista (MELLO 2003). 19
  • 21. Ao inaugurar pontos de vista, o artista discute as individualidades, utilizando sua arte como instrumento de experimentação e reflexão. Ele é considerado um experimentador porque lê significados sem ignorar as outras possibilidades; tem o olhar inaugural que vai despertar outros olhares para o que não estava sendo percebido, provocando ações e atitudes. “Antes de mais nada, o artista é um artista porque lê” (MELLO 2003). Falando sobre texto e imagem na literatura infanto-juvenil a escritora Ana Lúcia (2004) reitera a importância do artista como leitor, partindo do princípio de que a ilustração é uma forma de linguagem que dialoga com a linguagem verbal: O bom ilustrador é sempre um excelente leitor de literatura. [...] A literatura é um texto plurissignificativo. Por isso exige que o ilustrador seja um grande leitor de literatura, ou ele achata as possibilidades do texto escrito por meio de uma interpretação fechada e chapada. Isto é dirigismo. O grande ilustrador deixa espaço para o imaginário do leitor. Ele não lhe entrega todas as imagens possíveis dadas pelo texto verbal. A ilustração [...] passou de ornamento a linguagem. Ela acrescenta ainda que é papel do livro “educar esteticamente” o leitor quanto ao texto por meio de uma proposta estética bem realizada, que irá criar um ritmo de leitura único. Desta forma, cria-se não apenas um bom leitor, mas um bom fruidor de arte, que se expresse bem também visualmente, já que dialoga com tudo o que vê/lê. Um bom leitor também será introduzido ao mundo da escrita de maneira positiva. Ao ler, o leitor de literatura alimenta o imaginário, o que o leva ao desenvolvimento das capacidades de observar, analisar, refletir, criticar e criar, com mais senso de humor e liberdade. A literatura, “munida de suas potencialidades provocadoras do pensamento”, é o ponto de partida para a 20
  • 22. formação de leitores. Nela a ficção se integra com a realidade, pois sua matéria-prima é a experiência, a observação, a reflexão e o sonho. Ao unir realidade e fantasia, o livro de literatura abarca temas da vida, mobilizando o interesse de qualquer pessoa, em qualquer idade: “Não há instrumento mais completo para levar à reflexão, à crítica e à criação do que a literatura” (SERRA 2001). A decisão de apresentar um resultado imagético como conseqüência desta dissertação procura chamar a atenção do leitor para uma das inúmeras possibilidades de recontar uma obra literária, além de provocar questionamentos, colocar as obras de Carroll em pauta e despertar a curiosidade de ler - ou reler - Alice. Esta interpretação das histórias fantásticas de Carroll passando pelas imagens busca, especialmente, uma aproximação das obras com o leitor contemporâneo, uma vez que, embora famosas, as aventuras de Alice são, ao mesmo tempo, cada vez menos lidas pelas novas gerações de leitores de literatura infanto-juvenil, concorrendo com outros meios de comunicação, oriundos do desenvolvimento tecnológico (SCHOLLHAMMER, 2001). Abundante em detalhes e enigmas, alguns compreensíveis apenas para próprio Carroll e algumas de suas amigas crianças, os dois livros de Alice têm 12 capítulos cada, envolvendo uma nova aventura em cada um deles, dezenas de personagens com perfis elaborados, além de poemas e diálogos nonsense. Talvez por sua complexidade as obras sejam mais lembradas pelos leitores na atualidade através de personagens e cenas isoladas do que como história, em seqüência convencional de começo, meio e fim. É freqüente a mistura entre os conteúdos de Alice no país das maravilhas e Através do 21
  • 23. espelho (este menos conhecido), não raramente tratados como uma única história. Uma das referências mais populares sobre as aventuras de Alice, por exemplo, a adaptação de Walt Disney para animação cinematográfica4 , reforça essa confusão: o desenho animado combina cenas de ambos os livros e se intitula Alice in wonderland, referência à primeira das duas aventuras. Ao observar as obras mais de perto, o fenômeno desta leitura não convencional aponta outros possíveis fatores. Tanto Alice no país das maravilhas quanto Através do espelho são histórias fragmentadas, cujos capítulos são quase independentes entre si. Ambas foram escritas a partir de uma primeira versão oral5 , Alice's adventures under ground (As aventuras subterrâneas de Alice) criada de improviso por Carroll em um de seus passeios com Alice Liddell e suas irmãs, conforme conta o reverendo Robinson Duckworth, amigo de Carroll, que os acompanhou no passeio (COLLINGWOOD apud GARDNER, 2002:9): Eu remava na popa e ele na proa da famosa viagem a Godstow durante as férias longas, em que as três senhoritas Liddell eram nossas passageiras, e a história foi de fato composta e contada sobre meu ombro para o entretenimento de Alice Liddell, que estava servindo de “timoneiro” de nosso barco. Lembro de me virar e dizer: “Isso é um romance improvisado seu, Dodgson?” E ele respondeu: “É, estou inventando a medida em que avançamos”. O declarado interesse de Carroll pelos enigmas e nonsense ajuda a tornar seu estilo característico, conforme ele mesmo confessa em uma carta dirigida aos leitores de Alice no país das maravilhas, publicada ao final do livro, na Páscoa de 1876 (CARROLL, 1876:150): 4 O primeiro longa-metragem em animação na história do cinema, de acordo com The encyclopedia of Walt Disney's Animated Characters, de John Grant 5 Que teve uma versão manuscrita e ilustrada pelo próprio escritor (1862-1864) a ser discutida adiante. 22
  • 24. São estranhas estas palavras vindas de um escritor de contos do tipo de 'Alice'? E é esta uma carta estranha para se encontrar em um livro sobre nonsense? Pode ser. Alguns talvez possam me culpar por misturar coisas graves e alegres; (...) mas eu acho - não, eu tenho certeza - de que algumas crianças vão ler isto de forma gentil e carinhosa, e com o espírito com o qual eu escrevi6 No artigo “The making of Alice in wonderland - the background & history of Alice in wonderland”, do site Bedtime stories, é possível identificar razões que reforçam tais características nos contos de Carroll: ele escreveu quatro versões de Alice, sempre acrescentando personagens e episódios a cada reescritura. O primeiro manuscrito, Alice's adventures under ground, foi perdido em 1864, mesmo ano em que Carroll/Dodgson presenteou Alice Liddell, no Natal, com uma versão mais elaborada do conto, ilustrada com 37 desenhos feitos de próprio punho. Este manuscrito vai dar origem à primeira aventura, Alice’s adventures in wonderland. Traduzido no Brasil como Alice no país das maravilhas, este primeiro livro narra as aventuras da menina Alice, aos sete anos de idade, numa terra fantástica onde animais e objetos agem como humanos e bolos e licores fazem o corpo crescer ou encolher de tamanho. Neste livro, a protagonista interage com a corte da Rainha de Copas, cujos personagens são inspirados nas cartas do baralho. São deste livro também o Coelho Branco, o Gato de Cheshire, a Lebre de Março, o Chapeleiro Louco e a Duquesa. O segundo livro, Através do espelho, reúne personagens inspirados no jogo de xadrez e outros provenientes do imaginário infantil, lendas ou de 6 Are these strange words from a writer of such tales as 'Alice'? And this is a strange letter to find in a book of nonsense? It may so. Some perhaps may blame me for thus mixing together things grave and gay; (...) but I think - nay, I am sure - that some children will read this gently and lovingly, and in the spirit in which I have written it. 23
  • 25. outros contos infantis da época. São eles, a Rainha Vermelha e a Rainha Branca, a Tartaruga Falsa, o Grifo, o Jabberwocky (Pargarávio), os gêmeos Tweedledum e Tweedledee, Humpty Dumpty, o Cavaleiro Branco, o Leão e o Unicórnio, as Flores que Falam. Ambas as aventuras consistem em “visitas” de Alice a universos paralelos ao real, e ambos têm como passagem de acesso o sonho. Como na construção onírica, estas visitas não têm uma seqüência obrigatória de fatos que exijam do leitor uma leitura linear, capítulo a capítulo, para que haja compreensão da história. Os capítulos são escritos como se fossem episódios completos dentro de uma série. Tal é a clareza desta forma de escrita que, em Alice comentada, Gardner apresenta um episódio inédito escrito para Através do espelho, “O marimbondo de peruca”. Ele foi excluído do livro, antes de sua publicação, sem prejuízo para a história. O episódio foi descartado por Carroll, segundo Gardner (2002), a pedido de John Tenniel, que se recusou a ilustrá-lo, como comprova uma correspondência do cartunista endereçada a Carroll: Meu caro Dodgson, [...] Não me considere brutal, mas sinto-me obrigado a dizer que o capítulo do ‘marimbondo’ não me interessa em absoluto, e não consigo imaginar como ilustrá-lo. Se quer [sic] encurtar o livro, não posso deixar de pensar – com toda a submissão – que aí está sua oportunidade.[...] Sinceramente seu, John Tenniel. Ler Carroll e ver Tenniel em Alice inevitavelmente aciona uma ponte de espaço e tempo entre o contemporâneo – onde e quando se realiza esta pesquisa – e a Inglaterra do século XIX, ou seja, o Período Vitoriano. No caso de Carroll, as características literárias e costumes da época da rainha Vitória serviram de referência tanto para finalidades educacionais quanto para duras 24
