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Agenda Política              --------   CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS          ------- Circulação Interna 25/07/2011




Feminismo Antirracista
.......................................................................................................................................
CAMPANHA NACIONAL DA AMB – LUTANDO PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA
AS MULHERES NEGRAS
“A violência contra a mulher negra revela o lado mais cruel da violência contra a mulher de um modo geral.
Elas estão sujeitas a uma série de violação de direitos em todos os campos da vida, fruto do racismo nas
relações sociais brasileiras... O racismo produz para as mulheres negras vulnerabilidades que não são
percebidas nas ações contra a violência... (...) vistas como inferiores, sem inteligência, lascivas, boas de cama,
produto para exportação, preguiçosas, sujas, suspeitas, parideiras. Estas representações acabam também
influenciando as relações afetivas, interpessoais e profissionais, reforçando a subordinação e permitindo o
desrespeito aos seus direitos. Por outro lado, o racismo também produz um ambiente de agressividade e
rejeição social que não permite o pleno desenvolvimento da mulher” (Lucia Xavier).

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A Articulação de Mulheres Brasileiras, neste 25 de Julho de 2011, lança em todos os estados do Brasil a
Campanha Nacional pelo fim da violência contra as mulheres negras.

POR QUE FAREMOS O LANÇAMENTO NACIONAL NESSE DIA?

A campanha foi lançada nacionalmente durante o ENAMB 2011 e a idéia é fazermos diversas atividades nos
estados para o lançamento da campanha no dia 25 de julho para dar visibilidade ao Dia da Mulher Afro-laTino-
americana e Afro-caribenha.

FOCO DA CAMPANHA:
Na oficina nacional, realizada para pensar a proposta da campanha, decidiu-se que o foco seria: O Racismo
Simbólico e Psicológico contra as mulheres negras. Neste sentido, a campanha será focada na valorização do
cabelo “negro” “afro” “crespo”, cuja discriminação tem sido uma das formas mais cruéis do racismo, sofrida
pelas mulheres negras desde a infância.

O QUE QUEREMOS COM A CAMPANHA:

         Denunciar o racismo contra as mulheres negras e, ao mesmo tempo, fazer uma campanha positiva
          valorizando a identidade étnico-racial a partir da afirmação do cabelo “afro”.

         Trabalhar esse tema internamente na AMB e com nossas parceiras para fortalecer o nosso feminismo
          antirracista.

DIMENSÕES DA CAMPANHA:

         DIMENSÃO PEDAGÓGICA – Esta dimensão será interna à AMB. Está voltada para as mulheres militantes
          que fazem parte dos agrupamentos, envolvendo atividades como oficinas, rodas de conversa, produção
          de texto e criação de recursos audiovisuais para os estados (filminhos feitos com o próprio celular);
         DIMENSÃO INSTITUCIONAL – Direcionada para DEAM’s, Centro de Referências, juizados especiais,
          hospitais, postos de Saúde, etc.;

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      DIMENSÀO EXTERNA – Voltada para toda a sociedade. A idéia é termos Spots de rádio; cartazes,
       filminhos no Youtube; vídeos para passar nas TV alternativas, emissoras regionais; intervenção teatral
       nos eventos;
Na primeira parte, vocês encontrarão sugestões para o lançamento da campanha nos agrupamentos, para
realização de oficinas e para intervenções. Colocamos alguns textos subsídios para os debates sobre o foco da
nossa campanha – A valorização do cabelo da mulher negra – através de textos de Alice Walker , Nilma Lino,
Bell Hooks e novamente colocamos os textos de Sueli Carneiro e Lúcia Xavier.

Portanto, será de grande importância que todos os agrupamentos nos enviem relatos, fotos, vídeos dos
lançamentos da campanha e das ações que realizarem em torno da campanha. Esta é a ação prioritária das
ações da Frente pelo Fim do Racismo e da frente pelo fim da violência contra as mulheres. .



Saudações feministas e antirracistas.

Analba Brazão Teixeira
Secretaria Executiva da AMB.




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SUGESTÕES PARA OS LANÇAMENTOS NOS ESTADOS:

Para o lançamento da campanha nos estados vocês podem, de acordo com as possibilidades locais:
      Fazer um lançamento interno, realizando uma roda de conversa ou uma oficina sobre a campanha e
       fazer um agendamento dos dias que iram fazer alguma atividade relativa à campanha (lembrando que
       a campanha terá duração de um ano) ;
      Na oficina interna, fazer um vídeo caseiro, com o celular com as mulheres negras falando da sua
       experiência em relação ao racismo simbólico focado no cabelo;
      Promover um lançamento na rua, através de uma caminhada, de uma perfomance ou instalação
       urbana;
      Fazer debates nas escolas públicas;
      Escrever artigos para jornais e divulgar na imprensa local
      Construir material para a campanha: sugestões de vídeos caseiros para divulgarmos no youtube;
       pequenos spots de rádio; camisetas, panfletos e etc..



Material de Divulgação da Campanha

Já temos para a divulgação da campanha:
      Spot        de         rádio        que        foi       construído        pelo       Cfemea
       http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3514&catid=213&Itemid=
       148 ;
      O grupo Loucas de Pedra Lilás disponibilizou letra e música para a Campanha, que o Grupo Tambores
       de Safo irar gravar;
      As frases que foram apresentadas no lançamento da campanha que podem ser transformadas em arte
       para camisetas, para banners e adesivos;
      Links       de        vídeos      do      Youtube:        “I       Love      my        hair”
       (http://www.youtube.com/watch?v=zIdyfM0AEDg&feature=related), “Imagine uma menina com cabelo
       de Brasil” (http://www.youtube.com/watch?v=zoSm3XcHgDQ&feature=related), entre outros que
       vamos divulgar nas nossas listas;
      Vídeo: “Pode me chamar de Nadi”;
      Música:      “Respeitem      meus     cabelos,     brancos”,                            de           Chico               César
       (http://www.youtube.com/watch?v=CWnq223dNp8&feature=related).


ATENÇÂO: Haverá uma oficina nacional em agosto com algumas do grupo de referência da frente pelo fim do
racismo, para construção de material para a campanha. Os agrupamentos também podem ir construindo e
divulgando na nossa lista.


TEXTOS DE SUBSÍDIO:

A partir da página seguinte, seguem os textos de subsídios para aprofundarmos o foco da nossa campanha.




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Cabelo Oprimido, é um teto para o cérebro

Por Alice Walker

Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas
cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia
dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que sentia que ia voltar para
falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava
no que diria a vocês, hoje.

 Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre
guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres.
Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses
assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o
estado dos seus cabelos neste momento.

Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas
experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos.

 Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente
(incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do
nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir
hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por
acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento
espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra,
quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável.
Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me
envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos
(insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.

 Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo
consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos
períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o
próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos
que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo
nível de personalidade.

 Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do
grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e dos jornais
(um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era
como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente
inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.

 Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. No
relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito);
no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no
relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar
no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c
minha adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o
alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte
de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que
eu costumava trilhar, estivesse selado?

Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico,
havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.

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 Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual
eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão,
ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi
que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma,
impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais
puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e
monges raspam as cabeças!

 Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo
dentro da terra.

 Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras
na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos
longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que
trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando - uma jovem mãe lutadora; ela e a filha
chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos,
enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por
ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha
cabeça.) Eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã
enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e
saudável sob as "extensões", coma eram chamadas as tranças.

Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do
penteado dos negros. Eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois
ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada
mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e
feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo
com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa
informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas.

 Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e
trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível,
macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os lados,
menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi
que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele.

 Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas
criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego - um pouco parecido com as listras das
zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão - que o universo cria sem nenhum motivo
especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de
apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria.
Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros - desde o tempo de minha mãe - que faziam
trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre,
ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para relatar as
travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não
o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra "solução" missionária, também não o
interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas
isso era tudo.

Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse
era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como
ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender Bob
Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma
vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade
inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.


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 Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na
criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro
de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.

Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta




ALISANDO NOSSO CABELO
Por Bell Hooks


Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus
cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança
que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca! Nas
manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos
cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos
acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito.
Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não havia a
possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras
com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não estava associado na minha mente ao esforço
de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia
branca. Estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse ponto
de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar lindamente
penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse momento de transição era o que eu e minhas
irmãs ansiávamos.
Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era um momento
exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou
no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo
tão importante quanto a barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo. Tínhamos um mundo no
qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas

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momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança.
Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu era “abençoada”
porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase liso –, não suficientemente bom, mais
ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na
nuca onde o pente quente não consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim
quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.
Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de
sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez. Sobre este ritual
escrevi o seguinte:
Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio
em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de
sermos mulheres.
É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher [...] Antes que se alcance a
idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa inocência, juventude, nossa
meninice. Então, as mãos que separam, penteiam e traçam nos confortam. A intimidade e a sina nos
confortam.
Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo, quando se frita o peixe,
quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul flutua sobre a conversa.
É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres para satisfazer umas as
necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar interior, um instante de alegrias e
boas conversas.
Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil
desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as
mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo
e/ou encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram
um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as
mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.
Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de alisamento do cabelo de
mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal que estabeleceu um espaço real de formação
de íntimos vínculos pessoais da mulher negra mediante uma experiência ritualística compartilhada.
O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras
compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar
o espírito.
Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as exigências das
crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas teriam sossego, meditação e silêncio. Entretanto,
essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as
implicações negativas. Essas existiam concomitantemente. Dentro do patriarcado capitalista – o contexto
social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura
representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com frequência, indica um racismo
interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima.
Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo
branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada.
Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um
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símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de
negro(a).
Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando
pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de
reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade.
Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade,
não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o
segregacionismo branco e aqueles que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.
Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por
serem sujeitos que se auto-definem, as empresas brancas começaram a reconhecer os negros, e de
maneira especialíssima, às mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam
ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente
concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses
permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das
comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam
benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a América Negra, de Manning Marable, South
End Pree).
O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos e pessoais
entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores barulhentos, as mulheres negras perderam
um espaço para o diálogo, para a conversa criativa. Desposadas desses rituais de formação de íntimos
vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez
mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca.
O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência
para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos
brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da
integração, os negros podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo.
Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College, as estudantes falavam sobre a
importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego. Estavam convencidas, e provavelmente
com toda a razão, de que sua oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo
alisado. Quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na
conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. Uma jovem que
tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na
hora de procurar emprego.
Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras éramos livres para usar
os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis conseqüências negativas. Com freqüência, os
adultos negros, os mais velhos, especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados
naturais. Contei ao grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um
emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.
Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus
cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em
se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade
de supremacia branca. Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com
mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com
o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. Falamos sobre o

