Peça de teatro original de Constantuino Mendes Alves. "Um sem abrigo atravessa de noite a cidade de Lisboa, num solilóquio crítico sobre sociedade, ao mesmo tempo que tenta reabilitar-se do álcool e da sua miséria." (2009)
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Sopa de Massa
(versão original)
Autor: Constantino Mendes Alves
O personagem Filipe é um homem de 58 anos, sem abrigo, com estudos (12ºano),
alcoólico, que vive na rua há 33 anos. Apresenta comportamento permanente de
alcoólico como: voz arrastada, tremuras, desorientação, repetição de palavras,
agressividade e alucinações. Durante a caminhada que faz durante este monólogo
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perscruta com regularidade o chão à procura de beatas. Veste-se como um sem abrigo
de roupas gastas e possivelmente rotas e sujas.
Advertência: Ao longo da peça o protagonista refere um tal personagem de nome
Carlos, este não é mais que ele mesmo, uma outra personalidade identificada com a vida
que ele teve antes do dia “D”. No final da peça ele próprio revela que se chama Carlos
Filipe e não só Filipe com que ele parece constantemente identificar-se. Sempre que
“Filipe” lembra “Carlos” o actor deve mostrar sinais de constrangimento psicológico e
doseada alteração de personalidade. Igualmente quando fala do dia “D”, também o deve
relevar por expressão de conturbação psicológica.
Vão de escada, monte de jornais, um volume comprido sob os jornais. Ao lado um
carrinho de bebé com alguns objectos como cartões e jornais, guarda-chuva entre
outros.
(ouve-se alguém a sintonizar uma rádio, ouve-se uma ária de um grande tenor)
(acorda a remexer em vários objectos, tenta levantar-se faz jogos de posição e grunhe)
Filipe – Massa! Ai dói-me a… (tem dores) Sopa de massa, massa com massa, Não!
Brrrrrr que está um frio do caralho.
Era massa (parece que fala para ele próprio). Era massa, tenho a certeza que era
massa, massa ou c’o diabo a leve. ‘Inda devo tê-la aí, que raio (procura-a), massa do
cidadão ou como eles se chamavam, apoio, apoio do cidadão, não loja do cid…, não
qualquer coisa, que se fodam. E o litro, onde co pus. Ah! Tá-se a acabar, (toca no
relógio de uma torre 6 badaladas) que horas é isto? A puta da torre (procura ver as
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horas na torre da igreja), 6, pois, é muita hora, dormi pra aí 3 de média, co a chuva que
está hoje, nem sei que dia é, sei lá, é Abril, dia, já estou a baralhar (berra) já estou a
baralhar! (tiques), olha o calendário, olha ontem foi 24, hoje é…. 25 Ó caralho é dia D,
faz anos e meses do dia D, é só sombra (bebe mais) isto é que vai ser um dia, para se
comemorar tem de se beber mais qualquer coisa, urrrr faz um briol, onde é que está a
lanterna? Não liga! Roubaram-me as pilhas da lanterna, se apanho o sacana mato-o,
olha que eu mato, deixa-me ver os meus heróis (procura na algibeira uns trocos) 1,2,3
tá cá o tesouro todo. (olha para uma montra) Eh pá, com esta barba pareço o Ali Babá,
o dia D, tenho de me levantar hoje é dia pra comemorar ou….esquecer, filhos da puta
hoje é dia de esquecer, o meu dia D, ninguém me ouve já… devem ir todos
apertadinhos no metropolitano para a bolsa a ver se fodem mais o zézinho, pro falar em
zezinho (olha para braguilha) não falas? Está mirradinho, é do frio, o melhor é beber
qualquer coisa (bebe tudo) um litro de uma assentada, não há melhor logo de manhã
fica-se grogue vê-se tudo como o arco iris, todas as cores a fazerem comichão, Ah! Ah!
(bebe o resto) acabou-se caralho! (berra) acabou-se! (ri-se) deve-se ter ouvido lá do
outro lado, no outro lado (repete várias vezes) no lado B, não, no lado A, o lado B sou
eu! (ri-se)! Lado B! Somos lado B, mas somos mais, agora somos mais no lado B. As
melhores canções, a canção do bandido, a canção, a canção, a canção (procura lembrar-
se) não sei de mais nenhuma puta de canção, canção do bandido chega muito, bem.
(tenta levantar-se) …/…Oh! Eh lá já aí vêm (esquizo) seus caralhos, já aí vêm foder-me
a cabeça mais as vossas merdas dos foguetões e telemóveis, Não, não venham co essa
merda dos altifalantes a rezar ao Deus menino e essa merda dos coktails. Caralhos,
monitores (insulta) computadores, impressoras, pda’s, filhos da putas de pda’s, se
tivessem vergonha na cara não vendiam essas revistas todas, espécies de Ronaldos,
Seuuuuus caralhos (arrasta a voz) vocês querem-me roubar a massa, roubem a massa,
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roubem a sopa de massa do cidadão, levem-na até vos dou-a caralhos, dessa
beneficência que vos foda, caralhos são 6 da manhã, não têm vergonha roubar um
bandido, se eu tivesse uma arma, se eu não fosse um bocado assim parado (recai em
consciência), um bocado parado. Porra (ajoelha-se) estou nesta merda há um colhão de
tempo. Não se fala do passado. Eu não falo do passado. Toca a embrulhar a trouxa, daí
um bocado estão aí os chuis e a dona Elvira para abrir a loja, vender sutiãs, fios dentais,
roupa menor e maior, fina, decente e indecente, luxo e sem luxo, essa panóplia toda de
bons “vivants”, Só digo mal de tudo, Sou um caralho (berra) Sou um caralho!
