SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 88
Baixar para ler offline
puerto seguro
Cadernos
do Património
2
raia es-
ca-
ri-
go.
2 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
A história da colecção Cadernos do Património, a dos Encontros Transfron-
teiriços e a da Associação RIBACVDANA são histórias entrelaçadas.
Este Caderno do Património n.º 2 é assim o resultado do 2.º Encontro, or-
ganizado pela RIBACVDANA em Setembro de 2021, em Escarigo, pequena
aldeia raiana no Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, e, do outro lado
da ribeira de Tourões e do rio Águeda, em Puerto Seguro. Almeja ser, antes
de mais, a consolidação deste projecto editorial da RIBACVDANA, que terá
periodicidade anual.
Acreditamos que a colecção Cadernos do Património pode contribuir, mesmo
se modestamente, para consolidar uma ideia de futuro para a raia, que contra-
rie o contínuo processo de debandada e de desertificação. Queremos fazê-lo
atravésdadiscussãoedapartilhadepontosdevistacomoshabitantesecom
agentes da cultura local, sempre com a cumplicidade de estudiosos cativos de
uma peregrinação na busca das raízes históricas e culturais das populações. É
esseopapelqueosEncontrosTransfronteiriçosdevemdesempenhar.
Cadernos do Património 2
– editorial
António Sá Gué
PELA DIRECÇÃO DA RIBACVDANA.
raia
4 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
As raízes que procuramos materializam-se num subconsciente colectivo,
na paisagem agreste que nos cativa, na arquitectura civil e religiosa, nas
crenças e nas lendas e em todo o património imaterial, em marcas civiliza-
cionais deixadas ao longo do tempo por outras formas de estar, saber e de
ver o outro. Estão alojadas, essencialmente, na memória das pessoas.
E, se o território raiano é uma região sem monumentos grandiosos, como
acontece perto dos centros de poder, sabemos no entanto que podemos
por lá descobrir património material e não-material de grande valor.
Abre-se, portanto, um vasto campo de acção e de estudo, que nos permite
acreditar que, no tempo em que as fronteiras se esbatem (se ainda se es-
batem?), é essencial registar e estudar esta estreita faixa de terra, que de-
signamos de raia, sempre tão esquecida e, julgamos, ainda mais ignorada.
É um território marcado por memórias de muitas e cruentas batalhas, por-
que era território cobiçado e disputado, como porta de entrada para con-
quistas maiores. Foi, por isso, local de construção de postos de atalaia e de
fortalezas militares, que materializaram primeiro a conquista e depois a de-
fesa de cada reino dos reinos vizinhos.
Foianossacrençanaimportânciadeconhecermosanossahistóriaquenos
levou à “descoberta” do Castelo de Monforte, que foi, em grande medida, o
marco genesíaco da nossa Associação, e que ainda justifica a vontade de
continuar a estudá-lo e a dá-lo a conhecer, pois, realmente, muito pouco
ainda se sabe sobre ele.
E, pensamos que faz sentido que este Caderno do Património n.º 2 regresse
ao tema Monforte e publique duas das comunicações apresentadas numa
jornada de reflexão sobre a importância efetiva das ruínas do Castelo de
Monforte 1
, que realizámos em 18 de Junho de 2022, com a parceria da Câ-
maraMunicipaldeFigueiradeCasteloRodrigo.ProcuramosnessasJornadas
Europeias de Arqueologia relembrar o potencial arqueológico, quer científico
quer turístico, que este enigmático sítio possui, mas sobretudo relembrar a
necessidade de se proceder à reabertura do processo de classificação. para
assimexistirumenquadramentolegalparaasuaproteçãoevalorização,ede
proceder ao levantamento topofráfico do local.
O artigode TiagoRamos“OsSenhoresde Monforte noséculoXIIIComiam Os-
tras?”,construídoapartirdeumadescobertasurpreendente–foramencontra-
dos restos de bivalves marinhos (ostras?) nas escavações em Monforte, o que
vemmaisumavezsublinharaimportânciadecontinuarainvestigação.
O artigo “Monforte, um Meandro do Côa nos Mapas de Fronteira”, dos geó-
grafos João Garcia e Luís Moreira, conta-nos a história do castelo e da re-
gião de Riba Côa, usando como fio de rumo os mapas da região, desde o
seculo XVI. Não chegaram até nós mapas mais antigos
Mas a Raia, como defendemos, é muito mais do que um espaço geográfico,
estrategicamente relevante para os dois estados que divide. E é mais do
que património edificado. É um espaço social, económico, espiritual, que o
artigo“OsSítiosdeSignificânciaCulturalemEscarigo”nosrevelacomtanta
acuidade, ao tentar resgatar da noite dos tempos o imaginário colectivo e
memorialístico de um povo.
1.
Os artigos de Ignacio Benito e de João
Garcia & Luís Moreira.
6 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
No ensaio de Carlos Caetano “Uma Pintura Quinhentista a Fresco no Fron-
tal do Antigo Altar-mor da Igreja de Escarigo “, o historiador de arte mos-
tra-nos a relevância da arquitectura da igreja de Escarigo e a importância
artísticadofrescoconservado,descobertonasobrasderestauro,pordetrás
do novo altar-mor.
E o que era a raia antes de o ser? Quem ali viveu, que crenças tinha, quem
eramessesnossosantepassados?Partedarespostaencontramo-latalvez
no artigo “El Patrimonio Arqueológico del Valle del Águeda como Recurso
Turístico” do arqueólogo Ignacio Benito.
Captar o imaginário colectivo é um desígnio exigente, a que o ensaio foto-
gráfico, “Fotografar a Raia”, e os dois textos que o acompanham, de Renato
RoqueeJorgeVelhote,tentamoferecerumsegundoolhar,através dosentir
estético das múltiplas visões da Raia de um grupo de fotógrafos que parti-
cipou no Encontro.
O Caderno de Património n.º 2 é assim, por um lado, um testemunho do En-
contro Transfronteiriço que dinamizámos em 2021, em Escarigo e Puerto
Seguro, e, por outro lado, pretende ser um contributo para uma reflexão so-
bre o território de Riba Côa, que se estende à volta de Monforte.
Em intervenções arqueológicas, realizadas em solos derivados de rochas
graníticas, os materiais mais abundantemente recolhidos são sobretudo
fragmentos de peças cerâmicas ou materiais pétreos. Materiais orgânicos,
como madeira, sementes, ossos, espinhas ou molúsculos raramente se
conservam, ou necessitam de condições excepcionais para chegarem em
bom estado de preservação. Tal facto deve-se à composição dos solos gra-
níticos, que possuem um alto nível de acidez, degradando rapidamente os
materiais orgânicos.
No entanto, nos raros casos em que se formam contextos arqueológicos
pouco comuns, como por exemplo ter ocorrido um incêndio que crie um
estrato com elevada presença de matéria orgânica carbonizada, ficam pre-
servados interessantes vestígios da vida quotidiana do passado. Nomea-
damente restos de alimentos consumidos nesse período.
os Senhores de Monforte
no século XIII
Comiam Ostras?
Tiago Ramos
ARQUEÓLOGO
A enigmática presença de bivalves marinhos
no Castelo da Sr.ª de Monforte (Bizarril-Figueira de Castelo Rodrigo)
8 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Como constatámos, na intervenção arqueológica realizada no Castelo da Srª
de Monforte em 2019, cujos dados foram publicados na dissertação de dou-
toramento (Ramos, 2020), este fenómeno incomum ocorreu em Monforte.
Um incêndio na torre de menagem possibilitou a formação de um contexto
que, entre outros materiais orgânicos e não-orgânicos, continha a presença
derestos,queidentificámos como pertencendo a várias espécies de bivalves
marinhos, e entre eles alguns que pareciam poder ser conchas de ostras.
A identificação segura das espécies em presença exigiria uma investigação
mais aprofundada.
Este achado, para além de raro e exótico para a região, é extremamente
enigmático. Mais que respostas, levanta-nos um conjunto de interroga-
ções: Quando se comeram? Quem os comia? Que espécies biológicas se
reconhecem? Como eram confecionados? De onde vinham? Como eram
transportados para garantir a sua preservação na longa viagem do mar até
ao Côa? Haverá mais por descobrir?
Encontramo-nos ainda num estado inicial da investigação para darmos
respostas concretas. A hipótese que formulamos anteriormente (Ramos,
2020) e que podemos sintetizar é a seguinte: Em Monforte, entre a segun-
da metade do século XII e os inícios do século XIII, vivia um conjunto de
indivíduos pertencentes a uma elite guerreira, que possuíam estatuto e ca-
pital financeiro suficientemente elevado para consumir bivalves marinhos,
que chegariam até aqui através da importante via colimbriana, que ligava
Coimbra a Salamanca. Estaremos assim perante um importante sítio, mes-
mo se de cariz regional, que aparentemente se encontrava perfeitamente
inserido numa rede comercial peninsular de larga escala.
Mas todas as hipóteses que adiantámos têm de ser comprovadas ou, even-
tualmente, contrariadas, dando lugar a novas propostas de explicação, por
meio de estudo e de avaliação, recorrendo a métodos científicos. Só assim
poderemos saber mais sobre aquela época e como viviam as gentes que
habitavam no castelo e no pequeno povoado à sua volta. Não nos cansa-
mos de repetir que estamos ainda num estado inicial da investigação sobre
o Castelo de Monforte. É, pois, imperativo um estudo mais aprofundado so-
bre o local.
E, para realizar esse estudo, é urgente arrancar com duas tarefas relativa-
mente simples, tão brevemente quanto possível:
a)umalimpezadomatoqueatualmentecobreetornaquaseinvisívelosítio
arqueológico.
b) um levantamento topográfico das estruturas que se avistam nos dois
cabeços e nas suas encostas, tarefa difícil de empreender sem o envolvi-
mento efetivo do poder autárquico.
Estes dois requisitos serão antes de mais fundamentais para reabrir o pro-
cessodeclassificaçãodosítio.Eserãoimprescindíveisparaacontinuaçãoda
investigação arqueológica, que possa criar condições concretas para a valori-
zação e para fruição deste património emblemático, quer pelas comunidades
locais, quer por visitantes nacionais e estrangeiros interessados na riqueza
culturalehistóricadolugar.OCastelodeMonforteeasuaenvolventepoderá
assim constituir uma mais-valia importante para a região, sobretudo se as-
sociado a outros sítios históricos e culturais do Riba Côa.
Resto de bivalve marinho (ostra?),
encontrado nas escavações
na Torre de Menagem do Castelo de Monforte
em 2019
– Fotografia do Autor
10 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
MONFORTE,
UM MEANDRO DO CôA
NOS MAPAS DE FRONTEIRA
João Carlos Garcia
Luís Miguel Moreira
GEÓGRAFOS
FIGURA 1. Mapa hipsométrico
da bacia do médio Coa.
FIGURA 2. Mapa de declives
da bacia do médio Coa.
Agradecemos à Prof.ª
Laura Machado Soares, do
Departamento de Geografia
da Faculdades de Letras
da Universidade do Porto,
a realização destes dois
mapas que servem de
enquadramento físico-natural
da área de estudo.
Os mapas deste artigo podem
ser acedidos com maior
resolução e a cores:
https://photos.app.goo.glw/
d4enErvUu1v67bo39
Na parte sul da bacia do médio Douro, entre os rios Águeda/Tourões e Côa,
afluentes do grande coletor ibérico, que correm sul-norte, em vales fortemen-
te encaixados, desenvolveu-se um original caso de colonização luso-leonesa,
entre o último quartel do século XII e o início do século XIV (Figuras 1 e 2).
O processo da “Reconquista” cristã e da subsequente reorganização e repo-
voamento do território, por parte do Reino de Leão, conheceu uma impor-
tante etapa, durante os reinados de Fernando II (1157-1188) e de Afonso IX
(1188-1230). Falamos, em particular, da avançada para Oeste, em direção a
um novo corpo político que recentemente se emancipara e tentava estru-
turar - Portugal -, também ele cristão, com o qual era importante negociar
diplomática e militarmente, em especial, as fronteiras.
Além da luta territorial entre os poderes régios, outros poderes e outras ins-
tituições procuravam implantar-se e controlar o mesmo espaço, fossem as
ordens militares, a nobreza, as cidades, procurando alargar os seus termos,
12 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
ou a Igreja, através da restauração das dioceses e da fixação das ordens re-
ligiosas. Na parte norte da futura comarca de Riba Côa encontramos bons
exemplos da atuação de todos estes tipos de intervenientes na reorganiza-
ção do espaço, nos anos 70 do século XII. Apenas alguns breves exemplos.
A Ordem militar de São Julião do Pereiro (futura Ordem de Alcântara), fundada
em 1166, recebeu dez anos depois, os núcleos de Reigada e Granja do Pereiro,
férteis e estratégicos locais, no aplanado interflúvio entre os rios Côa e Seco,
a que se juntarão outros próximos ou em direção ao Douro, como Cinco Vilas,
Vilar Torpim, Ferreira, Colmeal, Almendra e Fonte Seca, com o beneplácito do
Papa Lúcio III, em 1183 (Cintra, 1984, p. LIII). Entre Cinco Vilas e Reigada terá
sidoconstruídoo“MonasteriodePerario”,masafuturacomendadaOrdemde
Alcântara apresentará por sede Vilar Torpim e estender-se-á a São Félix dos
Galegos, confirmando uma ligação suportada por um importante eixo viário,
em direção à Tierra de Ledesma e ao vale do Tormes.
Para nordeste desta rede de povoamento, no interflúvio entre os rios Seco
e Águeda, encontramos o mosteiro de Santa Maria de Aguiar, inicialmente
da regra de São Bento e, posteriormente, da Ordem de Cister, sob a juris-
dição da abadia leonesa de Moreruela. Contudo, tratava-se de uma funda-
ção portuguesa, para a qual Afonso Henriques tinha definido couto, em 1174
(Azevedo, 1962, p. 261). Em princípio, situando-se a leste do Côa, caberia em
exclusividade à soberania leonesa, tanto mais que se encontrava enquadra-
do na diocese de Ciudad Rodrigo, existente desde 1161 (como herdeira da
antiga diocese de Calábria) e renomeada e com termos definidos desde 1175
(Martín Benito, 2002), mas as pretensões portuguesas sobre esse espaço,
que não eram novas, continuavam. O mesmo acontece no campo oposto:
Ciudad Rodrigo e o seu bispo não deixarão de reivindicar privilégios e rendas
sobre Riba Côa, mesmo depois do Tratado de Alcañices (1297) e do estabe-
lecimento da fronteira Portugal - Castela.
EstaorganizaçãoestabelecidanapartenortedafuturacomarcadeRibaCôa
manter-se-á na década seguinte, até à morte de Fernando II, em 1188, e
no início do reinado do seu sucessor. Na primeira metade dos anos de 1190,
Afonso IX, não só confirmou a maioria das doações que o pai fizera neste
território, como acrescentou algumas novas, como a Granja de Tourões, a
SantaMariadeAguiar(Cintra,1984,p.LV).Mas,oreideLeãoestavaatentoà
estratégiapovoadoradotioevizinho,oreiSanchoIdePortugal,querepartia
forais nas faixas fronteiriças de Trás-os-Montes e da Beira.
A ponta da lança apontada a Portugal será Castelo Rodrigo, protegido pela
Serra da Marofa e dominando vastos espaços para Norte, até ao Douro, e
para Sul até ao corredor natural leste - oeste, entre Guarda e Ciudad Rodrigo.
É esse espaço retangular, limitado a Oeste pelo Côa e a Leste pelo Águeda/
Tourões, desanexado do termo de Ciudad Rodrigo, que o fuero concedido por
Afonso IX a Castelo Rodrigo, vai gerir, desde 1209 1
. A esta peça no tabuleiro
leonês corresponde Pinhel, do outro lado da fronteira. Sancho I, concede fo-
ral a Pinhel exatamente na mesma data, 1209 (Ventura, 1989, p. 39). Entre
os dois núcleos rivais que se enfrentam passa o Côa, e sobre o Côa, num
sítio alcandorado, dominando as passagens do rio, constroem os leoneses o
Castelo de Monforte, primeiro atalaia vigilante e estritamente militar, depois
pequeno núcleo de povoamento que crescerá ao longo do século XIII.
A prova da importância dada por Afonso IX à organização desde espaço é a
suapresençaassíduaemCasteloRodrigo,em1209,1210,1215,1217…(Cintra,
1984, p. LIX e Vicente, 1998, p. 296). O que inclui novas doações no espaço
envolvente (Bouça, Cortiçada) e, provavelmente, a construção e reforço da
1
. Ver a importante reconstituição
cartográfica elaborada por Cintra (1984,
p. CXXI), sobre o povoamento de Riba
Coa, no século XIII.
14 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
fortificação de Monforte, tanto mais que entre 1210 e 1212 novos conflitos
bélicos haviam ocorrido entre Leão e Portugal (Martín Benito, 2002, p. 147).
Sóapartirdofinaldadécada,acolonizaçãoemRibaCôaavançaparasul,em
direção ao Sabugal.
A evolução da “Reconquista”, quer do lado leonês e castelhano, quer do lado
português, e as convulsões internas nos estados cristãos ibéricos deixarão,
aparentemente, solidificar a organização destes espaços, separados politica-
mente pelo Côa. Mas, o ataque militar a Riba Côa, por parte de Portugal, que a
crise dinástica castelhana possibilita, no final do século XIII, é a prova que as
faixasfronteiriçascontinuavampoucocristalizadaseaserespaçosdeconflito.
A campanha de D. Dinis em território leonês, que terminará com o Tratado
de Alcañices, com base na narrativa de Rui de Pina, merece um comentário
geográfico que pode explicar a incorporação de Ribacôa como um todo2
. O
exército português avança no interior do reino inimigo, provavelmente utili-
zandoascalçadasromanasquecruzavamaregião–aColimbriana(notroço
Guarda - Ciudad Rodrigo) e a Dalmatia (no troço Ciudad Rodrigo - Ledesma)
(Martín Benito, 2002, p. 119). O cronista concretiza que o monarca “entrou
por has Comarquas de Ciudad Rodrigo, e de Ledesma” (Pina, 1729, p. 25) até
Simancas, às portas de Valladolid, ameaçando a regência da rainha Maria de
Molina (no quadro da menoridade de Fernando IV) e participando nas que-
relas internas da sucessão do trono castelhano (Pizarro, 2005, p. 108-115).
Uma boa razão para serem estes os espaços invadidos prende-se com a
ligação entre o monarca português e o senhor de grande parte deles junto à
fronteira, Sancho de Ledesma, neto de Afonso X, como também o era D. Di-
nis. Refere Rui de Pina, que algum tempo antes: “[…] veo ha ElRey D. Diniz ha
IfanteDonaMargarida,molherqueforadoIfanteD.Pedro[filhodeAfonsoX],
e com ella D. Sancho de Ledesma seu filho, e por descontentamentos, que
tinha del Rey D. Fernando pedio ha ElRey D. Diniz por mercee, que ho rece-
besse por vassalo, do que ElRey aprouve.” (Pina, 1729, p. 24). Na sequência
da evolução dos acontecimentos políticos em Castela e no rescaldo da cam-
panha militar de 1296, a reação do monarca português não se fez esperar.
Explica o cronista que: “[…] em se tornando pera seu Regno veyo loguo por
riba de Côa, onde loguo por cerquos, e combates cobrou ha seu poder ho
senhorio de todolos Lugares daquela Comarqua, que aguora sam de Portu-
gal, porque eram de D. Sancho que se fizera seu vassalo […] e por eles se deu
booa satisfaçam em Castella aho dito D. Sancho.” (Pina, 1729, p. 28). Uma
vez mais, as diversas jurisdições sobre um mesmo território, justificam deci-
sões políticas e militares, mas também económicas e sociais, em função de
contextos históricos distintos (Ladero Quesada, 1989, p. 681).
O Tratado de Alcañices (1297) é um momento chave na clarificação do pro-
cesso mas, também o é para a sobrevivência e o futuro do castelo de Mon-
forte de Riba Côa. É no texto do acordo estabelecido entre Dinis de Portugal
e Fernando IV de Castela, que Monforte é pela primeira vez referido, entre as
unidades espaciais que se permutam no extremo nordeste da Beira: “[…] yo
rey don Denys de sus dicho, por [que nos] uos quitades de los castiellos e de
lasvillasdeSabugalydeAlfayatesedeCastielRodrigoedeVillarMayorede
Castiel Bono e de Almeyda e de Castiel Mellor e de Monforte [e de los otros]
lugares de Riba de Côa com sus términos, que yo agora tengo a mi mano […]”
(González Giménez, 1998, p. 23). É toda a faixa fronteiriça da margem direita
do Côa que Leão/Castela perde, é toda a faixa fronteiriça para leste do Côa,
que Portugal ganha: as fortificações militares, as vilas e os lugares, com os
espaços sob o controlo de cada um deles. O desequilíbrio entre a rede de
2
. Sobre as várias interpretações
historiográficas em torno do Tratado
de Alcañices, ver Amaral & Garcia, 1989,
p. 970-977.
16 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
povoamento na parte norte e na parte sul da faixa é ainda evidente. A sul,
apenas são nomeados Sabugal, Alfaiates e Vilar Maior, mas no seu conjunto,
o território tem já uma unidade: “Riba de Côa” é o que fica para além do Côa,
na visão portuguesa, a partir dos seus centros de poder no litoral atlântico.
Na“primitiva”organizaçãomilitar,aleonesa,asfortificaçõesmilitarestinham
sido construídas sobre o Côa, contra Portugal; agora Portugal ocupava-as,
mas ficava sem linha defensiva ao longo dos vales do Águeda e do Tourões,
por onde se estabeleceu o novo limite político, com base no acordo de Al-
cañices. Assim, nem todos os “castelos” recebidos terão a mesma atenção
e manutenção por parte da Coroa portuguesa (Barroca, 1998). Rui de Pina,
na Crónica de D. Dinis, é bastante explicito sobre as razões do abandono de
Monforte. Ao inventariar a obra do monarca na defesa da Comarca da Beira
e de Riba Côa afirma: “[…] fez de novo estes Castellos, há saber, Avoo, que
agoraheedoBispodeCoimbra,hoSabugal,Alfayates,CastelRodriguo,Villar
mayor, Castel boom, Almeyda, Castel melhor, Castel mendo, San Felizes dos
Galegos, que tem agora Castella, e nom fez ho Castello de Monforte de riba
de Côa, que tambeem lhe foy dado por estar em maa despoziçam da teerra,
e sua força pera defençaõ do Regno, nom seer muito necessária, fez mais
Pinhel, e seu Castello […]” 3
. A fortificação estava agora longe e “de costas”
para o novo troçado da fronteira.
Atendendo ao renovado quadro geo-estratégico do nordeste da Beira, so-
bretudo pela alteração do limite político entre os Estados, nem o sítio nem a
posição de Monforte justificavam o investimento em obras de engenharia e
arquitetura militar. Como em outros casos ocorridos ao longo da faixa raiana,
ao abandono da ocupação militar seguiu-se a decadência do pequeno nú-
cleo populacional, que no entretanto se formara e sobre o qual, de qualquer
modo, temos notícias documentais até ao reinado de Pedro I, nos meados
do século XIV (Abreu, p. 2014, 114).
Num documento de D. João I sobre o concelho de Pinhel, datado de 1386,
refere-se “[…] hum logo que se chamão Monforte ho quall dizem que he de-
sabitado há gramde tempo.” (Francisco & Gil, 2016, p. 415). Assim se encon-
traria. A presença do topónimo entre a recorrente lista de lugares de Riba
Côa num documento da chancelaria de D. Manuel I (Abreu, 2014, p. 114) não
atesta a sobrevivência do núcleo populacional, já que as fontes descritivas,
estatísticas e cartográficas do século XVI (e dos séculos seguintes), são
em tudo omissas à existência da povoação. Referimo-nos às descrições
quinhentistas de Portugal e aos róis de topónimos do chamado Códice de
Hamburgo, de 1525, e do Numeramento de 1527-1532, estudados por Su-
zanne Daveau e Júlia Galego. Tentando localizar o castelo de Monforte pro-
curámos a comarca de Riba Côa nas imagens cartográficas do País. Sobre
essa busca faremos um comentário mais detalhado 4
.
A primeira representação gráfica (vistas e plantas) deste território, ainda que
de forma limitada, foi apresentada por Duarte Darmas, no Livro das Forta-
lezas. Em 1509, D. Manuel I enviou um agente “debuxador” percorrer a raia,
registando através do desenho, os castelos que vigiavam e demarcavam a
faixa fronteiriça entre a foz do rio Guadiana, a sul, e a foz do rio Minho, a nor-
te. O levantamento não permitia obter uma “imagem” exata da configuração
dos limites do reino, embora esta estivesse implícita no simbolismo de cada
um dos castelos, enquanto marcos da autoridade central sobre o espaço de
contacto com o Estado vizinho. A fronteira medieval era ainda mal definida,
difusa e permeável. Percorrendo Riba Côa de sul para norte, o autor deixou
registos de Sabugal, Vilar Maior, Castelo Mendo, Castelo Bom, Almeida e
3
. Pina, 1729, p. 94. Sobre as condições
militares das praças fortes havia
notado o autor: “[…] hos quaaes
Lugares nom eram então taõ
afortelezados como ElRey depois hos
fez” (ibid., p. 28).
4
. Com base no levantamento efetuado
por Moreira, 2012.
18 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Castelo Rodrigo, enquanto principais centros organizadores do território.
Sóem1561,comaediçãodoprimeiromapadePortugal,gravadoemVeneza,
na tipografia de Michele Tramezzino (1526-1571), e difundido em Roma, se
representou com algum detalhe, cartograficamente, o conjunto da fronteira
portuguesa (Figura 3).
Neste primeiro mapa de Portugal, orientado com o Oeste no topo 5
, destaca-
-se ao longo da base, uma linha ponteada que enfatiza a mensagem política
veiculada através da figuração geográfica dos fenómenos representados.
A imagem, da autoria de Fernando Álvares Seco (fl. 1559-1561), composta
a partir de um protótipo cujo paradeiro permanece desconhecido, conver-
teu-se em “mapa oficial” do país, divulgando-o internacionalmente a partir
dos prelos de Gerard de Jode (ca. 1511-1591), em 1565 e, sobretudo, dos de
Abraham Ortelius, (1527-1598), ao integrar o seu famoso atlas Theatrum
Orbis Terrarum, em 1570 (Dias, 2009 e Garcia, 2010).
No mapa está identificado “Riba de Côa” num tipo e tamanho de letra dis-
tintos do utlizado para os núcleos de povoamento, muito embora sem apre-
sentar uma clara delimitação territorial. A linha divisória interna que corre
paralela ao Côa, para Oeste, deverá corresponder à divisão diocesana, entre
Braga, Lamego e Guarda. Considerando unicamente as localidades com-
preendidas entre aquele rio e o Águeda, identificam-se 17 topónimos figu-
rados pelo mesmo símbolo: Sabugal, Alfaites, Aldea da Ponte, Vilar maior,
Nave dabeira, Malhdda Surda, Castelmedo, Castel lobon, Val delamula, S.
Pedro, Almeida, Vilar Torpim, Almofada, Escarigo, Touroes, Castel rodrigo e
Almedra. Não há qualquer alusão a Monforte.
A rede hidrográfica, formada pelos rios Arnes, Côa, Palhais, Touroes e Daguiar,
fornece o fundo natural de referência. Sobre estes existem 4 pontes, que per-
mitem a sua travessia e articulam os principais eixos viários da região: uma
sobreorioCôaemSabugal;outranumafluentedoCôanãoidentificado(talvez
o rio Cesarão), nas proximidades de Vilar Maior; uma nova ponte sobre o rio
Côa(apontevelha),nasproximidadesdeVilardeTorpime,porfim,umaponte
sobre a ribeira de Aguiar, provavelmente a ponte romana de Escalhão.
O mapa de Álvares Seco e suas variantes, foram substituídos por uma nova
imagem de Portugal, elaborada pelo cartógrafo português ao serviço de Es-
panha, Pedro Teixeira Albernaz (ca. 1595-1662), intitulada Descripción del
Reyno de Portugal y de los Reynos de Castilla, editado em Madrid, em 1662,
em pleno contexto da Guerra da Restauração (1640-1668) (Figura 4).
Figura 3 – [Mapa de Portugal],
Fernando Álvares Seco. Roma, 1561.
5
. A visão do país era estabelecida a
partir do centro da Península Ibérica
ou de outros países europeus. A
‘obrigatoriedade’ do norte no topo
da imagem data apenas da segunda
metade do século XIX. Ver Fig. 7.
20 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
O mapa, também orientado para Oeste, assinala o território de “Riba de Côa”,
muito embora sem qualquer delimitação, nele se assinalando 23 topóni-
mos: Osabugal, Rebolosa, Guinola, Alfaiates, Aldea da Ponte, Lanava, Navas
da Beira, Côa, Vilamaior, Castelmendo, Vila Fermo, Valde lamula, Castelo-
bom, S. Pedro, Almeida, Malpartida, Escarigo, Almofala, Vilar Torpim, Mata
de lobos, Escalhao, Castel Ro. e Almendro. Todos os topónimos referem-se
a núcleos de povoamento, figurados por um símbolo constituído por um
pequeno conjunto de edifícios, destacando-se Almeida, que já apresenta
uma muralha moderna, reveladora do seu destacado papel militar enquanto
“chave do Reino”. Monforte não é referido.
Os únicos 3 rios identificados são o Côa, o Tourões e o Águeda, mas sobre
eles não foram assinaladas quaisquer pontes e o relevo está representado
porpequenosmontesdesenhadosemperspetiva,queseadensamnaparte
Suldacomarca,correspondentesàsserrasdaMalcataedasMesas,quenão
são identificadas.
Este maior conhecimento do território, pelo menos dos núcleos de povoa-
mento, deve ter resultado da incorporação de informação diretamente re-
colhida no terreno pelos militares que participaram nas campanhas bélicas
que aqui foram ocorrendo desde 1641, ainda que a fronteira da Beira não te-
nha constituído o principal teatro das operações militares da Guerra da Res-
tauração 6
. Esta imagem de Portugal permanecerá por mais de um século,
como uma das mais válidas 7
.
A partir da segunda metade do século XVIII a cartografia impressa europeia
conheceu uma renovação, à medida que os editores londrinos aumentavam
e diversificavam a sua produção, na tentativa de superar o domínio dos edi-
tores parisienses. Simultaneamente, sob a direção de Tomás López, surgiu
uma casa editora em Madrid, cuja produção de mapas não só permitiu abas-
teceromercadoibérico,comocontribuiuparaanimarocompetitivomercado
europeu. Nesta sequência, foram difundidos dois novos mapas do conjunto
de Portugal, cujo impacto se estendeu até ao início da segunda metade do
século XIX, aquando do advento da moderna cartografia científica.
O primeiro mapa foi editado em 1762, intitula-se Mappa ou Carta Geogra-
phica dos Reinos de Portugal e Algarve, e foi produzido pelo geógrafo real
britânico, Thomas Jefferys (ca.1710-1771). A obra foi preparada numa edição
bilingue, em português e inglês, e impressa em várias folhas que, no seu
conjunto, apresentam uma dimensão aproximada de 165 x 88 cm (Figura 5).
Figura 4 - Descripcion del Reyno de
Portugal…, Pedro Teixeira Albernaz.
Madrid, 1662
6
. O próprio autor terá estado no terreno,
ao longo da “raia” portuguesa. Cf. Pereda
& Marías, 2002, p. 17.
7
. Sobre este mapa, comentou o
Engenheiro-mor do Reino décadas mais
tarde: “[…] entre as cartas gerais, que
há no Reino, a que passa por melhor
e mais exacta, é a de Pedro Teixeira
que se estampou em Madrid no ano
de 1662, a qual (excepto as costas
marítimas que se encontram menos mal
arrimadas) é tão defeituosa que para o
intento presente é o mesmo que se não
houvera” (Fortes, 1722, p.[10]).
22 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Foi editada durante a Guerra dos Sete Anos (1755-1762), o que no contexto
ibérico,correspondeuàGuerraFantástica(1762),momentoemqueaFrança
e a Espanha declararam guerra a Portugal, tendo concretizado uma invasão
que se iniciou por Trás-os-Montes, passando para as províncias da Beira e
do Alentejo, sem nunca ter conseguido ameaçar a capital. Assim, o território
ribacudano conheceu, novamente, ações militares diretas.
Os 32 topónimos registados por Jefferys, no território de Ribacôa, resultam,
por um lado, da maior escala do mapa (ca. 1:450 000), o que permite repre-
sentar uma maior quantidade de informação e, por outro lado, do maior nú-
mero de fontes consultadas. Os núcleos populacionais identificados são os
seguintes: Sobugal, Rebolosa, Forcalhos, Alfayates, Fenaya, Naoes da Beira,
Lagiosa, Villar Mayor, Lanava, Freyneda, Castel Bom, V. Fermo, Rio Seco, S.
Pedro, Naves, Val de la Mula, Vienca, Almeida, Coelha, Mendo, Cinque Villas,
Malpartida, Vilar Torpiu, Reygada, Escarigo, Almofalo, Mata de Lobos, Castel
Rodrigo, Escalão, Algedres, Almendra e Castel Melhor. Destes, três foram fi-
gurados com um símbolo que corresponde a local fortificado, a saber: Alfaia-
tes, Almeida e Castelo Rodrigo. Não existe referência a Monforte.
Apenasencontramostrêsitinerários:anorte,umcaminhovindodeEspanha,
por Freixeneda, ligando as povoações de Escalhão, Castelo Melhor e Vila
Nova de Foz Côa; um outro, partindo de Castelo Rodrigo em direção a São
João da Pesqueira, bifurca em Almendra, ligando-se ao primeiro; o terceiro,
também faz ligação a Espanha, a partir de San Felices de los Gallegos, até
Almeida e Pinhel.
Oterritórioéatravessadoporvárioscursosdeágua,masapenasseregistou
o nome de três: o rio Côa, a ribeira de Aguiar e o rio Águeda, devidamente
separados por cordilheiras montanhosas que definem as respetivas bacias
hidrográficas.
O autor acrescentou o desenho de uma espada, junto de Castelo Rodrigo,
reportando-se à batalha que ali ocorreu – Mata de Lobos – em julho de
1664, a chamada batalha da Salgadela, durante a Guerra da Restauração.
A evocação do facto, associada a uma das vitórias militares decisivas para
assegurar a independência de Portugal e a afirmação da nova dinastia de
Bragança, contribuía para exaltar, um século depois, os sentimentos de
identidade nacional, frente ao tradicional inimigo espanhol.
O segundo mapa, intitulado Mapa General del Reyno de Portugal, é da au-
toria do geógrafo espanhol Tomás López de Vargas Machuca (1730-1802) e
foi editado em Madrid, em 1778 (Figura 6).
Figura 5 - Mappa ou Carta Geographica
dos Reinos de Portugal e Algarve, Thomas
Jefferys. Londres, 1762
24 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Trata-se de um documento de grandes dimensões e, à semelhança do an-
terior, também foi impresso em várias folhas. Para a sua composição, López
teve acesso a um conjunto de fontes, cartográficas e bibliográficas, tanto
portuguesas como espanholas. Entre estas, destaca-se um pequeno ál-
bum das províncias de Portugal, que o autor publicou no quadro da referida
Guerra Fantástica, em 1762, bem como um conjunto de mapas provinciais