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quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos
resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher
negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a
considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado. Muitas de nós
falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram
grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque.
Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As
respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o
nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós
tendemos a interiorizar esse medo.O grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os
nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo.
Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos sobre como não
gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri ao grupo que considerássemos o
nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas que se percebesse como algo separado,
de novo um território que deve ser controlado, domado.
Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a repressão
sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que faziam chapinha ou que
fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo
alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que
seus pares tocassem os seus cabelos. Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção
pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. Não foi surpreendente que muitas mulheres negras
respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos
seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. Isso porque aquelas
de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na direção que ele queira,
freqüentemente, recebemos comentários negativos.
Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo alisado no segundo
grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando deixamos o cabelo natural. É irônico viver
em uma cultura que enfatiza tanto a necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por
outro lado incentiva as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser
mais velhas.
No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em uma aula de Literatura.
Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que refletissem sobre o que eles pensavam
sobre a relação entre raça e beleza física. Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os
seus cabelos. Quando eu perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo,
muitas atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam muito
trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu lhe questionava e
desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um penteado natural ficaria
horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura óssea apropriada.
No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido ao salão fazer
o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as discussões de sala de aula e percebeu
que estava realmente muito incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela
não seria mais atraente se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado nos
sentimentos de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e
muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a opressão racista e os

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argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou
aceitáveis como somos.
Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um manifesto de que um
dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo sem química é o temor de perder a
aprovação e a consideração das outras pessoas. As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o
quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado.
Entre as homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse gesto
estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho.
Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova York, faz anos, e
tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de me dizer que eu poderia ser uma
irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um jeito”) com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha
mãe o tinha contratado. O que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu
gostava do tato no cabelo não processado.
Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras descrevem fases da
infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de ter cabelos lisos, já que estavam tão
associados à idéia de essas serem desejadas e amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas
famílias, amigos(as) e parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos
várias histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas
completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais bonitas se
“arrumamos” (alisamos) o cabelo.
Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras brancas que nunca haviam feito
nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu não usasse tranças ou um penteado
natural grande (black) na entrevista. Elas não disseram “alisa o seu cabelo”, sugeriam que eu mudasse o
meu estilo de cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo
conformismo. Usei tranças e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não perguntei se importava
ou não que eu usasse tranças. Conto essa história aos meus alunos para que saibam que nem sempre
temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego.
Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante as minhas conferências.
Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança, entrei em um auditório repleto com o
meu cabelo sem química, fora de controle e desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali
estavam tinham o cabelo alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se
estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem especialmente
direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar dreads. São consideradas, com
toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o seu estilo uma decisão política. Freqüentemente, as
mulheres negras expressam desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.
Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e desdém, somos
testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo comprido. Em seus escritos, minhas
alunas negras descreveram o uso de mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para
fingir ter o cabelo comprido e loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas
para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes e
apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um nexo definido entre a popularidade
de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para
encarnar aspectos do estilo branco. Tina Tuner e Aretha Franklin foram percussoras dessa tendência, as
duas pintavam o cabelo de loiro. Na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais

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químicas para ter cabelo liso e loiro.
Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade da mulher negra
dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até mim no final da discussão e me
contou que sua filha de sete anos de idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma
que ela havia feito uma peruca que imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava
fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negro era afirmada e
celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem para a sua filha:
nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo.
Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. Ela usa tintura de
cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado
e alisado estavam diretamente relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos
seus traços e acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que a
escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia
ocultar.
Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri que a reação
positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível de auto-satisfação. As pessoas
podem estar respondendo a isso e não à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos
sobre as mensagens que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente
seriam aceitas se alisassem os seus cabelos!
Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar
nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são menores; ou, como alguns dizem, “dá menos
trabalho” por ser mais fácil de controlar e por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse
argumento em uma discussão em Spelman College, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós
mesmas cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou
de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter
sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito tempo com a
aparência.
Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é evidente que o grau
em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta o grau em que nos sentimos
capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável
para nós mesmas. As preferências individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem
escamotear a realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete
psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista.
Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. Todos os tipos de
publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não
mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não podemos nos resignar se sabemos que a
supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma
identidade.
Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de 1970, as
mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a consciência crítica que nos
capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de
vista político.
Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro que, mesmo que
esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão individual de desejo, eu sei que
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gesto semelhante traria outras implicações que fogem ao meu controle. A realidade é que o cabelo
alisado está vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas
pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não
somos belas.
Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice de uma política
de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade. É mais importante que as mulheres façam
resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que
todo aspecto da nossa auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa
condição e nosso respeito por nós mesmas.
Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era capaz de
desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. Durante anos, ainda considerava isso um
problema. Ele não era natural o suficiente, crespo o necessário para fazer um black interessante e
decente, o cabelo era muito fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira
liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.
Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo.
Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do
meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina,
sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela
penteava e trançava o meu cabelo.
Em uma cultura de dominação e anti-Intimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato
com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os
homens negros, já que são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados,
humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma
luta libertadora que libera a mente e o coração.


Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.

CORPO E CABELO COMO SÍMBOLOS DA IDENTIDADE NEGRA
Nilma Lino Gomes


Este artigo apresenta algumas reflexões decorrentes da minha tese de doutorado, defendida em
junho/2002, na pós-graduação em Antropologia Social/USP. Trata-se de uma etnografia em salões
étnicos na cidade de Belo Horizonte, espaços em que o corpo e o cabelo são tomados como expressões
da identidade negra. A importância desses dois ícones identitários não se limita aos salões. Ambos são
aspectos tomados pela cultura na construção da representação social e da beleza do negro/a na
sociedade brasileira. Esta é a principal discussão a ser privilegiada no presente texto.

A pesquisa realizada destaca o importante papel desempenhado pela dupla cabelo e cor da pele na
construção da identidade negra e a importância destes, sobretudo do cabelo, na maneira como o negro se
vê e é visto pelo outro, inclusive aquele que consegue algum tipo de ascensão social. Para esse sujeito, o
cabelo não deixa de ser uma forte marca identitária e, em algumas situações, continua sendo visto como
marca de inferioridade.

O cabelo crespo, objeto de constante insatisfação, principalmente das mulheres, é também visto, nos
espaços onde foi realizada a pesquisa, no sentido de uma revalorização, o que não deixa de apresentar

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contradições e tensões próprias do processo identitário. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge
o grupo étnico/racial a que se pertence. Ao atingi-lo, acaba remetendo, às vezes de forma consciente e
outras não, a uma ancestralidade africana recriada no Brasil.

Ao falarmos sobre corpo e cabelo, inevitavelmente, nos aproximamos da discussão sobre identidade
negra. Essa identidade é vista, no contexto desta pesquisa, como um processo que não se dá apenas a
começar do olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com
o olhar do outro, do que está fora. É essa relação tensa, conflituosa e complexa que este artigo privilegia,
vendo-a a partir da mediação realizada pelo corpo e pela expressão da estética negra. Nessa mediação,
um ícone identitários e sobressai: o cabelo crespo. O cabelo e o corpo são pensados pela cultura. Nesse
sentido, o cabelo crespo e o corpo negro podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da
identidade negra no Brasil. Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de
uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra.Por isso não podem ser considerados
simplesmente como dados biológicos.

A identidade negra é entendida, no contexto deste trabalho, como um processo construído historicamente
em uma sociedade que padece de um racismo ambíguo e do mito da democracia racial. Como qualquer
processo identitário, ela se constrói no contato com o outro, no contraste com o outro, na negociação, na
troca, no conflito e no diálogo. Como diz Neusa Santos SOUZA (1990, p.77), ser negro no Brasil é tornar-
se negro. Assim, para entender o “tornar-se negro” num clima de discriminação é preciso considerar
como essa identidade se constrói no plano simbólico. Refiro-me aos valores, às crenças, aos rituais, aos
mitos, à linguagem.

Jacques d’ADESKY (2001, p.76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade, pressupõe
uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada pelo
reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação. Nenhuma identidade é construída no
isolamento. Ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior,
parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade socialmente
derivada são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com
os outros. O cabelo do negro na sociedade brasileira expressa o conflito racial vivido por negros e brancos
em nosso país. É um conflito coletivo do qual todos participamos. Considerando a construção histórica do
racismo brasileiro, no caso dos negros o que difere é que a esse segmento étnico/racial foi relegado estar
no pólo daquele que sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao branco estar no
pólo dominante. Essa separação rígida não é aceita passivamente pelos negros. Por isso, práticas políticas
são construídas, práticas culturais são reinventadas. O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão
do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do

branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do negro
de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um sentimento de
autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo.

Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela que emerge um padrão de beleza corporal real e um
ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o real é negro e mestiço.

O tratamento dado ao cabelo pode ser considerado uma das maneiras de expressar essa tensão. A
consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a
trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma
questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária.



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Parto também do pressuposto de que essa identidade é construída historicamente em meio a uma série
de mediações que diferem de cultura para cultura. Em nosso país, o cabelo e a cor da pele são as mais
significativas. Ambos são largamente usados no nosso critério de classificação racial para apontar quem é
negro e quem é branco em nossa sociedade, assim como as várias gradações de negrura por meio das
quais a população brasileira se auto classifica nos censos demográficos.

Não é minha intenção reduzir o complexo sistema de classificação racial brasileiro às impressões e
opiniões sobre o cabelo e à cor da pele. Há muito os antropólogos e sociólogos (WOOD, 1991, p.93-104 e
MAGGIE, 1998, p.230-233) observam que, no Brasil, o modo pelo qual as pessoas classificam a si
mesmas e às outras, numa perspectiva étnico/racial, não se baseia unicamente na aparência física.
Distintivos de classe social como, por exemplo, renda e educação, também desempenham um papel
importante na auto-identificação e nas avaliações subjetivas que governam o comportamento intergrupal.
Essa situação é tão séria que a base multidimensional da percepção de condição racial sugere a
possibilidade de que um indivíduo que tenha experimentado algum tipo de ascensão social e se
classificado como preto ou pardo em algum momento da sua vida como, por exemplo, no censo
demográfico,possa identificar-se como pardo ou branco, posteriormente


OS ESPAÇOS PESQUISADOS E OS SUJEITOS

Os espaços pesquisados nos quais o cabelo crespo é a principal matéria-prima são quatro salões étnicos
da cidade de Belo Horizonte: Beleza Negra, Preto e Branco, Dora Cabeleireiros e Beleza em Estilo. Deles
emergem concepções semelhantes, diferentes e complementares sobre a beleza negra e a condição do
negro na sociedade brasileira. Dois deles localizam-se no “centro da cidade” e os outros dois em bairros
bem próximos dessa região.