(ouve-se uma voz) – Cala-te caralho, faz-te à vida!
Filipe - Olha o Zézito. Tá-se bem (para ele, off) Tá-se bem, dorme mais um bocado.
Vou ouvir o rádio. Estou é com um bocado de sede.
Rádio - …O Dr Arlindo de Carvalho considerou que o SNS ainda não presta um
serviço….
Filipe - Um serviço, um serviço vou eu agora prestar à nação (mija na parede). Heróis
do mar, nobre povo (ri-se) nobre povo, nação valente e imortal. Por acaso já estou mais
morto que vivo (fecha a braguilha) Pronto o povo já mijou, já pode ir trabalhar. Eu
bebia era qualquer coisa. Quem deve ter bebida a esta hora é no Antunes, deixa-me ver
quanto sobrou d’ontem, 3 heróis, olha dá pra um litro. (anda com o rádio no ouvido,
apanha uma beata), cá vou direitinho pra o trabalho, que se foda o trabalho, que se foda
a vida, A vida é das mulheres, as mulheres é que têm vida, eu sou apenas um caralho,
que se foda é sempre em frente. Antunes aí vou, a nobre nação do lado B aí vai
descobrindo novas rotas marítimas para o Antunes. Antunes, meu Infante D.Henrique,
põe-me a navegar ou lá o que era. E a escola? Aquilo é que era marrar, camano tanto
investimento para nada, olha as pestanas que eu queimei naquela Biologia celular e na
Física nuclear para quê? E na poesia pessoana e literatura querosiana, para quê? Para
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esta merda de confluências de avenidas (indica as ruas), mal paridas, estas torres
imobiliárias creditárias, estes metropolitanos apinhados de insectos, das verdades
idiotas, das politicas hipócritas, Ah! Eu hoje falo com o meu 12ºano, do alto do meu
12ºano, ouviu? Das novas oportunidades, Sim, Sr, ministro, pois com certeza, sou um
ilustre conhecedor da filologia do arruamento, tenho o bacharel, sr dr. de coma
alcoólico, sim sou pela defesa ambiental, vectorial do erradicamento do lixo pela
desinfecção estrutural, Eu? Vadio? Pela desin-fec-ção es-tru-tu-ral, sim começava pelo
seu gabinete ministerial, sim licenciei-me no outro dia, no Politécnico do vão de escada,
no dia D (sério), (destrói um objecto qualquer que tem no carrinho de bebé). (apanha
uma beata do chão) Sim, sei que sou uma desgraça, mas sr dr. Não se esqueça uma
desgraça não vem só, por acaso até somos uns milhares, a coisa tem crescido, não, não é
só uma percentagem na sondagem da televisão, sim é carne e ossos no bengaleiro do
desemprego. Eu sei, eu sei que tenho novas oportunidades, as oportunidades é que não
têm saída, tá a ver é uma pescadinha de rabo na boca, por acaso comia agora, uuuu q
fome, sabe o que é isso. Não sr dr. Não, não é uma coisa que dá entre o almoço e o
jantar sr. Dr,. A fome é uma coisa que dá durante o dia todo…(treme) (esquizo) calem-
se caralhos, eu sou um vadio, eu sei, sou um vadio, quero lá saber, quero lá saber. Vou
sentar-me aqui, olha vou comer a sopa de massa da Santa casa, isso que se quilhe vou
comer a Santa casa, Ina cum camano nesta rua somos mais de 20, isto está cada vez
pior, caralho (berra) É a vida seus caralhos, estão todos enganados, não se ponham no
metro todos à mesma hora, acabam todos tortos seus caralhos, o Serviço Nacional de
Saúde não funciona, os chineses acabam com a gente, esta vida não presta, falo da
minha mas da vossa, da vossa se a têm. Olhem, bebam copos, vejam o fundo do copo
(olha para dentro da garrafa) vêem tudo fosco, distorcido como um fiambre podre?
Vêem-no, isso vejam (como quem fala para gente que vai para o metro) essa merda
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toda aí à vossa frente, isso aí depois do vidro, isso ponha lá a vossa imaginação (muda
de tom , mais pausado e circunstancial) É a vossa vida, isso aí tudo esborratado é a
merda da vossa vida. Querem ver ó pensem lá uma coisa que tenham sonhado quando
eram mais novos? (cambaleia sempre) sim, isso ter filhos, uma casa própria, passear,
ver os amigos, tudo nice, bonito, isso tudo redondinho, tudo arranjadinho, casinha nove
horas, emprego até às 6, comparem com isto tudo esborratado (espreita pela garrafa) é a
puta da vida a fugir. (simula empurrão) Eh lá! Não empurrem seus caralhos vejam a
bodega disto tudo, seus merdas não me empurrem! Só pensam no comboio, eu sei! Têm
uma família para sustentar, não querem perder o emprego, querem ganhar, Ganhem,
vão, rebolem-se na televisão, (cai fica sério) já estou c’os copos. Que raio de conversa
logo agora que estou quase sóbrio, só um litrinho de manhã. Hoje é um dia especial, faz
anos….puta de vida!