de Espanha, que incluíam dados obtidos através de inquéritos enviados a
informadores locais.
Como resultado final, identifica-se um maior número de topónimos (44) em
Ribacôa: Rebolosa, Sabugal, Fenaya, Pueñas, Forcalhos, Alfayates, Aldea
del Obispo, Liciosa ó Lagiosa, Naoes da Beira, Nave, Sacaparte, Villar mayor,
La Nava, Aldea Ponte, Ponte de Sequeiros, Talaquela, Batoquina, Freyneda,
Nava de Avel, Posobello, Castellobom, Villafermosa, Rio Seco, S. Pedro, Val-
delamula, Laduncia, Almeida, Vienca, Valdecoelha, Castellomendo, Aldea
de Ribas, Cincovillas, Bervenosa, Malpartida, Escarigo, Almofalo, Reygada,
Mata de Lobos, Villartorpim, Castel Rodrigo, Peñadapia, Algodres, Almendra
e Castello Melhor. Entre estes, apenas Sabugal, Alfaiates, Almeida e Castelo
Rodrigo foram representados com um símbolo de “Praça de Guerra”, embo-
ra se indique a existência de fortes em Vilar Maior e Castelo Bom. Monforte
não consta no inventário.
Também foram desenhados um maior número de itinerários: a Norte, man-
têm-se as ligações Fregeneda - Castelo Melhor - Vila Nova de Foz Côa e
Castelo Rodrigo – Almendra - Vila Nova de Foz Côa; foi indicada uma ligação
direta entre Castelo Rodrigo e Pinhel, mas é Almeida o nó viário de Ribacôa.
Para aqui convergem dois eixos provenientes da fronteira, um desde Vale
de Mula e outro nas suas proximidades, bifurcando em direção a Pinhel e à
Guarda. A Sul, indicam-se três itinerários que ligam Vilar Maior, Alfaiates e
Sabugal à Guarda.
Identificam-se o rio Côa, a ribeira de Aguiar e o rio Turon e apesar da pre-
sença de vários pequenos montes que representam a orografia, apenas foi
identificada a serra de “Meras” (Mesas), no limite Sul de Ribacôa.
O mapa de Portugal figura os limites da divisão administrativa/judicial,
identificando-se as seis Províncias, separadas por uma linha tracejada fina
e dentro destas, a divisão dos Corregimentos e Ouvidorias, delimitados por
Figura 6 - Mapa General del Reyno de
Portugal, Tomás López. Madrid,1778
26 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
uma linha ponteada. Como complemento, o cartógrafo indicou as localida-
des sedes de ouvidorias, provedorias, coutos ou concelhos, com o símbo-
lo correspondente, o que constitui uma novidade nos mapas de Portugal,
mesmo com escala semelhante. Assim, quase todo o território ribacudano
enquadra-se no “Corregimiento de Pinhel” (Comarca de Pinhel) e, interna-
mente, distinguem-se as categorias administrativas e honoríficas de várias
localidades, registando-se que Castelo Rodrigo era um Marquesado, en-
quanto que Almeida, Vilar Maior e Sabugal eram condados.
Os mapas de Jefferys e de Tomás López fixaram a imagem de Portugal por
mais um século, pelo que, no decorrer das invasões francesas (1807-1812),
os vários exércitos presentes no país utilizaram-nos (e às suas variantes)
para planearem as principais ações militares em território nacional. A tí-
tulo de exemplo, podemos referir a 2ª edição do mapa de Jefferys, datada
de 1790, sob responsabilidade técnica e comercial de William Faden (1749-
1836).Oeditoresclarecequeasmaisimportantesalteraçõeseatualizações,
sobretudo na Estremadura e no Alentejo, decorreram das informações colhi-
das no terreno pelo Tenente-General Charles Rainsford (1728-1809), oficial
dos Coldstream Guards, ao serviço do rei de Portugal na Guerra Fantástica.
Embora mantendo o título da 1ª edição, foram feitas algumas alterações
pontuais à toponímia e à rede viária de Ribacôa. Assim, foram acrescen-
tados e/ou modificados os seguintes topónimos: Nave de Avel, Posobello
(em substituição de “Freyneda”), Valfermoso (substituindo “V. Fermo”), Las
Naves, Laduncia, Castel Mendo (em vez de “Mendo”), Bervenosa, Villartor-
pim (repete) e Penada Pia. Também a rede viária foi atualizada, seguindo de
perto o mapa de López: um itinerário liga diretamente Alfaiates à Guarda; a
estrada vinda de Ciudad Rodrigo, via Vale de Mula, subdivide-se a partir de
Almeida em três, em direção a Pinhel, a Celorico e à Guarda; figura-se um
itinerário de Pinhel a Castelo Rodrigo, mantendo-se os restantes iguais ao
da primeira edição.
Nos últimos anos de Setecentos e na iminência de uma nova invasão, o Go-
verno português procurou desenvolver os necessários preparativos para a
defesa do Reino, que incluíram, como já era hábito, a contratação dos servi-
ços de vários militares estrangeiros. Assim, coube a Christian August, Prínci-
pe de Waldeck e Pyrmont, a tarefa de realizar o reconhecimento da fronteira,
entre o rio Douro e a foz do Guadiana, inspecionando os regimentos que aí
se aquartelavam. Acompanhava o Marechal alemão, como seu Ajudante de
Campo, Bernhard Wilhelm Wiederhold, Barão de Wiederhold (1757-1810),
que registou as observações que iam sendo feitas no terreno, comparan-
do-as com os mapas de Portugal de que dispunham, sendo um destes o de
Jefferys, na edição de Faden.
O Brigadeiro Wiederhold, também ele um experimentado cartógrafo, proce-
deu a inúmeras alterações, tendo adicionado e corrigido vários topónimos
e estradas que os mapas ignoravam, tarefa apenas possível graças a um
apurado trabalho de campo. Só na área de Castelo Rodrigo foram introdu-
zidos, de forma manuscrita, os seguintes topónimos: Val d’Afonsinho, Villar
d’Amargo, Figueira de Castelo Rodrigo, Freixeda, Penha d’Águia, Torrão, Ser-
ra da Marofa, Colmeal, Luzellos, Bizarril, Nave Redonda e Vermiosa (em vez
de Bervenosa). Ao longo do rio Côa, estão assinalados os locais de travessia,
nomeadamente o “vau da Barroca”, a Sul da Marofa, e o “vau de Vide”, o que
permite associar este maior conhecimento da micro-toponímia aos itine-
rários percorridos pelo autor, tornando o mapa corrigido num documento
precioso (Guedes, 1992).
28 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
O outro exemplo é a Carta militar das principais estradas de Portugal, edita-
da em 1808. O seu autor, Lourenço Homem da Cunha de Eça (1767-1833),
era oficial do Real Corpo de Engenheiros e lente na Real Academia de For-
tificação, Artilharia e Desenho, em Lisboa. A história deste mapa relacio-
na-se com os principais eventos militares que marcaram o País durante a
primeira década do século XIX: depois de uma primeira versão manuscrita,
presumivelmenteelaboradanocontextodaGuerradasLaranjas(1801),uma
segunda versão, impressa e bilingue (português e francês), foi editada em
1808, durante a ocupação francesa, seguindo-se uma 2ª ed. impressa, em
português (Moreira, 2012, p.363-372).
Fazendo justiça ao título, o autor destacou a rede viária do mapa de Portugal
de Tomás López (1778), mostrando as principais vias terrestres, indicando
as distâncias em léguas e o tempo de percurso, em horas de marcha a pé,
entreasdiferenteslocalidades.Destemodo,afiguraçãodaredehidrográfica
e do relevo foi muito simplificada, mostrando-se até, incompleta.
Em Ribacôa, e ainda que o rio Côa não esteja figurado de forma completa,
foram indicadas apenas as localidades de Sabugal, Rapoula de Côa, Nave,
Alfaiates, Vilar Maior, Castello bom, Val de lamula, Almeida, Villartorpim, Cas-
tello Rodrigo, Almendra e Castello Melhor. E existem algumas localidades
assinaladas que não foram identificadas.
Um exemplar deste mapa esteve na posse do então Major George Julius Hart-
mann (1774-1856), do Regimento de Artilharia da King’s German Legion, ao
serviço do Exército Britânico a operar na Península Ibérica, sob o comando de
Lord Wellington. Hartmann era comandante de Artilharia, tendo desempe-
nhadoessafunçãodurantetodaaGuerraPeninsularerecebeuaincumbência
de percorrer partes da fronteira portuguesa, fazendo levantamentos do terre-
no e das condições de defesa (Moreira, 2012, p. 371-372). Reunindo estes da-
dos, Hartmann tratou de atualizar e reformular o mapa de Lourenço Homem,
nomeadamente, acrescentando topónimos, corrigindo outros, relocalizando
povoações,refazendoitineráriosterrestreseclassificando-os,ecompletando
informações sobre as montanhas e os rios (Figura 7).
No território de Ribacôa, estas alterações são mais visíveis entre Sabugal e
Almeida, a área onde ocorreu maior atividade militar neste período e aquela
que o oficial de artilharia melhor conhecia, tal como deixou registado no seu
Sketch of the country between the Côa & Sierra de Gata.
O contributo dado por estes oficiais estrangeiros permitiu obter informa-
ções mais precisas sobre a geografia dos espaços raianos periféricos, habi-
tualmente mal representados nos mapas gerais do País. Em 1829, fazendo
uso desta possibilidade, o Arquivo Militar, em Lisboa, elaborou a Carta Topo-
FIGURA 7 — Carta Militar das Principaes
Estradas de Portugal, Lourenço Homem da
Cunha de Eça. Lisboa, post. 1808 (Library
of Congress, pertencente a Georg Julius
Hartmann).
30 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
gráfica da Beira Alta e Baixa, à época, a melhor imagem regional deste ter-
ritório, registando quase 50 topónimos na área entre Sabugal e Castelo Ro-
drigo: Fojos, V. de Espinho, Quadrasaes, Torre, Azendo, Sabugal, Rendo, Vila
Boa, Souto, Alfaiates, Alde. Velha, Alde. do Bispo, Lagioza, Forcalhos, Alde.
da Ponte, Rebolosa, Ruivos, Rapoula, Escabralhado, Bismula, V. das Egoas,
Carvalhal, V. Maior, Arifana, Malhada, Nave de Aver, Q. Poço Velho, Freine-
da, V. Formosa, Castº. Bom, Rio Seco, Asnaves, Junça, Almeida, V. de la mula,
V. de Coelha, Malpartida, Cinco Villas, Reygada, Vilar Torpim, Bizarril, Nave
Redonda, Vermiosa, Escarigo, Almofala, Aguiar, Castelo Rodrigo e Colmeal.
Como em todos os casos anteriormente analisados, o topónimo Monforte
não está presente.
Como esta cartografia militar era manuscrita e, por essa razão, pouco divul-
gada e conhecida, os mapas impressos e com circulação comercial não con-
seguiam incorporar a informação atualizada. Continuavam-se a consumir
imagens antigas e de produção estrangeira.
Em meados do século XIX, após o fim da Guerra Peninsular, da Revolução
Liberal e da Guerra Civil, quando a situação em Portugal encontrou alguma
estabilidade, os governos regeneradores consideraram que, finalmente, es-
tavam reunidas as condições para investir no desenvolvimento socioeco-
nómico do País. Para tal, era necessário implementar uma política de obras
públicas, assente na construção de novas infraestruturas de comunicação
(estradas, caminhos de ferro, pontes, portos), capaz de impulsionar o desen-
volvimento das principais atividades económicas e de reforçar o mercado
interno. No entanto, as autoridades rapidamente compreenderam que os
mapas existentes não eram compatíveis com as suas necessidades, por-
quanto fixavam uma imagem distorcida e incompleta do território.
Assim, entre 1860 e 1865, foi preparado o primeiro mapa científico do país, a
Carta Geographica de Portugal, cujos trabalho foram dirigidos por Filipe Folque
(1800-1874), no quadro da Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos, a nova au-
toridade cartográfica nacional. O mapa, composto na escala 1:500 000, forne-
ceu a base para inúmera cartografia temática, mas serviu também de su-
porte a tomadas de decisão por parte da administração pública.
O território de Ribacôa foi, finalmente, fixado em moldes modernos e cien-
tíficos, refletindo a nova hierarquia administrativa decorrente das reformas
territoriais impostas pelos sucessivos governos liberais, com exceção de
algumas localidades raianas, cuja jurisdição não estava ainda definida, dado
que o processo de levantamento e posterior demarcação da linha de fron-
teira só seriam estabelecidos e reconhecidos em 1864, com a assinatura do
“Tratado de Limites” e, em 1906, com a aprovação da Acta geral de delimita-
ção entre Portugal e Espanha.
No que respeita, concretamente, ao sítio de Monforte, ele só foi figurado
com exatidão num mapa impresso, em 1890. Falamos da folha 12, da Carta
Corográfica de Portugal, na escala de 1/100.000, publicada em Lisboa, pela
Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos do Reino, onde se localiza e iden-
tifica a ermida de Nossa Senhora de Monforte. Aí encontramos o relevo, a
rede hidrográfica, o povoamento (e a toponímia) e a rede viária, entre outros
fenómenos, mas não qualquer referência ao Castelo de Monforte. A densi-
dade das curvas de nível e os numerosos pontos cotados permitem uma
boa visualização, por um lado, do encaixe do Côa e dos seus afluentes e, por
outro, das áreas aplanadas dos interflúvios, onde se reparte o povoamento
concentrado e se desenvolve a rede de estradas e caminhos.
32 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Esta primeira edição da Carta Corográfica de Portugal tem a particular vir-
tude de figurar a rede viária anterior à construção das estradas asfaltadas
e à “revolução” dos transportes no território nacional. Muitas das ligações
terrestres entre núcleos populacionais presentes das folhas do mapa teste-
munham heranças de séculos.
Assim, para montante e para jusante do meandro encaixado de Monforte, não
são muitas as passagens do Côa, face à sinuosidade longitudinal do leito e ao
forte declive das vertentes. Para montante, a chamada Ponte Velha (que não
está identificada) ligando Pinhel a Vilar Torpim; mais longe, depois de um dos
troços mais repulsivos e isolados do vale, só a ponte de Almeida, na estrada en-
tre esta vila e a Guarda; para jusante, a vizinha Ponte da Chinchela, junto à con-
fluência da Ribeira do Avelal. Será esse ponto de passagem do leito do Côa, a
herança de um caminho de transumância de gado entre Vilar Torpim, Bizarril e
Pinhel (ou mais longe, em direção a Trancoso), que a configuração arruada de
Bizarril testemunha e a Canada da Moreira, entre esta aldeia e o Lagar do Ba-
rão, parece registar ? Mas, o sítio alcandorado do antigo castelo de Monforte é
apenas um dos ermos pontos cotados (478 m) sobre o encaixado vale do Côa,
numaáreaquearedeviáriaevita,pelasdificuldadesqueatopografiaimpõe.
A primeira localização do Castelo de Monforte num mapa impresso ocorreu,
seguramente,nasediçõesdafolha171,daCartaMilitardePortugal,naescala
de 1/25.000, ainda que com uma alteração no topónimo, entre as primeiras
edições (1941/1970) - Castelo de Monte Forte -, e a 4ª ed., de 1994 - Castelo
de Monforte -, e ligeiros acertos no ponto cotado de maior altitude: 476 m /
480 m. Um pormenor a reter é não ter sido incluído o símbolo da existência
de ruínas… No espaço envolvente, são mínimas as alterações ocorridas no
quarto de século que separa as duas últimas edições.
Percorrendo a fronteira luso-espanhola da foz do Minho à foz do Guadia-
na, são muitos os locais onde, ao longo dos séculos, ocorreram conflitos di-
plomáticos, militares, económicos e sociais, que deixaram mais ou menos
memória, documental, material ou imaterial, que chegou até nós. A longa
duração do processo, que no espaço se materializou, de uma faixa mais ou
menos ampla até à linha matematicamente estabelecida e que hoje, de for-
ma periódica, se verifica e confirma, faz com que existam nos atuais territó-
rios, relíquias esquecidas das etapas dessa evolução, que exumadas pela
Arqueologia, pela História, pela Geografia ou pela Etnologia, permitem com-
preendermos melhor a atual organização do espaço. O Castelo de Monforte
de Riba Côa é um bom caso, para um estudo que apenas começou (Abreu &
Hernández, 2014 e 2019; Francisco & Gil, 2016; Ramos, 2021).
Este trabalho enquadra-se
no projeto de investigação
científica “GEOCONFRONT
– Conflictos fronterizos en
España y América Latina
(1840-2020): aproximaciones
geohistóricas y actuales”,
coordenado por Jacobo García
Álvares, da Universidad
Carlos III de Madrid. O projeto
é financiado pela Agência
Estatal de Pesquisa, de
Espanha (Projeto PID2020-
114088GB-I00 / AEI
/10.13039/501100011033).
João Carlos Garcia
Faculdade de Letras da
Universidade do Porto.
Luís Miguel Moreira
Instituto de Ciências Sociais
da Universidade do Minho.
Centro de Estudos Geográficos
da Universidade de Lisboa.
34 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
BIBLIOGRAFIA
Fontes cartográficas
ALBERNAZ, Pedro Teixeira, ca.1595-1662
Descripcion del reyno de Portugal y de los reynos de Castilla, que parten con su frontera / delineada por D.
Pedro Teixeira / dedicada a la Magestad del rey Nro. Sr, D. Phelipe 4° por D. Joseph Lendinez de Guevara. -
Escala [ca. 1:660 000], 15 Leguas = [14,30 cm]. - Matriti : Marcus Orozcus, 1662. - 1 mapa : p&b ; 77 x 109 cm
Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra / Coleção Nabais Conde: NC-652
EÇA, Lourenço Homem da Cunha de 1767?-1833
Carta militar das principaes estradas de Portugal / por L. H. ; grav. Romão Eloy Almeida. - Escala [ca. 1:470
000]. - Lisboa : [s.n.], 1808. - 1 mapa em 4 folhas : grav., p&b ; 74 x 138 cm.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: C.C. 1226 R.
EÇA, Lourenço Homem da Cunha de 1767?-1833
Carta militar das principaes estradas de Portugal / por L. H. ; grav. Romão Eloy Almeida. - Escala [ca. 1:470
000]. - Lisboa : [s.n.], 1808. - 1 mapa em 4 folhas : grav., p&b ; 74 x 138 cm.
Washington, Library of Congress: G6562.G35 1812 .H3
JEFFERYS, Thomas, ca 1710-1771
Mappa ou carta geographica dos reinos de Portugale e Algarve / por T. Jefferys, Geographo de Sua Mages-
tade Britannica ; Miguel Rodrigues impressor do Excelentissimo Senhor Cardial Patriarca. - Second Edition.
- Escala [ca 1:450 000], 10 Legoas commuas de Portugal e d'Espanha 19 à hum Grao = [13,05 cm] . - Londres
: W. Faden, 1790. - 1 mapa : grav., p&b ; 165 x 89 cm.
Lisboa, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar: 4067 / I-2A-29-41
LOPEZ DE VARGAS MACHUCA, Tomás, 1731-1802
Mapa general del reyno de Portugal: comprehende sus provincias, corregimientos, oidorias, proveedurias,
concejos, cotos &c. / por Tomás Lopez, Geografo de los Dominios de S.M. de sus Reales Academias de la
Historia, de S, Fernando, de la de Buenas letras de Sevilla, y de la Sociedad Bascongada de los Amigos del
Pais ; Dedicado Al Ilustrisimo Señor Don Pedro Rodriguez Campomanes, Cavallero de la distinguida Ordem
de Carlos III, del Consejo y Camara de S.M., Director de la Real Academia de la Historia &cc.. - Escala [ca 1:470
000],12LeguascomunesdePortugal,delasqueentran18.enunGrado=[15,90cm].-Madrid:[s.n.],1778.-1
mapa em 8 folhas : grav., p&b ; 142 x 81 cm.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: C.C. 952 R.
PORTUGAL. Arquivo Militar, 1802-1868
Carta topografica da Beira Alta e Baixa : comprehendida entre os rios Tejo e Mondego,
as fronteiras orientaes do reino de Espanha e a linha que passa por Thomar e Coimbra /
redigida no Real Archivo Militar em 1829, avista dos mappas litograficos levantados pelos officiaes do Es-
tado Maior do Ex.º Britanico, corregidos, e addicionados com o auxilio das cartas levantadas pelos officiaes
do Real Corpo de Eng.os de Portugal, e outros documentos existentes no mesmo Real Archivo. – Escala [ca.
1:200 000], 9 milhas = [7,4 cm]. – [post.1831]. – 1 mapa : ms., color. ; 70 x 82 cm
Lisboa, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar: 1844 / 2-19-28
SECO, Fernando Álvares, fl. ca 1559-1561
[Portugal]/VernandiAlvariSecco;SebastianusaRegibusClodiensisinaerei[n]cidebat;MichaelisTramezini
formis, cum Summi Pontificis ac Veneti Senatus privilegio. - Escala [ca 1:1 340 000]. - Roma : Michaelis Tra-
mezini, 1561. - 1 mapa : grav., p&b ; 35 x 52 cm
Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra / Coleção Nabais Conde: NC-899 (Gaveta 1)
Estudos
ABREU, Carlos d’; HERNÁNDEZ, Román (2014). O Castelo de Monforte de RibaCôa: primeiras impressões
arqueológicas de uma fortificação medieval leonesa. Sabucale. Revista do Museu do Sabugal. Sabugal, 6, p.
101-118.
ABREU, Carlos d’; HERNÁNDEZ, Román (2019). A fortificação medieval leonesa de Monforte de RibaCôa (no-
vos elementos arqueológicos e artísticos). Douro – Vinha, História & Património. Porto, 8, p. 33-70.
AMARAL, Luís Carlos; GARCIA, João Carlos (1998). O Tratado de Alcañices (1297): uma construção historio-
gráfica. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – História. Porto, II, XV, 2, p. 967-986.
AZEVEDO, Rui Pinto de (1962). Riba Côa sob o domínio de Portugal no reinado de D. Afonso Henriques. O
Mosteiro de Santa Maria de Aguiar, de fundação portuguesa e não leonesa. Anais da Academia Portuguesa
da História. Lisboa, II, 12, p. 231-298.
BARROCA, Mário Jorge (1998). D. Dinis e a Arquitectura Militar Portuguesa. Revista da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 801-822.
CINTRA, Luís F. Lindley (1984). A linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo: seu confronto com a dos foros de
Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Cória, Cáceres e Usagre: contribuição para o estudo do leonês e do
galego-português do século XIII. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1ª ed. 1959).
DAVEAU, Suzanne (2010). Um antigo mapa corográfico de Portugal (c. 1525). Reconstituição a partir do Códi-
ce de Hamburgo. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.
DIAS, Maria Helena (2009). A primeira carta de Portugal continental. http://cvc.instituto-camoes.pt/ cien-
cia/e79.html.
FORTES, Manuel de Azevedo (1722). Tratado do Modo o Mais Fácil e o Mais Exacto de Fazer as Cartas Geo-
graficas, assim da terra, como do mar, e tirar as plantas das praças, cidades e edificios com instrumentos, e
sem instrumentos, para servir de instrucçãm à fabrica das Cartas Geograficas da Historia Ecclesiastica, e
36 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Secular de Portugal. Lisboa, Officina de Pascôal da Silva.
FRANCISCO, José Paulo; GIL, Tiago (2016). O projecto de investigação do Castelo de Monforte de Riba Côa
como âncora de um amplo programa de Arqueologia comunitária do Côa. In VILAÇA, Raquel (coord.). II Con-
gresso Internacional de Arqueologia da Região de Castelo Branco. Castelo Branco, RVJ Editores / Sociedade
dos Amigos do Museu Francisco Tavares Proença Júnior, p. 413-426.
GALEGO, Júlia; DAVEAU, Suzanne (1986). O Numeramento de 1527-1532: tratamento cartográfico. Lisboa,
Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.
GARCIA, João Carlos (2010). A Lusitânia parra o Cardeal Guido Sforza: um Mapa de Portugal de 1561 na Biblio-
teca Nacional. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – História. Porto, III, 11, p. 363-368.
GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (1998). Las relaciones entre Portugal y Castilla durante el siglo XIII. Revista da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 1-24.
GUEDES, Lívio da Costa (1992). A viagem de Christian, Principe de Waldeck, ao Alentejo e ao Algarve descrita
pelo Barão von Wiederhold 1798. Separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, vol. 60. Lisboa, ed. Autor.
LADERO QUESADA, Miguel-Angel (1998). Reconquista y definiciones de frontera. Revista da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 655-691.
MARTÍN BENITO, José Ignacio (2002). Fontera y Territorio en el sur del Reyno de León (1157-1212). In El Rey-
no de León el la época de las Cortes de Benavente. Jornadas de Estudios Históricos. Benavente, Centro de
Estudios Benaventanos ‘Ledo del Pozo’, p. 115-163.
MOREIRA, Luís Miguel (2012). Cartografia, geografia e Poder: o processo de construção da imagem cartográ-
fica de Portugal, na segunda metade do século XVIII. Braga: Universidade do Minho (Tese de Doutoramento
em Geografia).
PEREDA,Felipe;MARÍAS,Fernando,Eds.(2002).ElAtlasdelReyPlaneta.La"DescripcióndeEspañaydelas
costas y puertos de sus reinos”. Barcelona, Ediciones Nerea.
PINA, Rui de (1729). Chronica do muito alto e muito esclarecido Principe Dom Diniz sexto Rey de Portugal.
Lisboa Occidental, Na Officina Ferreyriana.
PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor (2005). D. Dinis. Rio de Mouro, Círculo de Leitores.
RAMOS, Tiago (2021). A primeira intervenção arqueológica no Castelo de Monforte de Riba Côa (2019). Ca-
dernos do Património. Figueira de Castelo Rodrigo, 2, p. 7-12.
VENTURA, Leontina (1998). A fronteira luso-castelhana na Idade Média. Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 25-52.
VICENTE, António M. Balcão (1998). A ‘Extremadura’ leonesa – o caso da fronteira de Riba-Côa nos séculos
XII-XIII. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 287-300.
Emobrasrelativamenterecentesdescobriu-sesoboaltar-mordaigrejadeEs-
carigo o altar-mor primitivo, de alvenaria, cujo frontal, pintado a fresco, repre-
sentaoArcanjoS.Miguelladeadodeduasfigurasostentandotípicosturbantes,
característicosdaiconografiatradicionaldefigurasdoAntigoTestamento.
Deve dizer-se que esta sensacional pintura descoberta há poucos anos é no-
tável por todos os motivos, a começar pela sua própria sobrevivência e pela
sua presença material, enquanto testemunho vivo de uma prática decorativa,
figurativa e até litúrgica, típica da Idade Média e do início dos Tempos Moder-
nos, tempo histórico em que os interiores das igrejas, e nomeadamente os
seus espaços mais centrais, eram parcial ou integralmente pintados, como
mostraremos. Em segundo lugar, pela sua importância e pelas suas qualida-
des pictóricas, testemunho de uma oficina ou mesmo de uma escola regional
Uma Pintura Quinhentista
a Fresco no Frontal
do Antigo Altar-mor
da Igreja de Escarigo
(Figueira de Castelo Rodrigo)
Carlos Caetano
HISTORIADOR DE ARTE
38 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
que urge identificar e conhecer. Em terceiro lugar, pela sua iconografia, muito
importante, pois o conjunto se destaca das figurações mais convencionais
do Arcanjo S. Miguel. Mas a pintura de Escarigo é também um pretexto para
referenciar a belíssima e relativamente bem conservada igreja, erguida sob a
invocaçãodeS.Miguel,deorigemprovavelmenteleonesa(eportantoanterior
ao Tratado de Alcanizes, de 1297), que a acolheu, e onde se conserva há cerca
de quinhentos anos. Diga-se que Escarigo, outrora no termo do antigo conce-
lho de Castelo Rodrigo (hoje Figueira de Castelo Rodrigo) foi no passado uma
localidade relativamente opulenta.
1
FIGURA 1 – Igreja Matriz de Escarigo.
Fachada lateral Sul: note-se o alpendre e o
corpo da capela-mor
1
. João Maria Tello de Magalhães Collaço,
Cadastro da População do Reino (1527) – Actas
das Comarcas Damtre Tejo e Odiana e da Beira,
Ed. de Autor; Lisboa, 1929-1931, p. 109.
2
. As Freguesias do Distrito da Guarda nas
Memórias Paroquiais de 1758: Memória,
História e Património, José Viriato Capela e
Henrique Matos (Org., transcrição e notas), Ed.
José Viriato Capela, Braga, 2013, p. 271.
Assim, em 1527, “o lugar d escarygo” dispunha de 229 “moradores”, só abai-
xo, em número de moradores, dos “lugares” da Vermiosa” (236 moradores)
e de Escalhão (249), mas muito acima do “lugar e villa da reygada”, então
cabeça de uma Comenda da Ordem de Cristo, como veremos, onde “vivem
somente cem moradores” 1
. Mais de 250 anos depois, em 1758, tinha 115
“fogos”, com a população distribuída do seguinte modo: 271 “pessoas maio-
res de confissão e comunhão” e 43 “menores”, como informa o respectivo
vigário em resposta ao inquérito ordenado pelo futuro Marquês de Pombal
a todos os párocos do Reino, na sequência do Terramoto de 1755, e que co-
nhecemos por Memórias ou Registos Paroquiais 2
.
A forte presença da pintura a fresco
nas igrejas das Beiras
nos primeiros anos de Quinhentos
A pintura do frontal do antigo altar-mor da igreja matriz de Escarigo suscita
muitas considerações, sendo a primeira o reconhecimento da sua importân-
cia extraordinária enquanto testemunho material de uma pintura realizada
a fresco no lugar mais central da capela-mor da igreja matriz local, datável
das primeiras décadas do século XVI, como veremos. A pintura representa
o Arcanjo S. Miguel ladeado por dois profetas e comprova materialmente a
existênciadepinturasmurais,decunhoreligiosooumeramentedecorativas
nãosónestamasnageneralidadedasigrejasportuguesasdaIdadeMédiae
em particular nas do princípio da Idade Moderna, nomeadamente nesta re-
gião,pinturasestasdecujaexistênciasabíamospeladocumentaçãoescrita.
Ora, no decurso de prospecções e sobretudo no decurso de obras recentes
40 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
em igrejas de origem medieval, têm surgido à luz do dia inúmeras pinturas,
quase sempre de fins do século XV e da primeira metade do século XVI, pa-
tentes em grandes e em pequenas igrejas e ermidas de todo o país 3
– e esta
revelação de uma abundante pintura mural portuguesa, normalmente de
grande escala, espalhada por todo o território, tem sido uma das surpresas
maiores da mais recente historiografia portuguesa de arte 4
.
Estas recentes descobertas da nossa velha pintura mural não nos devem
surpreender, pois todos os testemunhos escritos confirmam que as igrejas
medievais e sobretudo as tardo-medievais eram geralmente rebocadas e
caiadas, pelo menos interiormente, sendo muitas vezes este preparo, ainda
que muito básico em ecossistemas graníticos ou xistosos, o suporte de pin-
turas murais a fresco. A decoração das paredes das igrejas sobretudo a pa-
rede fundeira e as paredes laterais da capela-mor, bem como as superfícies
queladeiamoarcotriunfal(doladodanave)–compinturasafrescoerauma
prática comum nas igrejas da época, em todas as regiões do Reino. Assim,
face ao “patamar de excepcionalidade raras vezes conseguido em Portugal”
atingido pela “pintura em tábua”, devido aos grandes mestres da Época Ma-
nuelina, Pedro Dias considera que “a pintura a fresco foi ainda mais impres-
sionante, pela sua difusão por todo o espaço nacional” 5
.
Nesta pintura mural, descoberta em igrejas e capelas ao longo de todo o
país, privilegiavam-se cenas da História Sagrada (do Antigo e sobretudo do
Novo Testamento), cenas da Vida da Virgem e cenas da Vida e sobretudo da
Paixão de Cristo, bem como a figuração das figuras maiores ou mais popu-
lares da hagiografia cristã, virgens e mártires, patriarcas ou fundadores das
sucessivas Ordens Religiosas, etc.
3
. A título de exemplo Joaquim Caetano
faz notar que a Igreja de Nossa Senhora da
Azinheira, de Outeiro Seco (Chaves) “esteve
completamente revestida de frescos no seu
interior”, Joaquim Inácio Caetano, O Marão e
as oficinas de pintura mural nos seculos XV e
XVI, Aparição, Lisboa, 2001, p. 38.
4
. Um marco importante na descoberta da
velha pintura mural portuguesa deve-se a
Luís Urbano Afonso, a partir do seu estudo
dos frescos da igreja do Convento de S.
Francisco de Leiria: ver Luís Urbano Afonso,
Convento de São Francisco de Leiria – Estudo
Monográfico, Livros Horizonte, Lisboa, 2003.
5
. Pedro Dias, “A Arte Manuelina” in AAVV.,
Manuelino – À Descoberta da Arte do Tempo
de D. Manuel I, Civilização Portugal, Lisboa,
2002, p. 31.
6
. Arquivo Nacional da Torre do Tombo
[ANTT] – Mesa da Consciência e Ordens /
Comendas – Ordem de Cristo / Convento de
Tomar [COM - OC/CT], Maço 66, doc. n. 2 /
Visitações [1505], f. 120 v.
7
. Ibidem, f. 113. Nota: todos os sublinhados
nas transcrições incluídas do presente estudo
são do autor.
8
. Ver “Visitação efectuada por D. Fr. João
Pereira e Frei Diogo do Rego, sendo escrivão
Fr. Francisco – 1507-1510”, in ANTT – Mesa
da Consciência e Ordens – OC/CT, Livro 132.
A Visitação, iniciada na Reigada, prosseguiria
nomeadamente pelas igrejas das comendas
da área raiana em torno do Côa e do Douro.
Não são conhecidos documentos escritos sobre a pintura do frontal do
antigo altar de Escarigo, que certamente estava relacionada com pinturas
a fresco aplicadas noutras superfícies da capela-mor e do corpo da igreja,
umas hoje perdidas (como as das paredes laterais da capela mor, por exem-
plo, destruídas para sempre quando lamentavelmente foi removido o res-
pectivo reboco de suporte), outras ainda ocultas, nomeadamente atrás do
retábulo monumental do altar-mor, como veremos. À falta de testemunho
escrito relativamente às pinturas quinhentistas da igreja de Escarigo, ater-
-nos-emos à documentação relativa às igrejas da região que pertenciam
a Comendas da Ordem de Cristo, regularmente inspeccionadas no âmbito
das visitações às diversas vilas e lugares tutelados pela Ordem. Pelos rela-
tos dos respectivos visitadores ficamos a saber que, ao contrário do que se
possa pensar hoje, as igrejas eram normalmente rebocadas e caiadas, parti-
cularmente no seu interior e eram ainda efectivamente decoradas com pin-
turas: era o caso da igreja de S. Miguel de Acha (Idanha a Nova), visitada em
1505, que detinha pintura mural 6
embora de iconografia não especificada,
ou ainda o caso da igreja de Alcains (Castelo Branco), também visitada em
1505, em que a parede do altar-mor detinha “pintura de cortinas de colores”,
isto é, figurava cortinas de tecido mais ou menos rico 7
. Também a matriz
(hoje desaparecida) da vizinha freguesia de Reigada, que também era cabe-
ça de uma Comenda da Ordem de Cristo – de que fora Comendador o pró-
prio Infante D. Henrique! – era profusamente pintada. Chegou-nos o valioso
relatório relativo à visitação desta igreja, que se iniciou a 14 de Outubro de
1507 8
. Assim, relativamente à “oussia” (capela-mor) da igreja da Reigada,
“cuja jnuocaçom he de nossa Senhora do pereiro” 9