Os sujeitos da pesquisa são 28 mulheres e homens negros. Destes, 17 são mulheres e 112 são homens.
São jovens e adultos, da faixa etária dos 20 aos 60 anos. Dentre estes destacam-se as cabeleireiras e os
cabeleireiros dentre os quais cinco são mulheres e quatro são homens. Do total de cabeleireiras/os, seis
são proprietárias/os e as/os outras/os são funcionárias/os de confiança. A parte mais intensa da
etnografia, com um acompanhamento

diário de cada salão, iniciou-se em agosto/setembro de 1999 e terminou em janeiro de 2001. O trabalho
se estendeu até 2002, porém, nesse período, a ida ao campo tornou-se mais esparsa.

Na etnografia, o dia-a-dia dos salões foi acompanhado, assim como as atividades externas: cursos de
cabeleireiros, congressos, feiras, desfiles de beleza negra, encontros com a militância negra, festas,
churrascos e momentos informais dos cabeleireiros e das 2 Um dos homens entrevistados possui um
salão étnico na cidade de São Paulo. Contudo, a sua constante presença nas atividades desenvolvidas por
um dos salões investigados, penteando modelos, dando cursos, participando de congressos e feiras, bem
como a sua amizade com a cabeleireira, permitiram-me incluí-lo como um dos sujeitos da pesquisa.
cabeleireiras. As entrevistas foram realizadas no espaço dos salões, nas casas, em bares e restaurantes.
São depoimentos por vezes tristes, tensos e alegres. Alguns chegam a ser até mesmo divertidos, tal é a
forma como algumas pessoas expressam a sua maneira de “lidar” com o cabelo e o corpo. Mas isso não
retira a seriedade do conteúdo das falas.

Além das entrevistas, outros recursos metodológicos como a fotografia, a leitura de revistas e demais
publicações sobre cabelo e corpo negro presentes no salão, a análise do visual, das cores e das
vestimentas foram privilegiados na tentativa de compor o ambiente estético no qual clientes,


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cabeleireiros e pesquisadora estavam imersos. Os sujeitos desta pesquisa são “cidadãos e cidadãs
comuns”. O que isso quer dizer?

São homens e mulheres que não estão necessariamente vinculados ao movimento negro. Alguns já
fizeram parte deste em algum momento da sua trajetória, mas atualmente andam distantes da militância
organizada. Essa escolha foi intencional, pois, de um certo modo, dentro da comunidade negra já é
sabida a postura desconfiada de alguns militantes ou entidades do movimento em relação à manipulação
do cabelo crespo. O discurso da militância é carregado de uma politização que é necessária para a sua
atuação. Para este trabalho, porém, escolhi e quis ouvir homens e mulheres que constroem seu fazer
cotidiano em outros espaços, por meio de outras referências que não somente as da militância. São
também negros e negras que alcançaram algum grau de mobilidade dentro da classe trabalhadora e
outros que se localizam na dita classe média negra. Essa escolha deve-se ao desejo de perceber se a
ascensão social de alguns homens e mulheres negras, por mais simples que seja, resulta na diminuição
ou minimização das experiências desagradáveis em relação ao cabelo crespo, ao corpo e à expressão
estética negra.

Durante a realização da pesquisa, tentei compreender como essas pessoas “comuns” pensam a questão
da estética corporal negra em um país que, apesar da miscigenação racial e cultural, ainda se apóia em
um imaginário que prima por um ideal de beleza europeu e branco.

Assim, considero que para o negro e a negra, a forma como o seu corpo e cabelo são vistos por ele/ela
mesmo/a e pelo outro configura um aprendizado constante sobre as relações raciais. Dependendo do
lugar onde se desenvolve essa pedagogia da cor e do corpo, imagens podem ser distorcidas ou
ressignificadas, estereótipos podem ser mantidos ou destruídos,hierarquias raciais podem ser reforçadas
ou rompidas e relações sociais podem se estabelecer de maneira desigual ou democrática.

Os salões trabalham com o corpo, o qual é passível de codificações particulares dentro de um grupo
social. Por isso ao estudar o corpo não se pode generalizar as diferentes formas de expressão corporal
para todas as culturas e grupos. No caso dos negros, existem códigos inscritos na forma de manipular o
cabelo que não poderão ser decodificados facilmente por aqueles que não fazem parte desse grupo
étnico/racial ou não possuem a convivência necessária para tal. Estudar os salões étnicos e a vida dos
sujeitos que nele circulam poderá ser um dos caminhos na compreensão de alguns desses códigos.

Sabemos que a discussão sobre a apropriação cultural do corpo não pode ser feita sem levar em
consideração o contexto histórico, social e etnográfico no qual os sujeitos da pesquisa estão inseridos. É
nesse contexto que os sujeitos e seus corpos adquirem significação. Assim, ao estudar o significado do
cabelo crespo na vida de cabeleireiros e clientes de salões étnicos poderemos entender alguns
comportamentos que foram culturalmente aprendidos a partir da interação entre negros, brancos e
outros grupos étnicos no Brasil. Porém, cabe destacar, aqui, a especificidade do contexto urbano da
cidade de Belo Horizonte. Sendo assim, é certo que algumas generalizações poderão ser feitas para
outros contextos brasileiros, mas outras são específicas da história do negro belorizontino.

No universo dos salões de beleza, os espaços onde se realizou essa pesquisa são chamados de salões
étnicos. Essa classificação é usada para destacar a especificidade racial da clientela prioritariamente
atendida por esses estabelecimentos, a saber, negros e mestiços. Ela também é atribuída devido ao
pertencimento étnico/racial do proprietário ou proprietária, à especificidade do serviço oferecido, a saber,
o trato do cabelo crespo e à existência de um projeto de valorização da beleza negra. Assim, o termo
étnico, ao se referir aos salões, às cabeleireiras, aos cabeleireiros e à sua clientela, é usado pelos sujeitos
envolvidos nesta pesquisa e por uma grande parte do mercado de cosméticos no Brasil e nos EUA como
sinônimo de negro. É também uma substituição e, em alguns momentos, uma forma eufemística de se
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referir ao “salão afro”, termo adotado por esses espaços durante as décadas de 70 e 80. Essa
classificação é mais do que uma terminologia. Ela diz respeito às evoluções e as mudanças ocorridas no
campo das relações raciais.

Neste trabalho também adoto o termo étnico ao me referir tanto aos salões quanto aos seus profissionais
tentando articular as categorias nativas com as científicas, pois tanto os salões que demarcam com maior
clareza um projeto em prol da afirmação da identidade e da beleza do negro quanto aqueles que o fazem
de maneira mais fluida se autodenominam étnicos ou afro-étnicos.

Essa denominação não se dá sem oscilações. Étnico ou afro? Muitas vezes, as próprias cabeleireiras e
cabeleireiros confundem-se e questionam-se sobre o melhor termo a ser adotado. Essa oscilação pode ser
interpretada, numa perspectiva mais ampla, como uma tentativa de conciliação das marcas identitárias
com as mudanças no campo das relações raciais. Essas mudanças, no contexto dos salões, são
atravessadas pelos interesses do mercado e pela forma como este manipula as identidades.

Mais do que a escolha pelo termo que agrada mais ou que atrai mais clientes, a terminologia adotada
refere-se à trajetória histórica e política da questão racial no Brasil, aos conflitos vividos pelos negros e
negras na construção da identidade e às contradições presentes em um país miscigenado que vive sob a
égide de um racismo ambíguo. Tudo isso toca de perto a vida e as escolhas das cabeleireiras e dos
cabeleireiros.

Os salões étnicos são, então, lugares bons para pensar a relação entre cabelo crespo e identidade negra.
Por quê? Porque o cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Ele é maleável, visível,
possível de alterações e foi transformado, pela cultura, em uma marca de pertencimento étnico/racial. No
caso dos negros, o cabelo crespo é visto como um sinal diacrítico que imprime a marca da negritude nos
corpos. Ele é mais um elemento que compõe o complexo processo identitário. Dessa forma, podemos
afirmar que a identidade negra, enquanto uma construção social, é materializada, corporificada. Nas
múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos oferece, o trato do cabelo é aquela que se
apresenta como a síntese do complexo e fragmentado processo de construção da identidade negra.


LIDANDO COM O CABELO CRESPO NO ESPAÇO DOS SALÕES E NA VIDA

Cabelos alisados nos anos 60, afros nos anos 70, permanente-afro nos anos 80, relaxamentos e
alongamentos nos anos 90, o cabelo do negro atrai a nossa atenção. Para o negro e a negra o cabelo
crespo carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que os classificam e os
localizam dentro de um grupo étnico/racial.

Durante as entrevistas, ao falar sobre o cabelo, a expressão “lidar com o cabelo” tornou-se emblemática.
A “lida” pode ser vista de várias perspectivas. Apesar dessa expressão adquirir diferentes significados
para distintas categorias sociais, no contexto das relações sociais capitalistas ela é associada ao trabalho.
É o trabalho visto como fardo e exploração e não como realização pessoal.

Contudo, a universalização da experiência social do trabalho não pode prescindir da particularização racial
e do seu significado na realidade do negro. Para o negro, a idéia de labuta, sofrimento e fadiga faz parte
de uma história ancestral. Remete à exploração e à escravidão. Assim, a expressão “lida”, numa
perspectiva racial, incorpora a idéia de trabalho forçado e coisificação do escravo e da escrava. Lembra,
também, as estratégias do regime escravista na tentativa de anular a cultura do povo negro.

No regime escravista a “lida” do escravo implicava em trabalhos forçados no eito, na casa-grande, na
mineração. Implicava, também, a violência e os açoites impingidos sobre o corpo negro. Dentre as muitas
formas de violência impostas ao escravo e à escrava estava a raspagem do cabelo. Para o africano
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escravizado esse ato tinha um significado singular. Ele correspondia a uma mutilação, uma vez que o
cabelo, para muitas etnias africanas, era considerado uma marca de identidade e dignidade. Esse
significado social do cabelo do negro atravessou o tempo, adquiriu novos contornos e continua com muita
força entre os negros e as negras da atualidade. A existência dos salões étnicos é uma prova disso.

A forma como o par – cor da pele e cabelo – é visto no imaginário social brasileiro pode ser tomada como
expressão do tipo de relações raciais aqui desenvolvido. Nesse processo, o entendimento do significado e
dos sentidos do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e desvelar as nuances do nosso sistema de
classificação racial o qual, além de cromático, é estético e corpóreo.

O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre
as relações raciais. Dessa forma, ele também pode ser pensado como um signo, pois representa algo
mais, algo distinto de si mesmo.

Assim como a democracia racial encobre os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o tipo de penteado, de
manipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os adota podem ser usados para camuflar o
pertencimento étnico/racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção da
identidade negra. Mas tal comportamento pode também representar um processo de reconhecimento das
raízes africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o racismo. E ainda pode expressar
um estilo de vida.