Aí vai um homem de cravo na lapela, de repente parecia-me um jardim. Vais plantar
hortaliça? Pois para fazer mais salada nacional. Olha o meu amigo Carlos ´que dizia :
“que havia de se levar essa flor era lá pró FMi ou Banco Mundial, ou lá o G3 ou lá
como se amanham. Olhem vêm aí mais cinco. Viva o Zeca! (Pausa) também pra vocês!
Olha as belas tv’s, é pá está a dar o Benfica às 6 da manhã, isto é que são jogadores, a
jogar logo de manhã, pum, golo, agora é o secretário de estado à saída da bola, eh pá
que gravata! Em que ourivesaria é que ele a comprou? Olha o canal das notícias, o telex
do capital truturutruturu (simula fita de telex) Pronto já estou desempregado não
precisam de cuspir tudo! (apanha uma beata)
Olá…(olha para vários lados à procura de alguém) o Mário devia ter cá dormido,
deve-lhe ter dado a gota, foi passar férias no hospital.
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Oh Sérgio! Vigia-me essa gaita desses putos novos que andam aí na rua, não vão
agora arranjar chatices no nosso doce lar. Pois anda pra aí muito cavalo, não os deixem
galopar, nós os antigos inda mandamos alguma coisa, a rua também não é para todos é
preciso respeitar o lugar, pois, isto é a cama de muita gente, não é uma retrete se querem
cagar vão p’ras prisas injectarem-se uns aos outros ou vão, vão lá prós gangues dos
arredores. Aqui no centro já há quem mande e tem de ser tudo gente GT de alta estirpe,
Doutores pra cima, só génios de substrato e cultura acima da média, só vadiagem de
mérito.. (cai em si) Isto é tudo uma cagada!
(há algum tempo, entretanto vem andando com o carrinho como se se deslocasse na
cidade)
Eu sei, havia de falar com o Carlos, havia de sair desta vida, sei regebenerar-me ir ao
Serviço Nacional de Saúde, curar-me sei lá na lista de espera dos monhés ou da Angola
emergente, deixa ver, ir pela corrupção abaixo acabar com a crise idiota do planeta.
Ou talvez fazer-me aquela senhora, Ó dona Maria, mais uma limpeza no escritório do
dentista, não gosta de mim? Não me acha bem parecido? Olha para mim com óculos!
(põe uns óculos só com uma lente escura), Ó dona Maria não se vá embora, olhe pra qui
pó Dom Martini, não me diga que não dava uma? Aqui comigo? Não, não faça essa cara
dona Maria cheia de graça, não me diga que só a dá ao dentista, Ó se calhar ao
segurança do dentista ó à porra… pois vá-se embora vá pró… vadio? Vá pró… limpe
tudo direitinho, cuidadinho, (já anda à procura de um cigarro) um cigarro, onde é que
pus o cigarro que eu morra agora de cancro do pulmão se eu não tinha um cigarro, na
algibeira. (só encontra beatas no bolso, fuma uma) pode ser não encontro nada inteiro
nesta puta de cidade.
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- Quem fumar… era o que punha no maço de tabaco – quem fumar perde uns trocos…
Era limpinho toda a gente começava poupar, a deixar de fumar.
Mas tava a dizer, o Carlos, não o Carlos é que dizia:
(aparte) o Carlos era um doutor aqui na avenida, lia sempre o jornal onde se ia deitar, o
Correio da manhã ou da manha, o Diário de algumas notícias, o Público e Asseado, o 24
horas de le mans, essa porra toda…
E ele dizia, o Carlos! Esse bom “vivant”, que aquecia o que comia, atum em sangacho,
linguiça Campofrio fumada, pois! O fogareiro era a petróleo, era uma fumaça! Sopa da
Caritas, regada com óleo fula da Santa casa. Aquilo era um gosto vê-lo de beata (imita)
A dar conselhos a nozes aos do lado B. – “Ó Carlitos, tu tens é de voltar para casa,
impores-te á tua mulher, dizeres que estás regenerado, que não lhe voltas a viola-la, que
és um santo homem, que agora é a valer, vais arranjar trabalho, não voltas a gamar.
Dizes assim à tua,” dizia, ele o Carlos- “A rua não é pra mim, não sou da estirpe da
vadiagem.”
Ó aquilo que dizia à Amélia- “Fazes-te santa, começas a comer a sopa toda, limpas-te
assim cum guardanapo à frente deles, dizes, olha o que dizem agora, que queres agarrar
todas as novas oportunidades e pedes pra trabalhar pra cruz vermelha, que és religiosa e
o teu pai era vermelho, tas a ver? Cruz-religião vermelho, cruz vermelha.”
Aquele homem era um sábio, um gigante, coitado morreu naquele Inverno gelado, 99,
sim parece-me que sim, inda estou a vê-lo todo redondinho debaixo do correio da
manha de quarta-feira, morreu como um passarinho gelado, não sintiu nada coitadinho,
não sentiu… quer dizer deve ter sentido um frio do camandro.