, ficamos a saber que “as
paredes della pella mayor parte som de camtaria he o mais d aluenaria. ca-
42 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
felladas [rebocadas] he pinçelladas [caiadas] de dentro”. Do mesmo modo,
também“Ocorpodadictaegrejatemasparedesdepedraebarrocafelladas
e pinçelladas da parte de dentro”.
Tal como a igreja de Escarigo daquela época, também a igreja da Reigada
tinha um altar maciço de alvenaria, isto é, detinha o “seu altar de pedra sobre
moçiço. he esta quase no meyo da dicta oussia. e tem tres tauoleiros [de-
graus] de pedraria”. O acesso à capela-mor fazia-se pelo arco triunfal: “tem
a dicta oussia huum arco de pedraria chãas [?] e grande e sobre elle ha jma-
gem do cruçifixo pintada na parede a fresco”. Ficamos também a saber que
no corpo da igreja,
“aos lados do arco da oussia estam dous altares ambos de pedra”,
sendo “Huum da jnuocaçõm do Spirito Sancto com sua estorea pin-
tada a Fresco na parede., o outro altar he da jnvocaçõm de Sancta
marjnha e nelle huuma jmagem de paao velha de vulto”.
Entreasigrejascom pintura muraldosprimeirosanosde Quinhentos, em que
se inclui a de Escarigo, merece referência a Igreja de S. Bento da Meda, visita-
da a partir do dia 28 de Outubro de 1507, que “tem [n]a oussia as paredes d
aluenaria de pedra he barro cafelladas de dentro he bem pintadas a Fresco”.
O altar-mor era “de pedra”, isto é, de alvenaria, tal como o de Escarigo, e aos
visitadores não escapou a profusão de pintura mural na igreja da Meda:
“E na parede do altar estam pintadas a Fresco as Jmagens de nossa
Senhora e de sam beento O que todo ora mandou pintar o Dito garçia
de mello comendador
9
. ANTT – Mesa da Consciência e Ordens
– OC/CT, Livro 132, ff. 1, 1v. O relatório da
visitação encerra-se com a lista seguinte:
“Estas som as cousas que o dicto visitador
mandou que se façam na dicta egreja., e
cousas da comenda”: O Comendador “[…]
mandaraa cafelar he pinçelar as paredes da
dicta egreja da parte de Fora. he Fazer as
Juntas aa cantaria da dicta oussia”.
—
10
. ANTT – Mesa da Consciência e Ordens –
OC/CT, Livro 132, f 11 e seg.s.
11
. “Visitaçom da comenda da moxagata” in
ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/
CT, Livro 132, ff 14 e seg.s.
Aos lados do arco da oussia estam dous altares com Jmagens ou-
trosi pintadas a Fresco. e sobre o Dicto arco as Jmagens do cruçifixo
he de nossa Senhora he de sam joam e asi toda a parede pintada a
Fresco. E asy as paredes de huum cabo e do outro som pintadas com
muitas Jmagens atee as portas trauessas” 10
.
A caminho do Douro, a igreja de Santa Maria Madalena, cabeça da Comenda
da Muxagata (Vila Nova de Foz Côa), visitada a partir de 2 de Novembro de
1507, era também profusamente pintada 11
, como se vê da descrição da igre-
ja, que parcialmente se transcreve:
“a oussia da dicta egreja tem as paredes de pedra he barro Forrada d
oliuel [forro nivelado] sobre as asnas., a qual oussia he oliuel [o Co-
mendador] Garçia de mello mandou pintar de bõoas pinturas. o ter-
reo della estaa lageado de lousas
na Dicta oussia estaa huum altar de pedra sobre parede he no Dicto
altar huuma Jmagem De vulto da magdalena pintada de nouo. e na
parede do dito altar pintadas a Fresco Jmagens de bõoas pinturas
tem a Dicta oussia huum boom arco de pedraria e sobre elle pinta-
das a Fresco as Jmagens do cruçifixo e nossa Senhora e sam joam e
tambem outra Jmagem do crucifixo de vulto. aos lados Do dicto arco
he fora da dicta oussia. estam Dous altares com suas Jmagens pin-
tadasnasparedes,afresco.easigrandeparteDasparedesDaegreja
som pintadas de huum cabo e do outro com mujtas estorias Da pai-
xom De bõoas pinturas”.
44 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Na raia transmontana as visitações registavam também igrejas da Ordem
decoradas com pinturas de temas religiosos. Assim, o “corpo” da igreja de S.
Martinho do Peso, da Comenda de Mogadouro, visitada a 20 de Novembro
de 1507, tinha
“as paredes de pedra e barro cafelladas de Dentro e aos lados do arco
tem Dous altares igualmente ornamentados e nelles jmagens de
vulto he outras pintadas nas paredes E sobre o arco as Jmagens do
cruçifixo e de nossa Senhora e sam Joam pintadas a fresco”.
Como vemos, o tema do Calvário (Cristo Crucificado, ladeado de Nossa Se-
nhora e de S. João Evangelista) era muito presente. Porém, num assomo de
cosmopolitismo internacionalista, os visitadores determinam que a parede
fundeira da capela mor desta igreja se decore com pintura de “obra romana”,
isto é, com motivos decorativos de tipo classicizante, pelo que o Comendador
“fara pintar a parede do Dito altar [da oussia] de bõoas pinturas e
tintas De obra romana ou de Imagens qual mais lhe prouuer e poer
hi huum çeeo [céu = sobre-céu; guarda-pó] de cortina de linho com
seus alparauazees 12
Franjados” 13
.
Como vemos, enquanto recurso decorativo, figurativo e devocional, a pre-
sençadapintura,afresco,daigrejadeEscarigonadadetinhadeexcepcional,
de raro ou de singular. Ela é um manifesto de um gosto e de uma necessi-
dade efectiva de figuração, patente nas paredes da generalidade das igrejas,
pois a realização de pinturas a fresco, fosse qual fosse o tema, tornava-se
mais barata que a decoração, efémera ou permanente, da igreja com colga-
duras, panejamentos ou com painéis pintados a têmpera (ou a óleo) sobre
12
. “Alparavazes” ou “alparavazéis”: franjas,
sanefas: ver Cândido de Figueiredo, Grande
Dicionário da Língua Portuguesa, Bertrand
Editora, 25.ª Edição, Lisboa, 1996, Vol. I, p. 140
13
. ANTT – Mesa da Consciência e Ordens –
OC/CT, Livro 132, f. 32.
14
. Ver Joaquim Caetano, Motivos Decorativos
de Estampilha…, p. 120.
15
. Note-se, porém, que a moda das pinturas
a fresco de retábulos fingidos dará lugar à
sua substituição progressiva por retábulos
de madeira, devidamente entalhados e ao
uso intensivo de painéis de pintura a têmpera
ou a óleo sobre madeira integrados nos
retábulos.
madeira, muito mais cara. A pintura mural, a fresco, representava ou simu-
lava, de uma forma rápida, ligeira, muito vistosa – mas também muito mais
barata 14
– tudo o que o imaginário, a devoção, a liturgia ou a simples vonta-
de de ostentação dos paroquianos pudesse exigir 15
. Neste sentido, se afir-
maram gerações e gerações de oficinas e mestres de pintura a fresco, todos
eles de alcance regional, que hoje se começam a individualizar e mesmo a
identificar. Do mesmo modo começam a identificar-se os sucessivos ciclos
operativos e estéticos, compreendidos num aro cronológico que contempla
o século XV e meados do século XVI. Estes sucessivos ciclos são marcados
por localismos e regionalismos com as suas insuficiências de escola e as
suas limitações, próprias de mestres que, nas periferias, procuram emular a
grande pintura retabular sobre madeira, mas com modestas possibilidades
técnicas, por onde perpassam intensas marcas vernaculares.
Como vemos, pinturas a fresco de tema religioso eram muito comuns nas
nossas velhas igrejas, comprovadamente decoradas com pinturas, com
temas religiosos ou apenas com motivos decorativos, de que era exemplo
a presença das cortinas pintadas no fundo do altar de Alcains, atrás referi-
das. Estas cortinas pintadas eram como que a “petrificação”, para sempre,
de cortinas reais, de panos mais ou menos ricos, como esses alparavazes
de franjas, usados para destacar, dignificar ou proteger as imagens de vulto.
Com efeito, era intensa e estava muito arreigada a tradição das igrejas ar-
madas, isto é, decoradas com cortinas e panos de armar – tradição que se
perpetuou pelos séculos e que chegou aos inícios do século XX.
Esta tradição das igrejas decoradas e paramentadas a preceito, mesmo que
efemeramente, a cargo de profissionais, era própria de uma civilização que,
também no domínio estético, tinha horror ao vazio e era incompatível com
46 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
o Minimalismo corrente nos nossos dias: tal como os espaços palacianos e
cortesãos, as igrejas eram profusamente decoradas com colchas, panos de
armar, bandeiras, pendões e troféus de toda a natureza. Esta sobrecarga de
elementos decorativos, simbólicos, litúrgicos ou votivos produzia nos inte-
riores religiosos ou palacianos um efeito visual feérico, brilhante, sumamen-
te colorido e mesmo garrido até à saturação.
Enfim, a pintura, a fresco, sobre paredes rebocadas e caiadas, devidamen-
te preparadas para o efeito, deixa entrever uma realidade esquecida pelos
“teóricos” e os agentes da actual moda da “pedra à vista”: a da presença in-
tensa dos rebocos e a das caiações e consequentemente o uso comum da
cal, mesmo em regiões onde esta era difícil de obter. Com efeito, a cal, base
dos bons rebocos e sobretudo das caiações, usadas secularmente na nos-
sa arquitectura religiosa e solarenga, era comprovadamente consumida em
toda a Beira e, como tal, as entradas das cargas de cal em cada concelho
eramdevidamentetaxadas,talcomoconstadosforaismanuelinosdetodos
os velhos concelhos das Beiras!
FIGURA 2 – Fresco quinhentista
do frontal do altar-mor;
vista geral
As fotografias do fresco
quinhentista de Escarigo
podem ser vistas com mais
resolução e a cores em:
https://photos.app.goo.
gl/3VgbsFwgzDcqbuqy6
2
A pintura quinhentista do frontal antigo
do altar-mor da igreja de Escarigo
Da decoração de um altar à sua ocultação
na Época Barroca
Apinturadoantigofrontaldoaltar-mordeEscarigo,devidaaartistaregional
ou local, está mal conservada.
Com efeito, a pintura sofreu mutilações importantes, como se nota nos des-
gastesdobordosuperioresofreuaindagravesperdasdecamadacromática
na figura central, a pontos de estas perdas obstruírem ou dificultarem seria-
mente a própria identificação dessa mesma figura, S. Miguel Arcanjo, muito
facilmente confundida com Cristo Ressuscitado.
A pintura ocupa a totalidade do frontal do altar antigo da igreja, muito vasto.
Nele se apoiava o competente retábulo, talvez total ou parcialmente pintado
na parede do fundo da capela mor, pois, como vimos, era essa uma práti-
48 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
FIGURA 3 – Imagem quinhentista
de S. Miguel, padroeiro de Escarigo,
no altar-mor da Igreja Matriz.
FIGURA 4 – Retábulo-mor da Igreja
de Escarigo.
ca corrente na Idade Média, chegando às primeiras décadas do século XVI,
época a que deve remontar a pintura do frontal de Escarigo. A esse retábulo
primitivo, parcialmente conservado, embora presentemente não observável,
pois está atrás do retábulo barroco, deve ter pertencido a imagem do ora-
go da igreja, o Arcanjo S. Miguel, uma belíssima escultura a que os repintes
sucessivos não retiram nada do seu esplendor, próprio da melhor escultura
portuguesa dos princípios do Séc. XVI.
O retábulo primitivo, que se apoiava no altar de alvenaria, foi há muito
ocultado pelo imponente retábulo barroco, modelado no chamado “es-
tilo nacional”, muito bem conservado e que é uma das glórias da maqui-
naria retabular das Beiras.
O retábulo barroco, muito projectado para a frente da capela-mor de modo
a enquadrar e acolher a estrutura do típico e imponente trono escalonado,
muito profundo, suscitou a construção de um novo altar-mor, numa lo-
calização muito avançada em relação ao altar primitivo de alvenaria. Esta
circunstância permitiu que, apesar de mutilado, o altar antigo de alvenaria
sobrevivesse, embora abaixo e muito atrás do altar actual, motivo pelo qual
a pintura sobreviveu também.
Visando a implantação do retábulo barroco e a montagem do acesso inte-
rior ao camarim do trono, o altar primitivo foi então cerceado, removendo-se
uma faixa horizontal de cerca de palmo ou palmo e meio do topo do seu cor-
po de alvenaria. Destes desbastes no topo da mesa do primitivo altar fica-
ram marcas muito intensas na face superior da composição do frontal. Com
efeito, a base inferior da composição chegou-nos intacta, notando-se per-
feitamente as barras inferiores dos três “panos” figurativos que o integram e
a barra branca, que delimitava inferiormente todo o frontal. O mesmo se não
50 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
passa no topo superior do frontal, cujo bordo, hoje muito irregular, está mui-
to ferido, subentendendo-se que o sebasto superior do frontal, igualmente
pintadoafresco,tenhasidotododestruídovisandoamontagemdoretábulo
monumental barroco, como se pode ver na Fig. 2.
A ter em conta as faixas laterais que igualmente o integravam (e que sobre-
viveram), este sebasto perdido, devia ter a altura de um palmo ou de um pal-
mo e meio e figurava certamente um pano rico, de brocado ou talvez de da-
masco, tendo em conta a monocromia relativa do tecido representado nas
faixas laterais. À semelhança destas, o fingido sebasto perdido do topo do
frontaleracertamentedelimitadopelafiguraçãodeumaricaemuitovistosa
franja em fio de seda tricolor, com pequenos segmentos sucessivamente
brancos, vermelhos e verdes), igual a tantas franjas que se captam nos pa-
nejamentos mais ricos figurados na pintura portuguesa antiga.
A raríssima iconografia de um frontal de altar raiano
das primeiras décadas do Séc. XVI
O programa figurativo do frontal, delimitado pelo sebasto superior, desapa-
recido, e pelos sebastos laterais, que sobrevivem, consiste numa compo-
sição tripartida mas organizada simetricamente, representando no painel
central, de formato rectangular, disposto ao alto, o popular orago da igreja,
o Arcanjo S. Miguel, de pé, triunfante sobre o Dragão. Note-se desde já que
o culto de S. Miguel foi muito intenso entre nós durante toda a Idade Média,
pois ele era o padroeiro da generalidade das igrejas das cidadelas dos ve-
lhos castelos medievais, tanto portugueses, como peninsulares e europeus,
mas era também o orago de inúmeras igrejas paroquiais, nomeadamente
em zonas de fronteira.
A área central do frontal de Escarigo está rodeada por dois panos laterais
iguais,deformasensivelmentequadrada,decomposiçãomuitomaiscomple-
xa. No centro destes dois grandes quadrados laterais inscrevem-se duas mol-
duras quase circulares que enquadram duas figuras toucadas e vestidas com
trajescaracterísticos,decunhoorientalizante.Asmoldurasarredondadassão
definidas por uma barra densa de folhagens, muito clara, a evocar idênticas
molduras típicas do Renascimento Italiano. Estas molduras são sublinhadas
por dois ramos de folhagens que se desenvolvem a partir de uma espécie de
nóinferiorcomumaosdoisramos.Osdesenhosdestasfolhagens,muitoden-
sas, são assimétricos pois, por entre as folhagens, emergem ornatos típicos:
um puto e uma ave simbólica (pomba, águia, pelicano?). Estas ramagens em
cinzento intenso dispostas mais ou menos simetricamente, mas de orienta-
ção divergente, contornam, por cima e por baixo, a barra clara que delimita os
medalhões e sobrepõem-se ao fundo da composição, em vermelho escuro.
52 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
FIGURA 5. S. Miguel combatendo
e derrotando o Dragão;
painel central
FIGURA 6. Profeta Jonas (?);
painel lateral direito (lado da Epístola)
Os dois medalhões mais ou menos ovais delimitados pelas cercaduras já re-
feridas ostentam dois bustos masculinos “terçados”, isto é, representados a
três quartos, um de cada lado, voltados para o centro do altar e consequen-
temente para S. Miguel Arcanjo. A figura da esquerda (lado do Evangelho) é
imberbe, mas a figura da direita (lado da Epístola) aparece barbada, sendo
aparentemente muito mais idosa. Ambas ostentam, porém, típicos touca-
dos vermelhos em forma de cone, tendo o da direita, na sua base, uma es-
péciedebarraclara,eventualfiguraçãodeumabasedearminho.Apesardas
diferenças, estes toucados são muito característicos e de identificação ób-
via: as duas figuras que os ostentam pertencem ao corpus iconográfico do
Antigo Testamento. Ambas as figuras têm os braços semi-erguidos e com
as mãos seguram filactérias voltadas para o centro do frontal, enrolando-se
nas cercaduras dos medalhões laterais. Estas filactérias têm um significado
óbvio: simbolizam as narrativas proféticas, permitindo identificar as duas fi-
guras laterais como Profetas.
A imagem central do tríptico, de S. Miguel, corresponde ao típico modelo ico-
nográfico que conhecemos como Duelo ou Combate de S. Miguel contra o
Dragão inspirado num famoso episódio do Apocalipse (XII, 7-12):
“Então houve no Céo uma grande batalha; Miguel, e os seus Anjos
pelejavam contra o Dragão, e o Dragão com os seus Anjos pelejava
contra elle.
Porém, estes não prevaleceram, nem o seu lugar se achou mais no
Céo.
E foi precipitado aquelle grande Dragão, aquella antiga serpente, que
se chama o Diabo, e Satanás, que seduz a todo o Mundo: sim foi pre-
cipitado na terra, e precipitados com elle os seus Anjos.
54 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
E eu ouvi uma grande voz no Céo, que dizia; Agora foi estabelecida
a salvação, e a fortaleza, e o Reino do nosso Deus, e o poder do seu
Christo: porque foi precipitado o accusador de nossos irmãos, que os
accusava de dia e de noite, diante do nosso Deus”.
O Arcanjo S. Miguel é referido por três vezes no Antigo Testamento, no Livro
do Profeta Daniel, surgindo como “um dos primeiros príncipes” (Daniel, X, 13)
e como “Miguel que é o vosso príncipe” (Daniel, X, 21), num tempo que cor-
responde ao “terceiro anno de Cyro Rey dos Persas” (Daniel, X, 1), isto é, no
contexto do Cativeiro da Babilónia. Enfim, a terceira referência ao “grande
Principe Miguel” apresenta o mesmo tom apocalíptico que perpassa na nar-
rativa do Novo Testamento, assim prenunciado no mesmo Livro de Daniel
(Daniel, XII, 1-2):
“N’aquelle tempo porém, se levantará o grande Principe Miguel, que é
o Protector dos filhos do teu Povo: e virá um tempo, qual não houve
desde que as gentes começaram a existir até áquelle tempo. E sal-
var-se-ha n’aquelle tempo d’entre o teu Povo todo aquelle que fôr
achado escripto no Livro.
E toda esta multidão dos que dormem no pó da terra, acordarão: uns
para a vida eterna, e outros para um opprobrio, que elles terão sem-
pre diante dos olhos.”.
Destas referências do Antigo Testamento, bem como das constantes do
Apocalipse, já referidas, decorrem os atributos de S. Miguel Arcanjo enquan-
to “victoriosus, princeps militiae caelestis, pugnat cum dracone”.
O Arcanjo de Escarigo, de belas asas douradas erguidas, quase infantil, mui-
to jovem e imberbe, apesar de desprovido de elmo, de cabelos soltos, está
devidamente equipado para o combate, ostenta uma lança e está protegi-
do por uma armadura (hoje pouco visível, por perda acentuada da camada
cromática respectiva) que lhe protege tronco, braços e pernas, sobre a qual
flutua a cercadura avermelhada de um típico saio, muito curto. S. Miguel Ar-
canjo surge com um pé à frente do outro, numa posição muito dinâmica, de
grandedeterminação,calcandoaospésocorpodoDragão,queestádeitado
de costas, apoiado no limite inferior da composição.
Prestes a ser vencido, o Dragão ergue a cabeça monstruosa e sobre-dimen-
sionada para cima, com a goela aberta e avivada a vermelho, fazendo res-
saltar dentes agressivos.
Uma cauda muito desenvolvida, que se ergue em hélice, com um enrola-
mento de desenho ingénuo, completa a figuração do Dragão que (apesar
de hoje estar também muito esbatido, devido a perda de matéria cromática)
durante quase duzentos anos, há-de ter proporcionado ao povo devoto de
Escarigo uma figuração muito eficiente, terrífica mesmo, do Demónio, do
Mal e, por extensão, das Penas do Inferno. Face ao Dragão, pesado e ar-
rojado no chão, o Arcanjo ganha, porém, um ar quase flutuante e imaterial,
efeitos acentuados pelo lançamento caprichoso do seu manto vermelho e
pela coreografia dos braços e das mãos que sustentam a lança, acabada de
enfiar nas goelas abertas do Dragão, lança esta que é encimada pela cruz,
simultaneamente arma e símbolo do triunfo sobre o mal.
56 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
FIGURA 7. S. Miguel matando o Dragão
(pormenor do painel central,
editado para realçar o desenho).
As figuras de S. Miguel Arcanjo e do Dragão sobrepõem-se a um típico fun-
do de damasco ou de brocado de tons amarelados, à semelhança do que
acontecia em inúmeras figurações medievais e tardo-medievais de cenas
de cunho religioso, de santos e demais figuras sagradas, frequentemente
representadas perante fundos constituídos por draps d’honneur, ou seja,
panos de armar de grande aparato, de modo a realçar a sua majestade e
sobretudo para reforçar a sua carga devocional.
Como vemos, apesar do manto vermelho, esta figuração é em si iconografica-
mente convencional e muito frequente. Ela integra o que Louis Réau chama
de Angelofanias, essas aparições miraculosas, nomeadamente do Arcanjo S.
Miguel que, assim figurado, surgia perante os fiéis vencendo o Dragão, com a
lançaarmadacomacruzdaPaixãoeRessurreiçãodeCristo–istoé,equipado
como verdadeiro triunfador sobre o inimigo, o mal e o pecado.
Ora, sendo o tema iconográfico de S. Miguel tão popular na arte portugue-
sa medieval e tardo-medieval, a figuração de S. Miguel Arcanjo de Escarigo
apresenta, porém, uma singularidade que merece o maior destaque. Com
efeito, e como acima vimos, em Escarigo o Arcanjo está ladeado de dois pro-
fetas: certamente o profeta Daniel no painel do lado do Evangelho (o lado
liturgicamente mais importante), representando a figura do lado oposto (a
direita, para quem olha para o altar-mor); ver atrás Fig. 6) provavelmente
o profeta Jonas ou eventualmente Elias, Isaías ou mesmo Eliseu. Segundo
LouisRéau,oautorquevimoscitando,oprofetaDaniel,emparticular,“ilaété
considéré par les théologiens comme une préfigure du Christ. Daniel dans la
fosse aux lions est l’image du Sauveur dans le Sépulcre” e “le symbôle de
l’âme sauvée: c’est le type de l’homme protégé par Dieu”. Tal como Daniel,
também o profeta Jonas, muito provavelmente representado no medalhão
58 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
do painel direito do frontal de Escarigo, tinha um significado singular, que
justificava a sua importância e a sua popularidade entre Judeus e Cristãos:
“Pour les Juifs, Jonas englouti, puis vomi ou craché par la baleine, est
l’image du peuple d’Israel dévoré par le dragon assyrien, enseveli vi-
vant dans l’exil pendant la captivité de Babylone, puis rendu à la liberté
para la grâce de l’Éternel.
Pour les Chrétiens, c’est la préfigure de la Mise au tombeau et de la
Réssurrection du Christ.
De même que Jonas est resté trois jours dans le ventre du squale et
en est sorti vivant, de même le Christ ressuscite après trois jours pas-
sés dans les ténèbres du sépulcre”.
Que saibamos, nas Beiras não estão identificadas composições semelhan-
tes, envolvendo profetas a ladear a figura de S. Miguel Arcanjo. Com efeito, a
representação de S. Miguel Arcanjo ladeado de dois profetas não só parece
ser única como não consta na recensão das tipologias iconográficas esta-
belecidas por Louis Réau, já atrás referidas. Consideramos que a associação
de S. Miguel aos Profetas no frontal de Escarigo proporciona uma importan-
te variante, provavelmente de cunho nacional ou mesmo regional, ao tipo
iconográfico de S. Miguel. Mas a própria figuração dos Profetas no frontal
de Escarigo também é digna de nota, pois acusa a influência iconográfica
directa de tipos semelhantes da pintura primitiva portuguesa e, por essa via,
parece deter uma forte influência flamenga. Note-se ainda que a figuração
do profeta do painel esquerdo do frontal de Escarigo, figurado sem barbas e
que identificamos como Daniel, respeita também os modelos iconográficos
estabelecidos.
FIGURA 8. Profeta Daniel (?);
painel lateral esquerdo do frontal
O manto do profeta barbado (o do painel
da direita) é de cor de laranja hoje num
tom muito esmaecido. Ambos os profetas
ostentam típicos turbantes vermelhos,
típicos da iconografia de algumas figuras
importantes do Antigo Testamento,
como vimos,
Ambos os profetas envergam amplos mantos, sendo o de Daniel vermelho,
debruado com gola rica de arminho, atributo dos mantos reais.
60 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Um olhar sobre uma pintura quinhentista
a fresco em Escarigo
A pintura do frontal do antigo altar-mor de Escarigo merece múltiplos olha-
res, nomeadamente sobre si própria, enquanto composição, realização pic-
tural e estado de conservação. Merece registo a qualidade da pintura dos
profetaseemparticularadoprofetadadireita,barbado,queproporcionaum
autêntico e excelente retrato, pela individualização dos traços fisionómicos
do rosto, mas também pelas suas raras qualidades pictóricas.
FIGURA 9. Profeta Jonas (?).
Painel direito do frontal de Escarigo
(pormenor).
Com efeito, este retrato distingue-se pela leveza e soltura do desenho, quer
do rosto, quer das mãos; pelo requinte da pintura, patente nas carnações
delicadas e na subtileza do tratamento das barbas, quer, enfim, pela inten-
sidade do olhar. Pensamos que estas qualidades fazem deste profeta bar-
bado um dos mais belos retratos alguma vez pintados nas Beiras (ou para
as igrejas das Beiras), em nada desmerecendo de figurações semelhantes,
patentes nas múltiplas pinturas sobre tábua que devemos à chamada Es-
cola de Grão Vasco.
Por outro lado, como também vimos, os Profetas estão integrados num
medalhão mais ou menos oval cujo perímetro é sublinhado pela barra de-
corativa e por um típico festão de folhagens e outros motivos, pintados a
grisalha, como vimos, realçados de modo a proporcionarem um efeito de
relevo muito sofisticado, com ressonâncias quer goticizantes, quer singu-
larmente modernas, italianizantes mesmo, a lembrar, na sua composição e
na sua execução pictórica, aparentemente muito cuidada, algo da maneira
renascentista típica do Quatrocento italiano tardio. O conjunto das rama-
gens e dos temas decorativos é integralmente pintado em grisalha, isto é,
em várias gradações de cinzento, avivada a branco visando efeitos de relevo
e volume dos elementos figurados.
O resto das figurações não tem uma realização gráfica e pictórica tão so-
fisticada. Com efeito, face ao aparente virtuosismo da pintura das folha-
gens dos panos laterais, merece reparo a realização fruste dos efeitos de
damasco dos fundos do painel central. Do mesmo modo, a figuração de S.
Miguel Arcanjo – de grande monumentalidade e muito bela, aliás – é dada
por um traço muito vincado e muito duro, embora não isento de grande
expressividade.
62 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Por outro lado deve registar-se o toque de ingenuidade na respectiva com-
posição geral, desarticulada e pouco firme, nas proporções algo desequili-
bradas ou no lançamento e na composição algo desajeitada do manto ver-
melho. As diferenças de desenho e de execução pictórica patentes entre o
painel central, ingénuo, e os painéis laterais, que gozam de uma execução
mais cuidada, poderiam deixar entrever a presença de duas mãos e mesmo
de duas fases de execução. A ser assim, a um primeiro momento da em-
preitada caberia a realização do motivo central, S. Miguel Arcanjo, que teria
cabido a uma mão menos dotada ou de formação oficinal e técnica muito
mais limitada que a exibida na composição e na pintura dos painéis laterais,
com as efígies dos dois profetas, uma de cada lado. Se assim fosse, como
FIGURA 10. Arcanjo S. Miguel
(pormenor).
inicialmente pensámos, uma primeira mão seria aparentemente substituí-
da num segundo momento por uma mão muito mais segura e controlada, a
quem deveríamos os painéis laterais, que detêm uma composição densa, e
muito mais actualizada, um desenho seguro e elegante e um cromatismo
que temos que considerar muito vistoso e até rico.
Parece-nos, porém, muito mais verosímil considerar antes o recurso a duas
técnicas distintas, usadas simultaneamente na execução do fresco, prática
muito frequente na pintura mural da época, como veremos. Com efeito, a
uma composição integralmente efectuada a fresco nas duas pinturas late-
rais (profetas) parece ter-se sobreposto, sobretudo no painel central, a re-
pintura, a seco, de partes importantes da figuração programada. Assim, a
ser correcta esta proposta, como pensamos, todo o corpo e a armadura do
Arcanjo bem como o corpo e a cabeça do Dragão terão sido repintados, não
numa segunda fase, mas a seco. Joaquim Caetano nota na pintura mural
transmontana a realização em simultâneo da pintura a fresco e a seco, esta
completandoaquela,referindo“ofactodeascoresplanasseremaplicadasa
fresco – fundos, panejamentos, base das carnações – e tudo o resto acaba-
do a seco”. Ora, esta técnica, aplicada deficiente e impropriamente, implica
quase sempre a posterior perda quase integral da respectiva camada cro-
mática, o que hoje nos dá uma imagem muito deficiente e descorada do que
foi a vivacidade das pinturas originais. Consequentemente, o espectador de
hoje tem a necessidade de recompor virtualmente pinturas que, como a de
Escarigo (ou a de Monsaraz), perderam camada cromática de uma forma
muito significativa, pois aquilo que chegou até nós é uma sombra, muito
longe do que o pintor pintou e do que nos quis deixar. Consequentemente,
o que resta hoje da figura principal do frontal de Escarigo, para lá do típico
64 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
rosto quase infantil do Arcanjo, das suas asas douradas e do manto que o
envolve, é a pintura, muito esvaída, da armadura (hoje num cinzento extre-
mamente descorado), que presentemente mal se nota, a proteger o braço
esquerdo e as pernas do Arcanjo. O resto é uma mancha esbranquiçada, de
difícil leitura, onde apenas sobressaem os traços principais do desenho de
base, inerentes à preparação da pintura, e que sobressaem no desenho da
armadura que protege o segmento inferior do tronco da figura, represen-
tados imediatamente abaixo do braço direito do Arcanjo. O mesmo se terá
passadocomapinturadoDragão,hoje tambémquasetotalmente esvaídae
portanto de observação muito difícil.
Independentementedasuaqualidadeartística,quenãoénadadespicienda,a
pinturadeEscarigotemomaiorinteressehistóricoparanós,poiselacaptade
uma forma eloquentíssima a “temperatura” artística (e ideológica, como vere-
mos) da Beira nos últimos anos do Séc. XV e nos primeiros anos do Séc. XVI.
Com efeito, em terra de fronteira e em momento de mudanças e inflexões his-
tóricasconhecidas,nelaconfluemasmaisdíspareseatéasmaisdissonantes
influências. Por um lado, o fresco de Escarigo é o produto de uma escola e de
modelos iconográficos e decorativos de cunho tradicionalista, replicando, de
uma forma naturalmente limitada e até inconsistente, as melhores tradições
da grande pintura portuguesa da segunda metade do século XV. Por essa via,
nelaconfluemmodeloscompositivoseiconográficosquevêmprovavelmente
da pintura flamenga, de há muito aclimatada entre nós, patentes nomeada-
mente na figuração dos Profetas. Do mesmo modo, a composição global de
cada um dos quadrados laterais com os medalhões centrais e as ramagens
que os contornam, e que preenchem todo o fundo das respectivas composi-
ções, não deixam de evocar a composição de muitas vinhetas das iluminuras
tardo-góticas e manuelinas, que aqui surgem como que ampliadas e monu-
mentalizadas. Porém, a cercadura clara que delimita os medalhões que con-
têm as figuras dos profetas tem ressonâncias intensas com os “tondi” renas-
centistas,istoé,oscírculosdecorativosqueservemdefundonomeadamente
a retratos reais ou idealizados, quase sempre de perfil, pintados ou realizados
em madeira, em pedra ou em faiança e tão típicos do Renascimento italia-
no. Do mesmo modo, a inesperada presença do puto decorativo no painel da
esquerda deixa entrever um ambiente de evidente vontade de actualização
estilística, bem a par, afinal, do tratamento das folhagens em grisalha, que re-
meteminevitavelmenteparaosgrotescosoubrutescosdecorativos,também
muito típicos do Renascimento Italiano.
Em suma, a pintura do frontal de Escarigo é um monumento ímpar da pintu-
ra fresquista das Beiras, no período que medeia entre os meados do século
XV e meados do século XVI. Como em tantas e tantas obras de arte, as qua-
lidades e virtualidades da pintura de Escarigo coabitam com fragilidades e
debilidades técnicas inerentes à conclusão a seco de uma obra começada a
fresco, que comprometeram a própria sobrevivência de partes importantes
da camada cromática do painel central, como vimos. Mas estas são limita-
ções meramente técnicas que, tal como não afectavam em nada o seu pa-
pel litúrgico e o seu poder devocional de outrora, também nos dias de hoje
não afectam em nada o reconhecimento da importância histórica e artística
desta pintura, a todos os títulos notável, na complexidade e originalidade do
modelo iconográfico e do próprio esquema figurativo, mas também na sua
ingenuidade, na sua graça primitiva, na sua tentativa de actualização, e so-
bretudo na sua intensa presença pictórica, fonte da expressividade extrema
que a caracteriza e que dela emana há mais de quatrocentos anos.
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro
Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro

Descobrimentos motivos
Descobrimentos motivosDescobrimentos motivos
Descobrimentos motivosMaria Gomes
 
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentation
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas PresentationArrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentation
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentationarqueomike
 
Algarve informativo #213
Algarve informativo #213Algarve informativo #213
Algarve informativo #213arqueomike
 
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...arqueomike
 
Projeto História Viva Serro
Projeto História Viva SerroProjeto História Viva Serro
Projeto História Viva SerroSabrina Soares
 
História das Pescas em Tavira
História das Pescas em TaviraHistória das Pescas em Tavira
História das Pescas em TaviraJosé Mesquita
 
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_na
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_naEira velha uma_estacao_viaria_romana_na
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_naanabela explicaexplica
 
Rota al-Mutamid - Sagres
Rota al-Mutamid - SagresRota al-Mutamid - Sagres
Rota al-Mutamid - Sagresarqueomike
 
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...Alexandra Alves
 
Parecer iphan após estudos do .gov.CE
Parecer iphan após estudos do .gov.CEParecer iphan após estudos do .gov.CE
Parecer iphan após estudos do .gov.CEPeixuxa Acquario
 
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...Artur Filipe dos Santos
 
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional Maira Teixeira
 
Conseq expansao
Conseq expansaoConseq expansao
Conseq expansaocattonia
 
Conseq expansao
Conseq expansaoConseq expansao
Conseq expansaocattonia
 
Coutos e terras de degredo no Algarve
Coutos e terras de degredo no AlgarveCoutos e terras de degredo no Algarve
Coutos e terras de degredo no AlgarveJosé Mesquita
 

Semelhante a Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro (20)

Descobrimentos motivos
Descobrimentos motivosDescobrimentos motivos
Descobrimentos motivos
 
Cidade velha
Cidade velhaCidade velha
Cidade velha
 
Caderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de Lobos
Caderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de LobosCaderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de Lobos
Caderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de Lobos
 
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentation
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas PresentationArrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentation
Arrábida no Bronze Final - leituras e narrativas Presentation
 
Algarve informativo #213
Algarve informativo #213Algarve informativo #213
Algarve informativo #213
 
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...
Arrábida: episódios da investigação regional, do século XVIII ao século XXI (...
 