Os salões étnicos são, portanto, espaços privilegiados para pensar várias questões que envolvem a vida
dos negros, dos mestiços e dos brancos. São espaços corpóreos, estéticos e identitários e, por isso, nos
ajudam a refletir um pouco mais sobre a complexidade e os conflitos da identidade negra. Nos salões o
cabelo crespo, visto socialmente como o estigma da vergonha, é transformado em símbolo de orgulho.

Reconheço, porém, que eles não são os únicos espaços que possibilitam tais reflexões.

A construção da identidade negra se dá no espaço da casa, da rua, do trabalho, da escola, do lazer, da
intimidade, ou seja, na relação entre o público e o privado. Mas, todos esses outros espaços sociais se
articulam e transversalizam os salões, compondo um extenso e complexo mapa de trajetórias sociais e
raciais.

Além da transversalidade dos outros espaços sociais os salões étnicos incorporam discussões políticas e,
por vezes, ideológicas. Estas expressam-se nos nomes escolhidos pelos estabelecimentos e nas suas
propostas de trabalho. Vemos, então, que tais espaços comportam uma ideologia racial, falam do lugar
da diversidade étnico/racial e desenvolvem projetos sociais.

O surgimento desses salões também se localiza num contexto histórico. Apesar dos salões populares que
atendem a clientela negra ser uma realidade no Brasil há muitos anos, tais espaços não se
autodenominavam étnicos ou afros e nem eram vistos enquanto tal. Eram salões de bairro, de fundo de
quintal. Os espaços de beleza considerados étnicos surgem junto com a efervescência dos movimentos
sociais, no final da década de 70, fortalecem-se nos anos 80 e nos anos 90 tornam-se mais visíveis e
divulgados, sobretudo, nos grandes centros urbanos. Aos poucos esses espaços migram para o interior,
porém, até hoje, não representam um número expressivo. Há questões sociais, regionais e econômicas
que interferem nessa situação. Para os salões étnicos, localizar-se no centro urbano é estar em contato
com o cosmopolitismo, com a circulação de idéias. É ter a oportunidade de divulgar o trabalho, aparecer
na mídia, mas, também, ser confrontado publicamente e participar de embates políticos.

Embora sejam encontrados com maior freqüência no centro urbano, esses salões não se afastam das
regiões populares. Estão próximos dos mercados, das lojas, galerias e ruas populares. É nesse local que a

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comunidade negra reproduz a sua existência, por isso, seria incoerente se não estivessem próximos da
sua clientela. Essa é a localização dos espaços pesquisados.

Ao destacar o cabelo crespo e o corpo do negro esta etnografia coloca-nos diante de um campo mais
vasto e mais profundo, a saber, a construção da estética corporal. Esta também apresenta uma dimensão
simbólica que trafega em vários contextos. O corpo humano é o primeiro motivo de estética, de beleza,
possuidor de um elemento maleável que, tal como a madeira e o barro, possibilita diferentes recortes,
detalhes e modelagens: o cabelo. Por isso corpo e cabelo, no plano da cultura, puderam ser
transformados em emblemas étnicos.

Nesse sentido, engana-se quem pensa que uma etnografia em salões étnicos diz respeito somente ao
trato do cabelo. De fato, é sobre o cabelo que recaem as atenções de todos que transitam nesses
espaços. Ele é um dos principais ícones identitários para os negros.

Porém, o cabelo sozinho não diz tudo. A sua representação se constrói no âmago das relações sociais e
raciais. Pegar no cabelo é tocar no corpo. Cabelo crespo e corpo negro, colocados nessa ordem, são
expressões de negritude. Por isso não podem ser pensados separadamente.

A antropologia ajuda a pensar como o corpo é visto em cada cultura e a entender esse corpo para além
da sua fisicalidade orgânica e plástica, mas sobretudo como uma construção cultural, sempre ligado a
visões de mundo específicas. As singularidades culturais são dadas também pelas posturas, pelas
predisposições, pelos humores e pela manipulação de diferentes partes do corpo. Por isso o corpo é
importante para pensar a cultura.


ESTÉTICA, PROJETOS POLÍTICOS E SALÕES ÉTNICOS

A dimensão estética e sensível presente nos salões étnicos não está isenta de uma dimensão política.
Para ser mais precisa, é difícil separar-se dessa última quando falamos em beleza ou estética negra. A
expressão estética negra é inseparável do plano político, do econômico, da urbanização da cidade, dos
processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade.

A particularidade dos salões pesquisados em relação à estética negra só pôde ser vista através da
comparação. No caso dessa pesquisa, a comparação dos diferentes salões possibilitou perceber que,
apesar de desenvolverem a sua prática em torno de questões semelhantes, cada estabelecimento possui
concepções e projetos distintos em relação à estética negra. Se a comparação inspira cuidados do
antropólogo para não incorrer no risco de generalização de aspectos observados em realidades diferentes,
por outro lado, é só através dela que pude perceber a coexistência de particularidades e de características
universais no universo dos salões.

A formulação de uma proposta de intervenção estética que postula o direito à beleza para o povo negro,
o desenvolvimento de ações comunitárias nas vilas e favelas, a maquiagem gratuita para dançarinos e
militantes do movimento negro durante eventos públicos da comunidade negra, a construção de um
discurso afirmativo e de valorização dos padrões estéticos negros são exemplos de atividades
desenvolvidas pelos quatro salões pesquisados, porém de maneira e intensidade diferentes. Mesmo que
tais práticas aconteçam coladas à figura da dona ou do dono do salão elas não deixam de possuir uma
dimensão pública. Nesse caso podem ser considerados como projetos sociais, pois o seu alcance
extrapola a prestação de serviços e os trabalhos cotidianos de um salão de beleza.

Tais projetos, elaborados dentro de um campo de possibilidades, possuem também diferentes níveis de
clareza quanto à explicitação dos seus objetivos, formas de comunicação e de alcance. Eles estão

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diretamente relacionados à história de vida, à construção da identidade negra e à inserção política da
cabeleireira ou do cabeleireiro em relação à questão racial.

Tomando cada salão em particular, é possível observar que o projeto da cabeleireira ou do cabeleireiro
não garante a adesão de todos/as profissionais que atuam no interior do seu estabelecimento. O
envolvimento da/o cabeleireira/o em projetos que extrapolam o salão pode provocar tensões e
discordâncias, sobretudo quando se refere ao envolvimento com a militância negra.

Durante a pesquisa de campo foi possível observar a existência de diferentes interpretações, desacordos
e insatisfações de alguns profissionais com o projeto político e a prática dos salões. Essas tensões e
discordâncias resultaram, em alguns casos, em demissões, brigas e separações. Como os salões também
se organizam em torno de laços de amizade e consangüinidade, a divergência quanto à implementação
de um projeto social e à interferência deste na prática cotidiana dos salões resultou, em alguns
momentos, em rupturas afetivas. Algumas foram contornadas mais tarde e outras não.

Há uma tensão entre o projeto individual e o social. Muitas vezes, uma ação extra salão corresponde ao
interesse pessoal do cabeleireiro ou da cabeleireira frente à questão racial e não ao da sua equipe. Além
disso, muitas vezes o/a cabeleireiro/a proprietário/a cobra dos demais integrantes da equipe o
envolvimento em trabalhos sociais de maneira voluntária, durante horas de folga ou dias de descanso.
Nem sempre essa demanda é respondida com agrado por todos. Alguns aderem ao projeto social por se
identificarem com a proposta e outros não. E há outros que aderem como uma estratégia para
permanecer no emprego, pois percebem que a recusa de participar de tais ações e projetos pode
repercutir negativamente diante da cabeleireira ou do cabeleireiro-chefe, podendo afetar a sua
permanência no salão.

Mas entre os salões e os seus projetos também acontecem conflitos. O fato de serem concorrentes, pois
não podemos esquecer de que eles são, antes de mais nada, estabelecimentos comerciais, desencadeia
algumas brigas pessoais e discordâncias entre alguns profissionais. Essas divergências não são apenas
profissionais. Elas referem-se ao julgamento da “autenticidade étnica” da proposta de valorização da
negritude desenvolvida pelo salão concorrente.

Assim, nem sempre os diferentes projetos dos salões se articulam entre si. Isso nos mostra que, apesar
de sua importância, esses estabelecimentos ainda não conseguiram dar aos seus projetos estabilidade e
continuidade supra-individuais, o que afeta, de alguma maneira, sua eficácia política.

Por outro lado, as tensões em torno de um alcance político mais amplo não impedem que consideremos
os salões como espaços que, com alguns limites, impostos inclusive pela sua própria natureza comercial,
desenvolvem importantes projetos sociais, principalmente quando divulgam publicamente a profunda
imbricação entre o estético e o político. Como diz Gilberto VELHO (1987), a viabilidade política de um
projeto social, propriamente dita, dependerá de sua eficácia em mapear e dar sentido às emoções e
sentimentos individuais. Esta é uma função que, com dificuldades, os salões conseguem desenvolver.

Além disso, só o fato de afirmar publicamente a existência de uma “beleza negra”, de se especializar em
tratar e valorizar o cabelo crespo e de atender uma clientela negra e mestiça, já faz com que os salões
étnicos cumpram uma importante função política no contexto das relações raciais estabelecidas em nossa
sociedade.

Entretanto, apesar de realizar o seu trabalho de forma alegre e festiva, os salões também são espaços
tensos. A rotina é desgastante, os horários de almoço e de saída são fluidos. Trabalha-se geralmente em
pé, o que acarreta doenças da profissão: varizes, problemas na coluna, alergias aos produtos químicos e
várias lesões por esforço repetitivo (L.E.R.). Há também um desgaste emocional pois trabalhar
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cotidianamente com processos delicados como a auto-estima e com as questões da subjetividade não é
uma tarefa simples.

Além disso, as preocupações de ordem financeira e o desdobramento para cumprir os projetos sociais,
geralmente às noites e nos fins-de-semana, contribuem para aumentar a tensão.


CONCLUINDO...

Mesmo que não queiramos cobrar desses estabelecimentos uma eficácia política nos moldes tradicionais
da militância, uma vez que são estabelecimentos comerciais e não entidades do movimento negro, o fato
é que, ao se autodenominarem “étnicos” e se apregoarem como divulgadores de uma auto-imagem
positiva do negro em uma sociedade racista, os salões se colocam no cerne de uma luta política e
ideológica. A questão racial, em um país racista, sempre será política e ideológica, quer queiramos ou
não, pois se contrapor ao racismo é se contrapor a práticas, posturas e ideologias. Exige posicionamento
e mudança de comportamento.

Assim, os salões são lugares em que se cruzam projetos individuais e sociais desenvolvidos em meio a
instabilidades, conflitos e negociações. Cada um encontra maneiras variadas de comunicar a sua proposta
de estética negra e o seu trabalho enquanto profissional da beleza. Ao longo dos anos, esses espaços
transformam, alteram e substituem os seus projetos devido às mudanças no campo da estética, das
novas tendências da moda, do mercado de produtos étnicos e das transformações sofridas no campo das
políticas de identidade. Através da sua prática cotidiana e dos seus projetos, os salões étnicos tentam
consciente e inconscientemente dar um sentido ou uma coerência a uma experiência identitária
fragmentada vivida pelo negro.