Ah que sede, é pá o Antunes inda é longe, tá-me a apetecer ir ali á igreja, não não é pra
rezar, é só gamar o vinho ao padre. (treme) deus que se foda, deus nunca o vi, se calhar
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vi mas como estava bêbado, assim um bocado ébrio, deus ébrio, não eu não disse isso,
deus não é ébrio porque não existe, porque se existisse era ébrio, eu quero que ele se
quilhe, era ébrio (berra) fez esta merda toda torta (põe um pé na estrada, passa um táxi
e apita, quase o atropela) pró caralho bando de caralhos, caralho vos foda caralhos,
levem essas gajas de táxi, esses milionários, se calhar… é pá, ia rápido, se calhar
levavam ali Deus!...algum assunto urgente. É pá se calhar era algum assunto super sério,
Deus tem sempre assuntos sérios, se calhar era um assunto europeu, da união europeia,
Olha o que eu estou a pensar, se calhar o Durão aquele Durão Banoso, se calhar é deus,
e se deus é um gajo desses? (fica sério) é pá já viram a gente sempre a dizer mal deles, e
se calhar eles são Deus, omnipotentes e omniscientes, é pá! Se calhar deus é milionário
e os pobretanas estão em pecado mortal. Tem lógica! (começa a berrar) e isto tudo por
causa do vinho do padre.
(ouve-se uma voz de um tipo)
Voz off – Cale-se ainda são horas de dormir!
Filipe -Horas de dormir? Atão e quem não tem sono? Eu não quero dormir, quero beber
um copo, o senhor também é deus?
Voz off -Vá dormir, seu bêbado do caralho!
Filipe - Vá trabalhar, seu sóbrio do caralho!
Estes gajos, lá porque têm casa julgam que são mais que os outros, se calhar é um
desempregado qualquer, é o que mais há pra aí!
(berra ainda para a voz) Seu desempregado sóbrio desenvergonhado.
Olha pra ele, o que é mais que eu, lá porque lava a cara e faz a barba. (ainda grita) Eu
também sou cidadão. Sou um cidadão ébrio desempregado, também tenho títulos, não
são só vocês lá porque estão inscritos no Centro de Emprego, eu também tenho títulos,
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estou inscrito na Santa casa, na Caritas e sou do Benfica mais 6 milhões de tipos, você
se calhar é algum nobre desempregado, se calhar do Sporting.
Pois que futebol percebo eu, goles é comigo. Pois por acaso bebia qualquer coisa, a
igreja está fechada (espreita para uma porta), parece-me que só o Antunes me salva
agora.
O Carlos, o Dr. Carlos (aparte) era mesmo doutor, antes de se enraizar nesta vida (fecha
aparte) tinha uma teoria. Para sair disto, da rua (aparte) que da rua ele também era um
doutorado (fecha aparte) Dizia ele, é só preciso pôr-nos decentes ir à Ópera ou ao
cinema. Talvez. Era uma boa ideia.
Mas dizia o Carlos, paguei-lhe o conselho com uma lata de salsichas e um litro de
petróleo gamado (fala como Carlos) - “Ó Filipe!” Filipe sou eu. Que o meu pai e a
minha mãe. Não quero falar deles, são outra história, são outra história (chora)
Mas dizia o Carlos- “Filipe!” dizia ele, “se queres regenergarte fazes assim. Um homem
que se queira regeneegar-se faz assim, Veste-se tipo 20 euros, lava-se todo mãos e pés
até, põe um perfume, pode ser barato, não bebe dois dias e duas noites, nos casos mais
graves não bebe durante 12 horas” dizia ele. “Claro é um investimento tem de se
mendigar lá tipo em Cascais o lá tipo bairro lado A durante 1 semana.” Mas, dizia ele”o
investimento era prioritário”, tão a perceber.
Atão ele dizia, “Seu Filipe, assim vestido e lavado você compra um bilhete para o
teatro, tipo Ópera ou assim.” À Ópera dizia eu. “Pois dizia ele, uma noite toda na Ópera
sem dizer qualquer calão ali direitinho entre aquela gente, assim só a aspirar perfume e
loção de barbear.” Ele dizia (continua transformando-se no Carlos) que era para imergir
naquele caldo, não não era sopa, ele dizia que era mesmo caldo, caldo cultural era o que
ele dizia. “Ouvir aquelas árias eruditas que fazem bem aqui ao caracol.(aponta o
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ouvido) Uma noite toda na Ópera, lavadinho e direitinho, caladinho, e ouvir aqueles
trinados líricos, aquelas vozes homéricas, os leques como borboletas melómanas, os
sorrisos relaxados e magnânimos (aparte) o homem era um poeta (desfaz aparte) (ouve-
se a orquestra a afinar os instrumentos) nesta altura, os ansioliticos começam a fazer
efeito, os intestinos começam a ficar no lugar. Faz-se escuro um silêncio sepulcral,
Depois há as tosses dos cavalheiros, que é a irresistível demarcação do lugar. Tudo
como deve ser, A mole está pronta para a flexão teatral!