  • 26. críticas, feitas com ironia e humor negro – como será discutido em seguida - o que torna a obra singular e mais compatível com os leitores nos dias de hoje do que outros contos infantis mais convencionais. Soma-se a isso o fato de que o cartunista John Tenniel não apenas foi contemporâneo de Lewis Carroll como foi seu amigo pessoal, e também por isso eleito pelo próprio escritor como o ilustrador das duas obras de Alice, sob a orientação e o olhar crítico do mesmo. Tenniel, por sua vez, impunha sua visão, adicionando traços de seu perfil de caricaturista e muitas vezes entrando em conflito com as idéias concebidas pelo próprio Carroll. Juntos, Carroll e Tenniel são os criadores de um clássico universal que resulta de discussões exaustivas sobre ambas as produções – literária e visual – a ponto de se desentenderem e trocarem críticas mútuas. Mas o que permanece historicamente é o fato de que Alice é um marco na literatura infanto-juvenil universal por se tratar de uma revolução conceitual. Para os especialistas em histórias infanto-juvenis a publicação de Alice no país das maravilhas marca a liberação desta literatura dos rígidos valores morais vigentes até então. O pesquisador Harvey Darton (2003) foi além, ao chamar a obra de Carroll de “primeira aparição apologética da ‘liberdade de pensamento’ nos livros infantis”. Sobre o prazer do texto observou que: [...] de agora em diante o medo se foi, e com ele uma inquietação tímida. [Os livros de Alice] proporcionam horas de prazer livres do medo do valor moral, do ponderável, do valor calculado e da delimitação do prazer em si. Têm de ser desfrutados é até mesmo divulgados sem prudência nem remorso. 25
  • 27. Fato curioso a respeito da Alice de Lewis Carroll é que em nenhum dos dois livros o autor faz a descrição da aparência da personagem. As poucas menções sobre o assunto, em ambos os livros de Alice, não são suficientes para descrevê-la ou para conduzir o leitor a imaginar/visualizar sua aparência física. No segundo capítulo de Alice no país das maravilhas, “The pool of tears” (“Lago de lágrimas”) ao especular se havia se transformado em outra pessoa, Alice faz referência aos seus cabelos que “não têm cachos” (CARROLL, 1994); este é um dos poucos momentos em que o autor fornece informações sobre a aparência de Alice. Isto é, o rigor com que os desenhos de Tenniel foram controlados por Carroll tem como referência apenas a fotografia de outra criança indicada pelo escritor7 e, principalmente, as instruções deste. 1.1 Regras para o nonsense Alguns aspectos marcam as duas aventuras de Alice e podem ser interpretados como temas e regras gerais predominantes abordados conscientemente por Carroll (GARDNER, 2002; GRADESERVER, 2005). Essas regras parecem determinar alguns padrões relacionados ao processo de amadurecimento infantil na Inglaterra do século XIX, tomando como exemplo Alice Liddell, amiga criança de Carroll. A menina era evidente alvo de uma atenção especial do escritor, que por isso estabeleceu estreita convivência não apenas com Alice como com toda a família Liddell (GARDNER, 2003). 7 Sobre Mary Hilton Badcock vide página 39, no segundo capítulo desta dissertação. 26
  • 28. Essas regras contraditoriamente organizam um conjunto de “leis” que regem a aparente dinâmica caótica dos mundos fantasiosos das duas aventuras vividas pela personagem Alice: ♦ Passagem para o mundo adulto: É o tema central dos dois livros. As aventuras de Alice fazem o paralelo entre a infância e a idade adulta. Ela experimenta várias situações novas em que a capacidade de adaptação é indispensável para seu sucesso. E vai demonstrando progressos no decorrer do livro. No início ela mal consegue manter o controle para não chorar, mas no final da primeira aventura ela está tão confiante que tem segurança para enfrentar com determinação as regras impostas naquele universo desconhecido que é o “País das Maravilhas” e que, portanto, foge ao seu controle. A relação de Alice com a maioria dos personagens lembra a relação das crianças com os adultos. Isso é reforçado pelas reações da protagonista quanto ao caráter autoritário dos animais e demais personagens de ambos os livros: “- Nunca recebi tanta ordem em toda a minha vida!”, exclama no capítulo 9, “A história da tartaruga falsa”, de Alice no país das maravilhas. No capítulo seguinte, “A quadrilha da lagosta”, acrescenta: “- Como as criaturas dão ordens à gente e nos fazem decorar lições! É como se eu estivesse na escola neste momento.”; ♦ Mudança de tamanho: Ligada diretamente ao tema anterior, a mudança de tamanho é um assunto recorrente, especialmente no primeiro livro. As mudanças dramáticas de tamanho podem ser associadas diretamente às alterações do corpo durante a adolescência. A chave, 27
  • 29. mais uma vez, é a adaptabilidade. Incluem-se aqui os atos de comer e beber para modificar o tamanho, necessário para as crianças do mundo real alcançarem o universo adulto. As mudanças de tamanho de Alice também significam, no livro, mudanças de perspectiva, que fazem com que Alice veja o mundo de outros pontos de vistas. Na última cena, ainda no “País das Maravilhas”, seu crescimento parece refletir seu crescimento interior, já que ela se torna mais forte e confiante, capaz de discordar das leis nonsense daquele lugar isto é, da face absurda de qualquer lei, já que sua validade decorre, sempre, de sua transgressão; ♦ Sonho: Em ambas as aventuras Alice está dentro de um sonho. No primeiro livro, em seu próprio sonho; no segundo, a questão fica mais complexa: Alice fica em dúvida se é ela ou o Rei Vermelho quem sonha. Neste caso, Gardner (2002) interpreta a questão como uma “estranha espécie de regressão ao infinito”, onde o Rei sonha com Alice, que sonha com o Rei, que sonha com Alice, como o efeito provocado ao se posicionar dois espelhos frente a frente, de forma que os reflexos se multiplicam infinitamente. Aí a introdução da dúvida e da alteridade Alice/Rei Vermelho sugere o confronto entre as personalidades de criança e adulto. Esta discussão sobre a alteridade também se apresenta nas situações em que Alice discute consigo mesma, discordando de seus próprios pensamentos. Estariam os limites (as regras do nonsense) no mundo real já cristalizados em cada indivíduo, tornando cada um sua própria autoridade? 28
  • 30. ♦ Morte: Este tema está muito presente nos livros. Alice freqüentemente se refere a sua própria morte inconscientemente. Um exemplo é a cena em que Alice verifica se há a inscrição “veneno” no licor que bebe e a faz encolher (primeiro capítulo de Alice no país das maravilhas), ou quando comenta que pode encolher até “acabar” como uma vela. Na visão de Carroll, a infância parece ser um período perigoso: as crianças são vulneráveis e o mundo apresenta muitas armadilhas fatais. Um dos aspectos da morte mencionados no livro é sua inevitabilidade, ou seja, uma vez que a mudança de tamanho é um assunto freqüentemente discutido, a morte conseqüentemente é um tema abordado, já que é a etapa final do crescimento. Esta atração por temas grotescos é uma das características da literatura e das artes plásticas no Período Vitoriano uma vez que, tal como a fantasia, o grotesco é considerado um mundo à parte. O tema causava fascínio entre os escritores da época, influenciados pelos avanços científicos de que eram testemunhas, já que a origem da psicanálise e a teoria da evolução das espécies eram alguns dos episódios que compunham aquele contexto (The Victorian Web, 2004) e rediscutiam valores como a fé e o estatuto do Homem em relação à natureza; ♦ Aprender regras/jogos: nos dois livros, todo novo encontro de Alice com algum personagem relaciona-se com o ato de jogar e aprender novas regras. Os jogos são parte constante da vida no “País das Maravilhas” ou dentro do espelho. Desde a “corrida em comitê” (“caucus race”) até o jogo de críquete, o fato da corte ser composta por cartas de 29
  • 31. baralho, na primeira aventura, até o jogo de xadrez da segunda aventura, quando a inteligência racional e consciente traça o rumo das peças determinando o destino do jogador, a estrutura simbólica do jogo está presente. Todos os jogos não poderiam deixar de ter regras absurdas às quais Alice tem de se adaptar como qualquer jogador iniciante. Aprender novas regras pode ser considerado aqui como uma metáfora às adaptações às regras sociais do mundo adulto, vividas pelas crianças quando crescem e pelos adultos por toda a vida. Downey (THE VICTORIAN WEB, 2004) interpreta o jogo de xadrez, que determina a dinâmica de Através do espelho, como uma metáfora para demonstrar a necessidade de preservar as hierarquias sociais e políticas, observando o papel das peças do jogo. Administrando as novas regras, Alice amadurece no decorrer das histórias e avança, como em qualquer jogo; ♦ Experiências com a linguagem e a lógica: Carroll gostava de enigmas e trocadilhos. Os livros de Alice são repletos de jogos de palavras que confundem a protagonista e entretêm os leitores. Os jogos e os personagens demonstram todo o tempo as confusões para a compreensão da linguagem de um modo geral e da língua inglesa especificamente. É o caso, por exemplo, da discussão durante o chá na casa da Lebre de Março, no primeiro livro: “Seria como dizer que ‘vejo o que [eu] como’ é a mesma coisa que ‘[eu] como o que vejo’” (CARROLL apud GARDNER, 2002, p.68). Jogos de palavra e de sentido, feitos por Carroll, discutem o que é considerado racional pelos adultos, mesmo que pareça contraditório. 30
