1. História – Módulo 14
O sertão vai virar mar
O sertão vai virar mar
Uma das mais significativas e comoventes demonstrações da resistência
sertaneja à opressão foi a Revolta de Canudos, no mesmo sertão que servia de
palco as lutas pelo poder entre poderosos coronéis. Seu líder foi o beato
Antônio Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro. Durante quase quatro anos, de
1893 a 1897, ele liderou no povoado independente de Belo Monte, na Bahia,
uma população de 25 a 30 mil sertanejos, depois de anos de peregrinação pelo
sertão nordestino.
Católico fervoroso, Antônio Conselheiro desde criança viveu situações
que nos ajudam a entender em parte o seu misticismo. Filho de uma família de
pequenos proprietários, que foi perseguida por latifundiários, cedo perdeu o
pai, tendo de abandonar os estudos seminarísticos. Já adulto, foi abandonado
pela esposa, o que o levou a deixar o Ceará, de onde era natural, no fim da
década de 1960.
Mas as condições de vida no sertão nordestino e a influência das ideias
religiosas sobre a população também contribuíram para o aparecimento de
movimentos místicos e redentores como o de Canudos. A Igreja, nessa época,
estava promovendo uma campanha de reformas e renovação espiritual,
visando a se aproximar mais do povo. Antônio Conselheiro ingressou numa
dessas campanhas, participando da construção e remodelação de templos
religiosos. Com o tempo, passou também a realizar pregações em que previa
transformações no mundo, vindo a se tornar um dos mais conhecidos beatos
do Nordeste.
Atemorizada com a extensão de sua fama, a Igreja proibiu as pregações
de Conselheiro, que em 1881 já andava acompanhado de um imenso grupo de
penitentes. Em 1893, ocorreu o primeiro conflito com a polícia. Ao tomar
conhecimento da cobrança de impostos municipais, determinada pelo Governo
da república, ele queimou os editais pregados na porta da Câmara da cidade
de Bom Conselho, colocando-se contra a República. Insurgiu-se também
contra algumas de suas reformas, como a introdução do casamento civil e a
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secularização dos cemitérios, afirmando que o novo regime oprimia a Igreja e
os fiéis.
Perseguidos, os fiéis fogem para Canudos, uma velha fazenda de gado
à beira do rio Vasa Barris. Na época, a fazenda estava abandonada, sendo
habitada apenas por uma população de sertanejos miseráveis, ociosos e
revoltados. Muitos deles pintavam curiosos cachimbos de barro, cujos canudos,
de cerca de um metro, eram extraídos de uma planta (canudos-de-pito) que
vicejava à beira do rio.
Em pouco tempo, os penitentes fizeram reviver a região, ocupando os
montes próximos e atraindo gente de inúmeros povoados e vilas de todo o
Nordeste [...]. Lá fundaram Belo Monte, a “terra da promissão” – o lugar da
preparação, por meio de uma vida honesta e piedosa, para os reino dos céus.
À sua maneira, o beato denunciava as injustiças e as profetizava
transformações:
Em 1898, há de rebanhos mil correr da praia para sertão:
então o sertão virará praia e a praia virará sertão... Em
1899 ficarão as águas em sangue e o planeta há de
aparecer no nascente com o raio de sol que o ramos se
confrontará na terra e em algum lugar se confrontará no
céu... Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí
será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes.
Deus disse no evangelho: eu tenho um rebanho que nada
fora deste aprisco e é preciso que se reúnam porque há
um só pastor e um só rebanho!
Mais importante do que as profecias foi a experiência de independência
de Canudos, que o Governo não tolerou. Vivendo num regime social
semelhante em muitos aspectos à comunidade primitiva, os habitantes de
Canudos repetiam a iniciativa ousada de Palmares. Plantavam e criavam
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rebanhos para o próprio consumo, além de comerciarem com as cidades
próximas. Para se defender, organizaram grupos armados [...].
A primeira expedição contra os “fanáticos” – assim os revoltosos eram
considerados pelo Governo e pela Imprensa da época – partiu de Juazeiro da
Bahia no dia 12 de novembro de 1896 à noite para evitar, como observou
curiosamente Euclides da Cunha, o dia 13, considerado de azar. [...] A
violência em Canudos foi relatada por Euclides da Cunha, que assistiu aos
combates a serviço do jornal O Estado de São Paulo:
Na madrugada de 21 desenhou no extremo da várzea o
agrupamento dos jagunços...
Um som longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda
adormecida... A multidão guerreira avançava para Uauá,
derivando à toada vigorosa dos Kyries, rezando. Parecia
uma procissão de penitência...
Evitando as vantagens de uma arrancada noturna, os
sertanejos chegavam com o dia e anunciavam-se de
longe. Despertavam os adversários para a luta.
Mas não tinham, o primeiro lance de vistas, aparências
guerreiras. Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do
Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente
possante, grande cruz de madeira...
Os combatentes, armados de velhas espingardas, de
chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no
grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens
dos santos prediletos... Alguns, como nas romarias
piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos...
Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem
periódicos, a vinda dos soldados.
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O Governo enviou mais três expedições, até dizimar o arraial. Isolados
do resto do país e sem força militar à altura dos canhões e metralhadoras das
tropas federais, os guerrilheiros foram definitivamente massacrados no dia 5 de
outubro de 1897.
Na mesma época em que Canudos era destruído, surgia na região fértil
do Cariri, no sul do Ceará, um novo movimento religioso. O padre Cícero
Romão Batista, aliado de coronéis e venerado por milhares de sertanejos,
entrava em conflito com a Igreja Católica, que se recusava a reconhecer os
seus apregoados milagres, além de ameaçá-lo com punições.
(ALENCAR, F.; RAMALHO, L. C.; RIBEIRO, M. V. T. História da sociedade
brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981, 2. ed. p. 202-208. Excertos.)