E não te esqueças dos intervalos no foyer, na bonomia das conversas, na cumplicidade
e doçura hipócrita, nas navalhadas irónicas ou na clarividência das críticas nos piropos
mesmo sub-reptícios, naquela fragrância a euros recheados, na reciclagem das conversas
politicas, enfim sublimação artística. A verdadeira sociedade, tá a perceber, é a sua
porta de entrada para a Sociedade para a verdadeira e saudável regreneração. Aquilo va-
lhe mais que 50 anos de asilo ou hospital psiquiátrico, será uma verdadeira exumação da
sua vida de miséria, os seus 33 anos de rua, exumar-se-ão no primeiro Acto do Anel de
Nibelungo, naquele épico, você será mais que o Super-homem de Nietzsche, se tiver
sorte e assistir a uma boa encenação da Traviata, poderá aproveitar para pavonear o seu
ego monstruoso nos veludos do vestido de Violetta, ou perfumar-se no champanhe dos
seus salões de baile.”
Se vir Nabucco, não se esqueça de acompanhar o coro de escravos hebreus, num esforço
épico de libertação. Verdi, será o seu Guru. Se assistir à tragédia de Othelo, sinta o
pathos do actor, no arrependimento do acto fatal de Othelo com Désdemona sua amada.
Inebrie-se, embriague-se com o Papageno de Mozart, ou porque não restitui a paixão ao
seu coração no Tristão e Isolda de Wagner. Deixe a vida entrar nas sua veias com a
retumbante Cármen de Bizet , ou o mundano do Barbeiro de Sevilha de Rossini. Com
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apenas 30 euros e um pouco de sorte você terá uma porta directa para o paraíso.” (vai
falando como de um vendedor se tratasse)
Quando saísse pela porta de saída eu seria um homem novo, completamente
refrigerado, quer dizer regenergado do lado B pra o lado A. ”Generregado, é um bocado
difícil de dizer esta palavra com esta temperatura.
E eu um dia fiz isso mesmo, investi na minha generação. Iria ser um autêntico, homem
de razão e sério, hipócrita também, dá jeito, Iria realizar-me, pois, que esta vida na rua
também não vale nada. A verdade é essa (berra) Esta vida na rua não vale nada. Se
quilhe a Caritas, se quilhe o Antunes, também quero ter uma casa, andar de táxi,
Chamarem-me de sóbrio e com juizinho. Sóbrio? Não sei se tem muita piada, Mas
juizinho vá tá certo. Ter juizinho. (parece um rapazinho bem comportado)
Ando nesta vida tempo demais.
Olha aqueles! Se o Carlos os visse (aponta para um lado do palco) Inda não se
deitaram, o quê são sete da tarde? Grande par de marmanjos, góticos, eu sei! Não
precisam de gritar, pois respeitinho é muito bonito, iii cheira-me a ganza, isso é que é
curtir, pois, não fica cá nada… não! é, é a minha filosofia, enquanto cá andamos temos
de ser felizes, ir de papo cheio, o resto é totobola, a morte é certa mas, ir pró céu, olha
como é que o outro diz, haverá ou não haverá eis a questão,(vê alguém) talvez aquele
saiba onde há aqui uma taberna, talvez não consiga chegar ao Antunes, tou c´umas
dores, vem a correr dos intestinos… passe tenso pro fígado, arranha os pulmões e chuta
com força no coração,(mostra-se doente) já estou como hei-de ir. Mas, diz-me lá ó
paradinho…. (aponta para uma lado no alto)
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Oh chaparral, o q fazes aí de cutelo em punho, é pá deves ser cá um herói, a
conquistar, a esventrar inimigos, a ser um altruísta do catano, eh pá deves ter saqueado
pra aí duas toneladas de sopa de massa, isso em massa, enh? (lê a inscrição da estátua)
“O Conquistador”, ora bem, século 13, eh pá ainda não deviam ter inventado a massa,
deviam comprar tudo em rabanadas ou aletria ou o que nessa altura se tenham lembrado
de chatear o parceiro. E deram o teu nome à praça, isso faz de ti imortal, assim não tens
de te chatear com nada, só côa alma. É pá se tiveres o mesmo azar que eu, e Deus existir
deves tar aí cuns pecados do tamanho de tgv. Pois também não interessa é só pó turista
ver. Olha o que tu devias fazer no teu tempo, se não fosses hipócrita era uma estátua à
sopa de massa, pois estás-te a rir mas é aquilo que nos sustenta. Ri-te pois, vou-me
embora não te esqueças na outra vida que há-de vir faz uma estátua à massa, o que
importa é a massa (ri-se alto) o segredo está na massa, a puta da massa. (já ao longe)
Pois dessa que o Berlusconi gosta! É pá, agora é que me lembrei de um gajo porreiro,
este tipo era capaz de rivalizar contigo a única diferença entre tu e ele é que ele não tem
espada, tem massa, pois, por acaso também tem espada mas é mais tipo Mercedes
Mclaren pra aí coisa de 500.000 heróis. Heróis sim daqueles das Europas. (ri-se) o que
não falta são heróis na Europa, tipo a entrarem e sair de aviões e de Savoys e Tivolis.