  • 32. Todos estes aspectos apontados acima têm relação direta com a questão da educação na infância, e se encaixam com facilidade à postura rígida dos adultos em relação às crianças no Período Vitoriano, quando os livros foram escritos. Um paradoxo na narrativa de Carroll, é que, ao mesmo tempo em que ele cita regras de comportamento da época, ele as desconstrói com sua ironia. 1.2 Nonsense contra as regras O Período Vitoriano ficou conhecido por seus valores conservadores e repressores (The Victorian Web, 2004). Por seu comportamento distinto dentro da sociedade da época – era uma pessoa solitária e tímida – Lewis Carroll tinha uma visão diferente destes valores e dos conceitos de moral vigentes (GARDNER, 2002). Esta pode ser a razão de seu isolamento e de sua predileção pela matemática – onde não se lida com regras criadas pelas sociedades - e pelas crianças, seres ainda não contaminados pelos valores morais dos adultos. Esta postura à parte da sociedade teve reflexos em sua literatura. Tanto que seus personagens, diferentes de outros personagens de contos de fadas, se destacam pela amoralidade, por se colocarem além dos limites do que é considerado socialmente correto. Não há distinção, em Alice, entre heróis e vilões. O final dos contos equivale ao despertar de um sonho8 , diferente do “final feliz” tradicional da literatura infanto-juvenil tradicional. Ao contrário, as obras de Carroll ridicularizam os contos de fadas mais 8 Até que ponto seriam considerados sonhos, já que o próprio ato de despertar repentino durante um momento de tensão da história (que ocorre tanto em Alice no país das maravilhas quanto em Através do espelho) caracteriza o pesadelo? 31
  • 33. conservadores da época. Basta observar que os poemas de lógica absurda, presentes nos dois livros, são paródias de poemas e canções tradicionais daquele período, caso do poema “You are old father William”, recitado por Alice no capítulo 5 de Alice no país das maravilhas, uma paródia do antigo poema didático de Robert Southey (1774-1843) “The old man’s comforts and how he gained them” (GARDNER, 2002). Os personagens, em sua maioria, são mal-humorados e impacientes com Alice e muitos a tratam com desrespeito ou indiferença. Seria uma crítica de Carroll ao comportamento dos adultos em relação às crianças de sua época? Talvez por valorizar a infância e menosprezar os adultos – Alice sempre se manifesta corajosamente ao discordar de alguma regra que considera absurda, enfrentando, inclusive, rainhas e personagens “adultos” – ambos os livros de Alice tenham tido sucesso imediato ao serem lançados, no século XIX, e permaneçam como clássicos até os dias de hoje, inclusive entre os adultos. Têm sido objeto de estudos nas mais diversas áreas do conhecimento humano, da física à psicologia. Tema de montagens teatrais, adaptações para o cinema, trilhas sonoras, artes visuais, material didático, tendo sido traduzido em mais de 60 idiomas (The University Of British Columbia Web, 2005). Por suas características próprias, mantém-se atualizado aos olhos dos leitores contemporâneos – “a geração Internet” - que se aventuram toca do coelho adentro ou através do espelho, junto com Alice. Lewis Carroll - e John Tenniel, como se verá mais adiante - mantém- se atual justamente por romper com o controle do “horizonte de expectativas” (JAUSS apud SELIGMANN-SILVA, 2005) do leitor em qualquer tempo: Alice e 32
  • 34. seus parceiros de aventuras estão longe de serem modelos de bom comportamento e mesmo sua aparência, criada por Tenniel, não corresponde à meiguice e delicadeza dos tradicionais personagens de contos de fadas. O conceito de horizonte de expectativas foi introduzido pelo teórico alemão Hans Robert Jauss nos anos 60. Com ele indicam-se os pressupostos culturais, ou seja, as leituras já existentes (sociais, estéticas, literárias etc.) e que estão por detrás da leitura presente. Cada obra é defrontada com certa expectativa por parte do leitor: por outro lado, as obras literárias mais consistentes seriam responsáveis por quebras e alterações nesse horizonte. Na modernidade, toda a literatura - e as artes de um modo geral - são caracterizadas por essa busca na quebra do horizonte de expectativas (SELIGMANN-SILVA, 2005) como forma de transgressão com as formas tradicionais de mimese controlada do real. Nesse sentido outros teóricos já haviam pensado de uma forma ou de outra, esse aspecto da criação artístico-literária. Caso dos formalistas russos, para quem o procedimento da literatura é, antes de qualquer coisa, o estranhamento, a que Hegel denomina grotesco ou arabesco (KAISER, 1957). A linguagem da literatura deveria, conforme essa corrente crítica, atuar como quebra da linguagem automática do cotidiano, construindo assim o traço da literariedade. Para Jauss (apud Seligmann-Silva, 2005) a literatura seria o campo de experimentação da linguagem, onde ela se abre para o novo e se revela como construção constante de si mesma. Esse encantamento provocado pela quebra do horizonte de expectativa pode ser exemplificado, na obra de Carroll, pelo Gato de Cheshire, personagem de Alice no país das maravilhas que, segundo Gardner (2002), 33
  • 35. seria a representação do próprio Lewis Carroll no conto: “- Oh! É inevitável, somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca [...] Só pode ser, ou não teria vindo parar aqui”, diz ele a Alice. O fascínio pelo mistério de ruptura das fronteiras entre a razão e a loucura era outra tônica vitoriana - marcada pela revolução científica deste período em que viveu Charles Darwin, por exemplo - que permanece seduzindo pensadores contemporâneos. O que combina com perfeição ao comentário do filósofo Sócrates sobre a razão (SÓCRATES apud GARDNER, 2002): Vês, portanto, que uma dúvida sobre a realidade dos sentidos é facilmente suscitada, já que pode haver dúvida até quanto estarmos despertos ou num sonho. E como nosso tempo é igualmente dividido entre o sono e a vigília, em ambas as esferas da existência a alma sustenta que os pensamentos presentes em nossas mentes no momento são verdadeiros [...]. E não pode o mesmo ser dito da loucura e das outras desordens? A única diferença é que os tempos não são iguais. 34
  • 36. 2. VER ALICE A criação vive como gênese sob a superfície do visível da obra. Para trás, todos os espíritos enxergam; à frente – no futuro – só os criadores. Paul KLEE De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa (2005), a origem da expressão ilustrar data do século XV e traz, entre seus significados, “tornar ilustre, glorioso ou adquirir lustre, glória, celebridade; glorificar(-se); transmitir ou adquirir conhecimentos; instruir(-se); tornar compreensível; esclarecer, elucidar, comentar, explicar; enfeitar um texto com figura ou estampa ou ainda servir como exemplo, demonstrar, exemplificar”; e tem origem do latim illustro, “tornar claro, dar brilho, enfeitar”. 35
  • 37. O termo, portanto, já em sua origem, representa muito mais do que apenas sinônimo de certa figura que desempenha papel secundário diante do texto. Para Fraga (2003), a ilustração tem a “sublime e ingrata” missão de servir de convite ao esclarecimento e à reflexão, tendo o verbo ilustrar sentido reflexivo por apontar para o ato de ilustrar e simultaneamente de ilustrar-se. Ele lembra ainda outra referência, esta atribuída pela religião: em sua significação divina, ilustração é o mesmo que inspiração. A arte de ilustrar, neste caso, consiste em um estímulo ao pensamento e à própria atividade criadora, cuja fonte encontra-se na inspiração divina. A associação com o Iluminismo (século XVIII) estabelece a conexão da ilustração com a filosofia. Os filósofos deste período defendiam que a razão humana deveria libertar-se de todos os preconceitos e superstições e seguir em direção a um modo de vida condizente com a modernidade (FRAGA, 2003): Quando vemos uma boa ilustração, devemos encará-la como um testemunho em defesa da liberdade e da autonomia de pensamento, pois esta ultrapassa e muito a visão particular do artista responsável por sua criação. Representa [...] um convite à instrução, à iluminação e – por que não? – à filosofia. A expressão “imagem” é uma das mais abrangentes e ao mesmo tempo compreensíveis no vocabulário de língua portuguesa. Segundo Joly (1996), embora nem sempre remeta ao visível, a imagem busca no visual alguns de seus traços e depende de um sujeito que a produza ou reconheça, seja de forma imaginária ou de forma concreta. Resumidamente, uma das mais antigas definições de imagem, a do filósofo grego Platão, associa o termo ao sentido de reflexo de um objeto original, uma representação (PLATÃO, 1956): Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto 36