Ciclo De ConferêNcias Ponte da Barca
Ciclo De ConferêNcias Ponte da BarcaCiclo De ConferêNcias Ponte da Barca
Ciclo De ConferêNcias Ponte da Barca
 
Projeto História Viva Serro
Projeto História Viva SerroProjeto História Viva Serro
Projeto História Viva Serro
 
História das Pescas em Tavira
História das Pescas em TaviraHistória das Pescas em Tavira
História das Pescas em Tavira
 
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_na
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_naEira velha uma_estacao_viaria_romana_na
Eira velha uma_estacao_viaria_romana_na
 
Rota al-Mutamid - Sagres
Rota al-Mutamid - SagresRota al-Mutamid - Sagres
Rota al-Mutamid - Sagres
 
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...
Castelo Da Feira - Mais Do Que Um Castelo, Uma Vida...
 
Parecer iphan após estudos do .gov.CE
Parecer iphan após estudos do .gov.CEParecer iphan após estudos do .gov.CE
Parecer iphan após estudos do .gov.CE
 
História do porto o porto de leixões
História do porto   o porto de leixõesHistória do porto   o porto de leixões
História do porto o porto de leixões
 
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...
Artur Filipe dos Santos - História do porto Porto de leixões - Universidade S...
 
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional
Relatório visita técnica Centro RJ e Museu Histórico Nacional
 
1838
18381838
1838
 
Conseq expansao
Conseq expansaoConseq expansao
Conseq expansao
 
Conseq expansao
Conseq expansaoConseq expansao
Conseq expansao
 
Coutos e terras de degredo no Algarve
Coutos e terras de degredo no AlgarveCoutos e terras de degredo no Algarve
Coutos e terras de degredo no Algarve
 

Mais de Gabinete de Iniciativas Transfronterizas de Castilla y León (6)

Receitas da Raia: Cozinha de fronteira II
Receitas da Raia: Cozinha de fronteira IIReceitas da Raia: Cozinha de fronteira II
Receitas da Raia: Cozinha de fronteira II
 
Recetario de la Raya: Cocina de frontera
Recetario de la Raya: Cocina de fronteraRecetario de la Raya: Cocina de frontera
Recetario de la Raya: Cocina de frontera
 
Recetario de la Raya: Castilla y León-Portugal
Recetario de la Raya: Castilla y León-PortugalRecetario de la Raya: Castilla y León-Portugal
Recetario de la Raya: Castilla y León-Portugal
 
Contrabandistas somos y en el descamino nos encontraremos
Contrabandistas somos y en el descamino nos encontraremosContrabandistas somos y en el descamino nos encontraremos
Contrabandistas somos y en el descamino nos encontraremos
 
Atlas de la Raya: Zamora - Trás-os-Montes
Atlas de la Raya: Zamora - Trás-os-MontesAtlas de la Raya: Zamora - Trás-os-Montes
Atlas de la Raya: Zamora - Trás-os-Montes
 
Atlas de la Raya: Salamanca-Beira Interior Norte-Alto Douro
Atlas de la Raya: Salamanca-Beira Interior Norte-Alto DouroAtlas de la Raya: Salamanca-Beira Interior Norte-Alto Douro
Atlas de la Raya: Salamanca-Beira Interior Norte-Alto Douro
 