Olha um supranumerário (agarra uma beata do chão)
Olha os semáforos sempre amarelos a piscar, estás-me a piscar os olhos, será que estes
sacanas estão a filmar-me, seus bigbrothers do caralho, sim sou um rato no sistema, é é
um jogo? Gostam de ver? Sim? Sou um reality show… que é que querem ver, um vadio
pronto, já viram! Querem um bandalho para o telejornal, vá radiografem, vejam o que
quiserem, (vai apontando para o corpo) sim tenho o fígado um bocado estragado, estão
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a gostar viram? É como num desenho animado o coração catapu, catapum, pum, pum, é
giro não é? Um problema convulsivo… (vai apontando na cabeça) uma esquizofrenia
social, ou uma artrite psicológica, um gene de vadiagem, o quê, um piolho alcoólico
congéntito? Se olharem com atenção vêem uma micose crítica irónica a gozar com os
cromos, não não olhem é a minha experiência erótico pornográfica, até encontraram o
diploma da 4ªclasse mal feita, vejam, vejam se vos dá pica! Ah sim encontraram
alcatrão nos pulmões, venham, venham socorrer-me, sou um necessitado (ironia) sou
um pobrezinho doente necessitado, um malditinho, pobrezinho, doentinho, coitadinho,
necessitado, o quê? (aproxima-se do semáforo) o que dizem? Não, seus caralhos fiquem
vocês com a sopa de massa, já a deito pelos ouvidos. Pois sou um vadio? Sim matei,
estraguei, roubei, levem-me (atira-se pró semáforo) – sei lá se matei se calhar não, não
me lembro aquele dia D, não me lembro. O Carlos? Onde andará esse doutor? Não quer
aparecer?
(anda mais com o carrinho, dá-lhe dores, fica esquisito)
Deixa-me cá ver no mapa (coça a cabeça) o Antunes é por ali, não ali é o supermercas.
A rua comercial deserta, se o Carlos visse isto, isto +e do melhor que se podia achar;
estás-me a piscar para mim? O quê um hambúrguer Megalopolis logo de manhã? O que
achas Carlos? Come-se ou ignora-se por e simplesmente. Sim lembra-te o passado, não
é. Não menina, não queremos Hamburger Megalopolis, o meu amigo Carlos tem
flatulência não se dá bem com esse tipo culinário, não nos leve a mal, obrigado também
para si. Olha Dom Carlos esta camisa rocher iria dar bem com o seu tweed inglês, ou
talvez prefira ir ali ao cinema ver uma fita intelectual, Providence e as suas irmãs. Não
Carlos o sarro já é muito (tosse), Ah!Ah! Nem chuis, nem…
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Os néons ainda a piscar, é tudo meu, a rua só para mim parece-me que estou em casa,
que casa maior posso querer, sou o rei da rua, la rue cést moi!Ah!Ah! até me apetece
cantar:
(dança com um guarda-chuva. A dança pode demorar algum tempo, pretende-se que o
actor crie uma mimíca cómica) “Singinging in the street, singing in the street”, (dança
com o carrinho de bebé)
Que melhor sítio podia haver para celebrar! Ah!Ah! o dia D! A porra do dia D! (dança
como louco) Podia até apaixonar-me (pega qualquer objecto imitando uma mulher que
dança com ele). Eh pá estou a dançar anda daí espécie de Grace Kelly, vamos fazer
amor, “Num prado verde no alto da madrugada. Make peace not war, I have a Dream,
Imagine all the people, sous le pavée, la plage, é proibido proibir…jamais”
(Volta a cantar)
“Dancing in the street Singinging in the street, singing in the street”drinking in the street
esta vida é pouco mais que a shit, uma merda (desfaz canto) mas às vezes é uma merda
bonita, assim o amanhecer na rua deserta só com os semáforos a piscar. Isto até é mais
que merda é…um lindo cocó. Estou a ficar romântico (muda de semblante) (à medida
que dança veste-se para a Ópera)
(toca uma valsa) A tua ópera é sublime Carlos, voo neste nenúfar do tempo, Senhora dá-
me o prazer da sua companhia. Claro, jantaremos no Puccini, uma pizza traviatta,
teremos muito amor, sexo erótico, faremos filhos, teremos um futuro, Como baila! Será
Cinderella? Uma fantasia mágica? Estaremos juntos no pôr-do-sol, numa praia
havaiana,
Beberemos um coktail. Sim, Carlos irei à Ópera, seremos novamente decentes,
instruídos, altruístas e morais. Quero, quero beber desse hidromel dos deuses, quero
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voar jet 7, fazer sexo num campo de golf. Queira minha amada receber este anel, não,
não pelo simples facto da sua aparição, pelo meu renascimento…
Despeço-me, ruas da amargura, despeço-me de vós, adeus Tininho, adeus Tó-zé, Adeus
Carlitos, Terezita, adeus Álvaro, vou para outro mundo…Toca a fazer-me ao caminho
(anda)
(Olha um jornal gratuito. Agarra num.)
Pois a gripe! (qualquer noticia do momento)
(Lendo outra notícia.) Olha-me estes gajos todos direitinhos, regenebrar-me (balbucia)
(Olha para um manequim vestido de fato completo que está desde o inicio em cena.
Fala com ele)
E eu fiz mesmo isso, de ir à Ópera.
(vai-se vestindo com objectos do carrinho de bebé)
Pus uns sapatinhos, tudo lá do Centro social.
Lavei-me todo, sabão, sabonete e champô lá da Dona Margarida, tive depois de lhe
limpar o quintal.