  • 38. fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados? Para Joly (1996), porém, a imagem é uma representação dinâmica que será determinada de acordo com o olhar do leitor, ainda que este leitor seja, ele mesmo, o artista criador da imagem (entendendo-se aqui imagem em conceito mais amplo, seja na forma escrita, na forma de desenhos e pinturas bidimensionais, de objetos tridimensionais e até mesmo de objetos virtuais). O próprio ato de imitar as pessoas e os objetos do mundo real utilizando um esquema visual representativo indica a interferência do artista, sua forma particular de leitura daquilo que busca representar. A autora vai além, associando o conceito de imagem com a metáfora, que utiliza uma palavra por outra, em virtude de sua relação analógica ou de comparação (JOLY, 1996): [...] a ‘imagem’ ou a metáfora também pode ser um procedimento de expressão extremamente rico, inesperado, criativo e até cognitivo, quando a comparação de dois termos (explícita e implícita [sic]) solicita a imaginação e a descoberta de pontos comuns insuspeitados entre eles. Esse foi um dos princípios de funcionamento da ‘imagem surrealista’ na literatura, é claro, mas também, por extensão, na pintura (Magritte, Dali) ou no cinema (Buñuel). Retomando Fraga (2003), a imagem no processo educacional é um poderoso recurso para tornar mais leve e atrativo o texto escrito, o que “em uma sociedade cujo modelo educacional ainda tem como alicerce a repetição a-crítica (sic) das idéias de poucos privilegiados” é uma tarefa complexa. A utilização da imagem aproxima o educando e o leva a pensar de modo 37
  • 39. autônomo, já que consiste em cativar o leitor primeiramente pelo seu sentido mais imediato e desenvolvido, segundo Fraga, a visão. Ainda em relação à educação visual, considerar os criadores de imagens, as técnicas, os procedimentos, informações históricas, relações culturais e sociais envolvidas na complexidade dos modos de produção de imagem vai contribuir para a formação de um olhar mais crítico e criativo sobre o contexto imagético em que se está inserido. Com a ampliação deste universo perceptivo, torna-se mais fácil selecionar, distinguir qualidades, compreender criticamente e até mesmo se comunicar por imagens (LOPES, 2001). O exercício do olhar, de perceber o diferente, de desvendar os significados, exige um trabalho continuado de educação, para que ele articule percepção, imaginação, conhecimento, produção artística e, ao mesmo tempo, valorize e respeite a multiplicidade e diversidade de pontos de vista, dos modos de ver e estar no mundo. Percebemos a realidade de forma distinta porque somos diferentes, nossas emoções, conhecimentos e experiências interferem nas formas de ver e acarretam diferentes olhares sobre a realidade. Referindo-se aos novos veículos de informação, como o hipertexto, Schollhammer (2001) atenta para o fato de que atualmente é impossível distinguir entre o elemento visual e o textual do signo. Isso cria uma nova dimensão de significados não redutível nem ao sentido literal da linguagem escrita nem à semelhança mimética da imagem. Nenhuma imagem, hoje, representa um sentido em função da sua pura visibilidade, mas encontra-se sempre inscrita num texto e também em um contexto cultural maior, abrindo para formas diferentes de leitura, cujas fronteiras ainda não percebemos com clareza. Em outras palavras, não se 38
  • 40. pode tratar a imagem como ilustração da palavra nem o texto como explicação da imagem. O conjunto texto-imagem forma um complexo heterogêneo fundamental para a compreensão das condições representativas de forma geral. 2.1. Alice de Tenniel A Alice do ilustrador e cartunista político John Tenniel (1820-1914) é filha de um contexto que avança além dos limites da ilustração de um livro infantil convencional. Trata-se do resultado de uma pesquisa que envolveu orientações do próprio autor, de quem era amigo e que acompanhou de perto o processo de ilustração, sugerindo e criticando os esboços e opinando sobre as soluções apresentadas pelo cartunista. Tal é o envolvimento de ambos neste processo que, por diversas vezes, eles se desentenderam quanto à concepção de imagens-chave, como a aparência da própria Alice, personagem principal (GARDNER, 2003). É do próprio Carroll o comentário sobre os desenhos de Alice feitos por Tenniel: O senhor Tenniel é o único artista que desenhou para mim que se recusou resolutamente a usar um modelo, declarando que tinha tão pouca necessidade de um quanto eu de uma tabuada de multiplicar para resolver um problema matemático! Arrisco-me a pensar que estava errado e que, por falta de um modelo, desenhou várias imagens de ‘Alice’ completamente desproporcionais – cabeça evidentemente grande demais e pés evidentemente pequenos demais.9 O livro realmente resulta das demandas exigidas pelo escritor e pelo ilustrador, que discutiam freqüentemente a relação imagem/texto. Carroll insistiu em dar as instruções detalhadas a respeito de seu tema, descrevendo 9 Trecho de carta citada em Alice comentada, p. 11. 39
  • 41. detalhes como o tamanho das figuras, posição na página, exigindo que Tenniel executasse precisamente o que ele tinha em mente. O perfeccionismo de Carroll estendeu-se a cada aspecto do processo de produção, da seleção da encadernação (preferiu o vermelho brilhante como o mais atrativo às crianças) até à embalagem dos livros e ficou satisfeito com a impressão da primeira edição. Mas John Tenniel também impunha sua opinião: quando ouviu que o artista ‘estava inteiramente descontente’ com a impressão das gravuras, Carroll fez um exame crítico sério e decidiu se desfazer da edição inteira (GARDNER, 2002). Curiosamente, a aparência da Alice de Tenniel não retrata a menina Alice Liddell, que inspirou os livros, por orientação do próprio Lewis Carroll. Liddel tinha cabelos escuros, lisos e curtos (imagem 1). Por opção do escritor, a John Tenniel foi sugerido que utilizasse uma fotografia de outra criança conhecida de Carroll, Mary Hilton Badcock (imagem 2). De cabelos longos, claros e ondulados. Aliás, esta figura também coincide com a versão do próprio Carroll (imagem 3) em seus desenhos destinados à versão manuscrita presenteada a Alice Liddell, e que em muito se assemelha à versão de Tenniel (imagem 4). 1. Alice Liddell por Lewis Carroll. Fotografia, s/d; 40
  • 42. 2. Mary Hilton Badcock por Lewis Carroll. Fotografia, s/d; 3. As aventuras subterrâneas de Alice, manuscrito de Lewis Carroll. Desenho, 1864; 4. Alice de John Tenniel. Xilografia colorida, 1889 Os 42 desenhos de Tenniel para Alice nos país das maravilhas e os 49 para Através do espelho, ainda hoje são os mais famosos apesar da lista de mais de 200 artistas que já ilustraram os livros de Carroll e que inclui nomes como o de Salvador Dali. Originalmente publicados em preto e branco, 20 das ilustrações de Alice ganhariam cor apenas dezoito anos depois da publicação de Através do espelho, no livro The nursery Alice (algo como A babá Alice, em português). 41
  • 43. Uma versão adaptada de Alice no país das maravilhas, por Lewis Carroll para crianças menores (GARDNER, 2003). Tal é a importância das ilustrações de Tenniel sobre a obra de Lewis Carroll que George Landow (2004), um estudioso do período vitoriano chega a levantar a seguinte questão: Desde que o autor do texto verbal (Dogson/Carroll) influenciou (controlou?) tão intensamente as imagens que acompanham a obra, será possível interpretar o texto ignorando o visual? O que, em outras palavras, é Alice no país das maravilhas e Através do espelho – o texto verbal sozinho ou a combinação entre palavra e imagem? Em um período considerado como os anos dourados das ilustrações de livros na Inglaterra, a John Tenniel foi atribuída a fama de elevar o estatuto das charges políticas ao grau de composição clássica. A ponto de influenciar, com suas imagens, as discussões nos meios mais cultos da Europa, mais até que os escritos dos intelectuais de seu tempo (GARDNER, 2003). Associar Tenniel com a crítica social e política é citar parte fundamental de sua carreira, já que foi como cartunista da revista inglesa Punch que o desenhista se manteve produtivo por boa parte de sua vida: nada menos que 51 anos. Para a revista, criou mais de duas mil caricaturas e ilustrações. Entre os personagens que criou para as obras de Carroll encontram- se algumas caricaturas de personagens reais, caso, por exemplo, da Duquesa (imagem 5), supostamente inspirada em Margaret da Caríntia e do Tirol, cuja grande semelhança de traços e de vestimentas pode ser constatada em seu retrato executado pelo pintor flamengo Quentin Matsys, e que ficou conhecida como “a mulher mais feia da História” (imagem 6). 42