Caderno do Património 2 (2022) Escarigo-Puerto Seguro

  • 2. 2 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 A história da colecção Cadernos do Património, a dos Encontros Transfron- teiriços e a da Associação RIBACVDANA são histórias entrelaçadas. Este Caderno do Património n.º 2 é assim o resultado do 2.º Encontro, or- ganizado pela RIBACVDANA em Setembro de 2021, em Escarigo, pequena aldeia raiana no Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, e, do outro lado da ribeira de Tourões e do rio Águeda, em Puerto Seguro. Almeja ser, antes de mais, a consolidação deste projecto editorial da RIBACVDANA, que terá periodicidade anual. Acreditamos que a colecção Cadernos do Património pode contribuir, mesmo se modestamente, para consolidar uma ideia de futuro para a raia, que contra- rie o contínuo processo de debandada e de desertificação. Queremos fazê-lo atravésdadiscussãoedapartilhadepontosdevistacomoshabitantesecom agentes da cultura local, sempre com a cumplicidade de estudiosos cativos de uma peregrinação na busca das raízes históricas e culturais das populações. É esseopapelqueosEncontrosTransfronteiriçosdevemdesempenhar. Cadernos do Património 2 – editorial António Sá Gué PELA DIRECÇÃO DA RIBACVDANA. raia
  • 3. 4 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 As raízes que procuramos materializam-se num subconsciente colectivo, na paisagem agreste que nos cativa, na arquitectura civil e religiosa, nas crenças e nas lendas e em todo o património imaterial, em marcas civiliza- cionais deixadas ao longo do tempo por outras formas de estar, saber e de ver o outro. Estão alojadas, essencialmente, na memória das pessoas. E, se o território raiano é uma região sem monumentos grandiosos, como acontece perto dos centros de poder, sabemos no entanto que podemos por lá descobrir património material e não-material de grande valor. Abre-se, portanto, um vasto campo de acção e de estudo, que nos permite acreditar que, no tempo em que as fronteiras se esbatem (se ainda se es- batem?), é essencial registar e estudar esta estreita faixa de terra, que de- signamos de raia, sempre tão esquecida e, julgamos, ainda mais ignorada. É um território marcado por memórias de muitas e cruentas batalhas, por- que era território cobiçado e disputado, como porta de entrada para con- quistas maiores. Foi, por isso, local de construção de postos de atalaia e de fortalezas militares, que materializaram primeiro a conquista e depois a de- fesa de cada reino dos reinos vizinhos. Foianossacrençanaimportânciadeconhecermosanossahistóriaquenos levou à “descoberta” do Castelo de Monforte, que foi, em grande medida, o marco genesíaco da nossa Associação, e que ainda justifica a vontade de continuar a estudá-lo e a dá-lo a conhecer, pois, realmente, muito pouco ainda se sabe sobre ele. E, pensamos que faz sentido que este Caderno do Património n.º 2 regresse ao tema Monforte e publique duas das comunicações apresentadas numa jornada de reflexão sobre a importância efetiva das ruínas do Castelo de Monforte 1 , que realizámos em 18 de Junho de 2022, com a parceria da Câ- maraMunicipaldeFigueiradeCasteloRodrigo.ProcuramosnessasJornadas Europeias de Arqueologia relembrar o potencial arqueológico, quer científico quer turístico, que este enigmático sítio possui, mas sobretudo relembrar a necessidade de se proceder à reabertura do processo de classificação. para assimexistirumenquadramentolegalparaasuaproteçãoevalorização,ede proceder ao levantamento topofráfico do local. O artigode TiagoRamos“OsSenhoresde Monforte noséculoXIIIComiam Os- tras?”,construídoapartirdeumadescobertasurpreendente–foramencontra- dos restos de bivalves marinhos (ostras?) nas escavações em Monforte, o que vemmaisumavezsublinharaimportânciadecontinuarainvestigação. O artigo “Monforte, um Meandro do Côa nos Mapas de Fronteira”, dos geó- grafos João Garcia e Luís Moreira, conta-nos a história do castelo e da re- gião de Riba Côa, usando como fio de rumo os mapas da região, desde o seculo XVI. Não chegaram até nós mapas mais antigos Mas a Raia, como defendemos, é muito mais do que um espaço geográfico, estrategicamente relevante para os dois estados que divide. E é mais do que património edificado. É um espaço social, económico, espiritual, que o artigo“OsSítiosdeSignificânciaCulturalemEscarigo”nosrevelacomtanta acuidade, ao tentar resgatar da noite dos tempos o imaginário colectivo e memorialístico de um povo. 1. Os artigos de Ignacio Benito e de João Garcia & Luís Moreira.
  • 4. 6 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 No ensaio de Carlos Caetano “Uma Pintura Quinhentista a Fresco no Fron- tal do Antigo Altar-mor da Igreja de Escarigo “, o historiador de arte mos- tra-nos a relevância da arquitectura da igreja de Escarigo e a importância artísticadofrescoconservado,descobertonasobrasderestauro,pordetrás do novo altar-mor. E o que era a raia antes de o ser? Quem ali viveu, que crenças tinha, quem eramessesnossosantepassados?Partedarespostaencontramo-latalvez no artigo “El Patrimonio Arqueológico del Valle del Águeda como Recurso Turístico” do arqueólogo Ignacio Benito. Captar o imaginário colectivo é um desígnio exigente, a que o ensaio foto- gráfico, “Fotografar a Raia”, e os dois textos que o acompanham, de Renato RoqueeJorgeVelhote,tentamoferecerumsegundoolhar,através dosentir estético das múltiplas visões da Raia de um grupo de fotógrafos que parti- cipou no Encontro. O Caderno de Património n.º 2 é assim, por um lado, um testemunho do En- contro Transfronteiriço que dinamizámos em 2021, em Escarigo e Puerto Seguro, e, por outro lado, pretende ser um contributo para uma reflexão so- bre o território de Riba Côa, que se estende à volta de Monforte. Em intervenções arqueológicas, realizadas em solos derivados de rochas graníticas, os materiais mais abundantemente recolhidos são sobretudo fragmentos de peças cerâmicas ou materiais pétreos. Materiais orgânicos, como madeira, sementes, ossos, espinhas ou molúsculos raramente se conservam, ou necessitam de condições excepcionais para chegarem em bom estado de preservação. Tal facto deve-se à composição dos solos gra- níticos, que possuem um alto nível de acidez, degradando rapidamente os materiais orgânicos. No entanto, nos raros casos em que se formam contextos arqueológicos pouco comuns, como por exemplo ter ocorrido um incêndio que crie um estrato com elevada presença de matéria orgânica carbonizada, ficam pre- servados interessantes vestígios da vida quotidiana do passado. Nomea- damente restos de alimentos consumidos nesse período. os Senhores de Monforte no século XIII Comiam Ostras? Tiago Ramos ARQUEÓLOGO A enigmática presença de bivalves marinhos no Castelo da Sr.ª de Monforte (Bizarril-Figueira de Castelo Rodrigo)
  • 5. 8 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Como constatámos, na intervenção arqueológica realizada no Castelo da Srª de Monforte em 2019, cujos dados foram publicados na dissertação de dou- toramento (Ramos, 2020), este fenómeno incomum ocorreu em Monforte. Um incêndio na torre de menagem possibilitou a formação de um contexto que, entre outros materiais orgânicos e não-orgânicos, continha a presença derestos,queidentificámos como pertencendo a várias espécies de bivalves marinhos, e entre eles alguns que pareciam poder ser conchas de ostras. A identificação segura das espécies em presença exigiria uma investigação mais aprofundada. Este achado, para além de raro e exótico para a região, é extremamente enigmático. Mais que respostas, levanta-nos um conjunto de interroga- ções: Quando se comeram? Quem os comia? Que espécies biológicas se reconhecem? Como eram confecionados? De onde vinham? Como eram transportados para garantir a sua preservação na longa viagem do mar até ao Côa? Haverá mais por descobrir? Encontramo-nos ainda num estado inicial da investigação para darmos respostas concretas. A hipótese que formulamos anteriormente (Ramos, 2020) e que podemos sintetizar é a seguinte: Em Monforte, entre a segun- da metade do século XII e os inícios do século XIII, vivia um conjunto de indivíduos pertencentes a uma elite guerreira, que possuíam estatuto e ca- pital financeiro suficientemente elevado para consumir bivalves marinhos, que chegariam até aqui através da importante via colimbriana, que ligava Coimbra a Salamanca. Estaremos assim perante um importante sítio, mes- mo se de cariz regional, que aparentemente se encontrava perfeitamente inserido numa rede comercial peninsular de larga escala. Mas todas as hipóteses que adiantámos têm de ser comprovadas ou, even- tualmente, contrariadas, dando lugar a novas propostas de explicação, por meio de estudo e de avaliação, recorrendo a métodos científicos. Só assim poderemos saber mais sobre aquela época e como viviam as gentes que habitavam no castelo e no pequeno povoado à sua volta. Não nos cansa- mos de repetir que estamos ainda num estado inicial da investigação sobre o Castelo de Monforte. É, pois, imperativo um estudo mais aprofundado so- bre o local. E, para realizar esse estudo, é urgente arrancar com duas tarefas relativa- mente simples, tão brevemente quanto possível: a)umalimpezadomatoqueatualmentecobreetornaquaseinvisívelosítio arqueológico. b) um levantamento topográfico das estruturas que se avistam nos dois cabeços e nas suas encostas, tarefa difícil de empreender sem o envolvi- mento efetivo do poder autárquico. Estes dois requisitos serão antes de mais fundamentais para reabrir o pro- cessodeclassificaçãodosítio.Eserãoimprescindíveisparaacontinuaçãoda investigação arqueológica, que possa criar condições concretas para a valori- zação e para fruição deste património emblemático, quer pelas comunidades locais, quer por visitantes nacionais e estrangeiros interessados na riqueza culturalehistóricadolugar.OCastelodeMonforteeasuaenvolventepoderá assim constituir uma mais-valia importante para a região, sobretudo se as- sociado a outros sítios históricos e culturais do Riba Côa. Resto de bivalve marinho (ostra?), encontrado nas escavações na Torre de Menagem do Castelo de Monforte em 2019 – Fotografia do Autor
  • 6. 10 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 MONFORTE, UM MEANDRO DO CôA NOS MAPAS DE FRONTEIRA João Carlos Garcia Luís Miguel Moreira GEÓGRAFOS FIGURA 1. Mapa hipsométrico da bacia do médio Coa. FIGURA 2. Mapa de declives da bacia do médio Coa. Agradecemos à Prof.ª Laura Machado Soares, do Departamento de Geografia da Faculdades de Letras da Universidade do Porto, a realização destes dois mapas que servem de enquadramento físico-natural da área de estudo. Os mapas deste artigo podem ser acedidos com maior resolução e a cores: https://photos.app.goo.glw/ d4enErvUu1v67bo39 Na parte sul da bacia do médio Douro, entre os rios Águeda/Tourões e Côa, afluentes do grande coletor ibérico, que correm sul-norte, em vales fortemen- te encaixados, desenvolveu-se um original caso de colonização luso-leonesa, entre o último quartel do século XII e o início do século XIV (Figuras 1 e 2). O processo da “Reconquista” cristã e da subsequente reorganização e repo- voamento do território, por parte do Reino de Leão, conheceu uma impor- tante etapa, durante os reinados de Fernando II (1157-1188) e de Afonso IX (1188-1230). Falamos, em particular, da avançada para Oeste, em direção a um novo corpo político que recentemente se emancipara e tentava estru- turar - Portugal -, também ele cristão, com o qual era importante negociar diplomática e militarmente, em especial, as fronteiras. Além da luta territorial entre os poderes régios, outros poderes e outras ins- tituições procuravam implantar-se e controlar o mesmo espaço, fossem as ordens militares, a nobreza, as cidades, procurando alargar os seus termos,
  • 7. 12 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 ou a Igreja, através da restauração das dioceses e da fixação das ordens re- ligiosas. Na parte norte da futura comarca de Riba Côa encontramos bons exemplos da atuação de todos estes tipos de intervenientes na reorganiza- ção do espaço, nos anos 70 do século XII. Apenas alguns breves exemplos. A Ordem militar de São Julião do Pereiro (futura Ordem de Alcântara), fundada em 1166, recebeu dez anos depois, os núcleos de Reigada e Granja do Pereiro, férteis e estratégicos locais, no aplanado interflúvio entre os rios Côa e Seco, a que se juntarão outros próximos ou em direção ao Douro, como Cinco Vilas, Vilar Torpim, Ferreira, Colmeal, Almendra e Fonte Seca, com o beneplácito do Papa Lúcio III, em 1183 (Cintra, 1984, p. LIII). Entre Cinco Vilas e Reigada terá sidoconstruídoo“MonasteriodePerario”,masafuturacomendadaOrdemde Alcântara apresentará por sede Vilar Torpim e estender-se-á a São Félix dos Galegos, confirmando uma ligação suportada por um importante eixo viário, em direção à Tierra de Ledesma e ao vale do Tormes. Para nordeste desta rede de povoamento, no interflúvio entre os rios Seco e Águeda, encontramos o mosteiro de Santa Maria de Aguiar, inicialmente da regra de São Bento e, posteriormente, da Ordem de Cister, sob a juris- dição da abadia leonesa de Moreruela. Contudo, tratava-se de uma funda- ção portuguesa, para a qual Afonso Henriques tinha definido couto, em 1174 (Azevedo, 1962, p. 261). Em princípio, situando-se a leste do Côa, caberia em exclusividade à soberania leonesa, tanto mais que se encontrava enquadra- do na diocese de Ciudad Rodrigo, existente desde 1161 (como herdeira da antiga diocese de Calábria) e renomeada e com termos definidos desde 1175 (Martín Benito, 2002), mas as pretensões portuguesas sobre esse espaço, que não eram novas, continuavam. O mesmo acontece no campo oposto: Ciudad Rodrigo e o seu bispo não deixarão de reivindicar privilégios e rendas sobre Riba Côa, mesmo depois do Tratado de Alcañices (1297) e do estabe- lecimento da fronteira Portugal - Castela. EstaorganizaçãoestabelecidanapartenortedafuturacomarcadeRibaCôa manter-se-á na década seguinte, até à morte de Fernando II, em 1188, e no início do reinado do seu sucessor. Na primeira metade dos anos de 1190, Afonso IX, não só confirmou a maioria das doações que o pai fizera neste território, como acrescentou algumas novas, como a Granja de Tourões, a SantaMariadeAguiar(Cintra,1984,p.LV).Mas,oreideLeãoestavaatentoà estratégiapovoadoradotioevizinho,oreiSanchoIdePortugal,querepartia forais nas faixas fronteiriças de Trás-os-Montes e da Beira. A ponta da lança apontada a Portugal será Castelo Rodrigo, protegido pela Serra da Marofa e dominando vastos espaços para Norte, até ao Douro, e para Sul até ao corredor natural leste - oeste, entre Guarda e Ciudad Rodrigo. É esse espaço retangular, limitado a Oeste pelo Côa e a Leste pelo Águeda/ Tourões, desanexado do termo de Ciudad Rodrigo, que o fuero concedido por Afonso IX a Castelo Rodrigo, vai gerir, desde 1209 1 . A esta peça no tabuleiro leonês corresponde Pinhel, do outro lado da fronteira. Sancho I, concede fo- ral a Pinhel exatamente na mesma data, 1209 (Ventura, 1989, p. 39). Entre os dois núcleos rivais que se enfrentam passa o Côa, e sobre o Côa, num sítio alcandorado, dominando as passagens do rio, constroem os leoneses o Castelo de Monforte, primeiro atalaia vigilante e estritamente militar, depois pequeno núcleo de povoamento que crescerá ao longo do século XIII. A prova da importância dada por Afonso IX à organização desde espaço é a suapresençaassíduaemCasteloRodrigo,em1209,1210,1215,1217…(Cintra, 1984, p. LIX e Vicente, 1998, p. 296). O que inclui novas doações no espaço envolvente (Bouça, Cortiçada) e, provavelmente, a construção e reforço da 1 . Ver a importante reconstituição cartográfica elaborada por Cintra (1984, p. CXXI), sobre o povoamento de Riba Coa, no século XIII.
  • 8. 14 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 fortificação de Monforte, tanto mais que entre 1210 e 1212 novos conflitos bélicos haviam ocorrido entre Leão e Portugal (Martín Benito, 2002, p. 147). Sóapartirdofinaldadécada,acolonizaçãoemRibaCôaavançaparasul,em direção ao Sabugal. A evolução da “Reconquista”, quer do lado leonês e castelhano, quer do lado português, e as convulsões internas nos estados cristãos ibéricos deixarão, aparentemente, solidificar a organização destes espaços, separados politica- mente pelo Côa. Mas, o ataque militar a Riba Côa, por parte de Portugal, que a crise dinástica castelhana possibilita, no final do século XIII, é a prova que as faixasfronteiriçascontinuavampoucocristalizadaseaserespaçosdeconflito. A campanha de D. Dinis em território leonês, que terminará com o Tratado de Alcañices, com base na narrativa de Rui de Pina, merece um comentário geográfico que pode explicar a incorporação de Ribacôa como um todo2 . O exército português avança no interior do reino inimigo, provavelmente utili- zandoascalçadasromanasquecruzavamaregião–aColimbriana(notroço Guarda - Ciudad Rodrigo) e a Dalmatia (no troço Ciudad Rodrigo - Ledesma) (Martín Benito, 2002, p. 119). O cronista concretiza que o monarca “entrou por has Comarquas de Ciudad Rodrigo, e de Ledesma” (Pina, 1729, p. 25) até Simancas, às portas de Valladolid, ameaçando a regência da rainha Maria de Molina (no quadro da menoridade de Fernando IV) e participando nas que- relas internas da sucessão do trono castelhano (Pizarro, 2005, p. 108-115). Uma boa razão para serem estes os espaços invadidos prende-se com a ligação entre o monarca português e o senhor de grande parte deles junto à fronteira, Sancho de Ledesma, neto de Afonso X, como também o era D. Di- nis. Refere Rui de Pina, que algum tempo antes: “[…] veo ha ElRey D. Diniz ha IfanteDonaMargarida,molherqueforadoIfanteD.Pedro[filhodeAfonsoX], e com ella D. Sancho de Ledesma seu filho, e por descontentamentos, que tinha del Rey D. Fernando pedio ha ElRey D. Diniz por mercee, que ho rece- besse por vassalo, do que ElRey aprouve.” (Pina, 1729, p. 24). Na sequência da evolução dos acontecimentos políticos em Castela e no rescaldo da cam- panha militar de 1296, a reação do monarca português não se fez esperar. Explica o cronista que: “[…] em se tornando pera seu Regno veyo loguo por riba de Côa, onde loguo por cerquos, e combates cobrou ha seu poder ho senhorio de todolos Lugares daquela Comarqua, que aguora sam de Portu- gal, porque eram de D. Sancho que se fizera seu vassalo […] e por eles se deu booa satisfaçam em Castella aho dito D. Sancho.” (Pina, 1729, p. 28). Uma vez mais, as diversas jurisdições sobre um mesmo território, justificam deci- sões políticas e militares, mas também económicas e sociais, em função de contextos históricos distintos (Ladero Quesada, 1989, p. 681). O Tratado de Alcañices (1297) é um momento chave na clarificação do pro- cesso mas, também o é para a sobrevivência e o futuro do castelo de Mon- forte de Riba Côa. É no texto do acordo estabelecido entre Dinis de Portugal e Fernando IV de Castela, que Monforte é pela primeira vez referido, entre as unidades espaciais que se permutam no extremo nordeste da Beira: “[…] yo rey don Denys de sus dicho, por [que nos] uos quitades de los castiellos e de lasvillasdeSabugalydeAlfayatesedeCastielRodrigoedeVillarMayorede Castiel Bono e de Almeyda e de Castiel Mellor e de Monforte [e de los otros] lugares de Riba de Côa com sus términos, que yo agora tengo a mi mano […]” (González Giménez, 1998, p. 23). É toda a faixa fronteiriça da margem direita do Côa que Leão/Castela perde, é toda a faixa fronteiriça para leste do Côa, que Portugal ganha: as fortificações militares, as vilas e os lugares, com os espaços sob o controlo de cada um deles. O desequilíbrio entre a rede de 2 . Sobre as várias interpretações historiográficas em torno do Tratado de Alcañices, ver Amaral & Garcia, 1989, p. 970-977.
  • 9. 16 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 povoamento na parte norte e na parte sul da faixa é ainda evidente. A sul, apenas são nomeados Sabugal, Alfaiates e Vilar Maior, mas no seu conjunto, o território tem já uma unidade: “Riba de Côa” é o que fica para além do Côa, na visão portuguesa, a partir dos seus centros de poder no litoral atlântico. Na“primitiva”organizaçãomilitar,aleonesa,asfortificaçõesmilitarestinham sido construídas sobre o Côa, contra Portugal; agora Portugal ocupava-as, mas ficava sem linha defensiva ao longo dos vales do Águeda e do Tourões, por onde se estabeleceu o novo limite político, com base no acordo de Al- cañices. Assim, nem todos os “castelos” recebidos terão a mesma atenção e manutenção por parte da Coroa portuguesa (Barroca, 1998). Rui de Pina, na Crónica de D. Dinis, é bastante explicito sobre as razões do abandono de Monforte. Ao inventariar a obra do monarca na defesa da Comarca da Beira e de Riba Côa afirma: “[…] fez de novo estes Castellos, há saber, Avoo, que agoraheedoBispodeCoimbra,hoSabugal,Alfayates,CastelRodriguo,Villar mayor, Castel boom, Almeyda, Castel melhor, Castel mendo, San Felizes dos Galegos, que tem agora Castella, e nom fez ho Castello de Monforte de riba de Côa, que tambeem lhe foy dado por estar em maa despoziçam da teerra, e sua força pera defençaõ do Regno, nom seer muito necessária, fez mais Pinhel, e seu Castello […]” 3 . A fortificação estava agora longe e “de costas” para o novo troçado da fronteira. Atendendo ao renovado quadro geo-estratégico do nordeste da Beira, so- bretudo pela alteração do limite político entre os Estados, nem o sítio nem a posição de Monforte justificavam o investimento em obras de engenharia e arquitetura militar. Como em outros casos ocorridos ao longo da faixa raiana, ao abandono da ocupação militar seguiu-se a decadência do pequeno nú- cleo populacional, que no entretanto se formara e sobre o qual, de qualquer modo, temos notícias documentais até ao reinado de Pedro I, nos meados do século XIV (Abreu, p. 2014, 114). Num documento de D. João I sobre o concelho de Pinhel, datado de 1386, refere-se “[…] hum logo que se chamão Monforte ho quall dizem que he de- sabitado há gramde tempo.” (Francisco & Gil, 2016, p. 415). Assim se encon- traria. A presença do topónimo entre a recorrente lista de lugares de Riba Côa num documento da chancelaria de D. Manuel I (Abreu, 2014, p. 114) não atesta a sobrevivência do núcleo populacional, já que as fontes descritivas, estatísticas e cartográficas do século XVI (e dos séculos seguintes), são em tudo omissas à existência da povoação. Referimo-nos às descrições quinhentistas de Portugal e aos róis de topónimos do chamado Códice de Hamburgo, de 1525, e do Numeramento de 1527-1532, estudados por Su- zanne Daveau e Júlia Galego. Tentando localizar o castelo de Monforte pro- curámos a comarca de Riba Côa nas imagens cartográficas do País. Sobre essa busca faremos um comentário mais detalhado 4 . A primeira representação gráfica (vistas e plantas) deste território, ainda que de forma limitada, foi apresentada por Duarte Darmas, no Livro das Forta- lezas. Em 1509, D. Manuel I enviou um agente “debuxador” percorrer a raia, registando através do desenho, os castelos que vigiavam e demarcavam a faixa fronteiriça entre a foz do rio Guadiana, a sul, e a foz do rio Minho, a nor- te. O levantamento não permitia obter uma “imagem” exata da configuração dos limites do reino, embora esta estivesse implícita no simbolismo de cada um dos castelos, enquanto marcos da autoridade central sobre o espaço de contacto com o Estado vizinho. A fronteira medieval era ainda mal definida, difusa e permeável. Percorrendo Riba Côa de sul para norte, o autor deixou registos de Sabugal, Vilar Maior, Castelo Mendo, Castelo Bom, Almeida e 3 . Pina, 1729, p. 94. Sobre as condições militares das praças fortes havia notado o autor: “[…] hos quaaes Lugares nom eram então taõ afortelezados como ElRey depois hos fez” (ibid., p. 28). 4 . Com base no levantamento efetuado por Moreira, 2012.
  • 10. 18 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Castelo Rodrigo, enquanto principais centros organizadores do território. Sóem1561,comaediçãodoprimeiromapadePortugal,gravadoemVeneza, na tipografia de Michele Tramezzino (1526-1571), e difundido em Roma, se representou com algum detalhe, cartograficamente, o conjunto da fronteira portuguesa (Figura 3). Neste primeiro mapa de Portugal, orientado com o Oeste no topo 5 , destaca- -se ao longo da base, uma linha ponteada que enfatiza a mensagem política veiculada através da figuração geográfica dos fenómenos representados. A imagem, da autoria de Fernando Álvares Seco (fl. 1559-1561), composta a partir de um protótipo cujo paradeiro permanece desconhecido, conver- teu-se em “mapa oficial” do país, divulgando-o internacionalmente a partir dos prelos de Gerard de Jode (ca. 1511-1591), em 1565 e, sobretudo, dos de Abraham Ortelius, (1527-1598), ao integrar o seu famoso atlas Theatrum Orbis Terrarum, em 1570 (Dias, 2009 e Garcia, 2010). No mapa está identificado “Riba de Côa” num tipo e tamanho de letra dis- tintos do utlizado para os núcleos de povoamento, muito embora sem apre- sentar uma clara delimitação territorial. A linha divisória interna que corre paralela ao Côa, para Oeste, deverá corresponder à divisão diocesana, entre Braga, Lamego e Guarda. Considerando unicamente as localidades com- preendidas entre aquele rio e o Águeda, identificam-se 17 topónimos figu- rados pelo mesmo símbolo: Sabugal, Alfaites, Aldea da Ponte, Vilar maior, Nave dabeira, Malhdda Surda, Castelmedo, Castel lobon, Val delamula, S. Pedro, Almeida, Vilar Torpim, Almofada, Escarigo, Touroes, Castel rodrigo e Almedra. Não há qualquer alusão a Monforte. A rede hidrográfica, formada pelos rios Arnes, Côa, Palhais, Touroes e Daguiar, fornece o fundo natural de referência. Sobre estes existem 4 pontes, que per- mitem a sua travessia e articulam os principais eixos viários da região: uma sobreorioCôaemSabugal;outranumafluentedoCôanãoidentificado(talvez o rio Cesarão), nas proximidades de Vilar Maior; uma nova ponte sobre o rio Côa(apontevelha),nasproximidadesdeVilardeTorpime,porfim,umaponte sobre a ribeira de Aguiar, provavelmente a ponte romana de Escalhão. O mapa de Álvares Seco e suas variantes, foram substituídos por uma nova imagem de Portugal, elaborada pelo cartógrafo português ao serviço de Es- panha, Pedro Teixeira Albernaz (ca. 1595-1662), intitulada Descripción del Reyno de Portugal y de los Reynos de Castilla, editado em Madrid, em 1662, em pleno contexto da Guerra da Restauração (1640-1668) (Figura 4). Figura 3 – [Mapa de Portugal], Fernando Álvares Seco. Roma, 1561. 5 . A visão do país era estabelecida a partir do centro da Península Ibérica ou de outros países europeus. A ‘obrigatoriedade’ do norte no topo da imagem data apenas da segunda metade do século XIX. Ver Fig. 7.
  • 11. 20 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 O mapa, também orientado para Oeste, assinala o território de “Riba de Côa”, muito embora sem qualquer delimitação, nele se assinalando 23 topóni- mos: Osabugal, Rebolosa, Guinola, Alfaiates, Aldea da Ponte, Lanava, Navas da Beira, Côa, Vilamaior, Castelmendo, Vila Fermo, Valde lamula, Castelo- bom, S. Pedro, Almeida, Malpartida, Escarigo, Almofala, Vilar Torpim, Mata de lobos, Escalhao, Castel Ro. e Almendro. Todos os topónimos referem-se a núcleos de povoamento, figurados por um símbolo constituído por um pequeno conjunto de edifícios, destacando-se Almeida, que já apresenta uma muralha moderna, reveladora do seu destacado papel militar enquanto “chave do Reino”. Monforte não é referido. Os únicos 3 rios identificados são o Côa, o Tourões e o Águeda, mas sobre eles não foram assinaladas quaisquer pontes e o relevo está representado porpequenosmontesdesenhadosemperspetiva,queseadensamnaparte Suldacomarca,correspondentesàsserrasdaMalcataedasMesas,quenão são identificadas. Este maior conhecimento do território, pelo menos dos núcleos de povoa- mento, deve ter resultado da incorporação de informação diretamente re- colhida no terreno pelos militares que participaram nas campanhas bélicas que aqui foram ocorrendo desde 1641, ainda que a fronteira da Beira não te- nha constituído o principal teatro das operações militares da Guerra da Res- tauração 6 . Esta imagem de Portugal permanecerá por mais de um século, como uma das mais válidas 7 . A partir da segunda metade do século XVIII a cartografia impressa europeia conheceu uma renovação, à medida que os editores londrinos aumentavam e diversificavam a sua produção, na tentativa de superar o domínio dos edi- tores parisienses. Simultaneamente, sob a direção de Tomás López, surgiu uma casa editora em Madrid, cuja produção de mapas não só permitiu abas- teceromercadoibérico,comocontribuiuparaanimarocompetitivomercado europeu. Nesta sequência, foram difundidos dois novos mapas do conjunto de Portugal, cujo impacto se estendeu até ao início da segunda metade do século XIX, aquando do advento da moderna cartografia científica. O primeiro mapa foi editado em 1762, intitula-se Mappa ou Carta Geogra- phica dos Reinos de Portugal e Algarve, e foi produzido pelo geógrafo real britânico, Thomas Jefferys (ca.1710-1771). A obra foi preparada numa edição bilingue, em português e inglês, e impressa em várias folhas que, no seu conjunto, apresentam uma dimensão aproximada de 165 x 88 cm (Figura 5). Figura 4 - Descripcion del Reyno de Portugal…, Pedro Teixeira Albernaz. Madrid, 1662 6 . O próprio autor terá estado no terreno, ao longo da “raia” portuguesa. Cf. Pereda & Marías, 2002, p. 17. 7 . Sobre este mapa, comentou o Engenheiro-mor do Reino décadas mais tarde: “[…] entre as cartas gerais, que há no Reino, a que passa por melhor e mais exacta, é a de Pedro Teixeira que se estampou em Madrid no ano de 1662, a qual (excepto as costas marítimas que se encontram menos mal arrimadas) é tão defeituosa que para o intento presente é o mesmo que se não houvera” (Fortes, 1722, p.[10]).
  • 12. 22 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Foi editada durante a Guerra dos Sete Anos (1755-1762), o que no contexto ibérico,correspondeuàGuerraFantástica(1762),momentoemqueaFrança e a Espanha declararam guerra a Portugal, tendo concretizado uma invasão que se iniciou por Trás-os-Montes, passando para as províncias da Beira e do Alentejo, sem nunca ter conseguido ameaçar a capital. Assim, o território ribacudano conheceu, novamente, ações militares diretas. Os 32 topónimos registados por Jefferys, no território de Ribacôa, resultam, por um lado, da maior escala do mapa (ca. 1:450 000), o que permite repre- sentar uma maior quantidade de informação e, por outro lado, do maior nú- mero de fontes consultadas. Os núcleos populacionais identificados são os seguintes: Sobugal, Rebolosa, Forcalhos, Alfayates, Fenaya, Naoes da Beira, Lagiosa, Villar Mayor, Lanava, Freyneda, Castel Bom, V. Fermo, Rio Seco, S. Pedro, Naves, Val de la Mula, Vienca, Almeida, Coelha, Mendo, Cinque Villas, Malpartida, Vilar Torpiu, Reygada, Escarigo, Almofalo, Mata de Lobos, Castel Rodrigo, Escalão, Algedres, Almendra e Castel Melhor. Destes, três foram fi- gurados com um símbolo que corresponde a local fortificado, a saber: Alfaia- tes, Almeida e Castelo Rodrigo. Não existe referência a Monforte. Apenasencontramostrêsitinerários:anorte,umcaminhovindodeEspanha, por Freixeneda, ligando as povoações de Escalhão, Castelo Melhor e Vila Nova de Foz Côa; um outro, partindo de Castelo Rodrigo em direção a São João da Pesqueira, bifurca em Almendra, ligando-se ao primeiro; o terceiro, também faz ligação a Espanha, a partir de San Felices de los Gallegos, até Almeida e Pinhel. Oterritórioéatravessadoporvárioscursosdeágua,masapenasseregistou o nome de três: o rio Côa, a ribeira de Aguiar e o rio Águeda, devidamente separados por cordilheiras montanhosas que definem as respetivas bacias hidrográficas. O autor acrescentou o desenho de uma espada, junto de Castelo Rodrigo, reportando-se à batalha que ali ocorreu – Mata de Lobos – em julho de 1664, a chamada batalha da Salgadela, durante a Guerra da Restauração. A evocação do facto, associada a uma das vitórias militares decisivas para assegurar a independência de Portugal e a afirmação da nova dinastia de Bragança, contribuía para exaltar, um século depois, os sentimentos de identidade nacional, frente ao tradicional inimigo espanhol. O segundo mapa, intitulado Mapa General del Reyno de Portugal, é da au- toria do geógrafo espanhol Tomás López de Vargas Machuca (1730-1802) e foi editado em Madrid, em 1778 (Figura 6). Figura 5 - Mappa ou Carta Geographica dos Reinos de Portugal e Algarve, Thomas Jefferys. Londres, 1762
