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História – Módulo 11
Memórias da infância
Memórias da infância
Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981. Em seu livro de memórias, A
língua absolvida, conta-nos seu descobrimento de vida, através da linguagem e
da Literatura, e se esforça por comunicar algo do que aprendeu a respeito de
como prestar atenção ao mundo.
“Quando meu pai voltava para casa, do trabalho, logo se punha a
conversar com minha mãe. Naquela época eles se amavam muito e usavam,
entre si, uma língua que eu não compreendia. Falavam alemão, o idioma de
seu feliz tempo de estudos em Viena. Gostavam de falar do Burgtheater, onde,
ainda antes de se conhecerem, haviam visto as mesmas peças e os mesmos
atores, que nunca se cansavam de rememorar. Mais tarde soube que se
haviam apaixonado durante tais conversações, e embora nenhum deles tenha
conseguido realizar o sonho da carreira teatral – teriam dado tudo para se
tornarem atores -, juntos conseguiram impor seu casamento, contra o qual
houvera muita oposição.
O avô Arditti, de uma das mais antigas e abastadas famílias da Bulgária,
se opunha ao casamento da filha mais jovem, sua predileta, com o filho de um
novo-rico de Adrianópolis. O avô Canetti havia prosperado por seu próprio
esforço, pois fora um órfão espoliado. Bem jovem fora relegado ao seu próprio
destino, mas, embora tivesse feito fortuna, aos olhos do outro avô não passava
de um comediante e um embusteiro. “És mentiroso”, eu próprio cheguei a ouvi-
lo dizer, sem que ele soubesse que eu estava escutando. Mas o avô Canetti,
se impôs contra o orgulho dos Arditti, que o olhavam de cima. Seu filho tinha
condições para casar-se com qualquer moça, e que tivesse de se casar
justamente com a filha desse Arditti lhe parecia humilhação desnecessária.
Assim, meus pais, de início, mantiveram sua ligação em segredo, e só aos
poucos, com grande pertinácia e a ajuda ativa de seus irmãos mais velhos e de
parentes benévolos, conseguiram realizar seus desejos. Finalmente, os dois
velhos cederam, mas a tensão entre eles continuou, e não se suportavam.
Durante o período de clandestinidade, os jovens apaixonados alimentaram seu
amor com conversas em alemão, e pode-se imaginar quantos amantes da
ribalta nisso desempenharam um certo papel.
História – Módulo 11
Memórias da infância
Portanto, eu tinha bons motivos para me sentir excluído quando meus
pais começavam a conversar em sua língua. Ficavam muito animados e
alegres e eu ligava essa transformação, que eu bem percebia, ao som do
alemão. Eu os escutava com a maior atenção e logo perguntava o que
significava isso ou aquilo. Eles riam e diziam que era cedo demais para que eu
entendesse certas coisas. Já faziam muito em me revelar a palavra “Viena”, a
única. Eu acreditava que se tratava de coisas maravilhosas, que só podiam ser
ditas naquela língua. Depois de muitas súplicas inúteis, saía correndo zangado
e me refugiava em outro cômodo, que raramente era usado, e aí repetia as
frases que deles tinha ouvido, no mesmo tom de voz, como se fossem fórmulas
mágicas. Ensaiava-as com frequência, e, assim que encontrava só, soltava
todas as frases e palavras isoladas que havia aprendido, com tanta rapidez que
certamente ninguém as teria entendido. Mas cuidava para que meus pais
jamais o notassem, pois ao segredo deles eu opunha o meu.
Descobri que meu pai tinha para minha mãe um nome que só usava
quando falava alemão. Seu nome era Mathilde, e ele a chamava de Madi.
Certa vez em que eu estava no jardim, disfarcei minha voz o quanto pude, e
gritei alto para dentro de casa: “Madi! Madi!”. Era assim que meu pai a
chamava no jardim, ao chegar em casa. Depois corri dando a volta à casa, e só
reapareci após algum tempo, com ar inocente. Lá estava minha mãe, perplexa,
me perguntando se eu tinha visto meu pai. Para mim foi uma vitória ela ter
confundido minha voz com a de meu pai, e fui forte o bastante para guardar o
segredo quando ela, assim que ele voltou, lhe contou aquilo como algo
incompreensível.
Não lhes ocorreu suspeitarem de mim, mas entre meus muitos desejos
ardentes daquele tempo, o mais intenso de todos era entender a sua
linguagem secreta. Não sei explicar como não guardei rancor ao meu pai por
causa disso. Mas contra a minha mãe alimentei um profundo ressentimento,
que só desapareceu quando, anos depois, após a morte de meu pai, ela
própria me ensinou alemão.