  • 44. 5. A Duquesa no desenho de John Tenniel. Xilogravura colorida, 1889 6. A duquesa feia, pintura de Quentin Matsys, óleo sobre tela, séc. XIV Outro registro histórico inserido por Tenniel é a presença de um macaco entre os animais que saem do lago de lágrimas com Alice, no primeiro capítulo das aventuras no “País das Maravilhas”. Embora não seja citado no texto, ele aparece em duas das ilustrações desse capítulo (imagens 7 e 8) e, na segunda delas, seria uma cópia exata de uma caricatura que Tenniel publicou na revista Punch, em 1856, de Ferdinando II, rei das Duas Sicílias (GARDNER, 2002). 43
  • 45. 7. e 8. A presença do macaco, registrada por Tenniel em duas ilustrações para Alice no país das maravilhas. Xilogravura, 1865. Ainda mencionando animais, um dos temas prediletos de Tenniel em suas criações como caricaturista, uma característica é fortemente marcada em Alice: a antropomorfia. Os personagens apresentados na forma de animais sempre trazem características humanas, como mãos e pés humanos. Os naturalmente quadrúpedes - como o Coelho Branco e a Lebre de Março, do “País das Maravilhas”, e o Leão e o Unicórnio de Através do espelho - apóiam- se sobre duas pernas, além do uso de vestimentas e calçados. É o caso, inclusive, de Jabberwocky que, apesar de ser citado apenas como um monstro dentro de um livro em Através do espelho, foi vestido por Tenniel com um colete. A presença de animais antropomórficos é outra marca do estilo vitoriano, também adotado por Carroll, que concede o dom da fala e do raciocínio aos animais personagens dos dois livros, ainda que com uma lógica nonsense. Em seu processo de criação, Tenniel não gostava de utilizar modelos, embora isso fosse prática comum em sua época. Para Alice, Carroll orientou Tenniel para que ilustrasse os animais a partir das referências da vida real, mas o cartunista insistiu em suas próprias criações fantasiosas. Em 44
  • 46. entrevista realizada em 1889 (Spartacus Educational School Net, 2004) Tenniel descreve seu processo de trabalho: Eu encaminho meu trabalho da seguinte forma: Eu nunca uso modelos ou a natureza para a personagem, tecidos ou qualquer outra coisa. Mas tenho uma memória maravilhosa para observação – não para datas, mas tudo o que vejo memorizo. As ilustrações de Tenniel foram consideradas tão sofisticadas e ricas em detalhes que Walt Disney, ao realizar o longa-metragem de animação Alice in wonderland, desistiu da idéia inicial de utilizar seus originais: a grande quantidade de traços nos desenhos encareceria grandemente a produção (La Página De Lewis Carroll, 2005). Vale a pena lembrar que o método utilizado por John Tenniel, a xilogravura, passava por um processo que consistia em desenhos preliminares a lápis. Eram, então, passados a limpo com tinta sobre papel chinês branco para transferência dos traços na matriz em madeira por entalhe artesanal. Para a reprodução em série, esta matriz é copiada, ainda uma última vez, em eletrotipos para clichês tipográficos. Um trabalho minucioso cuja precisão e fidelidade ao desenho original depende também da habilidade dos executores do entalhe. No caso de Alice, este trabalho foi executado pelos Irmãos Dalzier (GARDNER, 2003). 2.2. Alice de Daibert Arlindo Daibert Amaral (1952-1993) foi professor do Departamento de Artes da UFJF e teve sua formação acadêmica em Letras pela UFJF, departamento onde este mestrado foi desenvolvido. Estudioso das artes e exímio desenhista (foi aclamado pela Associação Paulista de Críticos de Arte 45
  • 47. (APCA) como Melhor Desenhista (1979) e autor da Melhor Exposição de Desenho (1990)). Ao invés de transitar entre a literatura e as artes visuais, optou por conjugá-las em estudos híbridos, que por vezes envolviam a pesquisa histórica. Caso de Macunaíma de Andrade, em que a série de ilustrações críticas traz, além do livro, referências da biografia de Mário de Andrade, da Semana de Arte Moderna e seus protagonistas: estes, mais que contemporâneos, amigos do autor de Paulicéia desvairada (1922). Seu interesse pelas duas linguagens artísticas o envolveu naturalmente na criação do Centro de Estudos Murilo Mendes, do qual é idealizador ao lado do artista plástico Leonino Leão. Criado em 1994, o centro cultural reúne, em Juiz de Fora, Minas Gerais, a biblioteca particular e o acervo de artes plásticas do poeta Murilo Mendes. Este acervo é considerado uma das mais importantes coleções de Arte Moderna do Brasil. A série Alice no país das maravilhas é formada por pelo menos 60 trabalhos identificados, entre desenhos e estudos. Inéditos em publicação, os originais de Daibert encontram-se atualmente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, como parte do acervo da coleção Gilberto Chateaubriand. Para os estudos desta dissertação, foram utilizadas reproduções fotográficas dos desenhos da série, disponibilizadas pela família do artista. Curiosamente, Daibert também intitula sua série de desenhos, inspirada em Lewis Carroll, como Alice no país das maravilhas, embora nela inclua as duas obras ora estudadas. Em entrevista publicada no livro Arlindo Daibert: depoimento (2000), ele não faz distinção entre Alice no país das maravilhas e Através do espelho, embora a série inclua imagens ou referências 46
  • 48. a personagens como os gêmeos Tweedledum e Twedledee, Humpty Dumpty, Jabberwocky, o Leão e o Unicórnio, todos do segundo livro. O principal motivo de identificação deste trabalho com o do artista juizforano é a comunicação entre as mesmas linhas de pesquisa: literatura e artes visuais. Este caminho de produção de Daibert é uma de suas características mais marcantes, sendo representado por outros trabalhos como Macunaíma de Andrade (1981-82) (imagem 9), série de ilustrações em técnica mista e inspirada em Macunaíma, de Mário de Andrade; e Imagens do Grande Sertão (1973-76) (imagem 10), com ilustrações em técnicas que vão dos desenhos às colagens, passando pelas xilogravuras, sobre Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa (SILVA e RIBEIRO, 2000). Ambos publicados na forma de livro pela Editora da UFJF. 9.(Direita) O filho encarnado, Arlindo Daibert, lápis sobre papel, 1982 e 10. (Esquerda) Pacto de Grande Sertão Veredas, de Arlindo Daibert. Xilogravura, 1984 O processo de criação de Daibert em suas obras visuais é definido, pelo próprio artista, como “uma recriação do texto com os recursos da linguagem gráfica” (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000) e não como ilustrações literais dos livros. O que se evidencia quando afirma que a idéia de 47
  • 49. realizar um trabalho gráfico a partir de Macunaíma, de Mário de Andrade, não tem a pretensão de esgotar o livro ou de procurar ilustrá-lo literalmente. Ele aponta a complexidade da composição do livro, a riqueza dos diferentes climas poéticos, humorísticos e críticos e, principalmente, o uso da língua como um instrumento de afirmação nacional, como os pontos que mais o interessaram (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000): Afastei a idéia de ilustrar o livro e preferi uma recriação das possibilidades e limitações das diferentes linguagens gráficas. [...] Os 58 desenhos a partir do Macunaíma representam somente uma das inúmeras possibilidades de trabalhar o texto que permanecerá magicamente aberto a outras interpretações. Cada vez mais vivo e vital, como o próprio Mário: “Tem mais não”. São poucos os registros escritos de Arlindo Daibert sobre sua série Alice no país das maravilhas (1976-79), formada por desenhos em grafite e lápis de cor sobre papel. Juntamente com as séries Gran circo alegria de viver (imagens 11 e 12), Persephone (imagem 13 - detalhe) e Ofício das trevas (imagem 14), a série Alice no país das maravilhas (imagem 15) foi apresentada publicamente em exposição individual realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1977. Provocou, segundo Daibert, “uma reação normal a qualquer exposição que acontece” (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000). 11 e 12. Da série Gran circo alegria de viver, Arlindo Daibert, crayon e lápis de cor sobre papel, 1976; 48
  • 50. 13. (Esquerda) Da série Persephone, técnica mista sobre papel, 1975 e 14. (Direita) Da série Ofício das trevas, crayon e lápis de cor sobre papel, 1977 15. “... burning with curiosity she...”, da série Alice no país das maravilhas; grafite e lápis de cor sobre papel, 1977 Esta recepção indiferente ocorreu, em sua opinião, porque “a crítica tem uma certa má vontade nessa [sic] relação entre artes plásticas e literatura”. A exposição exibia o resultado de sua experiência na França, onde morou, entre outubro de 1975 e junho de 1976, com bolsa de estudos concedida pelo governo francês. A bolsa correspondia ao prêmio Ambassade de France, conquistado no II Salão Global de Inverno de Belo Horizonte, em 1974. Em Paris, Daibert especializou-se, principalmente, em técnicas de gravura em metal, curso realizado no atelier Calevaet-Brun. Apesar da exposição no MAM-RJ, o desejo confesso de Daibert era publicar sua série Alice no país das maravilhas como álbum, o que nunca ocorreu. Essa parecia ser a tendência do artista na destinação de suas 49