  • 13. 24 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Trata-se de um documento de grandes dimensões e, à semelhança do an- terior, também foi impresso em várias folhas. Para a sua composição, López teve acesso a um conjunto de fontes, cartográficas e bibliográficas, tanto portuguesas como espanholas. Entre estas, destaca-se um pequeno ál- bum das províncias de Portugal, que o autor publicou no quadro da referida Guerra Fantástica, em 1762, bem como um conjunto de mapas provinciais de Espanha, que incluíam dados obtidos através de inquéritos enviados a informadores locais. Como resultado final, identifica-se um maior número de topónimos (44) em Ribacôa: Rebolosa, Sabugal, Fenaya, Pueñas, Forcalhos, Alfayates, Aldea del Obispo, Liciosa ó Lagiosa, Naoes da Beira, Nave, Sacaparte, Villar mayor, La Nava, Aldea Ponte, Ponte de Sequeiros, Talaquela, Batoquina, Freyneda, Nava de Avel, Posobello, Castellobom, Villafermosa, Rio Seco, S. Pedro, Val- delamula, Laduncia, Almeida, Vienca, Valdecoelha, Castellomendo, Aldea de Ribas, Cincovillas, Bervenosa, Malpartida, Escarigo, Almofalo, Reygada, Mata de Lobos, Villartorpim, Castel Rodrigo, Peñadapia, Algodres, Almendra e Castello Melhor. Entre estes, apenas Sabugal, Alfaiates, Almeida e Castelo Rodrigo foram representados com um símbolo de “Praça de Guerra”, embo- ra se indique a existência de fortes em Vilar Maior e Castelo Bom. Monforte não consta no inventário. Também foram desenhados um maior número de itinerários: a Norte, man- têm-se as ligações Fregeneda - Castelo Melhor - Vila Nova de Foz Côa e Castelo Rodrigo – Almendra - Vila Nova de Foz Côa; foi indicada uma ligação direta entre Castelo Rodrigo e Pinhel, mas é Almeida o nó viário de Ribacôa. Para aqui convergem dois eixos provenientes da fronteira, um desde Vale de Mula e outro nas suas proximidades, bifurcando em direção a Pinhel e à Guarda. A Sul, indicam-se três itinerários que ligam Vilar Maior, Alfaiates e Sabugal à Guarda. Identificam-se o rio Côa, a ribeira de Aguiar e o rio Turon e apesar da pre- sença de vários pequenos montes que representam a orografia, apenas foi identificada a serra de “Meras” (Mesas), no limite Sul de Ribacôa. O mapa de Portugal figura os limites da divisão administrativa/judicial, identificando-se as seis Províncias, separadas por uma linha tracejada fina e dentro destas, a divisão dos Corregimentos e Ouvidorias, delimitados por Figura 6 - Mapa General del Reyno de Portugal, Tomás López. Madrid,1778
  • 14. 26 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 uma linha ponteada. Como complemento, o cartógrafo indicou as localida- des sedes de ouvidorias, provedorias, coutos ou concelhos, com o símbo- lo correspondente, o que constitui uma novidade nos mapas de Portugal, mesmo com escala semelhante. Assim, quase todo o território ribacudano enquadra-se no “Corregimiento de Pinhel” (Comarca de Pinhel) e, interna- mente, distinguem-se as categorias administrativas e honoríficas de várias localidades, registando-se que Castelo Rodrigo era um Marquesado, en- quanto que Almeida, Vilar Maior e Sabugal eram condados. Os mapas de Jefferys e de Tomás López fixaram a imagem de Portugal por mais um século, pelo que, no decorrer das invasões francesas (1807-1812), os vários exércitos presentes no país utilizaram-nos (e às suas variantes) para planearem as principais ações militares em território nacional. A tí- tulo de exemplo, podemos referir a 2ª edição do mapa de Jefferys, datada de 1790, sob responsabilidade técnica e comercial de William Faden (1749- 1836).Oeditoresclarecequeasmaisimportantesalteraçõeseatualizações, sobretudo na Estremadura e no Alentejo, decorreram das informações colhi- das no terreno pelo Tenente-General Charles Rainsford (1728-1809), oficial dos Coldstream Guards, ao serviço do rei de Portugal na Guerra Fantástica. Embora mantendo o título da 1ª edição, foram feitas algumas alterações pontuais à toponímia e à rede viária de Ribacôa. Assim, foram acrescen- tados e/ou modificados os seguintes topónimos: Nave de Avel, Posobello (em substituição de “Freyneda”), Valfermoso (substituindo “V. Fermo”), Las Naves, Laduncia, Castel Mendo (em vez de “Mendo”), Bervenosa, Villartor- pim (repete) e Penada Pia. Também a rede viária foi atualizada, seguindo de perto o mapa de López: um itinerário liga diretamente Alfaiates à Guarda; a estrada vinda de Ciudad Rodrigo, via Vale de Mula, subdivide-se a partir de Almeida em três, em direção a Pinhel, a Celorico e à Guarda; figura-se um itinerário de Pinhel a Castelo Rodrigo, mantendo-se os restantes iguais ao da primeira edição. Nos últimos anos de Setecentos e na iminência de uma nova invasão, o Go- verno português procurou desenvolver os necessários preparativos para a defesa do Reino, que incluíram, como já era hábito, a contratação dos servi- ços de vários militares estrangeiros. Assim, coube a Christian August, Prínci- pe de Waldeck e Pyrmont, a tarefa de realizar o reconhecimento da fronteira, entre o rio Douro e a foz do Guadiana, inspecionando os regimentos que aí se aquartelavam. Acompanhava o Marechal alemão, como seu Ajudante de Campo, Bernhard Wilhelm Wiederhold, Barão de Wiederhold (1757-1810), que registou as observações que iam sendo feitas no terreno, comparan- do-as com os mapas de Portugal de que dispunham, sendo um destes o de Jefferys, na edição de Faden. O Brigadeiro Wiederhold, também ele um experimentado cartógrafo, proce- deu a inúmeras alterações, tendo adicionado e corrigido vários topónimos e estradas que os mapas ignoravam, tarefa apenas possível graças a um apurado trabalho de campo. Só na área de Castelo Rodrigo foram introdu- zidos, de forma manuscrita, os seguintes topónimos: Val d’Afonsinho, Villar d’Amargo, Figueira de Castelo Rodrigo, Freixeda, Penha d’Águia, Torrão, Ser- ra da Marofa, Colmeal, Luzellos, Bizarril, Nave Redonda e Vermiosa (em vez de Bervenosa). Ao longo do rio Côa, estão assinalados os locais de travessia, nomeadamente o “vau da Barroca”, a Sul da Marofa, e o “vau de Vide”, o que permite associar este maior conhecimento da micro-toponímia aos itine- rários percorridos pelo autor, tornando o mapa corrigido num documento precioso (Guedes, 1992).
  • 15. 28 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 O outro exemplo é a Carta militar das principais estradas de Portugal, edita- da em 1808. O seu autor, Lourenço Homem da Cunha de Eça (1767-1833), era oficial do Real Corpo de Engenheiros e lente na Real Academia de For- tificação, Artilharia e Desenho, em Lisboa. A história deste mapa relacio- na-se com os principais eventos militares que marcaram o País durante a primeira década do século XIX: depois de uma primeira versão manuscrita, presumivelmenteelaboradanocontextodaGuerradasLaranjas(1801),uma segunda versão, impressa e bilingue (português e francês), foi editada em 1808, durante a ocupação francesa, seguindo-se uma 2ª ed. impressa, em português (Moreira, 2012, p.363-372). Fazendo justiça ao título, o autor destacou a rede viária do mapa de Portugal de Tomás López (1778), mostrando as principais vias terrestres, indicando as distâncias em léguas e o tempo de percurso, em horas de marcha a pé, entreasdiferenteslocalidades.Destemodo,afiguraçãodaredehidrográfica e do relevo foi muito simplificada, mostrando-se até, incompleta. Em Ribacôa, e ainda que o rio Côa não esteja figurado de forma completa, foram indicadas apenas as localidades de Sabugal, Rapoula de Côa, Nave, Alfaiates, Vilar Maior, Castello bom, Val de lamula, Almeida, Villartorpim, Cas- tello Rodrigo, Almendra e Castello Melhor. E existem algumas localidades assinaladas que não foram identificadas. Um exemplar deste mapa esteve na posse do então Major George Julius Hart- mann (1774-1856), do Regimento de Artilharia da King’s German Legion, ao serviço do Exército Britânico a operar na Península Ibérica, sob o comando de Lord Wellington. Hartmann era comandante de Artilharia, tendo desempe- nhadoessafunçãodurantetodaaGuerraPeninsularerecebeuaincumbência de percorrer partes da fronteira portuguesa, fazendo levantamentos do terre- no e das condições de defesa (Moreira, 2012, p. 371-372). Reunindo estes da- dos, Hartmann tratou de atualizar e reformular o mapa de Lourenço Homem, nomeadamente, acrescentando topónimos, corrigindo outros, relocalizando povoações,refazendoitineráriosterrestreseclassificando-os,ecompletando informações sobre as montanhas e os rios (Figura 7). No território de Ribacôa, estas alterações são mais visíveis entre Sabugal e Almeida, a área onde ocorreu maior atividade militar neste período e aquela que o oficial de artilharia melhor conhecia, tal como deixou registado no seu Sketch of the country between the Côa & Sierra de Gata. O contributo dado por estes oficiais estrangeiros permitiu obter informa- ções mais precisas sobre a geografia dos espaços raianos periféricos, habi- tualmente mal representados nos mapas gerais do País. Em 1829, fazendo uso desta possibilidade, o Arquivo Militar, em Lisboa, elaborou a Carta Topo- FIGURA 7 — Carta Militar das Principaes Estradas de Portugal, Lourenço Homem da Cunha de Eça. Lisboa, post. 1808 (Library of Congress, pertencente a Georg Julius Hartmann).
  • 16. 30 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 gráfica da Beira Alta e Baixa, à época, a melhor imagem regional deste ter- ritório, registando quase 50 topónimos na área entre Sabugal e Castelo Ro- drigo: Fojos, V. de Espinho, Quadrasaes, Torre, Azendo, Sabugal, Rendo, Vila Boa, Souto, Alfaiates, Alde. Velha, Alde. do Bispo, Lagioza, Forcalhos, Alde. da Ponte, Rebolosa, Ruivos, Rapoula, Escabralhado, Bismula, V. das Egoas, Carvalhal, V. Maior, Arifana, Malhada, Nave de Aver, Q. Poço Velho, Freine- da, V. Formosa, Castº. Bom, Rio Seco, Asnaves, Junça, Almeida, V. de la mula, V. de Coelha, Malpartida, Cinco Villas, Reygada, Vilar Torpim, Bizarril, Nave Redonda, Vermiosa, Escarigo, Almofala, Aguiar, Castelo Rodrigo e Colmeal. Como em todos os casos anteriormente analisados, o topónimo Monforte não está presente. Como esta cartografia militar era manuscrita e, por essa razão, pouco divul- gada e conhecida, os mapas impressos e com circulação comercial não con- seguiam incorporar a informação atualizada. Continuavam-se a consumir imagens antigas e de produção estrangeira. Em meados do século XIX, após o fim da Guerra Peninsular, da Revolução Liberal e da Guerra Civil, quando a situação em Portugal encontrou alguma estabilidade, os governos regeneradores consideraram que, finalmente, es- tavam reunidas as condições para investir no desenvolvimento socioeco- nómico do País. Para tal, era necessário implementar uma política de obras públicas, assente na construção de novas infraestruturas de comunicação (estradas, caminhos de ferro, pontes, portos), capaz de impulsionar o desen- volvimento das principais atividades económicas e de reforçar o mercado interno. No entanto, as autoridades rapidamente compreenderam que os mapas existentes não eram compatíveis com as suas necessidades, por- quanto fixavam uma imagem distorcida e incompleta do território. Assim, entre 1860 e 1865, foi preparado o primeiro mapa científico do país, a Carta Geographica de Portugal, cujos trabalho foram dirigidos por Filipe Folque (1800-1874), no quadro da Direção Geral dos Trabalhos Geodésicos, a nova au- toridade cartográfica nacional. O mapa, composto na escala 1:500 000, forne- ceu a base para inúmera cartografia temática, mas serviu também de su- porte a tomadas de decisão por parte da administração pública. O território de Ribacôa foi, finalmente, fixado em moldes modernos e cien- tíficos, refletindo a nova hierarquia administrativa decorrente das reformas territoriais impostas pelos sucessivos governos liberais, com exceção de algumas localidades raianas, cuja jurisdição não estava ainda definida, dado que o processo de levantamento e posterior demarcação da linha de fron- teira só seriam estabelecidos e reconhecidos em 1864, com a assinatura do “Tratado de Limites” e, em 1906, com a aprovação da Acta geral de delimita- ção entre Portugal e Espanha. No que respeita, concretamente, ao sítio de Monforte, ele só foi figurado com exatidão num mapa impresso, em 1890. Falamos da folha 12, da Carta Corográfica de Portugal, na escala de 1/100.000, publicada em Lisboa, pela Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos do Reino, onde se localiza e iden- tifica a ermida de Nossa Senhora de Monforte. Aí encontramos o relevo, a rede hidrográfica, o povoamento (e a toponímia) e a rede viária, entre outros fenómenos, mas não qualquer referência ao Castelo de Monforte. A densi- dade das curvas de nível e os numerosos pontos cotados permitem uma boa visualização, por um lado, do encaixe do Côa e dos seus afluentes e, por outro, das áreas aplanadas dos interflúvios, onde se reparte o povoamento concentrado e se desenvolve a rede de estradas e caminhos.
  • 17. 32 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Esta primeira edição da Carta Corográfica de Portugal tem a particular vir- tude de figurar a rede viária anterior à construção das estradas asfaltadas e à “revolução” dos transportes no território nacional. Muitas das ligações terrestres entre núcleos populacionais presentes das folhas do mapa teste- munham heranças de séculos. Assim, para montante e para jusante do meandro encaixado de Monforte, não são muitas as passagens do Côa, face à sinuosidade longitudinal do leito e ao forte declive das vertentes. Para montante, a chamada Ponte Velha (que não está identificada) ligando Pinhel a Vilar Torpim; mais longe, depois de um dos troços mais repulsivos e isolados do vale, só a ponte de Almeida, na estrada en- tre esta vila e a Guarda; para jusante, a vizinha Ponte da Chinchela, junto à con- fluência da Ribeira do Avelal. Será esse ponto de passagem do leito do Côa, a herança de um caminho de transumância de gado entre Vilar Torpim, Bizarril e Pinhel (ou mais longe, em direção a Trancoso), que a configuração arruada de Bizarril testemunha e a Canada da Moreira, entre esta aldeia e o Lagar do Ba- rão, parece registar ? Mas, o sítio alcandorado do antigo castelo de Monforte é apenas um dos ermos pontos cotados (478 m) sobre o encaixado vale do Côa, numaáreaquearedeviáriaevita,pelasdificuldadesqueatopografiaimpõe. A primeira localização do Castelo de Monforte num mapa impresso ocorreu, seguramente,nasediçõesdafolha171,daCartaMilitardePortugal,naescala de 1/25.000, ainda que com uma alteração no topónimo, entre as primeiras edições (1941/1970) - Castelo de Monte Forte -, e a 4ª ed., de 1994 - Castelo de Monforte -, e ligeiros acertos no ponto cotado de maior altitude: 476 m / 480 m. Um pormenor a reter é não ter sido incluído o símbolo da existência de ruínas… No espaço envolvente, são mínimas as alterações ocorridas no quarto de século que separa as duas últimas edições. Percorrendo a fronteira luso-espanhola da foz do Minho à foz do Guadia- na, são muitos os locais onde, ao longo dos séculos, ocorreram conflitos di- plomáticos, militares, económicos e sociais, que deixaram mais ou menos memória, documental, material ou imaterial, que chegou até nós. A longa duração do processo, que no espaço se materializou, de uma faixa mais ou menos ampla até à linha matematicamente estabelecida e que hoje, de for- ma periódica, se verifica e confirma, faz com que existam nos atuais territó- rios, relíquias esquecidas das etapas dessa evolução, que exumadas pela Arqueologia, pela História, pela Geografia ou pela Etnologia, permitem com- preendermos melhor a atual organização do espaço. O Castelo de Monforte de Riba Côa é um bom caso, para um estudo que apenas começou (Abreu & Hernández, 2014 e 2019; Francisco & Gil, 2016; Ramos, 2021). Este trabalho enquadra-se no projeto de investigação científica “GEOCONFRONT – Conflictos fronterizos en España y América Latina (1840-2020): aproximaciones geohistóricas y actuales”, coordenado por Jacobo García Álvares, da Universidad Carlos III de Madrid. O projeto é financiado pela Agência Estatal de Pesquisa, de Espanha (Projeto PID2020- 114088GB-I00 / AEI /10.13039/501100011033). João Carlos Garcia Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Luís Miguel Moreira Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa.
  • 18. 34 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 BIBLIOGRAFIA Fontes cartográficas ALBERNAZ, Pedro Teixeira, ca.1595-1662 Descripcion del reyno de Portugal y de los reynos de Castilla, que parten con su frontera / delineada por D. Pedro Teixeira / dedicada a la Magestad del rey Nro. Sr, D. Phelipe 4° por D. Joseph Lendinez de Guevara. - Escala [ca. 1:660 000], 15 Leguas = [14,30 cm]. - Matriti : Marcus Orozcus, 1662. - 1 mapa : p&b ; 77 x 109 cm Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra / Coleção Nabais Conde: NC-652 EÇA, Lourenço Homem da Cunha de 1767?-1833 Carta militar das principaes estradas de Portugal / por L. H. ; grav. Romão Eloy Almeida. - Escala [ca. 1:470 000]. - Lisboa : [s.n.], 1808. - 1 mapa em 4 folhas : grav., p&b ; 74 x 138 cm. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: C.C. 1226 R. EÇA, Lourenço Homem da Cunha de 1767?-1833 Carta militar das principaes estradas de Portugal / por L. H. ; grav. Romão Eloy Almeida. - Escala [ca. 1:470 000]. - Lisboa : [s.n.], 1808. - 1 mapa em 4 folhas : grav., p&b ; 74 x 138 cm. Washington, Library of Congress: G6562.G35 1812 .H3 JEFFERYS, Thomas, ca 1710-1771 Mappa ou carta geographica dos reinos de Portugale e Algarve / por T. Jefferys, Geographo de Sua Mages- tade Britannica ; Miguel Rodrigues impressor do Excelentissimo Senhor Cardial Patriarca. - Second Edition. - Escala [ca 1:450 000], 10 Legoas commuas de Portugal e d'Espanha 19 à hum Grao = [13,05 cm] . - Londres : W. Faden, 1790. - 1 mapa : grav., p&b ; 165 x 89 cm. Lisboa, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar: 4067 / I-2A-29-41 LOPEZ DE VARGAS MACHUCA, Tomás, 1731-1802 Mapa general del reyno de Portugal: comprehende sus provincias, corregimientos, oidorias, proveedurias, concejos, cotos &c. / por Tomás Lopez, Geografo de los Dominios de S.M. de sus Reales Academias de la Historia, de S, Fernando, de la de Buenas letras de Sevilla, y de la Sociedad Bascongada de los Amigos del Pais ; Dedicado Al Ilustrisimo Señor Don Pedro Rodriguez Campomanes, Cavallero de la distinguida Ordem de Carlos III, del Consejo y Camara de S.M., Director de la Real Academia de la Historia &cc.. - Escala [ca 1:470 000],12LeguascomunesdePortugal,delasqueentran18.enunGrado=[15,90cm].-Madrid:[s.n.],1778.-1 mapa em 8 folhas : grav., p&b ; 142 x 81 cm. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal: C.C. 952 R. PORTUGAL. Arquivo Militar, 1802-1868 Carta topografica da Beira Alta e Baixa : comprehendida entre os rios Tejo e Mondego, as fronteiras orientaes do reino de Espanha e a linha que passa por Thomar e Coimbra / redigida no Real Archivo Militar em 1829, avista dos mappas litograficos levantados pelos officiaes do Es- tado Maior do Ex.º Britanico, corregidos, e addicionados com o auxilio das cartas levantadas pelos officiaes do Real Corpo de Eng.os de Portugal, e outros documentos existentes no mesmo Real Archivo. – Escala [ca. 1:200 000], 9 milhas = [7,4 cm]. – [post.1831]. – 1 mapa : ms., color. ; 70 x 82 cm Lisboa, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar: 1844 / 2-19-28 SECO, Fernando Álvares, fl. ca 1559-1561 [Portugal]/VernandiAlvariSecco;SebastianusaRegibusClodiensisinaerei[n]cidebat;MichaelisTramezini formis, cum Summi Pontificis ac Veneti Senatus privilegio. - Escala [ca 1:1 340 000]. - Roma : Michaelis Tra- mezini, 1561. - 1 mapa : grav., p&b ; 35 x 52 cm Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra / Coleção Nabais Conde: NC-899 (Gaveta 1) Estudos ABREU, Carlos d’; HERNÁNDEZ, Román (2014). O Castelo de Monforte de RibaCôa: primeiras impressões arqueológicas de uma fortificação medieval leonesa. Sabucale. Revista do Museu do Sabugal. Sabugal, 6, p. 101-118. ABREU, Carlos d’; HERNÁNDEZ, Román (2019). A fortificação medieval leonesa de Monforte de RibaCôa (no- vos elementos arqueológicos e artísticos). Douro – Vinha, História & Património. Porto, 8, p. 33-70. AMARAL, Luís Carlos; GARCIA, João Carlos (1998). O Tratado de Alcañices (1297): uma construção historio- gráfica. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – História. Porto, II, XV, 2, p. 967-986. AZEVEDO, Rui Pinto de (1962). Riba Côa sob o domínio de Portugal no reinado de D. Afonso Henriques. O Mosteiro de Santa Maria de Aguiar, de fundação portuguesa e não leonesa. Anais da Academia Portuguesa da História. Lisboa, II, 12, p. 231-298. BARROCA, Mário Jorge (1998). D. Dinis e a Arquitectura Militar Portuguesa. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 801-822. CINTRA, Luís F. Lindley (1984). A linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo: seu confronto com a dos foros de Alfaiates, Castelo Bom, Castelo Melhor, Cória, Cáceres e Usagre: contribuição para o estudo do leonês e do galego-português do século XIII. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (1ª ed. 1959). DAVEAU, Suzanne (2010). Um antigo mapa corográfico de Portugal (c. 1525). Reconstituição a partir do Códi- ce de Hamburgo. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. DIAS, Maria Helena (2009). A primeira carta de Portugal continental. http://cvc.instituto-camoes.pt/ cien- cia/e79.html. FORTES, Manuel de Azevedo (1722). Tratado do Modo o Mais Fácil e o Mais Exacto de Fazer as Cartas Geo- graficas, assim da terra, como do mar, e tirar as plantas das praças, cidades e edificios com instrumentos, e sem instrumentos, para servir de instrucçãm à fabrica das Cartas Geograficas da Historia Ecclesiastica, e
  • 19. 36 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Secular de Portugal. Lisboa, Officina de Pascôal da Silva. FRANCISCO, José Paulo; GIL, Tiago (2016). O projecto de investigação do Castelo de Monforte de Riba Côa como âncora de um amplo programa de Arqueologia comunitária do Côa. In VILAÇA, Raquel (coord.). II Con- gresso Internacional de Arqueologia da Região de Castelo Branco. Castelo Branco, RVJ Editores / Sociedade dos Amigos do Museu Francisco Tavares Proença Júnior, p. 413-426. GALEGO, Júlia; DAVEAU, Suzanne (1986). O Numeramento de 1527-1532: tratamento cartográfico. Lisboa, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. GARCIA, João Carlos (2010). A Lusitânia parra o Cardeal Guido Sforza: um Mapa de Portugal de 1561 na Biblio- teca Nacional. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – História. Porto, III, 11, p. 363-368. GONZÁLEZ JIMÉNEZ, Manuel (1998). Las relaciones entre Portugal y Castilla durante el siglo XIII. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 1-24. GUEDES, Lívio da Costa (1992). A viagem de Christian, Principe de Waldeck, ao Alentejo e ao Algarve descrita pelo Barão von Wiederhold 1798. Separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, vol. 60. Lisboa, ed. Autor. LADERO QUESADA, Miguel-Angel (1998). Reconquista y definiciones de frontera. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 655-691. MARTÍN BENITO, José Ignacio (2002). Fontera y Territorio en el sur del Reyno de León (1157-1212). In El Rey- no de León el la época de las Cortes de Benavente. Jornadas de Estudios Históricos. Benavente, Centro de Estudios Benaventanos ‘Ledo del Pozo’, p. 115-163. MOREIRA, Luís Miguel (2012). Cartografia, geografia e Poder: o processo de construção da imagem cartográ- fica de Portugal, na segunda metade do século XVIII. Braga: Universidade do Minho (Tese de Doutoramento em Geografia). PEREDA,Felipe;MARÍAS,Fernando,Eds.(2002).ElAtlasdelReyPlaneta.La"DescripcióndeEspañaydelas costas y puertos de sus reinos”. Barcelona, Ediciones Nerea. PINA, Rui de (1729). Chronica do muito alto e muito esclarecido Principe Dom Diniz sexto Rey de Portugal. Lisboa Occidental, Na Officina Ferreyriana. PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor (2005). D. Dinis. Rio de Mouro, Círculo de Leitores. RAMOS, Tiago (2021). A primeira intervenção arqueológica no Castelo de Monforte de Riba Côa (2019). Ca- dernos do Património. Figueira de Castelo Rodrigo, 2, p. 7-12. VENTURA, Leontina (1998). A fronteira luso-castelhana na Idade Média. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 25-52. VICENTE, António M. Balcão (1998). A ‘Extremadura’ leonesa – o caso da fronteira de Riba-Côa nos séculos XII-XIII. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto, II, XV, 1, p. 287-300. Emobrasrelativamenterecentesdescobriu-sesoboaltar-mordaigrejadeEs- carigo o altar-mor primitivo, de alvenaria, cujo frontal, pintado a fresco, repre- sentaoArcanjoS.Miguelladeadodeduasfigurasostentandotípicosturbantes, característicosdaiconografiatradicionaldefigurasdoAntigoTestamento. Deve dizer-se que esta sensacional pintura descoberta há poucos anos é no- tável por todos os motivos, a começar pela sua própria sobrevivência e pela sua presença material, enquanto testemunho vivo de uma prática decorativa, figurativa e até litúrgica, típica da Idade Média e do início dos Tempos Moder- nos, tempo histórico em que os interiores das igrejas, e nomeadamente os seus espaços mais centrais, eram parcial ou integralmente pintados, como mostraremos. Em segundo lugar, pela sua importância e pelas suas qualida- des pictóricas, testemunho de uma oficina ou mesmo de uma escola regional Uma Pintura Quinhentista a Fresco no Frontal do Antigo Altar-mor da Igreja de Escarigo (Figueira de Castelo Rodrigo) Carlos Caetano HISTORIADOR DE ARTE
  • 20. 38 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 que urge identificar e conhecer. Em terceiro lugar, pela sua iconografia, muito importante, pois o conjunto se destaca das figurações mais convencionais do Arcanjo S. Miguel. Mas a pintura de Escarigo é também um pretexto para referenciar a belíssima e relativamente bem conservada igreja, erguida sob a invocaçãodeS.Miguel,deorigemprovavelmenteleonesa(eportantoanterior ao Tratado de Alcanizes, de 1297), que a acolheu, e onde se conserva há cerca de quinhentos anos. Diga-se que Escarigo, outrora no termo do antigo conce- lho de Castelo Rodrigo (hoje Figueira de Castelo Rodrigo) foi no passado uma localidade relativamente opulenta. 1 FIGURA 1 – Igreja Matriz de Escarigo. Fachada lateral Sul: note-se o alpendre e o corpo da capela-mor 1 . João Maria Tello de Magalhães Collaço, Cadastro da População do Reino (1527) – Actas das Comarcas Damtre Tejo e Odiana e da Beira, Ed. de Autor; Lisboa, 1929-1931, p. 109. 2 . As Freguesias do Distrito da Guarda nas Memórias Paroquiais de 1758: Memória, História e Património, José Viriato Capela e Henrique Matos (Org., transcrição e notas), Ed. José Viriato Capela, Braga, 2013, p. 271. Assim, em 1527, “o lugar d escarygo” dispunha de 229 “moradores”, só abai- xo, em número de moradores, dos “lugares” da Vermiosa” (236 moradores) e de Escalhão (249), mas muito acima do “lugar e villa da reygada”, então cabeça de uma Comenda da Ordem de Cristo, como veremos, onde “vivem somente cem moradores” 1 . Mais de 250 anos depois, em 1758, tinha 115 “fogos”, com a população distribuída do seguinte modo: 271 “pessoas maio- res de confissão e comunhão” e 43 “menores”, como informa o respectivo vigário em resposta ao inquérito ordenado pelo futuro Marquês de Pombal a todos os párocos do Reino, na sequência do Terramoto de 1755, e que co- nhecemos por Memórias ou Registos Paroquiais 2 . A forte presença da pintura a fresco nas igrejas das Beiras nos primeiros anos de Quinhentos A pintura do frontal do antigo altar-mor da igreja matriz de Escarigo suscita muitas considerações, sendo a primeira o reconhecimento da sua importân- cia extraordinária enquanto testemunho material de uma pintura realizada a fresco no lugar mais central da capela-mor da igreja matriz local, datável das primeiras décadas do século XVI, como veremos. A pintura representa o Arcanjo S. Miguel ladeado por dois profetas e comprova materialmente a existênciadepinturasmurais,decunhoreligiosooumeramentedecorativas nãosónestamasnageneralidadedasigrejasportuguesasdaIdadeMédiae em particular nas do princípio da Idade Moderna, nomeadamente nesta re- gião,pinturasestasdecujaexistênciasabíamospeladocumentaçãoescrita. Ora, no decurso de prospecções e sobretudo no decurso de obras recentes
  • 21. 40 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 em igrejas de origem medieval, têm surgido à luz do dia inúmeras pinturas, quase sempre de fins do século XV e da primeira metade do século XVI, pa- tentes em grandes e em pequenas igrejas e ermidas de todo o país 3 – e esta revelação de uma abundante pintura mural portuguesa, normalmente de grande escala, espalhada por todo o território, tem sido uma das surpresas maiores da mais recente historiografia portuguesa de arte 4 . Estas recentes descobertas da nossa velha pintura mural não nos devem surpreender, pois todos os testemunhos escritos confirmam que as igrejas medievais e sobretudo as tardo-medievais eram geralmente rebocadas e caiadas, pelo menos interiormente, sendo muitas vezes este preparo, ainda que muito básico em ecossistemas graníticos ou xistosos, o suporte de pin- turas murais a fresco. A decoração das paredes das igrejas sobretudo a pa- rede fundeira e as paredes laterais da capela-mor, bem como as superfícies queladeiamoarcotriunfal(doladodanave)–compinturasafrescoerauma prática comum nas igrejas da época, em todas as regiões do Reino. Assim, face ao “patamar de excepcionalidade raras vezes conseguido em Portugal” atingido pela “pintura em tábua”, devido aos grandes mestres da Época Ma- nuelina, Pedro Dias considera que “a pintura a fresco foi ainda mais impres- sionante, pela sua difusão por todo o espaço nacional” 5 . Nesta pintura mural, descoberta em igrejas e capelas ao longo de todo o país, privilegiavam-se cenas da História Sagrada (do Antigo e sobretudo do Novo Testamento), cenas da Vida da Virgem e cenas da Vida e sobretudo da Paixão de Cristo, bem como a figuração das figuras maiores ou mais popu- lares da hagiografia cristã, virgens e mártires, patriarcas ou fundadores das sucessivas Ordens Religiosas, etc. 3 . A título de exemplo Joaquim Caetano faz notar que a Igreja de Nossa Senhora da Azinheira, de Outeiro Seco (Chaves) “esteve completamente revestida de frescos no seu interior”, Joaquim Inácio Caetano, O Marão e as oficinas de pintura mural nos seculos XV e XVI, Aparição, Lisboa, 2001, p. 38. 4 . Um marco importante na descoberta da velha pintura mural portuguesa deve-se a Luís Urbano Afonso, a partir do seu estudo dos frescos da igreja do Convento de S. Francisco de Leiria: ver Luís Urbano Afonso, Convento de São Francisco de Leiria – Estudo Monográfico, Livros Horizonte, Lisboa, 2003. 5 . Pedro Dias, “A Arte Manuelina” in AAVV., Manuelino – À Descoberta da Arte do Tempo de D. Manuel I, Civilização Portugal, Lisboa, 2002, p. 31. 6 . Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT] – Mesa da Consciência e Ordens / Comendas – Ordem de Cristo / Convento de Tomar [COM - OC/CT], Maço 66, doc. n. 2 / Visitações [1505], f. 120 v. 7 . Ibidem, f. 113. Nota: todos os sublinhados nas transcrições incluídas do presente estudo são do autor. 8 . Ver “Visitação efectuada por D. Fr. João Pereira e Frei Diogo do Rego, sendo escrivão Fr. Francisco – 1507-1510”, in ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/CT, Livro 132. A Visitação, iniciada na Reigada, prosseguiria nomeadamente pelas igrejas das comendas da área raiana em torno do Côa e do Douro. Não são conhecidos documentos escritos sobre a pintura do frontal do antigo altar de Escarigo, que certamente estava relacionada com pinturas a fresco aplicadas noutras superfícies da capela-mor e do corpo da igreja, umas hoje perdidas (como as das paredes laterais da capela mor, por exem- plo, destruídas para sempre quando lamentavelmente foi removido o res- pectivo reboco de suporte), outras ainda ocultas, nomeadamente atrás do retábulo monumental do altar-mor, como veremos. À falta de testemunho escrito relativamente às pinturas quinhentistas da igreja de Escarigo, ater- -nos-emos à documentação relativa às igrejas da região que pertenciam a Comendas da Ordem de Cristo, regularmente inspeccionadas no âmbito das visitações às diversas vilas e lugares tutelados pela Ordem. Pelos rela- tos dos respectivos visitadores ficamos a saber que, ao contrário do que se possa pensar hoje, as igrejas eram normalmente rebocadas e caiadas, parti- cularmente no seu interior e eram ainda efectivamente decoradas com pin- turas: era o caso da igreja de S. Miguel de Acha (Idanha a Nova), visitada em 1505, que detinha pintura mural 6 embora de iconografia não especificada, ou ainda o caso da igreja de Alcains (Castelo Branco), também visitada em 1505, em que a parede do altar-mor detinha “pintura de cortinas de colores”, isto é, figurava cortinas de tecido mais ou menos rico 7 . Também a matriz (hoje desaparecida) da vizinha freguesia de Reigada, que também era cabe- ça de uma Comenda da Ordem de Cristo – de que fora Comendador o pró- prio Infante D. Henrique! – era profusamente pintada. Chegou-nos o valioso relatório relativo à visitação desta igreja, que se iniciou a 14 de Outubro de 1507 8 . Assim, relativamente à “oussia” (capela-mor) da igreja da Reigada, “cuja jnuocaçom he de nossa Senhora do pereiro” 9 , ficamos a saber que “as paredes della pella mayor parte som de camtaria he o mais d aluenaria. ca-