Calças, emprestou-me um cigano que está ali na feira do largo, dizia-me ele “depois
não digas mal da família cigana (aparte) é tudo boa gente eu só tenho é medo das
navalhas deles. (desfaz aparte) pareciam uma auto-estrada, direitas e com vinco.
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Laço, foi mais difícil de arranjar, emprestado mas com relutância Do Dom Manuel, o
velho, o chapeleiro, o velho no fundo gosta de mim, porque eu dou assim umas bocas
um bocado comunistas.
Camisa lá do cesto do centro, branca como eu já não via nenhuma há muito tempo
(algum cristão benemérito, qualquer dia bebo um copo por ele).
E claro casaca como dizem os “Brasas”, o Vítor das obras, bem me gozou, “Cara,
estás demais com esse paletó” Nesse dia mendiguei mesmo, lá tive que largar a minha
ladainha: “Vá lá dêem qualquer coisa; peçam não roubem, já há muitos a roubar neste
país”, juntei una heróis para alugar casaca ali no Guarda-roupa de aluguer.
Quando me vi ali na montra da dona chic até chorei, chorei há quanto tempo, porra
parecia eu há muito tempo, arrepiei-me todo, foda-se que não havia de valer, mas tinha
de ser assim, ir em frente (eleva a voz) o caminho faz-se em frente generar-me era o que
eu cria, livrar-me deste lixo e já estava a caminho.
Pus-me em direcção ao Chiado, em direcção do S. Carlos, determinado a acabar com
estes 33 anos de miséria. Visava alto, a minha libertação a rebeneração completa, assim
como um a espécie de limpeza a seco e ao mesmo tempo uma via verde para o lado A
pra vida que dá pica, o resultado, esperava eu seria uma espécie de 1ºprémio de
Euromilhões, tanto era a distância que separa os dois lados deste disco de vinyl que é a
vida., o tempo estava ameno, dei os primeiros passos e percebi que tudo podia ser
diferente a partir daquele momento, ao olhar o céu vi toda a minha vida, como de trás
para a frente, os meus irmãos, os meus pais, a minha mãe, o meu casamento (fica sério).
Tudo agora seria diferente. Passei a minha mão direita pela lapela da casaca, aquele
toque no cetim, uma suave sensação de auto estima, foi como ligar o grande interruptor
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da esperança, há medida que caminhava parecia que aspirava toda a energia da rua, toda
a cidade estava comigo, a cidade já não estava zangada comigo, parecia ouvir um
murmúrio de vozes macias que vinham de todo o lado, das janelas das casas, das cores
dos sinais de trânsito, das pedras da calçada, talvez almas ou mesmo deus tivesse
resolvido ouvir finalmente as minhas reclamações, os meus impropérios, a minha
revolta, aos olhos dele talvez eu pudesse ser a nova esperança da condição humana,
talvez a peça na engrenagem que lhe faltava para provar aos outros que jogo dos
homens na Terra tem sentido, que vale a pena a vida, eu sei lá aqueles santos desígnios
que Ele tanto gosta de escrever direito por linhas tortas.
Seja como for sentia-me nas nuvens, a regeneradação que decidira parecia que iria
resultar, estava no caminho certo, pelo menos aquele, reconhecia era o caminho para a
Òpera.
Estava perto, no fim daquela rua estava o meu Eldorado.
Olá, Estamos a chegar…. o primeiro BMW, o meu primeiro sinal de regenebração. Isso,
muito bem, o homem fecha a capota a madame de vison sai, o “tchic tchic” do ca
fechadura automática. Ora bem, Mercedes, mais de uma dúzia, tudo gente 9 horas,
casais tipo Wiskey de Malt e chá verde da China, pastelaria Versalhes para cima, Agora
a Malta tipo Cultura Nacional, de smoking e camisas de sedas genuína, a minha, de
sarja lavada a Omo até se encolheu, vamos aprumar…. (vai falando com para os seus
botões) depois as conversas de circunstância: “Minha cara, faça obsequio pra qui, meu
caro faça obsequio para ali”,
Ora aí está, S. Carlos nos seus melhores dias, toda a gente bonita, (olha como se visse
gente) aqueles brilhinhos todos nos olhos, tudo luxo, é dia de abrir a montra. Toca a
misturar com esta malta, não, não deixar dar a ideia que sou um bêbado, já devo estar
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sóbrio há mais de 2 horas, por acaso dói-me o estômago, hoje o meu estômago ainda
não triturou nada. Bom, isto cheira tudo a perfume e cozinha francesa. Estou a ficar nas
covas, eh pá este ambiente é confrangedor, pareço um gatinho bem comportado. Eh pá!
Isto oprime, deixa-me desarmado. Caraças, não pertenço a este mundo. Pareço que
estou no cinema. A vida a passar e eu a ver. Bom mas eu tenho uma missão, Carlos,
meu professor, cá vou eu. A Ópera tem de acontecer, tudo tem de resultar. (vai pedindo
licença para passar como se furasse pela multidão), A grande Odisseia, olha lá está a
bilheteira. Pois na fila, como mandam as regras, é pá isto está dar resultado, já estou
mais ambientado, olhas os lustres, parecem estrelas do céu, vêm me ajudar como na
canção. Eh pá isto nunca mais anda, já estou todo ansiolítico, ora agora não se pode
falhar , onde estão os meus heróis?(remexe nos bolsos) Aqui o meu blood engine
(aponta ao coração), já estar a dar meia-noite, eh pá cá é cá uma excitação de aqui a
bocado urino-me, está a chegar o grande momento, mais três horas e serei um novo
homem, talvez amanhã já ande sóbrio e consiga um bom emprego, tipo executivo com
secretária e tudo.