  • 51. produções visuais: publicá-las em livros mais do que expô-las em mostras de museus e galerias. É o caso da série Macunaíma de Andrade, sobre a qual comenta: Sendo um trabalho feito a partir do livro, com certo rigor de livro, numa seqüência lógica de leitura, é um projeto para edição. Quando comecei a trabalhar Macunaíma, tinha a intenção de que fosse editado como álbum. É um trabalho que parte de um livro. [...] Eventualmente, poderá ser impresso (DAIBERT apud SILVA e RIBEIRO, 2000).10 Os desenhos de Alice no país das maravilhas de Daibert trazem, já à primeira vista, evidentes diferenças em relação à versão original de Tenniel, esta mais comprometida com a representação das idéias de Carroll, como já foi dito anteriormente. A série do artista juizforano foi construída em circunstâncias muito diferentes, com total liberdade de criação e sob um outro olhar, o contemporâneo. O distanciamento de Daibert da obra de Carroll não se dá apenas quanto ao tempo, mas também ao espaço e outros elementos como idioma e contextos social, geográfico e histórico. Ao mesmo tempo em que, apesar destas distâncias, a obra de Carroll encontre-se nos traços de Daibert, por alguma afinidade do artista contemporâneo brasileiro com essa obra de literatura infantil inglesa do século XIX, eleita como objeto de estudo. Tão figurativa quanto a versão de Tenniel, a série de Arlindo Daibert aprofunda-se no aspecto fantástico, dando origem a imagens tão enigmáticas quanto os textos de Carroll, mas de um ponto de vista distinto. Em Daibert, Alice é rica em referências eróticas: desde as rendas e estampas delicadas nos ingênuos e sugestivos lingeries até as glandes saltando da cabeça de Alice e 10 A previsão de Daibert sobre a publicação da série Macunaíma de Andrade concretizou-se apenas em 2000, após sua morte. 50
  • 52. bocas em forma de vaginas de onde brotam pênis articulados como dedos (imagem 14). Uma Alice para adultos. 16.”I must be getting somewhere near the centre of the earth!”, da série Alice no país das maravilhas, Arlindo Daibert. Grafite e lápis de cor sobre papel, 1977. A leitura de Alice feita por Daibert reconta as aventuras escritas por Carroll e vai além, criando situações que não existem nas histórias originais. Ainda que não se tenha notícia de registros escritos do artista sobre sua versão de Alice, é possível perceber os novos elementos através de “pistas” deixadas por Daibert como, por exemplo, as frases e expressões retiradas dos livros de Alice para cada desenho realizado. Anotadas de forma manuscrita pelo próprio artista junto às fotografias dos desenhos originais, podem ser considerados títulos para cada ilustração. Com exceção do título da série, todos os outros, individuais, estão no original em inglês. O uso de expressões do livro como títulos dirige a leitura das imagens para cada episódio, uma vez que algumas referências imagéticas não são literais à primeira vista. É o caso, por exemplo, de “Tea for two” 51
  • 53. (imagem 17), uma possível citação do filme musical norte-americano homônimo (1950), adaptado de uma peça de Nicolas Cage, exibida na Broadway (1924). Nela, as referências ao texto de Carroll se resumem à palavra “tea” (chá) e à presença do rato, um dos personagens do capítulo VII de Alice no país das maravilhas, “Mad tea-party”, ou “Um chá maluco”, na tradução de Maria Luiza Borges para Alice comentada. Em “Serpent! scream the pigeon” (imagem 18), Daibert vai além, dando outro desfecho para a cena em que Alice com o pescoço alongado é confundida com uma cobra por uma pomba. Na obra de Carroll – Alice no país das maravilhas – a ave teme que a “cobra” devore o ovo que está em seu ninho, mas nada ocorre além de uma discussão entre ela e Alice. Na versão de Daibert, elas duelam com pistolas, e a imagem da mão de Alice esmagando outro pássaro indica que a violência foi cometida como temia a pomba. Além da presença do erotismo nos desenhos de Daibert, já mencionado anteriormente, a morte é outro tema explorado nesse e em outros desenhos, como na imagem 19, em que a cabeça decapitada de Alice é servida à mesa. O assunto é outro fator de aproximação do artista contemporâneo com o universo literário de Lewis Carroll e do período vitoriano, conforme discutido no capítulo anterior desta dissertação. Coincidência ou não, Daibert ilustra Alice tal como na história bíblica sobre a morte de São João Batista, que no século XIX, mais especificamente em 1893, inspirou o escritor irlandês Oscar Wilde a escrever a polêmica peça teatral “Salomé” (WILDE, 1893), ilustrada por Aubrey Beardsley (imagem 20). 52
  • 54. 17. (Direita) “Tea for two” e 18. (Esquerda) “Serpent! Screamed the pigeon”, Arlindo Daibert, grafite e lápis de cor sobre papel, 1977 19. (Direita) “Off with her head! Off with her...”, Arlindo Daibert, grafite e lápis de cor sobre papel, 1977 e 20. (Esquerda) “The dancer’s reward” (detalhe). Aubrey Beardsley, nankin, 1893 53
  • 55. 3. EXPOR ALICE Há traduções cheias de boas intenções que são quase falsificações, porque banalizaram involuntariamente o texto, não sabendo exprimir-lhe o movimento corajoso e alegre, que gosta de transpor com um salto os perigos das coisas e das palavras. NIETZSCHE A escolha das artes visuais como uma forma alternativa para apresentar a “trans-leitura” feita sobre as Alices de Carroll, Tenniel e Daibert é encarada como um exercício de tradução de linguagens. A opção por esta forma de apresentação se justifica no sentido de propor uma estratégia diversificada para aguçar a curiosidade do receptor sobre a obra literária. Também por entender que a linguagem das artes visuais, em sua riqueza de elementos materiais e suas possibilidades de efeitos sinestésicos, tem estreita relação com o estilo de escritura de Carroll. Isto se reflete também na leitura das imagens de Tenniel e Daibert. Tal como o texto ao ser traduzido de um idioma para outro, a transposição da palavra para imagem busca aqui lançar mão de artifício que ajude a estabelecer a comunicação de forma a instigar o receptor. Este recurso parte do conceito de Jauss de “quebra” do horizonte de expectativas, no sentido de provocar o interesse do interlocutor (neste caso, o leitor de imagens) pela forma inusitada de recontar as obras de Carroll: usando as artes visuais como idioma. Assim como um texto ao ser registrado através da escritura, o objeto artístico ao ser construído busca uma audiência, busca estabelecer contato com o olhar alheio. Neste caso, o contato extrapola o caráter de mero receptor do leitor de imagens, o contato busca neste olhar a complementação da obra. O espectador finaliza a obra de arte. 54
  • 56. 3.1 Tradução No prefácio do livro Limites da traduzibilidade – coletânea de textos sobre tradução – Laranjeira (apud COSTA, 1996) reitera esta forma de entendimento pelo fato de que, nos textos literários, os elementos formais materiais são captáveis pelo sentido. Afirma que aspectos como sonoridades, linearidade ou quebra discursiva, caracteres tipográficos, disposição gráfica, “mancha” do texto, branco da página, ilustrações, textura do papel ou de outro suporte que o substitua, cor, montagem do livro ou do objeto significante, entre outros, não são meros acessórios, mas integram o seu modo específico de produzir sentidos. Os textos literários, que trabalham com o que ele chama de “material significante”, funcionam como um jogo em que a ambigüidade constitui-se em princípio ativo na geração de leituras polivalentes e de sentidos “explodidos ou desviados” da referencialidade meramente lingüística: Não se traduz mais o sentido, mas a significância do texto. Busca-se uma retextualização na língua- cultura de chegada que seja homóloga ao texto de partida, não tanto em seus elementos conceituais e de referenciação, mas nas tensões produtivas geradas pelo jogo dos significantes disponíveis na língua de chegada. Neste caso, na linguagem de chegada. Na mesma coletânea, Schnaiderman (apud COSTA, 1996) define a tradução literária como uma arte: “[...] toda tradução de poesia ou prosa literária é um ato artístico e como tal deve ser encarado”. O grau de realização artística é que fará com que se tenha ou não uma “tradução digna” (SCHNAIDERMAN apud COSTA, 1996), o que se encaixa com a proposta de apresentar a leitura de Alice na forma de arte visual. 55