  • 22. 42 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 felladas [rebocadas] he pinçelladas [caiadas] de dentro”. Do mesmo modo, também“Ocorpodadictaegrejatemasparedesdepedraebarrocafelladas e pinçelladas da parte de dentro”. Tal como a igreja de Escarigo daquela época, também a igreja da Reigada tinha um altar maciço de alvenaria, isto é, detinha o “seu altar de pedra sobre moçiço. he esta quase no meyo da dicta oussia. e tem tres tauoleiros [de- graus] de pedraria”. O acesso à capela-mor fazia-se pelo arco triunfal: “tem a dicta oussia huum arco de pedraria chãas [?] e grande e sobre elle ha jma- gem do cruçifixo pintada na parede a fresco”. Ficamos também a saber que no corpo da igreja, “aos lados do arco da oussia estam dous altares ambos de pedra”, sendo “Huum da jnuocaçõm do Spirito Sancto com sua estorea pin- tada a Fresco na parede., o outro altar he da jnvocaçõm de Sancta marjnha e nelle huuma jmagem de paao velha de vulto”. Entreasigrejascom pintura muraldosprimeirosanosde Quinhentos, em que se inclui a de Escarigo, merece referência a Igreja de S. Bento da Meda, visita- da a partir do dia 28 de Outubro de 1507, que “tem [n]a oussia as paredes d aluenaria de pedra he barro cafelladas de dentro he bem pintadas a Fresco”. O altar-mor era “de pedra”, isto é, de alvenaria, tal como o de Escarigo, e aos visitadores não escapou a profusão de pintura mural na igreja da Meda: “E na parede do altar estam pintadas a Fresco as Jmagens de nossa Senhora e de sam beento O que todo ora mandou pintar o Dito garçia de mello comendador 9 . ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/CT, Livro 132, ff. 1, 1v. O relatório da visitação encerra-se com a lista seguinte: “Estas som as cousas que o dicto visitador mandou que se façam na dicta egreja., e cousas da comenda”: O Comendador “[…] mandaraa cafelar he pinçelar as paredes da dicta egreja da parte de Fora. he Fazer as Juntas aa cantaria da dicta oussia”. — 10 . ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/CT, Livro 132, f 11 e seg.s. 11 . “Visitaçom da comenda da moxagata” in ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/ CT, Livro 132, ff 14 e seg.s. Aos lados do arco da oussia estam dous altares com Jmagens ou- trosi pintadas a Fresco. e sobre o Dicto arco as Jmagens do cruçifixo he de nossa Senhora he de sam joam e asi toda a parede pintada a Fresco. E asy as paredes de huum cabo e do outro som pintadas com muitas Jmagens atee as portas trauessas” 10 . A caminho do Douro, a igreja de Santa Maria Madalena, cabeça da Comenda da Muxagata (Vila Nova de Foz Côa), visitada a partir de 2 de Novembro de 1507, era também profusamente pintada 11 , como se vê da descrição da igre- ja, que parcialmente se transcreve: “a oussia da dicta egreja tem as paredes de pedra he barro Forrada d oliuel [forro nivelado] sobre as asnas., a qual oussia he oliuel [o Co- mendador] Garçia de mello mandou pintar de bõoas pinturas. o ter- reo della estaa lageado de lousas na Dicta oussia estaa huum altar de pedra sobre parede he no Dicto altar huuma Jmagem De vulto da magdalena pintada de nouo. e na parede do dito altar pintadas a Fresco Jmagens de bõoas pinturas tem a Dicta oussia huum boom arco de pedraria e sobre elle pinta- das a Fresco as Jmagens do cruçifixo e nossa Senhora e sam joam e tambem outra Jmagem do crucifixo de vulto. aos lados Do dicto arco he fora da dicta oussia. estam Dous altares com suas Jmagens pin- tadasnasparedes,afresco.easigrandeparteDasparedesDaegreja som pintadas de huum cabo e do outro com mujtas estorias Da pai- xom De bõoas pinturas”.
  • 23. 44 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Na raia transmontana as visitações registavam também igrejas da Ordem decoradas com pinturas de temas religiosos. Assim, o “corpo” da igreja de S. Martinho do Peso, da Comenda de Mogadouro, visitada a 20 de Novembro de 1507, tinha “as paredes de pedra e barro cafelladas de Dentro e aos lados do arco tem Dous altares igualmente ornamentados e nelles jmagens de vulto he outras pintadas nas paredes E sobre o arco as Jmagens do cruçifixo e de nossa Senhora e sam Joam pintadas a fresco”. Como vemos, o tema do Calvário (Cristo Crucificado, ladeado de Nossa Se- nhora e de S. João Evangelista) era muito presente. Porém, num assomo de cosmopolitismo internacionalista, os visitadores determinam que a parede fundeira da capela mor desta igreja se decore com pintura de “obra romana”, isto é, com motivos decorativos de tipo classicizante, pelo que o Comendador “fara pintar a parede do Dito altar [da oussia] de bõoas pinturas e tintas De obra romana ou de Imagens qual mais lhe prouuer e poer hi huum çeeo [céu = sobre-céu; guarda-pó] de cortina de linho com seus alparauazees 12 Franjados” 13 . Como vemos, enquanto recurso decorativo, figurativo e devocional, a pre- sençadapintura,afresco,daigrejadeEscarigonadadetinhadeexcepcional, de raro ou de singular. Ela é um manifesto de um gosto e de uma necessi- dade efectiva de figuração, patente nas paredes da generalidade das igrejas, pois a realização de pinturas a fresco, fosse qual fosse o tema, tornava-se mais barata que a decoração, efémera ou permanente, da igreja com colga- duras, panejamentos ou com painéis pintados a têmpera (ou a óleo) sobre 12 . “Alparavazes” ou “alparavazéis”: franjas, sanefas: ver Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Bertrand Editora, 25.ª Edição, Lisboa, 1996, Vol. I, p. 140 13 . ANTT – Mesa da Consciência e Ordens – OC/CT, Livro 132, f. 32. 14 . Ver Joaquim Caetano, Motivos Decorativos de Estampilha…, p. 120. 15 . Note-se, porém, que a moda das pinturas a fresco de retábulos fingidos dará lugar à sua substituição progressiva por retábulos de madeira, devidamente entalhados e ao uso intensivo de painéis de pintura a têmpera ou a óleo sobre madeira integrados nos retábulos. madeira, muito mais cara. A pintura mural, a fresco, representava ou simu- lava, de uma forma rápida, ligeira, muito vistosa – mas também muito mais barata 14 – tudo o que o imaginário, a devoção, a liturgia ou a simples vonta- de de ostentação dos paroquianos pudesse exigir 15 . Neste sentido, se afir- maram gerações e gerações de oficinas e mestres de pintura a fresco, todos eles de alcance regional, que hoje se começam a individualizar e mesmo a identificar. Do mesmo modo começam a identificar-se os sucessivos ciclos operativos e estéticos, compreendidos num aro cronológico que contempla o século XV e meados do século XVI. Estes sucessivos ciclos são marcados por localismos e regionalismos com as suas insuficiências de escola e as suas limitações, próprias de mestres que, nas periferias, procuram emular a grande pintura retabular sobre madeira, mas com modestas possibilidades técnicas, por onde perpassam intensas marcas vernaculares. Como vemos, pinturas a fresco de tema religioso eram muito comuns nas nossas velhas igrejas, comprovadamente decoradas com pinturas, com temas religiosos ou apenas com motivos decorativos, de que era exemplo a presença das cortinas pintadas no fundo do altar de Alcains, atrás referi- das. Estas cortinas pintadas eram como que a “petrificação”, para sempre, de cortinas reais, de panos mais ou menos ricos, como esses alparavazes de franjas, usados para destacar, dignificar ou proteger as imagens de vulto. Com efeito, era intensa e estava muito arreigada a tradição das igrejas ar- madas, isto é, decoradas com cortinas e panos de armar – tradição que se perpetuou pelos séculos e que chegou aos inícios do século XX. Esta tradição das igrejas decoradas e paramentadas a preceito, mesmo que efemeramente, a cargo de profissionais, era própria de uma civilização que, também no domínio estético, tinha horror ao vazio e era incompatível com
  • 24. 46 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 o Minimalismo corrente nos nossos dias: tal como os espaços palacianos e cortesãos, as igrejas eram profusamente decoradas com colchas, panos de armar, bandeiras, pendões e troféus de toda a natureza. Esta sobrecarga de elementos decorativos, simbólicos, litúrgicos ou votivos produzia nos inte- riores religiosos ou palacianos um efeito visual feérico, brilhante, sumamen- te colorido e mesmo garrido até à saturação. Enfim, a pintura, a fresco, sobre paredes rebocadas e caiadas, devidamen- te preparadas para o efeito, deixa entrever uma realidade esquecida pelos “teóricos” e os agentes da actual moda da “pedra à vista”: a da presença in- tensa dos rebocos e a das caiações e consequentemente o uso comum da cal, mesmo em regiões onde esta era difícil de obter. Com efeito, a cal, base dos bons rebocos e sobretudo das caiações, usadas secularmente na nos- sa arquitectura religiosa e solarenga, era comprovadamente consumida em toda a Beira e, como tal, as entradas das cargas de cal em cada concelho eramdevidamentetaxadas,talcomoconstadosforaismanuelinosdetodos os velhos concelhos das Beiras! FIGURA 2 – Fresco quinhentista do frontal do altar-mor; vista geral As fotografias do fresco quinhentista de Escarigo podem ser vistas com mais resolução e a cores em: https://photos.app.goo. gl/3VgbsFwgzDcqbuqy6 2 A pintura quinhentista do frontal antigo do altar-mor da igreja de Escarigo Da decoração de um altar à sua ocultação na Época Barroca Apinturadoantigofrontaldoaltar-mordeEscarigo,devidaaartistaregional ou local, está mal conservada. Com efeito, a pintura sofreu mutilações importantes, como se nota nos des- gastesdobordosuperioresofreuaindagravesperdasdecamadacromática na figura central, a pontos de estas perdas obstruírem ou dificultarem seria- mente a própria identificação dessa mesma figura, S. Miguel Arcanjo, muito facilmente confundida com Cristo Ressuscitado. A pintura ocupa a totalidade do frontal do altar antigo da igreja, muito vasto. Nele se apoiava o competente retábulo, talvez total ou parcialmente pintado na parede do fundo da capela mor, pois, como vimos, era essa uma práti-
  • 25. 48 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 FIGURA 3 – Imagem quinhentista de S. Miguel, padroeiro de Escarigo, no altar-mor da Igreja Matriz. FIGURA 4 – Retábulo-mor da Igreja de Escarigo. ca corrente na Idade Média, chegando às primeiras décadas do século XVI, época a que deve remontar a pintura do frontal de Escarigo. A esse retábulo primitivo, parcialmente conservado, embora presentemente não observável, pois está atrás do retábulo barroco, deve ter pertencido a imagem do ora- go da igreja, o Arcanjo S. Miguel, uma belíssima escultura a que os repintes sucessivos não retiram nada do seu esplendor, próprio da melhor escultura portuguesa dos princípios do Séc. XVI. O retábulo primitivo, que se apoiava no altar de alvenaria, foi há muito ocultado pelo imponente retábulo barroco, modelado no chamado “es- tilo nacional”, muito bem conservado e que é uma das glórias da maqui- naria retabular das Beiras. O retábulo barroco, muito projectado para a frente da capela-mor de modo a enquadrar e acolher a estrutura do típico e imponente trono escalonado, muito profundo, suscitou a construção de um novo altar-mor, numa lo- calização muito avançada em relação ao altar primitivo de alvenaria. Esta circunstância permitiu que, apesar de mutilado, o altar antigo de alvenaria sobrevivesse, embora abaixo e muito atrás do altar actual, motivo pelo qual a pintura sobreviveu também. Visando a implantação do retábulo barroco e a montagem do acesso inte- rior ao camarim do trono, o altar primitivo foi então cerceado, removendo-se uma faixa horizontal de cerca de palmo ou palmo e meio do topo do seu cor- po de alvenaria. Destes desbastes no topo da mesa do primitivo altar fica- ram marcas muito intensas na face superior da composição do frontal. Com efeito, a base inferior da composição chegou-nos intacta, notando-se per- feitamente as barras inferiores dos três “panos” figurativos que o integram e a barra branca, que delimitava inferiormente todo o frontal. O mesmo se não
  • 26. 50 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 passa no topo superior do frontal, cujo bordo, hoje muito irregular, está mui- to ferido, subentendendo-se que o sebasto superior do frontal, igualmente pintadoafresco,tenhasidotododestruídovisandoamontagemdoretábulo monumental barroco, como se pode ver na Fig. 2. A ter em conta as faixas laterais que igualmente o integravam (e que sobre- viveram), este sebasto perdido, devia ter a altura de um palmo ou de um pal- mo e meio e figurava certamente um pano rico, de brocado ou talvez de da- masco, tendo em conta a monocromia relativa do tecido representado nas faixas laterais. À semelhança destas, o fingido sebasto perdido do topo do frontaleracertamentedelimitadopelafiguraçãodeumaricaemuitovistosa franja em fio de seda tricolor, com pequenos segmentos sucessivamente brancos, vermelhos e verdes), igual a tantas franjas que se captam nos pa- nejamentos mais ricos figurados na pintura portuguesa antiga. A raríssima iconografia de um frontal de altar raiano das primeiras décadas do Séc. XVI O programa figurativo do frontal, delimitado pelo sebasto superior, desapa- recido, e pelos sebastos laterais, que sobrevivem, consiste numa compo- sição tripartida mas organizada simetricamente, representando no painel central, de formato rectangular, disposto ao alto, o popular orago da igreja, o Arcanjo S. Miguel, de pé, triunfante sobre o Dragão. Note-se desde já que o culto de S. Miguel foi muito intenso entre nós durante toda a Idade Média, pois ele era o padroeiro da generalidade das igrejas das cidadelas dos ve- lhos castelos medievais, tanto portugueses, como peninsulares e europeus, mas era também o orago de inúmeras igrejas paroquiais, nomeadamente em zonas de fronteira. A área central do frontal de Escarigo está rodeada por dois panos laterais iguais,deformasensivelmentequadrada,decomposiçãomuitomaiscomple- xa. No centro destes dois grandes quadrados laterais inscrevem-se duas mol- duras quase circulares que enquadram duas figuras toucadas e vestidas com trajescaracterísticos,decunhoorientalizante.Asmoldurasarredondadassão definidas por uma barra densa de folhagens, muito clara, a evocar idênticas molduras típicas do Renascimento Italiano. Estas molduras são sublinhadas por dois ramos de folhagens que se desenvolvem a partir de uma espécie de nóinferiorcomumaosdoisramos.Osdesenhosdestasfolhagens,muitoden- sas, são assimétricos pois, por entre as folhagens, emergem ornatos típicos: um puto e uma ave simbólica (pomba, águia, pelicano?). Estas ramagens em cinzento intenso dispostas mais ou menos simetricamente, mas de orienta- ção divergente, contornam, por cima e por baixo, a barra clara que delimita os medalhões e sobrepõem-se ao fundo da composição, em vermelho escuro.
  • 27. 52 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 FIGURA 5. S. Miguel combatendo e derrotando o Dragão; painel central FIGURA 6. Profeta Jonas (?); painel lateral direito (lado da Epístola) Os dois medalhões mais ou menos ovais delimitados pelas cercaduras já re- feridas ostentam dois bustos masculinos “terçados”, isto é, representados a três quartos, um de cada lado, voltados para o centro do altar e consequen- temente para S. Miguel Arcanjo. A figura da esquerda (lado do Evangelho) é imberbe, mas a figura da direita (lado da Epístola) aparece barbada, sendo aparentemente muito mais idosa. Ambas ostentam, porém, típicos touca- dos vermelhos em forma de cone, tendo o da direita, na sua base, uma es- péciedebarraclara,eventualfiguraçãodeumabasedearminho.Apesardas diferenças, estes toucados são muito característicos e de identificação ób- via: as duas figuras que os ostentam pertencem ao corpus iconográfico do Antigo Testamento. Ambas as figuras têm os braços semi-erguidos e com as mãos seguram filactérias voltadas para o centro do frontal, enrolando-se nas cercaduras dos medalhões laterais. Estas filactérias têm um significado óbvio: simbolizam as narrativas proféticas, permitindo identificar as duas fi- guras laterais como Profetas. A imagem central do tríptico, de S. Miguel, corresponde ao típico modelo ico- nográfico que conhecemos como Duelo ou Combate de S. Miguel contra o Dragão inspirado num famoso episódio do Apocalipse (XII, 7-12): “Então houve no Céo uma grande batalha; Miguel, e os seus Anjos pelejavam contra o Dragão, e o Dragão com os seus Anjos pelejava contra elle. Porém, estes não prevaleceram, nem o seu lugar se achou mais no Céo. E foi precipitado aquelle grande Dragão, aquella antiga serpente, que se chama o Diabo, e Satanás, que seduz a todo o Mundo: sim foi pre- cipitado na terra, e precipitados com elle os seus Anjos.
  • 28. 54 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 E eu ouvi uma grande voz no Céo, que dizia; Agora foi estabelecida a salvação, e a fortaleza, e o Reino do nosso Deus, e o poder do seu Christo: porque foi precipitado o accusador de nossos irmãos, que os accusava de dia e de noite, diante do nosso Deus”. O Arcanjo S. Miguel é referido por três vezes no Antigo Testamento, no Livro do Profeta Daniel, surgindo como “um dos primeiros príncipes” (Daniel, X, 13) e como “Miguel que é o vosso príncipe” (Daniel, X, 21), num tempo que cor- responde ao “terceiro anno de Cyro Rey dos Persas” (Daniel, X, 1), isto é, no contexto do Cativeiro da Babilónia. Enfim, a terceira referência ao “grande Principe Miguel” apresenta o mesmo tom apocalíptico que perpassa na nar- rativa do Novo Testamento, assim prenunciado no mesmo Livro de Daniel (Daniel, XII, 1-2): “N’aquelle tempo porém, se levantará o grande Principe Miguel, que é o Protector dos filhos do teu Povo: e virá um tempo, qual não houve desde que as gentes começaram a existir até áquelle tempo. E sal- var-se-ha n’aquelle tempo d’entre o teu Povo todo aquelle que fôr achado escripto no Livro. E toda esta multidão dos que dormem no pó da terra, acordarão: uns para a vida eterna, e outros para um opprobrio, que elles terão sem- pre diante dos olhos.”. Destas referências do Antigo Testamento, bem como das constantes do Apocalipse, já referidas, decorrem os atributos de S. Miguel Arcanjo enquan- to “victoriosus, princeps militiae caelestis, pugnat cum dracone”. O Arcanjo de Escarigo, de belas asas douradas erguidas, quase infantil, mui- to jovem e imberbe, apesar de desprovido de elmo, de cabelos soltos, está devidamente equipado para o combate, ostenta uma lança e está protegi- do por uma armadura (hoje pouco visível, por perda acentuada da camada cromática respectiva) que lhe protege tronco, braços e pernas, sobre a qual flutua a cercadura avermelhada de um típico saio, muito curto. S. Miguel Ar- canjo surge com um pé à frente do outro, numa posição muito dinâmica, de grandedeterminação,calcandoaospésocorpodoDragão,queestádeitado de costas, apoiado no limite inferior da composição. Prestes a ser vencido, o Dragão ergue a cabeça monstruosa e sobre-dimen- sionada para cima, com a goela aberta e avivada a vermelho, fazendo res- saltar dentes agressivos. Uma cauda muito desenvolvida, que se ergue em hélice, com um enrola- mento de desenho ingénuo, completa a figuração do Dragão que (apesar de hoje estar também muito esbatido, devido a perda de matéria cromática) durante quase duzentos anos, há-de ter proporcionado ao povo devoto de Escarigo uma figuração muito eficiente, terrífica mesmo, do Demónio, do Mal e, por extensão, das Penas do Inferno. Face ao Dragão, pesado e ar- rojado no chão, o Arcanjo ganha, porém, um ar quase flutuante e imaterial, efeitos acentuados pelo lançamento caprichoso do seu manto vermelho e pela coreografia dos braços e das mãos que sustentam a lança, acabada de enfiar nas goelas abertas do Dragão, lança esta que é encimada pela cruz, simultaneamente arma e símbolo do triunfo sobre o mal.
  • 29. 56 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 FIGURA 7. S. Miguel matando o Dragão (pormenor do painel central, editado para realçar o desenho). As figuras de S. Miguel Arcanjo e do Dragão sobrepõem-se a um típico fun- do de damasco ou de brocado de tons amarelados, à semelhança do que acontecia em inúmeras figurações medievais e tardo-medievais de cenas de cunho religioso, de santos e demais figuras sagradas, frequentemente representadas perante fundos constituídos por draps d’honneur, ou seja, panos de armar de grande aparato, de modo a realçar a sua majestade e sobretudo para reforçar a sua carga devocional. Como vemos, apesar do manto vermelho, esta figuração é em si iconografica- mente convencional e muito frequente. Ela integra o que Louis Réau chama de Angelofanias, essas aparições miraculosas, nomeadamente do Arcanjo S. Miguel que, assim figurado, surgia perante os fiéis vencendo o Dragão, com a lançaarmadacomacruzdaPaixãoeRessurreiçãodeCristo–istoé,equipado como verdadeiro triunfador sobre o inimigo, o mal e o pecado. Ora, sendo o tema iconográfico de S. Miguel tão popular na arte portugue- sa medieval e tardo-medieval, a figuração de S. Miguel Arcanjo de Escarigo apresenta, porém, uma singularidade que merece o maior destaque. Com efeito, e como acima vimos, em Escarigo o Arcanjo está ladeado de dois pro- fetas: certamente o profeta Daniel no painel do lado do Evangelho (o lado liturgicamente mais importante), representando a figura do lado oposto (a direita, para quem olha para o altar-mor); ver atrás Fig. 6) provavelmente o profeta Jonas ou eventualmente Elias, Isaías ou mesmo Eliseu. Segundo LouisRéau,oautorquevimoscitando,oprofetaDaniel,emparticular,“ilaété considéré par les théologiens comme une préfigure du Christ. Daniel dans la fosse aux lions est l’image du Sauveur dans le Sépulcre” e “le symbôle de l’âme sauvée: c’est le type de l’homme protégé par Dieu”. Tal como Daniel, também o profeta Jonas, muito provavelmente representado no medalhão
  • 30. 58 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 do painel direito do frontal de Escarigo, tinha um significado singular, que justificava a sua importância e a sua popularidade entre Judeus e Cristãos: “Pour les Juifs, Jonas englouti, puis vomi ou craché par la baleine, est l’image du peuple d’Israel dévoré par le dragon assyrien, enseveli vi- vant dans l’exil pendant la captivité de Babylone, puis rendu à la liberté para la grâce de l’Éternel. Pour les Chrétiens, c’est la préfigure de la Mise au tombeau et de la Réssurrection du Christ. De même que Jonas est resté trois jours dans le ventre du squale et en est sorti vivant, de même le Christ ressuscite après trois jours pas- sés dans les ténèbres du sépulcre”. Que saibamos, nas Beiras não estão identificadas composições semelhan- tes, envolvendo profetas a ladear a figura de S. Miguel Arcanjo. Com efeito, a representação de S. Miguel Arcanjo ladeado de dois profetas não só parece ser única como não consta na recensão das tipologias iconográficas esta- belecidas por Louis Réau, já atrás referidas. Consideramos que a associação de S. Miguel aos Profetas no frontal de Escarigo proporciona uma importan- te variante, provavelmente de cunho nacional ou mesmo regional, ao tipo iconográfico de S. Miguel. Mas a própria figuração dos Profetas no frontal de Escarigo também é digna de nota, pois acusa a influência iconográfica directa de tipos semelhantes da pintura primitiva portuguesa e, por essa via, parece deter uma forte influência flamenga. Note-se ainda que a figuração do profeta do painel esquerdo do frontal de Escarigo, figurado sem barbas e que identificamos como Daniel, respeita também os modelos iconográficos estabelecidos. FIGURA 8. Profeta Daniel (?); painel lateral esquerdo do frontal O manto do profeta barbado (o do painel da direita) é de cor de laranja hoje num tom muito esmaecido. Ambos os profetas ostentam típicos turbantes vermelhos, típicos da iconografia de algumas figuras importantes do Antigo Testamento, como vimos, Ambos os profetas envergam amplos mantos, sendo o de Daniel vermelho, debruado com gola rica de arminho, atributo dos mantos reais.
  • 31. 60 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Um olhar sobre uma pintura quinhentista a fresco em Escarigo A pintura do frontal do antigo altar-mor de Escarigo merece múltiplos olha- res, nomeadamente sobre si própria, enquanto composição, realização pic- tural e estado de conservação. Merece registo a qualidade da pintura dos profetaseemparticularadoprofetadadireita,barbado,queproporcionaum autêntico e excelente retrato, pela individualização dos traços fisionómicos do rosto, mas também pelas suas raras qualidades pictóricas. FIGURA 9. Profeta Jonas (?). Painel direito do frontal de Escarigo (pormenor). Com efeito, este retrato distingue-se pela leveza e soltura do desenho, quer do rosto, quer das mãos; pelo requinte da pintura, patente nas carnações delicadas e na subtileza do tratamento das barbas, quer, enfim, pela inten- sidade do olhar. Pensamos que estas qualidades fazem deste profeta bar- bado um dos mais belos retratos alguma vez pintados nas Beiras (ou para as igrejas das Beiras), em nada desmerecendo de figurações semelhantes, patentes nas múltiplas pinturas sobre tábua que devemos à chamada Es- cola de Grão Vasco. Por outro lado, como também vimos, os Profetas estão integrados num medalhão mais ou menos oval cujo perímetro é sublinhado pela barra de- corativa e por um típico festão de folhagens e outros motivos, pintados a grisalha, como vimos, realçados de modo a proporcionarem um efeito de relevo muito sofisticado, com ressonâncias quer goticizantes, quer singu- larmente modernas, italianizantes mesmo, a lembrar, na sua composição e na sua execução pictórica, aparentemente muito cuidada, algo da maneira renascentista típica do Quatrocento italiano tardio. O conjunto das rama- gens e dos temas decorativos é integralmente pintado em grisalha, isto é, em várias gradações de cinzento, avivada a branco visando efeitos de relevo e volume dos elementos figurados. O resto das figurações não tem uma realização gráfica e pictórica tão so- fisticada. Com efeito, face ao aparente virtuosismo da pintura das folha- gens dos panos laterais, merece reparo a realização fruste dos efeitos de damasco dos fundos do painel central. Do mesmo modo, a figuração de S. Miguel Arcanjo – de grande monumentalidade e muito bela, aliás – é dada por um traço muito vincado e muito duro, embora não isento de grande expressividade.
  • 32. 62 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Por outro lado deve registar-se o toque de ingenuidade na respectiva com- posição geral, desarticulada e pouco firme, nas proporções algo desequili- bradas ou no lançamento e na composição algo desajeitada do manto ver- melho. As diferenças de desenho e de execução pictórica patentes entre o painel central, ingénuo, e os painéis laterais, que gozam de uma execução mais cuidada, poderiam deixar entrever a presença de duas mãos e mesmo de duas fases de execução. A ser assim, a um primeiro momento da em- preitada caberia a realização do motivo central, S. Miguel Arcanjo, que teria cabido a uma mão menos dotada ou de formação oficinal e técnica muito mais limitada que a exibida na composição e na pintura dos painéis laterais, com as efígies dos dois profetas, uma de cada lado. Se assim fosse, como FIGURA 10. Arcanjo S. Miguel (pormenor). inicialmente pensámos, uma primeira mão seria aparentemente substituí- da num segundo momento por uma mão muito mais segura e controlada, a quem deveríamos os painéis laterais, que detêm uma composição densa, e muito mais actualizada, um desenho seguro e elegante e um cromatismo que temos que considerar muito vistoso e até rico. Parece-nos, porém, muito mais verosímil considerar antes o recurso a duas técnicas distintas, usadas simultaneamente na execução do fresco, prática muito frequente na pintura mural da época, como veremos. Com efeito, a uma composição integralmente efectuada a fresco nas duas pinturas late- rais (profetas) parece ter-se sobreposto, sobretudo no painel central, a re- pintura, a seco, de partes importantes da figuração programada. Assim, a ser correcta esta proposta, como pensamos, todo o corpo e a armadura do Arcanjo bem como o corpo e a cabeça do Dragão terão sido repintados, não numa segunda fase, mas a seco. Joaquim Caetano nota na pintura mural transmontana a realização em simultâneo da pintura a fresco e a seco, esta completandoaquela,referindo“ofactodeascoresplanasseremaplicadasa fresco – fundos, panejamentos, base das carnações – e tudo o resto acaba- do a seco”. Ora, esta técnica, aplicada deficiente e impropriamente, implica quase sempre a posterior perda quase integral da respectiva camada cro- mática, o que hoje nos dá uma imagem muito deficiente e descorada do que foi a vivacidade das pinturas originais. Consequentemente, o espectador de hoje tem a necessidade de recompor virtualmente pinturas que, como a de Escarigo (ou a de Monsaraz), perderam camada cromática de uma forma muito significativa, pois aquilo que chegou até nós é uma sombra, muito longe do que o pintor pintou e do que nos quis deixar. Consequentemente, o que resta hoje da figura principal do frontal de Escarigo, para lá do típico
  • 33. 64 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 rosto quase infantil do Arcanjo, das suas asas douradas e do manto que o envolve, é a pintura, muito esvaída, da armadura (hoje num cinzento extre- mamente descorado), que presentemente mal se nota, a proteger o braço esquerdo e as pernas do Arcanjo. O resto é uma mancha esbranquiçada, de difícil leitura, onde apenas sobressaem os traços principais do desenho de base, inerentes à preparação da pintura, e que sobressaem no desenho da armadura que protege o segmento inferior do tronco da figura, represen- tados imediatamente abaixo do braço direito do Arcanjo. O mesmo se terá passadocomapinturadoDragão,hoje tambémquasetotalmente esvaídae portanto de observação muito difícil. Independentementedasuaqualidadeartística,quenãoénadadespicienda,a pinturadeEscarigotemomaiorinteressehistóricoparanós,poiselacaptade uma forma eloquentíssima a “temperatura” artística (e ideológica, como vere- mos) da Beira nos últimos anos do Séc. XV e nos primeiros anos do Séc. XVI. Com efeito, em terra de fronteira e em momento de mudanças e inflexões his- tóricasconhecidas,nelaconfluemasmaisdíspareseatéasmaisdissonantes influências. Por um lado, o fresco de Escarigo é o produto de uma escola e de modelos iconográficos e decorativos de cunho tradicionalista, replicando, de uma forma naturalmente limitada e até inconsistente, as melhores tradições da grande pintura portuguesa da segunda metade do século XV. Por essa via, nelaconfluemmodeloscompositivoseiconográficosquevêmprovavelmente da pintura flamenga, de há muito aclimatada entre nós, patentes nomeada- mente na figuração dos Profetas. Do mesmo modo, a composição global de cada um dos quadrados laterais com os medalhões centrais e as ramagens que os contornam, e que preenchem todo o fundo das respectivas composi- ções, não deixam de evocar a composição de muitas vinhetas das iluminuras tardo-góticas e manuelinas, que aqui surgem como que ampliadas e monu- mentalizadas. Porém, a cercadura clara que delimita os medalhões que con- têm as figuras dos profetas tem ressonâncias intensas com os “tondi” renas- centistas,istoé,oscírculosdecorativosqueservemdefundonomeadamente a retratos reais ou idealizados, quase sempre de perfil, pintados ou realizados em madeira, em pedra ou em faiança e tão típicos do Renascimento italia- no. Do mesmo modo, a inesperada presença do puto decorativo no painel da esquerda deixa entrever um ambiente de evidente vontade de actualização estilística, bem a par, afinal, do tratamento das folhagens em grisalha, que re- meteminevitavelmenteparaosgrotescosoubrutescosdecorativos,também muito típicos do Renascimento Italiano. Em suma, a pintura do frontal de Escarigo é um monumento ímpar da pintu- ra fresquista das Beiras, no período que medeia entre os meados do século XV e meados do século XVI. Como em tantas e tantas obras de arte, as qua- lidades e virtualidades da pintura de Escarigo coabitam com fragilidades e debilidades técnicas inerentes à conclusão a seco de uma obra começada a fresco, que comprometeram a própria sobrevivência de partes importantes da camada cromática do painel central, como vimos. Mas estas são limita- ções meramente técnicas que, tal como não afectavam em nada o seu pa- pel litúrgico e o seu poder devocional de outrora, também nos dias de hoje não afectam em nada o reconhecimento da importância histórica e artística desta pintura, a todos os títulos notável, na complexidade e originalidade do modelo iconográfico e do próprio esquema figurativo, mas também na sua ingenuidade, na sua graça primitiva, na sua tentativa de actualização, e so- bretudo na sua intensa presença pictórica, fonte da expressividade extrema que a caracteriza e que dela emana há mais de quatrocentos anos.