O contato com os salões me leva a refletir que ser negro no mundo está relacionado com uma dimensão
estética, com um corpo, com uma aparência que pode ou não resgatar de forma positiva as nossas
referências ancestrais africanas recriadas no Brasil. Isso precisa ser mais a sério quando investigamos a
questão racial.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Janeiro: Pallas, 2001.

GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra nos
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SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
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VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio
de Janeiro: Zahar, 1987.

______. Projeto e metamorfose; antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

WOOD, Charles H. Categorias censitárias e classificações subjetivas de raça no Brasil. In: LOVELL, Peggy
A (Org.) . Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Cedeplar/Face/UFMG, 1991.



DADOS DA AUTORA:

NILMA LINO GOMES, doutora em Antropologia Social/USP, é professora do Departamento de Administração Escolar da
Faculdade de Educação da UFMG e coordenadora do Projeto Ações Afirmativas na UFMG, aprovado pelo concurso Cor
no Ensino Superior do Programa Políticas da Cor, do Laboratório de Políticas Públicas/UERJ.




ENTREVISTA: Corporeidade transgressora

A educadora Nilma Lino Gomes acha que pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e
sexualidade pode ajudar a aprofundar e dar outras interpretações a questões como a dos direitos
reprodutivos e contracepção versus religiosidade.

Em junho de 2002, Nilma defendeu sua tese no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (USP), a qual apresentava uma etnografia em salões étnicos na cidade de Belo
Horizonte, espaços, segundo ela, onde corpo e cabelo são tomados como expressões da identidade negra.
A pesquisa destacava o importante papel desempenhado pela dupla cabelo e cor de pele na construção
dessa identidade e na maneira como o negro se vê e é visto pelos outros.

“Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial
vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão ‘cabelo ruim’, ‘cabelo bom’ tão usada em nossa
sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais
no Brasil”, diz ela. Algumas reflexões decorrentes da tese estão no artigo “Salões étnicos como espaços
estéticos e políticos de identidade negra”, integrante da coletânea Movimentos Sociais, Educação e
Sexualidades (CLAM/Editora Garamond), lançada recentemente em Florianópolis.

Nilma é coordenadora do programa Ações Afirmativas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Segundo a pesquisadora, “a importância do programa é o fato de comprovar que é necessário e possível
o investimento na permanência bem sucedida de alunos negros na universidade. Não dá para pensar que
a assistência estudantil oferecida pela universidade atinge a todos os alunos da mesma forma e nem dá
para reduzir a questão do negro no ensino superior à idéia de assistência”, afirma nesta entrevista.

Em sua tese, a sra. define os salões étnicos como espaços estéticos e políticos de identidade
negra, lugares em que corpo e cabelo são tomados como expressão da identidade negra. Qual
a importância desses dois ícones identitários?

No que se refere à questão do negro, destaco que para se entender o corpo e o cabelo como símbolos
identitários é preciso compreendê-los no contexto da cultura, ou seja, a forma como ambos são vistos por
nós, dizem respeito a uma construção cultural. Ambos ganham simbolismo nos contextos históricos,
sociais e políticos que se inserem. No processo de classificação dos grupos étnico-raciais, a materialidade
do corpo recebe uma leitura cultural e, no caso dos negros brasileiros, essa leitura é atravessada pela
forma como as relações raciais se construíram no Brasil, ou seja, num contexto marcado pela escravidão,

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pelo racismo ambíguo, pelo mito da democracia racial e pela desigualdade social e racial. Ao mesmo
tempo, o corpo e o cabelo são marcados também por uma história de luta, de transgressão, de busca de
expressão e de construção da identidade advinda dos próprios negros. Esses fatores todos estão
presentes na sociedade quando lidamos, classificamos, interagimos e vivenciamos o “ser negro” na
sociedade brasileira. Por isso a dupla cabelo e cor da pele pode ser entendida como um dos fatores
primordiais para se compreender a maneira como o negro se vê e é visto pelo outro. Não se pode pensar
a corporeidade negra dissociada desses fatores.

Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial
vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão “cabelo ruim”, “cabelo bom” tão usada em nossa
sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais
no Brasil, a qual tem sido alvo de reações, transgressões e ressignficações oriundas dos próprios negros
organizados em movimentos sociais ou por meio de diversas práticas culturais e estéticas. O cabelo do
negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito.
Por isso, é importante compreender melhor a relação do negro com o corpo e com o cabelo. A mudança
do cabelo pode significar várias e múltiplas vivências, situações sociais e processos identitários. O cabelo
crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre as
relações raciais.

Em seu trabalho, a sra. analisa a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade.
Como articular esses temas?

Essa é uma articulação complexa e há muito que se estudar sobre ela. A corporeidade está
profundamente relacionada com as identidades que construímos em sociedade e na cultura. Ela está
relacionada com a construção do masculino e do feminino, com as hierarquias de poder, com a
diversidade étnico-racial, com as leituras, vivências e interpretações sobre a sexualidade. Acho que o
mais importante é pensar a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade para além da
leitura sobre “a sexualidade da mulher negra e do homem negro” no contexto do racismo e das relações
de poder. Esses fatores são importantes e não se pode desconsiderá-los quando estudamos as relações
raciais, porém, há também um outro lado: aquele que se refere ao negro e à negra como sujeitos, que
lidam com sua corporeidade e sua sexualidade e fazem escolhas. Essas escolhas são também políticas e é
importante entendermos como o corpo negro pode ser considerado historicamente não como um corpo
submisso mas, sim, um corpo transgressor diante do processo de dominação, dos padrões morais e
sociais impostos. Pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e sexualidade pode nos ajudar a
aprofundar e dar outras interpretações a questões como: direitos reprodutivos, contracepção versus
religiosidade, a esfera dos afetos, sexo, corpo e poder, corpo e trabalho, posturas masculinas e
femininas, considerando que estes têm implicações diferentes na vida dos sujeitos quando articulamos
gênero, raça, idade e classe.


Em seu artigo, a sra. assinala que o processo de construção da identidade/corporeidade negra
no país – processo de tornar-se negro – se dá por meio de um movimento dialético de
rejeição/aceitação e negação/afirmação do corpo. Esse processo é o mesmo para todas as
pessoas negras?

Eu diria que há uma probabilidade muito grande de que muitas pessoas negras vivenciem o processo de
construção da identidade negra dessa maneira. Tal situação não está impregnada “nas pessoas”, mas
precisa ser entendida no contexto do racismo e das relações raciais construídas no Brasil. As pesquisas já
realizadas sobre a construção da identidade negra apontam nessa direção. Porém, observo que as
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análises realizadas tendem a privilegiar o movimento de “rejeição/aceitação” do ser negro. Eu mesma no
início das minhas pesquisas me voltava mais para esse aspecto. No entanto, o contato com os salões
étnicos me fez compreender o movimento de “ressignificação” do ser negro e este é o que eu considero
atualmente como o mais importante e pouco explorado pelo campo de estudos sobre relações raciais e
identidade negra no Brasil. Essa ressignificação vai depender da forma como o sujeito lida com a sua
identidade e com a sua corporeidade, da sua inserção em diferentes espaços sociais e das leituras e
interpretações sociais e individuais sobre o “ser negro” no Brasil. Por isso, a ressignificação da identidade
negra é coletiva, mesmo que se anuncie individual. Eu diria que, até o momento, esse é o entendimento
que a pesquisa me possibilitou sobre o complexo processo de construção da identidade negra no Brasil
mas, tenho certeza, de que há mais coisas que ainda não descobrimos. E é esse “a mais” que estou
empenhada a pesquisar.

Por que boa parte de homens e mulheres negras lidam com a corporeidade (cabelo, corpo etc)
de forma tão conflituosa e o que isso nos mostra?

Acho que nos mostra como o corpo foi transformado pela cultura num símbolo identitário,
independentemente do sexo, idade, cor, nacionalidade etc. Estamos diante de um significado social do
corpo que permeia todos os povos. Nesse processo, o contexto histórico e político vivido pelos homens e
mulheres imprimem marcas e especificidades a esse corpo. Eu diria que o simbolismo do corpo assume
uma tal importância na cultura que, através do estudo dos corpos, podemos compreender vários aspectos
da vida social e da individualidade das pessoas.

O cabelo ganha importância na constituição da corporeidade nas diversas culturas por ser um veículo
capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita as mais diferentes leituras e interpretações.
Desse modo, para muitos, o cabelo é a moldura do rosto e um dos primeiros sinais a serem observados
no corpo humano.

A manipulação do cabelo se faz presente nos mais diversos povos. A meu ver, essa situação apresenta
algo mais complexo: para se compreender o sentido social do cabelo e do corpo nas diversas culturas,
precisamos aprofundar um pouco mais o estudo sobre as técnicas corporais e sua relação com os fatores
fisio-psico-sociológicos que as acompanham, conforme nos ensinou Marcel Mauss. Isso nos ajudará a
entender os conflitos em torno da corporeidade.

Como a sra. analisa as referências ancestrais africanas recriadas no Brasil?

Acho que o mais importante é conhecer melhor a África, sua história, sua cultura e seus povos. Vivemos,
no Brasil, uma total ignorância em relação a esses aspectos. Essa ignorância não é construída no vazio,
mas é fruto do racismo, do mito da democracia racial, de uma imagem distorcida e/ou mitificada sobre a
África que aprendemos a construir em sociedade. Mudar essa visão é desencadear um processo educativo
na sociedade brasileira em relação às nossas referências ancestrais africanas, não para cultuá-las e
cristalizá-las, mas para conhecê-las, compreendê-las e valorizá-las como formadoras da nossa sociedade.
Poderemos, então, ter uma outra compreensão sobre a escravidão e a história de dominação colonial dos
países africanos, da riqueza das culturas e reinos africanos, as guerras, os conflitos, a arte, a metalurgia,
a estética.

Penso que ao conhecermos mais as nossas referências ancestrais africanas conheceremos um pouco mais
a forma como a sociedade brasileira se construiu e entenderemos o que alguns autores chamam de
“africanidades brasileiras”. Não há aqui nenhuma leitura essencialista sobre a África mas o
reconhecimento de que sabemos pouco sobre uma das matrizes da construção da nossa sociedade e
sobre a diáspora africana. Porém, esse conhecimento não pode ficar restrito às referências ancestrais
                                                                                                                                    23
Agenda Política      --------   CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS   ------- Circulação Interna 25/07/2011



vendo-as apenas na perspectiva do passado. Ele tem que se articular com o que é a África, hoje, seus
dilemas, conflitos, etnias, história e inserção internacional.