  • 57. No artigo “Traduzindo uma pós-graduação”, Lavallé e Caffé (apud COSTA, 1996) complementam que a participação do tradutor - que “lemos” aqui como o criador da obra dentro de um outro código artístico, o da imagem - é fundamental nos meios científico, tecnológico e cultural. Isto favorece o intercâmbio entre segmentos diferenciados da sociedade, permitindo-lhes o acesso a informações igualmente diversificadas. O tradutor cria elos entre “produtores” e “usuários” do saber, permitindo o estabelecimento de fluxos regulares de conteúdos e a sua assimilação por um número sempre crescente de leitores. O tradutor é um agente facilitador do desenvolvimento e aperfeiçoamento de experiências que contribuem para o intercâmbio dos conhecimentos e para a definição de uma política de comunicação “sempre mais harmoniosa, dinâmica e profícua entre os povos” (LAVALLÉ e CAFFÉ apud COSTA, 1996). Sobre a problemática da fidelidade ao texto de origem, o tradutor não é apenas um mediador entre duas línguas. A especificidade de sua produção reside não somente na busca lexical, na complexidade da estrutura da língua de partida, mas, sobretudo em questões de ordem estética e cultural. A reconstrução da linguagem literária torna-se risco, aventura, inscrevendo-se como recriação e reescritura (ALMEIDA, 1996). Arrojo (apud COSTA, 1996) afirma que a tradução assim como a leitura são atividades essencialmente produtoras de significados que serão aceitos como legítimos e adequados por aqueles que constituem a comunidade cultural na qual pretendem atuar tanto o tradutor quanto o leitor e o escritor. O tradutor, portanto, deve se conscientizar do papel essencialmente autoral que exercerá ao traduzir qualquer texto, por mais simples e 56
  • 58. despretensioso que seja, assumindo a responsabilidade que esse papel implica. Sua visão de mundo determina necessariamente suas leituras e, conseqüentemente, as traduções que produz. Quanto mais enriquecida e aberta puder ser essa visão, maior será o repertório a partir do qual poderá produzir leituras e traduções (ARROJO apud COSTA, 1996). Evidentemente as definições organizadas acima se referem à tradução poética, literária, teórica. Santos (apud COSTA, 1996), atenta para este enfoque, apesar de discutir a distinção “um tanto didática e teórica” entre o que se chama de tradução técnica (ou referencial) e a tradução literária: Essa dicotomia – infelizmente arraigada dentro e fora da universidade – é suavizada quando pensamos em um continuum entre dois extremos puramente teóricos, calibrados pelo menor ou maior grau de ambigüidade, ficcionalidade, univocidade ou opacidade, qual seja o enfoque adotado. Notadamente quando se fala em tradução há, seguramente, uma concentração de atenções sobre o texto literário. A tradução referencial é um pouco “prima pobre” da tradução poética. Bourjea (apud COSTA, 1996) refere-se à tradução sob a abordagem do respeito à alteridade, no caso o texto de origem. Em seu depoimento sobre a tradução de Clarice Lispector, a tradutora lembra que toda atividade de tradução é testemunha da capacidade de se estabelecer relações com o “outro” e desvenda uma política, e até uma poética, dessa relação. Enfatiza a importância de respeitar as transgressões do autor no que elas têm de mais perturbador, de mais irredutível. O tradutor tem que ser capaz de trazer para a linguagem-alvo esta estranheza: “Isso é uma questão de ética ou simplesmente de honestidade”. Laranjeira (apud COSTA, 1996) acrescenta: 57
  • 59. [...] quem traduz traduz o texto original, mas também se traduz. A originalidade do texto traduzido está em ser ele, sempre e necessariamente, o Mesmo e o Outro a coexistir numa tensão dinâmica. O traduzir deve considerar a pluralidade do texto de origem assim como a singularidade da tradução. Diante da polissemia, da polivalência, da ambigüidade, o tradutor terá que fazer sua escolha e esta resultará inevitavelmente numa perda. “Isto explica o fascínio e o tormento da tradução poética, em que algo sempre tem que ser sacrificado, e vem nos lembrar que a melhor das traduções nada mais é do que aproximação” (MORTARA apud COSTA, 1996). Concluindo esta relação de conceitos sobre a tradução literária, cabe aqui a definição de Praz (1970) sobre a interpretação: Toda a avaliação estética representa um encontro de duas sensibilidades, a do autor da obra de arte e do intérprete. O que chamamos de interpretação é, dito de outro modo, o resultado do filtrar da expressão de outro através de sua própria personalidade. 3.2 Transposição Partindo destes conceitos, organizou-se uma combinação das leituras sobre Alice de Lewis Carroll (literatura), Alice de Tenniel e de Daibert (imagem) que será apresentada de duas formas: numa seqüência de registros imagéticos e textos explicativos dentro desta dissertação e na exposição das peças artísticas ao vivo, no Espaço Cultural da Reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora, realizada no período de 3 a 24 de junho de 2005. Importante enfatizar que a necessidade de anexar textos escritos junto às imagens das obras tem como objetivo específico estabelecer a 58
  • 60. conexão do trabalho teórico à produção prática, completando o ciclo da pesquisa. As peças escultóricas foram concebidas de forma a independer de descrição ou explicação para sua exibição pública. Ou seja, na dissertação, as obras atuam como resultado das leituras interpretativas de Alice e, na mostra, valorizam o papel estético/visual. Em algumas das peças, a utilização da palavra constitui um rico complemento, enfatizando idéias, reforçando a ironia sempre presente no texto de partida. Em todos os casos, a começar pelo convite da exposição (figura 21), toda a grafia foi concebida de trás para frente, como se fosse refletida no espelho de Alice. Além da menção direta a Através do espelho, o recurso exige maior atenção e, portanto, detém por mais tempo o olhar do leitor diante das imagens, o que exercita o decifrar de cada mensagem; como Alice ao ler o poema “Jabberwocky” utilizando o reflexo do espelho, no primeiro capítulo do mesmo livro. 21. Convite da exposição “Leituras de Alice” (da esquerda: capa e face interna). Arte executada por Aline Coutinho (2005) 59
  • 61. Dar título a cada peça também contribuiu com a leitura das imagens. Alguns copiam o nome de capítulos específicos dos dois livros e a opção pela versão original em inglês é uma homenagem a Carroll, na literatura, e a Arlindo Daibert, que assim nominou seus desenhos. 3.3 Composição O projeto da exposição dos objetos foi submetido a uma pré-seleção e aprovado pelo Núcleo de Integração Cultural (NIC) da UFJF, responsável pela organização da agenda de exposições desta universidade. Inicialmente esta pesquisa de mestrado previa a realização da exposição e da defesa da dissertação simultaneamente, sendo a mostra prática parte complementar da teórica. Essa impossibilidade – a exposição foi realizada antes da defesa – que por um lado mostrou-se desfavorável à apresentação do trabalho teórico, por outro significou um benefício. À pesquisa escrita acrescenta-se, com isso, a impressão do público visitante: o “leitor- criador” discutido no primeiro capítulo desta pesquisa. De acordo com o NIC, a proporção de espectadores que se registram11 no livro de visitação corresponde a uma média de 10 por cento do total de visitantes durante o período das exposições. A partir do número de assinaturas no livro de presença desta exposição, foram registrados 246 visitantes, entre estudantes, professores e funcionários da UFJF e público em geral. 11 A assinatura do livro não é obrigatória. Ele permanece durante todo o período de uma mostra na galeria do Espaço Cultural da Reitoria da UFJF, inclusive no dia de abertura, quando a visitação é mais intensa. 60
  • 62. Os resultados a seguir são baseados nestes registros, onde constam nome, endereço ou e-mail e comentários dos visitantes. Eles constituem a única fonte comprobatória para embasar esta etapa do trabalho, que procurou destacar os comentários cujas referências foram compreendidas como respostas à proposta deste trabalho, ou seja, à identificação do leitor que completa o objeto que contempla. Desta forma, poucos adjetivos se prestaram ao contexto da pesquisa teórica. Um deles é a palavra “instigante” presente em seis dos comentários, no dicionário descrito como “que ou o que [...] incita, desperta, estimula”, o que a aproxima de “interessante”, ou seja “que é intrigante, curioso, que instiga” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2005). Registrado 17 vezes, esta palavra demonstra uma reação predominante do espectador. Uma demonstração de que se estabeleceu um diálogo com as peças escultóricas, como abordado na pesquisa? Outros dois adjetivos foram levados em consideração por também demonstrarem a reação do leitor das imagens se comunicando com os objetos: “estranho” e “esquisito”. Estas duas expressões, especificamente, remetem às características do estilo vitoriano também presentes na obra nonsense de Lewis Carroll e John Tenniel e com evidentes reflexos em Arlindo Daibert. Também foram registradas as palavras: “esquizofrênico” e “complicadíssimo”. Alguns comentários mencionam impressões pessoais descritas em expressões como “nostalgia”, “alma”, “introspecção”. Sete visitantes assinaram e comentaram em escrita de trás para frente, como todos os escritos presentes nas obras12 e no convite da 12 A ser detalhado na descrição das mesmas a seguir. 61