(Canetti, Elias. A língua absolvida. São Paulo: Cia. Das Letras, 1987,
p.33-35)

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  • 1. História – Módulo 11 Memórias da infância Memórias da infância Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981. Em seu livro de memórias, A língua absolvida, conta-nos seu descobrimento de vida, através da linguagem e da Literatura, e se esforça por comunicar algo do que aprendeu a respeito de como prestar atenção ao mundo. “Quando meu pai voltava para casa, do trabalho, logo se punha a conversar com minha mãe. Naquela época eles se amavam muito e usavam, entre si, uma língua que eu não compreendia. Falavam alemão, o idioma de seu feliz tempo de estudos em Viena. Gostavam de falar do Burgtheater, onde, ainda antes de se conhecerem, haviam visto as mesmas peças e os mesmos atores, que nunca se cansavam de rememorar. Mais tarde soube que se haviam apaixonado durante tais conversações, e embora nenhum deles tenha conseguido realizar o sonho da carreira teatral – teriam dado tudo para se tornarem atores -, juntos conseguiram impor seu casamento, contra o qual houvera muita oposição. O avô Arditti, de uma das mais antigas e abastadas famílias da Bulgária, se opunha ao casamento da filha mais jovem, sua predileta, com o filho de um novo-rico de Adrianópolis. O avô Canetti havia prosperado por seu próprio esforço, pois fora um órfão espoliado. Bem jovem fora relegado ao seu próprio destino, mas, embora tivesse feito fortuna, aos olhos do outro avô não passava de um comediante e um embusteiro. “És mentiroso”, eu próprio cheguei a ouvi- lo dizer, sem que ele soubesse que eu estava escutando. Mas o avô Canetti, se impôs contra o orgulho dos Arditti, que o olhavam de cima. Seu filho tinha condições para casar-se com qualquer moça, e que tivesse de se casar justamente com a filha desse Arditti lhe parecia humilhação desnecessária. Assim, meus pais, de início, mantiveram sua ligação em segredo, e só aos poucos, com grande pertinácia e a ajuda ativa de seus irmãos mais velhos e de parentes benévolos, conseguiram realizar seus desejos. Finalmente, os dois velhos cederam, mas a tensão entre eles continuou, e não se suportavam. Durante o período de clandestinidade, os jovens apaixonados alimentaram seu amor com conversas em alemão, e pode-se imaginar quantos amantes da ribalta nisso desempenharam um certo papel.
  • 2. História – Módulo 11 Memórias da infância Portanto, eu tinha bons motivos para me sentir excluído quando meus pais começavam a conversar em sua língua. Ficavam muito animados e alegres e eu ligava essa transformação, que eu bem percebia, ao som do alemão. Eu os escutava com a maior atenção e logo perguntava o que significava isso ou aquilo. Eles riam e diziam que era cedo demais para que eu entendesse certas coisas. Já faziam muito em me revelar a palavra “Viena”, a única. Eu acreditava que se tratava de coisas maravilhosas, que só podiam ser ditas naquela língua. Depois de muitas súplicas inúteis, saía correndo zangado e me refugiava em outro cômodo, que raramente era usado, e aí repetia as frases que deles tinha ouvido, no mesmo tom de voz, como se fossem fórmulas mágicas. Ensaiava-as com frequência, e, assim que encontrava só, soltava todas as frases e palavras isoladas que havia aprendido, com tanta rapidez que certamente ninguém as teria entendido. Mas cuidava para que meus pais jamais o notassem, pois ao segredo deles eu opunha o meu. Descobri que meu pai tinha para minha mãe um nome que só usava quando falava alemão. Seu nome era Mathilde, e ele a chamava de Madi. Certa vez em que eu estava no jardim, disfarcei minha voz o quanto pude, e gritei alto para dentro de casa: “Madi! Madi!”. Era assim que meu pai a chamava no jardim, ao chegar em casa. Depois corri dando a volta à casa, e só reapareci após algum tempo, com ar inocente. Lá estava minha mãe, perplexa, me perguntando se eu tinha visto meu pai. Para mim foi uma vitória ela ter confundido minha voz com a de meu pai, e fui forte o bastante para guardar o segredo quando ela, assim que ele voltou, lhe contou aquilo como algo incompreensível. Não lhes ocorreu suspeitarem de mim, mas entre meus muitos desejos ardentes daquele tempo, o mais intenso de todos era entender a sua linguagem secreta. Não sei explicar como não guardei rancor ao meu pai por causa disso. Mas contra a minha mãe alimentei um profundo ressentimento, que só desapareceu quando, anos depois, após a morte de meu pai, ela própria me ensinou alemão. (Canetti, Elias. A língua absolvida. São Paulo: Cia. Das Letras, 1987, p.33-35)