Atualmente, há tentativas de inserir esse processo educativo desde a educação básica. Temos, hoje, a lei
10.639/03 e as diretrizes curriculares nacionais dela advindas. Por meio destas, o estudo da história da
África e das culturas afro-brasileiras tornou-se obrigatório nas escolas de educação básica públicas e
privadas. Há um processo longo a ser realizado para que a lei se transforme efetivamente em práticas
pedagógicas. Espero que esse movimento feito na educação básica traga luzes e estimule a discussão nos
cursos superiores.

Publicada em: 29/01/2006 às 16:15 entrevista




                                                                                                                                   24
Agenda Política     --------   CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS   ------- Circulação Interna 25/07/2011



Enegrecer o feminismo: a situação da mulher Negra na América Latina a partir de uma
Perspectiva de gênero

                                                                                                        Sueli Carneiro (*)


No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as
mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as
construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial
latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas conseqüências. Essa violência sexual colonial
é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades,
configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa
formação nacional”, através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é negado na
formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência
sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”.
O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece,
entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social
supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça
instituídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica
diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como
não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na
identidade feminina das mulheres negras.
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção
paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres
negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca
reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte
de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou
nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando
as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um
contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de
senhores de engenho tarados.
São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de
coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em
todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado
é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. Hoje, empregadas
domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que
mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que
não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o
modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas
oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para
que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de
emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”. Quando falamos que a mulher é um
subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulher estamos falando?
Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão.

                                                                                                                                  25
Agenda Política     --------   CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS   ------- Circulação Interna 25/07/2011



Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa
do diabo, esse também um alienígena para a nossa cultura. Fazemos parte de um contingente de
mulheres ignoradas pelo sistema de saúde na sua especialidade, porque o mito da democracia racial
presente em todas nós torna desnecessário o registro da cor dos pacientes nos formulários da rede
pública, informação que seria indispensável para avaliarmos as condições de saúde das mulheres
negras no Brasil, pois sabemos, por dados de outros países, que as mulheres brancas e negras
apresentam diferenças significativas em termos de saúde.
Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica,
mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de
opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres,
deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível
afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e
racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo
e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de
gênero em nossas sociedades.
Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades não depende apenas da nossa
capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige,
também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do
racismo. O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e
das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres
pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres
negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política
feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de
gênero na sociedade brasileira.
Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento
negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política
decorrente da condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao
trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e
gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimento negro
e de mulheres do país, enegrecendo de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim
mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a
feminização das propostas e reivindicações do movimento negro.
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na
agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo,
das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela
introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência
sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre
as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como
questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos
mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as
desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.
Tem-se, ainda, estudado e atuado politicamente sobre os aspectos éticos e eugênicos colocados
pelos avanços das pesquisas nas áreas de biotecnologia, em particular da engenharia genética. Um
exemplo concreto refere-se, por exemplo, às questões de saúde e de população. Se, historicamente,

                                                                                                                                  26
Agenda Politica AMB Campanha 2011
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Agenda Politica AMB Campanha 2011