  • 63. exposição13 . Ainda sobre a obra pesquisada e sua relação com o material exposto, leitores de Alice se manifestaram diretamente: ”[...] compreensível por se tratar de obras que falam”; “Metáforas [...], imagens e símbolos”; “[...] espírito da obra de Lewis Carroll”; “[...] reprodução da ficção no real”; “Alice é retratada [...]”; “[...] exportar em objetos”. Entre os comentários, avaliações como “péssimos nomes”, a respeito dos títulos dados às peças; “Embasado teoricamente[...]”; “Não vi muito propósito e creio que a explicação poda muito o espectador [...]” e: Nunca vi tanto mau gosto. Deveria haver um padrão ou pelo menos um critério de seleção para a escolha das exposições. Infelismente [sic] isso não é arte, corromper a arquitetura do prédio com esse véu que não tem nada a ver com o estilo.14 Um comentário foi escrito na forma de poesia, o que inverte o percurso desta pesquisa, que parte da literatura (linguagem escrita) para os objetos escultóricos (linguagem predominantemente visual) e aponta para a discussão sobre a combinação das diferentes áreas do conhecimento, proposta aqui previamente. As diferentes opiniões, oriundas de diferentes pontos de vista, complementam a exposição como um elemento “vivo”, no sentido de dinamizar a série de objetos com a reação do público, e até mesmo de prolongá-la. É o que ocorre com os registros escritos, em vídeo e fotografia derivados da exposição, realizados por estudantes dos cursos de Comunicação Social e Artes da UFJF; Filosofia, do Centro de Ensino Superior (CES); e de Cinema, da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), de Juiz de Fora. 13 Já discutido na página 58. 14 Referência à instalação “The Queen of Hearts’ Roses” (descrição e foto à página XX). Livro de assinaturas da exposição “Leituras de Alice”, Núcleo de Integração Cultural, junho de 2005 62
  • 64. The Queen of Hearts’ Roses (100cm x 60cm x 60cm (balde em madeira)): Esta instalação exigiu um local específico para sua 63
  • 65. montagem: o jardim da reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, onde esta dissertação foi desenvolvida. Trata-se de uma caricatura que simboliza a autoridade da Rainha de Copas no episódio em que os jardineiros do “País das Maravilhas” pintam as rosas brancas plantadas por engano, de vermelho, como ordenou a Rainha de Copas (Capítulo VIII, “O campo de críquet da rainha”, de Alice no país das maravilhas). Uma versão ampliada de um balde de tinta “derrama” um tecido vermelho que cobre as roseiras já existentes naquele jardim, que por estar localizado junto ao prédio da reitoria da universidade, também faz uma associação irônica da autoridade da Rainha de Copas com a autoridade do órgão máximo de poder da instituição, a reitoria. Evidentemente não se trata de qualquer referência individual, mas uma alusão ao perfil crítico social do cartunista John Tenniel. Do cats eat bats, do cats eat bats? Do bats eat cats? (360cm x 30cm x 30cm): Luminária confeccionada em tricô e espaguete plástico que representa o início da aventura de Alice no país das maravilhas, também interpretado aqui como um ritual de passagem. O longo cilindro maleável feito em tecido elástico 64
  • 66. representa ao mesmo tempo a toca do coelho, por onde Alice chega ao “País das Maravilhas”, e metaforicamente o canal por onde é "dada à luz" a Alice, ilustrando a transição da infância para a idade adulta. O tecido em tricô, além de contribuir para a composição formal do objeto, também é referência ao capítulo V de Através do espelho, “Lã e água”, onde, transformada em ovelha, a Rainha Branca aparece tricotando. A forma esférica feita em espaguete plástico vermelho, iluminada por uma lâmpada, representa o momento de nascimento/chegada de Alice ao “País das Maravilhas”. No cilindro branco estão fixadas frases que Alice repete para si mesma: "Do cats eat bats, do cats eat bats? Do bats eat cats?" ("Gatos comem morcegos, gatos comem morcegos? Morcegos comem gatos?") enquanto cai pela toca do Coelho Branco. The Heart Court (150cm x 246cm): Um tapete feito em pintura sobre lona reproduz uma carta de baralho, ou seja, a corte da Rainha de Copas. A posição de tapete é uma ironia ao estatuto da tela de pintura e da hierarquia social, 65
  • 67. própria do ser humano, seja no Período Vitoriano inglês, na contemporaneidade brasileira ou no “País das Maravilhas”. Assim como a escolha da carta de número 2, menor valor no jogo de baralho. A ironia da expressão “2 de paus” (expressão popular que ilustra o sujeito submisso, apático) reforça a idéia de submissão das cartas menores em relação às cartas que correspondem à corte, conforme descrito em Carroll. A forma de tapete leva o espectador a baixar os olhos para observar a peça, que fica no chão, alterando o ponto de vista convencional de uma obra artística, normalmente elevada à altura dos olhos de quem observa. Drink me! (18cm x 10cm x 7cm): Uma taça traz em seu interior vestígios da bebida que faz encolher de tamanho. O efeito espelhado representa a magia da bebida usada por Alice para tentar chegar ao jardim da Rainha de Copas. A presença do vermelho se desdobra em diversas direções: desejo, perda da inocência, agressividade, além do fato de simbolizar a nobreza e o poder também no período Vitoriano. O objeto substitui a garrafa de licor descrito por Lewis Carroll e ilustrado por John Tenniel em Alice no país das maravilhas pelo cálice utilizado por Arlindo Daibert em sua versão (“Eat me! Drink me!”) para o episódio. A escolha deste objeto também se refere à embriaguez dos sentidos 66
  • 68. através da ingestão de álcool, uma prática socialmente aceita na maioria das culturas e que tem como única finalidade o efeito de entorpecimento. O cálice é exposto em uma pequena peanha (suporte de parede usualmente utilizado para imagens sacras). A união dos dois objetos – o copo de bebida para servir o entorpecente e o suporte de origem religiosa – insinua uma heresia, que reforça a transgressão de Alice, uma criança, ao provar uma bebida alcoólica. Até mesmo o efeito de mudança de tamanho pode ser relacionado ao estado de razão alterada pela bebida, no mundo real. Eat me! (30cm x 40cm x 40cm): O bolo que vai alterar o tamanho de Alice traz a palavra Coma-me e faz referência literal ao livro e também à expressão vulgar associada ao ato sexual, novamente citando a transição de Alice da infância à idade adulta e finalmente tocando no erotismo dos desenhos de Daibert. O padrão de letra do refrigerante é referência à vulgarização do consumo (comercial e sexual); a faca espetada é referência literal de Através do espelho, na ilustração de Tenniel de Alice ao servir o bolo de ameixas ao Leão e o Unicórnio. Ao mesmo tempo em que consiste em símbolo fálico de apelo visual agressivo que combina com a proposta da peça (perda da virgindade); o laço cor-de-rosa chama para a simbologia da perda da inocência: 67
  • 69. nó a desatar, perda da proteção, perda da virgindade, reforçado pelo tecido vermelho que, sólido, busca a aparência líquida do sangue. Três pontas são a representação do nonsense das histórias, trata-se de um laço impossível de ser feito; as ostras referem-se ao poema “A morsa e o carpinteiro”, do capítulo IV de Através do espelho, intitulado “Tweedledum e Tweedledee”. Dentro delas, ao invés de pérolas, as glandes presentes nos desenhos de Daibert. A peça foi desenhada de forma a lembrar um bolo de aniversário de 15 anos, reforçando a alusão ao ritual de passagem. Tweedledum and Tweedledee (30cm x 40cm x 40cm): Uma das três peças que seguem o padrão do souvenir (juntamente com The White Queen e The looking glass adventure). Neste caso, representa os gêmeos Tweedledum e Tweedledee. A peça tem como suporte um globo de vidro tal como os souvenires de lugares turísticos. A intenção é fazer referência ao “País das Maravilhas” como mais um roteiro turístico, banalizando a aventura de Alice do mesmo modo que a própria personagem, quando diz que toda a corte da Rainha de Copas “não passa de um simples jogo de baralhos”. Uma fôrma antiga, utilizada originalmente para confecção de 68
  • 70. bonecas, relaciona o objeto ao conceito de readymade, de Marcel Duchamp. A forma com duas faces lembra imediatamente o desenho de Daibert criado para os personagens de Através do espelho. A idéia de “guardar” a cabeça de duas faces em um globo de vidro também buscou inspiração nos troféus de caça feitos com cabeças de animais empalhados. A peça repete a sensação de aberração somada ao efeito de reflexo de espelho percebido no desenho de Daibert. Identificação da questão do duplo, presente na obra de Lewis Carroll. The looking glass adventure (30cm x 40cm x 40cm): Terceira peça da série de souvenires desta exposição traz um globo de vidro espelhado, um espelho esférico. A peça brinca com o movimento do espectador de aproximação e afastamento, causando o efeito de ampliação/redução do próprio reflexo, o que acaba por combinar dois elementos centrais dos livros de Alice: o espelho em Através do espelho e a alteração de tamanho de Alice no país das maravilhas. A deformação provocada pelo formato do espelho representa uma indefinição que se refere ao estado de sonolência ou despertar de um sonho, outro elemento chave em ambos os livros: as duas aventuras de Alice ocorrem dentro de sonhos. No caso de Através do espelho, os dois últimos capítulos 69