Ora cá está a minha vez de entrar em cena, vamos lá o meu melhor sorriso congelado há
mais de 33anos. Guardanapo no sítio (aponta para o laço) voz de barítono: “Quero uma
plateia por favor! De preferência no centro.” (pausa) Não? Não me fodem outra vez!
Seus caralhos, mundo de caralhos, vão ver com quem se meteram. Molotovs, onde pus
os Molotovs (imita lançamento de molotovs e granadas) Tomem lá umas prendinhas de
Natal (ouvem-se rebentamentos de granadas faz-se clarões com os holofotes) e a minha
Kalachenikov? (tiros) É o vosso julgamento final, corjas de cabrões por mim e por todos
os sacanas que não tiveram sorte neste peido deste mundo, Ardam, ardam no vosso
Inferno. Sou o braço vingador de Deus, tomem lá mais umas granadas, pontaria aos
lustres, vá tudo a correr tudo a morrer (chora) seus caralhos que me tiraram a vida. Cai
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de joelhos. “e na hora da morte, ámen. Catapum! A explosão nuclear total. Puta que os
pariu, foderam-me, Antes de me foderem já me tinham fodido, três meses, Coisa de
principiante toda a gente sabia que se tem de reservar bilhetes, todos menos eu, tanta
esperança toda que eu tinha abotoada à minha casava alugada, expludam, teatro,
expluda a cidade, o sacana do mundo inteiro que expluda. Foderam-me porra foderam-
me, (cai), (esfarrapa-se todo), filhos da puta, eu devia saber que isto tudo era mentira
não há lado B para o lado A. É tudo mentira. Punhetas são todos mentira.
(Cai exausto com dores.)(anda) ( dá umas porradas num caixote dói lixo – lixo- lixo é
lixo, fodam-se lixo. Engenheiros lixo doutores lixo, operários e supranumerários lixo, ,
cães, gatos lixo….Euro lixo, Lixo da Silva, lixo da Costa. Dona lixo- que se lixem!
Depois lavem-se, limpem-se, Embebedem-se de lixívia -
Ah! Cá estou! Finalmente o Antunes.(balbucia)
(débil e tremulente)
Antunes abre a porta não sejas preguiçoso são 6:30 da manhã, vem abrir a tasca. Tás
pra aí a dormir, sem respeito pelos clientes, Eu pago, não sou como certos senhores que
andam por aí a descredibilizar o substantivo malandro. Sabes quem eu sou? (grita muito
alto) Sabes quem eu sou?
(dá-lhe uma dor)
(Cai desmaia. )
(pausa de 1 minuto)
(abre os olhos, virado para cima)
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Tou a ver o céu, no paraíso não há céu se é o paraíso não precisa de ter céu, um
candeeiro no inferno não há candeeiros, aquilo deve ser só chamas, uma rua, parece um
passeio, (ergue a cabeça, vira-se pra o publico) isto é o caralho caí desmaiei pra aí meia
hora, aqui se vê como o Serviço Nacional de Saúde não funciona. (fala pró publico),
nem um caralho de uma ambulância trouxeram, (levanta-se senta-se no passeio).
Dia D, está tudo branco, claro como a água. Consigo lembrar-me (revela-se)
O Dia D. O Melícias, tinha eu para aí 25 anos no escritório o Melícias despediu-me eu
com o filho na maternidade: Venha cá Sr. Carlos Filpe, quero-o informar que não
pensamos contar com a continuidade dos seus serviços… foi de repente deu-me a dor
que inda hoje tenho, carreguei para cima dele de guarda chuva em punho. Não, não
morreu, ficou sem baço, e eu 5 anos de calabouço. A mulher fugiu com o filho, e eu,
noutro instante, de bruços na mesa do Antunes vomitando já tanto vinho. E assim de
repente do lado A, basta um momento, viramos, vamos para o lado B.
(dá-lhe mais dores) Não me safo desta.
Bebi demais, porra dói-me o estômago e urticária no cruto da cabeça. Tô fodido,
Agora já não acredito em mais nada, também já não me magoo com mais nada, podem
chamar-me vadio, que me importa, sabem, não sei bem como, mas sou feliz, mesmo
com as porras todas que me fazem, desses putos que me dão pontapés quando durmo,
desisti. Dói-me cada dia, cada hora, cada minuto, dentro desta fronteira, da rua que é o
meu país, à minha maneira sou feliz, sou um sobrevivente, sou um danado de um
sobrevivente (continuam dores e dificuldade de respiração)
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(levanta-se, faz um esforço por ficar muito direitinho olhando o público de frente, com
as mãos indica cada lado)
É isto tudo o que tenho e…agora…
O Antunes… ou talvez uma sopa de massa. (aponta nas duas direcções)
…..pausa……
O Antunes, meu infante D Henrique, põe-me a navegar, cá vou descobrindo novas rotas
marítimas para o Antunes…. (sai)
Fim