  • 1. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Feminismo Antirracista ....................................................................................................................................... CAMPANHA NACIONAL DA AMB – LUTANDO PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS “A violência contra a mulher negra revela o lado mais cruel da violência contra a mulher de um modo geral. Elas estão sujeitas a uma série de violação de direitos em todos os campos da vida, fruto do racismo nas relações sociais brasileiras... O racismo produz para as mulheres negras vulnerabilidades que não são percebidas nas ações contra a violência... (...) vistas como inferiores, sem inteligência, lascivas, boas de cama, produto para exportação, preguiçosas, sujas, suspeitas, parideiras. Estas representações acabam também influenciando as relações afetivas, interpessoais e profissionais, reforçando a subordinação e permitindo o desrespeito aos seus direitos. Por outro lado, o racismo também produz um ambiente de agressividade e rejeição social que não permite o pleno desenvolvimento da mulher” (Lucia Xavier). ........................................................... A Articulação de Mulheres Brasileiras, neste 25 de Julho de 2011, lança em todos os estados do Brasil a Campanha Nacional pelo fim da violência contra as mulheres negras. POR QUE FAREMOS O LANÇAMENTO NACIONAL NESSE DIA? A campanha foi lançada nacionalmente durante o ENAMB 2011 e a idéia é fazermos diversas atividades nos estados para o lançamento da campanha no dia 25 de julho para dar visibilidade ao Dia da Mulher Afro-laTino- americana e Afro-caribenha. FOCO DA CAMPANHA: Na oficina nacional, realizada para pensar a proposta da campanha, decidiu-se que o foco seria: O Racismo Simbólico e Psicológico contra as mulheres negras. Neste sentido, a campanha será focada na valorização do cabelo “negro” “afro” “crespo”, cuja discriminação tem sido uma das formas mais cruéis do racismo, sofrida pelas mulheres negras desde a infância. O QUE QUEREMOS COM A CAMPANHA:  Denunciar o racismo contra as mulheres negras e, ao mesmo tempo, fazer uma campanha positiva valorizando a identidade étnico-racial a partir da afirmação do cabelo “afro”.  Trabalhar esse tema internamente na AMB e com nossas parceiras para fortalecer o nosso feminismo antirracista. DIMENSÕES DA CAMPANHA:  DIMENSÃO PEDAGÓGICA – Esta dimensão será interna à AMB. Está voltada para as mulheres militantes que fazem parte dos agrupamentos, envolvendo atividades como oficinas, rodas de conversa, produção de texto e criação de recursos audiovisuais para os estados (filminhos feitos com o próprio celular);  DIMENSÃO INSTITUCIONAL – Direcionada para DEAM’s, Centro de Referências, juizados especiais, hospitais, postos de Saúde, etc.; 1
  • 2. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011  DIMENSÀO EXTERNA – Voltada para toda a sociedade. A idéia é termos Spots de rádio; cartazes, filminhos no Youtube; vídeos para passar nas TV alternativas, emissoras regionais; intervenção teatral nos eventos; Na primeira parte, vocês encontrarão sugestões para o lançamento da campanha nos agrupamentos, para realização de oficinas e para intervenções. Colocamos alguns textos subsídios para os debates sobre o foco da nossa campanha – A valorização do cabelo da mulher negra – através de textos de Alice Walker , Nilma Lino, Bell Hooks e novamente colocamos os textos de Sueli Carneiro e Lúcia Xavier. Portanto, será de grande importância que todos os agrupamentos nos enviem relatos, fotos, vídeos dos lançamentos da campanha e das ações que realizarem em torno da campanha. Esta é a ação prioritária das ações da Frente pelo Fim do Racismo e da frente pelo fim da violência contra as mulheres. . Saudações feministas e antirracistas. Analba Brazão Teixeira Secretaria Executiva da AMB. 2
  • 3. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 SUGESTÕES PARA OS LANÇAMENTOS NOS ESTADOS: Para o lançamento da campanha nos estados vocês podem, de acordo com as possibilidades locais:  Fazer um lançamento interno, realizando uma roda de conversa ou uma oficina sobre a campanha e fazer um agendamento dos dias que iram fazer alguma atividade relativa à campanha (lembrando que a campanha terá duração de um ano) ;  Na oficina interna, fazer um vídeo caseiro, com o celular com as mulheres negras falando da sua experiência em relação ao racismo simbólico focado no cabelo;  Promover um lançamento na rua, através de uma caminhada, de uma perfomance ou instalação urbana;  Fazer debates nas escolas públicas;  Escrever artigos para jornais e divulgar na imprensa local  Construir material para a campanha: sugestões de vídeos caseiros para divulgarmos no youtube; pequenos spots de rádio; camisetas, panfletos e etc.. Material de Divulgação da Campanha Já temos para a divulgação da campanha:  Spot de rádio que foi construído pelo Cfemea http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3514&catid=213&Itemid= 148 ;  O grupo Loucas de Pedra Lilás disponibilizou letra e música para a Campanha, que o Grupo Tambores de Safo irar gravar;  As frases que foram apresentadas no lançamento da campanha que podem ser transformadas em arte para camisetas, para banners e adesivos;  Links de vídeos do Youtube: “I Love my hair” (http://www.youtube.com/watch?v=zIdyfM0AEDg&feature=related), “Imagine uma menina com cabelo de Brasil” (http://www.youtube.com/watch?v=zoSm3XcHgDQ&feature=related), entre outros que vamos divulgar nas nossas listas;  Vídeo: “Pode me chamar de Nadi”;  Música: “Respeitem meus cabelos, brancos”, de Chico César (http://www.youtube.com/watch?v=CWnq223dNp8&feature=related). ATENÇÂO: Haverá uma oficina nacional em agosto com algumas do grupo de referência da frente pelo fim do racismo, para construção de material para a campanha. Os agrupamentos também podem ir construindo e divulgando na nossa lista. TEXTOS DE SUBSÍDIO: A partir da página seguinte, seguem os textos de subsídios para aprofundarmos o foco da nossa campanha. 3
  • 4. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Cabelo Oprimido, é um teto para o cérebro Por Alice Walker Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês, hoje. Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres. Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento. Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos. Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível. Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade. Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo. Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c minha adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu costumava trilhar, estivesse selado? Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo. 4
  • 5. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças! Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra. Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando - uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as "extensões", coma eram chamadas as tranças. Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas. Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível, macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele. Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego - um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão - que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros - desde o tempo de minha mãe - que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra "solução" missionária, também não o interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era tudo. Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo. 5
  • 6. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer. Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta ALISANDO NOSSO CABELO Por Bell Hooks Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca! Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito. Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos. Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto a barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo. Tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas 6
  • 7. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança. Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu era “abençoada” porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra. Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez. Sobre este ritual escrevi o seguinte: Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres. É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher [...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa inocência, juventude, nossa meninice. Então, as mãos que separam, penteiam e traçam nos confortam. A intimidade e a sina nos confortam. Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo, quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul flutua sobre a conversa. É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres para satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar interior, um instante de alegrias e boas conversas. Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática. Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de alisamento do cabelo de mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal que estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher negra mediante uma experiência ritualística compartilhada. O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito. Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as exigências das crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas teriam sossego, meditação e silêncio. Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam concomitantemente. Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com frequência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima. Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um 7
  • 8. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a). Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade. Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco e aqueles que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo. Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por serem sujeitos que se auto-definem, as empresas brancas começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a América Negra, de Manning Marable, South End Pree). O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos e pessoais entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores barulhentos, as mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa criativa. Desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca. O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da integração, os negros podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo. Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College, as estudantes falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego. Estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado. Quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. Uma jovem que tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na hora de procurar emprego. Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis conseqüências negativas. Com freqüência, os adultos negros, os mais velhos, especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados naturais. Contei ao grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável. Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca. Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. Falamos sobre o 8
  • 9. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado. Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque. Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo. Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos sobre como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri ao grupo que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser controlado, domado. Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a repressão sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus pares tocassem os seus cabelos. Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. Não foi surpreendente que muitas mulheres negras respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. Isso porque aquelas de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários negativos. Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando deixamos o cabelo natural. É irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser mais velhas. No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em uma aula de Literatura. Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que refletissem sobre o que eles pensavam sobre a relação entre raça e beleza física. Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura óssea apropriada. No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria mais atraente se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a opressão racista e os 9
  • 10. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos. Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras pessoas. As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. Entre as homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho. Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova York, faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um jeito”) com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava do tato no cabelo não processado. Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais bonitas se “arrumamos” (alisamos) o cabelo. Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras brancas que nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista. Elas não disseram “alisa o seu cabelo”, sugeriam que eu mudasse o meu estilo de cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo conformismo. Usei tranças e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não perguntei se importava ou não que eu usasse tranças. Conto essa história aos meus alunos para que saibam que nem sempre temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego. Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante as minhas conferências. Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança, entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de controle e desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinham o cabelo alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem especialmente direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar dreads. São consideradas, com toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o seu estilo uma decisão política. Freqüentemente, as mulheres negras expressam desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência. Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo comprido. Em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo comprido e loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um nexo definido entre a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo branco. Tina Tuner e Aretha Franklin foram percussoras dessa tendência, as duas pintavam o cabelo de loiro. Na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais 10
  • 11. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 químicas para ter cabelo liso e loiro. Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito uma peruca que imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negro era afirmada e celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo. Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. Ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que a escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia ocultar. Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível de auto-satisfação. As pessoas podem estar respondendo a isso e não à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam aceitas se alisassem os seus cabelos! Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são menores; ou, como alguns dizem, “dá menos trabalho” por ser mais fácil de controlar e por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão em Spelman College, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência. Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As preferências individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem escamotear a realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista. Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade. Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político. Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão individual de desejo, eu sei que 11
  • 12. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 gesto semelhante traria outras implicações que fogem ao meu controle. A realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não somos belas. Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade. É mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa condição e nosso respeito por nós mesmas. Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. Durante anos, ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente, crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era. Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo. Em uma cultura de dominação e anti-Intimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora que libera a mente e o coração. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos. CORPO E CABELO COMO SÍMBOLOS DA IDENTIDADE NEGRA Nilma Lino Gomes Este artigo apresenta algumas reflexões decorrentes da minha tese de doutorado, defendida em junho/2002, na pós-graduação em Antropologia Social/USP. Trata-se de uma etnografia em salões étnicos na cidade de Belo Horizonte, espaços em que o corpo e o cabelo são tomados como expressões da identidade negra. A importância desses dois ícones identitários não se limita aos salões. Ambos são aspectos tomados pela cultura na construção da representação social e da beleza do negro/a na sociedade brasileira. Esta é a principal discussão a ser privilegiada no presente texto. A pesquisa realizada destaca o importante papel desempenhado pela dupla cabelo e cor da pele na construção da identidade negra e a importância destes, sobretudo do cabelo, na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, inclusive aquele que consegue algum tipo de ascensão social. Para esse sujeito, o cabelo não deixa de ser uma forte marca identitária e, em algumas situações, continua sendo visto como marca de inferioridade. O cabelo crespo, objeto de constante insatisfação, principalmente das mulheres, é também visto, nos espaços onde foi realizada a pesquisa, no sentido de uma revalorização, o que não deixa de apresentar 12
  • 13. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 contradições e tensões próprias do processo identitário. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que se pertence. Ao atingi-lo, acaba remetendo, às vezes de forma consciente e outras não, a uma ancestralidade africana recriada no Brasil. Ao falarmos sobre corpo e cabelo, inevitavelmente, nos aproximamos da discussão sobre identidade negra. Essa identidade é vista, no contexto desta pesquisa, como um processo que não se dá apenas a começar do olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com o olhar do outro, do que está fora. É essa relação tensa, conflituosa e complexa que este artigo privilegia, vendo-a a partir da mediação realizada pelo corpo e pela expressão da estética negra. Nessa mediação, um ícone identitários e sobressai: o cabelo crespo. O cabelo e o corpo são pensados pela cultura. Nesse sentido, o cabelo crespo e o corpo negro podem ser considerados expressões e suportes simbólicos da identidade negra no Brasil. Juntos, eles possibilitam a construção social, cultural, política e ideológica de uma expressão criada no seio da comunidade negra: a beleza negra.Por isso não podem ser considerados simplesmente como dados biológicos. A identidade negra é entendida, no contexto deste trabalho, como um processo construído historicamente em uma sociedade que padece de um racismo ambíguo e do mito da democracia racial. Como qualquer processo identitário, ela se constrói no contato com o outro, no contraste com o outro, na negociação, na troca, no conflito e no diálogo. Como diz Neusa Santos SOUZA (1990, p.77), ser negro no Brasil é tornar- se negro. Assim, para entender o “tornar-se negro” num clima de discriminação é preciso considerar como essa identidade se constrói no plano simbólico. Refiro-me aos valores, às crenças, aos rituais, aos mitos, à linguagem. Jacques d’ADESKY (2001, p.76) destaca que a identidade, para se constituir como realidade, pressupõe uma interação. A idéia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação. Nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade pessoal quanto a identidade socialmente derivada são formadas em diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas com os outros. O cabelo do negro na sociedade brasileira expressa o conflito racial vivido por negros e brancos em nosso país. É um conflito coletivo do qual todos participamos. Considerando a construção histórica do racismo brasileiro, no caso dos negros o que difere é que a esse segmento étnico/racial foi relegado estar no pólo daquele que sofre o processo de dominação política, econômica e cultural e ao branco estar no pólo dominante. Essa separação rígida não é aceita passivamente pelos negros. Por isso, práticas políticas são construídas, práticas culturais são reinventadas. O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como “bom” expressa um conflito. Por isso, mudar o cabelo pode significar a tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo. Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela que emerge um padrão de beleza corporal real e um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o real é negro e mestiço. O tratamento dado ao cabelo pode ser considerado uma das maneiras de expressar essa tensão. A consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a trajetória dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária. 13
  • 14. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Parto também do pressuposto de que essa identidade é construída historicamente em meio a uma série de mediações que diferem de cultura para cultura. Em nosso país, o cabelo e a cor da pele são as mais significativas. Ambos são largamente usados no nosso critério de classificação racial para apontar quem é negro e quem é branco em nossa sociedade, assim como as várias gradações de negrura por meio das quais a população brasileira se auto classifica nos censos demográficos. Não é minha intenção reduzir o complexo sistema de classificação racial brasileiro às impressões e opiniões sobre o cabelo e à cor da pele. Há muito os antropólogos e sociólogos (WOOD, 1991, p.93-104 e MAGGIE, 1998, p.230-233) observam que, no Brasil, o modo pelo qual as pessoas classificam a si mesmas e às outras, numa perspectiva étnico/racial, não se baseia unicamente na aparência física. Distintivos de classe social como, por exemplo, renda e educação, também desempenham um papel importante na auto-identificação e nas avaliações subjetivas que governam o comportamento intergrupal. Essa situação é tão séria que a base multidimensional da percepção de condição racial sugere a possibilidade de que um indivíduo que tenha experimentado algum tipo de ascensão social e se classificado como preto ou pardo em algum momento da sua vida como, por exemplo, no censo demográfico,possa identificar-se como pardo ou branco, posteriormente OS ESPAÇOS PESQUISADOS E OS SUJEITOS Os espaços pesquisados nos quais o cabelo crespo é a principal matéria-prima são quatro salões étnicos da cidade de Belo Horizonte: Beleza Negra, Preto e Branco, Dora Cabeleireiros e Beleza em Estilo. Deles emergem concepções semelhantes, diferentes e complementares sobre a beleza negra e a condição do negro na sociedade brasileira. Dois deles localizam-se no “centro da cidade” e os outros dois em bairros bem próximos dessa região. Os sujeitos da pesquisa são 28 mulheres e homens negros. Destes, 17 são mulheres e 112 são homens. São jovens e adultos, da faixa etária dos 20 aos 60 anos. Dentre estes destacam-se as cabeleireiras e os cabeleireiros dentre os quais cinco são mulheres e quatro são homens. Do total de cabeleireiras/os, seis são proprietárias/os e as/os outras/os são funcionárias/os de confiança. A parte mais intensa da etnografia, com um acompanhamento diário de cada salão, iniciou-se em agosto/setembro de 1999 e terminou em janeiro de 2001. O trabalho se estendeu até 2002, porém, nesse período, a ida ao campo tornou-se mais esparsa. Na etnografia, o dia-a-dia dos salões foi acompanhado, assim como as atividades externas: cursos de cabeleireiros, congressos, feiras, desfiles de beleza negra, encontros com a militância negra, festas, churrascos e momentos informais dos cabeleireiros e das 2 Um dos homens entrevistados possui um salão étnico na cidade de São Paulo. Contudo, a sua constante presença nas atividades desenvolvidas por um dos salões investigados, penteando modelos, dando cursos, participando de congressos e feiras, bem como a sua amizade com a cabeleireira, permitiram-me incluí-lo como um dos sujeitos da pesquisa. cabeleireiras. As entrevistas foram realizadas no espaço dos salões, nas casas, em bares e restaurantes. São depoimentos por vezes tristes, tensos e alegres. Alguns chegam a ser até mesmo divertidos, tal é a forma como algumas pessoas expressam a sua maneira de “lidar” com o cabelo e o corpo. Mas isso não retira a seriedade do conteúdo das falas. Além das entrevistas, outros recursos metodológicos como a fotografia, a leitura de revistas e demais publicações sobre cabelo e corpo negro presentes no salão, a análise do visual, das cores e das vestimentas foram privilegiados na tentativa de compor o ambiente estético no qual clientes, 14
  • 15. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 cabeleireiros e pesquisadora estavam imersos. Os sujeitos desta pesquisa são “cidadãos e cidadãs comuns”. O que isso quer dizer? São homens e mulheres que não estão necessariamente vinculados ao movimento negro. Alguns já fizeram parte deste em algum momento da sua trajetória, mas atualmente andam distantes da militância organizada. Essa escolha foi intencional, pois, de um certo modo, dentro da comunidade negra já é sabida a postura desconfiada de alguns militantes ou entidades do movimento em relação à manipulação do cabelo crespo. O discurso da militância é carregado de uma politização que é necessária para a sua atuação. Para este trabalho, porém, escolhi e quis ouvir homens e mulheres que constroem seu fazer cotidiano em outros espaços, por meio de outras referências que não somente as da militância. São também negros e negras que alcançaram algum grau de mobilidade dentro da classe trabalhadora e outros que se localizam na dita classe média negra. Essa escolha deve-se ao desejo de perceber se a ascensão social de alguns homens e mulheres negras, por mais simples que seja, resulta na diminuição ou minimização das experiências desagradáveis em relação ao cabelo crespo, ao corpo e à expressão estética negra. Durante a realização da pesquisa, tentei compreender como essas pessoas “comuns” pensam a questão da estética corporal negra em um país que, apesar da miscigenação racial e cultural, ainda se apóia em um imaginário que prima por um ideal de beleza europeu e branco. Assim, considero que para o negro e a negra, a forma como o seu corpo e cabelo são vistos por ele/ela mesmo/a e pelo outro configura um aprendizado constante sobre as relações raciais. Dependendo do lugar onde se desenvolve essa pedagogia da cor e do corpo, imagens podem ser distorcidas ou ressignificadas, estereótipos podem ser mantidos ou destruídos,hierarquias raciais podem ser reforçadas ou rompidas e relações sociais podem se estabelecer de maneira desigual ou democrática. Os salões trabalham com o corpo, o qual é passível de codificações particulares dentro de um grupo social. Por isso ao estudar o corpo não se pode generalizar as diferentes formas de expressão corporal para todas as culturas e grupos. No caso dos negros, existem códigos inscritos na forma de manipular o cabelo que não poderão ser decodificados facilmente por aqueles que não fazem parte desse grupo étnico/racial ou não possuem a convivência necessária para tal. Estudar os salões étnicos e a vida dos sujeitos que nele circulam poderá ser um dos caminhos na compreensão de alguns desses códigos. Sabemos que a discussão sobre a apropriação cultural do corpo não pode ser feita sem levar em consideração o contexto histórico, social e etnográfico no qual os sujeitos da pesquisa estão inseridos. É nesse contexto que os sujeitos e seus corpos adquirem significação. Assim, ao estudar o significado do cabelo crespo na vida de cabeleireiros e clientes de salões étnicos poderemos entender alguns comportamentos que foram culturalmente aprendidos a partir da interação entre negros, brancos e outros grupos étnicos no Brasil. Porém, cabe destacar, aqui, a especificidade do contexto urbano da cidade de Belo Horizonte. Sendo assim, é certo que algumas generalizações poderão ser feitas para outros contextos brasileiros, mas outras são específicas da história do negro belorizontino. No universo dos salões de beleza, os espaços onde se realizou essa pesquisa são chamados de salões étnicos. Essa classificação é usada para destacar a especificidade racial da clientela prioritariamente atendida por esses estabelecimentos, a saber, negros e mestiços. Ela também é atribuída devido ao pertencimento étnico/racial do proprietário ou proprietária, à especificidade do serviço oferecido, a saber, o trato do cabelo crespo e à existência de um projeto de valorização da beleza negra. Assim, o termo étnico, ao se referir aos salões, às cabeleireiras, aos cabeleireiros e à sua clientela, é usado pelos sujeitos envolvidos nesta pesquisa e por uma grande parte do mercado de cosméticos no Brasil e nos EUA como sinônimo de negro. É também uma substituição e, em alguns momentos, uma forma eufemística de se 15
  • 16. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 referir ao “salão afro”, termo adotado por esses espaços durante as décadas de 70 e 80. Essa classificação é mais do que uma terminologia. Ela diz respeito às evoluções e as mudanças ocorridas no campo das relações raciais. Neste trabalho também adoto o termo étnico ao me referir tanto aos salões quanto aos seus profissionais tentando articular as categorias nativas com as científicas, pois tanto os salões que demarcam com maior clareza um projeto em prol da afirmação da identidade e da beleza do negro quanto aqueles que o fazem de maneira mais fluida se autodenominam étnicos ou afro-étnicos. Essa denominação não se dá sem oscilações. Étnico ou afro? Muitas vezes, as próprias cabeleireiras e cabeleireiros confundem-se e questionam-se sobre o melhor termo a ser adotado. Essa oscilação pode ser interpretada, numa perspectiva mais ampla, como uma tentativa de conciliação das marcas identitárias com as mudanças no campo das relações raciais. Essas mudanças, no contexto dos salões, são atravessadas pelos interesses do mercado e pela forma como este manipula as identidades. Mais do que a escolha pelo termo que agrada mais ou que atrai mais clientes, a terminologia adotada refere-se à trajetória histórica e política da questão racial no Brasil, aos conflitos vividos pelos negros e negras na construção da identidade e às contradições presentes em um país miscigenado que vive sob a égide de um racismo ambíguo. Tudo isso toca de perto a vida e as escolhas das cabeleireiras e dos cabeleireiros. Os salões étnicos são, então, lugares bons para pensar a relação entre cabelo crespo e identidade negra. Por quê? Porque o cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Ele é maleável, visível, possível de alterações e foi transformado, pela cultura, em uma marca de pertencimento étnico/racial. No caso dos negros, o cabelo crespo é visto como um sinal diacrítico que imprime a marca da negritude nos corpos. Ele é mais um elemento que compõe o complexo processo identitário. Dessa forma, podemos afirmar que a identidade negra, enquanto uma construção social, é materializada, corporificada. Nas múltiplas possibilidades de análise que o corpo negro nos oferece, o trato do cabelo é aquela que se apresenta como a síntese do complexo e fragmentado processo de construção da identidade negra. LIDANDO COM O CABELO CRESPO NO ESPAÇO DOS SALÕES E NA VIDA Cabelos alisados nos anos 60, afros nos anos 70, permanente-afro nos anos 80, relaxamentos e alongamentos nos anos 90, o cabelo do negro atrai a nossa atenção. Para o negro e a negra o cabelo crespo carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que os classificam e os localizam dentro de um grupo étnico/racial. Durante as entrevistas, ao falar sobre o cabelo, a expressão “lidar com o cabelo” tornou-se emblemática. A “lida” pode ser vista de várias perspectivas. Apesar dessa expressão adquirir diferentes significados para distintas categorias sociais, no contexto das relações sociais capitalistas ela é associada ao trabalho. É o trabalho visto como fardo e exploração e não como realização pessoal. Contudo, a universalização da experiência social do trabalho não pode prescindir da particularização racial e do seu significado na realidade do negro. Para o negro, a idéia de labuta, sofrimento e fadiga faz parte de uma história ancestral. Remete à exploração e à escravidão. Assim, a expressão “lida”, numa perspectiva racial, incorpora a idéia de trabalho forçado e coisificação do escravo e da escrava. Lembra, também, as estratégias do regime escravista na tentativa de anular a cultura do povo negro. No regime escravista a “lida” do escravo implicava em trabalhos forçados no eito, na casa-grande, na mineração. Implicava, também, a violência e os açoites impingidos sobre o corpo negro. Dentre as muitas formas de violência impostas ao escravo e à escrava estava a raspagem do cabelo. Para o africano 16
  • 17. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 escravizado esse ato tinha um significado singular. Ele correspondia a uma mutilação, uma vez que o cabelo, para muitas etnias africanas, era considerado uma marca de identidade e dignidade. Esse significado social do cabelo do negro atravessou o tempo, adquiriu novos contornos e continua com muita força entre os negros e as negras da atualidade. A existência dos salões étnicos é uma prova disso. A forma como o par – cor da pele e cabelo – é visto no imaginário social brasileiro pode ser tomada como expressão do tipo de relações raciais aqui desenvolvido. Nesse processo, o entendimento do significado e dos sentidos do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e desvelar as nuances do nosso sistema de classificação racial o qual, além de cromático, é estético e corpóreo. O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre as relações raciais. Dessa forma, ele também pode ser pensado como um signo, pois representa algo mais, algo distinto de si mesmo. Assim como a democracia racial encobre os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o tipo de penteado, de manipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os adota podem ser usados para camuflar o pertencimento étnico/racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra. Mas tal comportamento pode também representar um processo de reconhecimento das raízes africanas assim como de reação, resistência e denúncia contra o racismo. E ainda pode expressar um estilo de vida. Os salões étnicos são, portanto, espaços privilegiados para pensar várias questões que envolvem a vida dos negros, dos mestiços e dos brancos. São espaços corpóreos, estéticos e identitários e, por isso, nos ajudam a refletir um pouco mais sobre a complexidade e os conflitos da identidade negra. Nos salões o cabelo crespo, visto socialmente como o estigma da vergonha, é transformado em símbolo de orgulho. Reconheço, porém, que eles não são os únicos espaços que possibilitam tais reflexões. A construção da identidade negra se dá no espaço da casa, da rua, do trabalho, da escola, do lazer, da intimidade, ou seja, na relação entre o público e o privado. Mas, todos esses outros espaços sociais se articulam e transversalizam os salões, compondo um extenso e complexo mapa de trajetórias sociais e raciais. Além da transversalidade dos outros espaços sociais os salões étnicos incorporam discussões políticas e, por vezes, ideológicas. Estas expressam-se nos nomes escolhidos pelos estabelecimentos e nas suas propostas de trabalho. Vemos, então, que tais espaços comportam uma ideologia racial, falam do lugar da diversidade étnico/racial e desenvolvem projetos sociais. O surgimento desses salões também se localiza num contexto histórico. Apesar dos salões populares que atendem a clientela negra ser uma realidade no Brasil há muitos anos, tais espaços não se autodenominavam étnicos ou afros e nem eram vistos enquanto tal. Eram salões de bairro, de fundo de quintal. Os espaços de beleza considerados étnicos surgem junto com a efervescência dos movimentos sociais, no final da década de 70, fortalecem-se nos anos 80 e nos anos 90 tornam-se mais visíveis e divulgados, sobretudo, nos grandes centros urbanos. Aos poucos esses espaços migram para o interior, porém, até hoje, não representam um número expressivo. Há questões sociais, regionais e econômicas que interferem nessa situação. Para os salões étnicos, localizar-se no centro urbano é estar em contato com o cosmopolitismo, com a circulação de idéias. É ter a oportunidade de divulgar o trabalho, aparecer na mídia, mas, também, ser confrontado publicamente e participar de embates políticos. Embora sejam encontrados com maior freqüência no centro urbano, esses salões não se afastam das regiões populares. Estão próximos dos mercados, das lojas, galerias e ruas populares. É nesse local que a 17
  • 18. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 comunidade negra reproduz a sua existência, por isso, seria incoerente se não estivessem próximos da sua clientela. Essa é a localização dos espaços pesquisados. Ao destacar o cabelo crespo e o corpo do negro esta etnografia coloca-nos diante de um campo mais vasto e mais profundo, a saber, a construção da estética corporal. Esta também apresenta uma dimensão simbólica que trafega em vários contextos. O corpo humano é o primeiro motivo de estética, de beleza, possuidor de um elemento maleável que, tal como a madeira e o barro, possibilita diferentes recortes, detalhes e modelagens: o cabelo. Por isso corpo e cabelo, no plano da cultura, puderam ser transformados em emblemas étnicos. Nesse sentido, engana-se quem pensa que uma etnografia em salões étnicos diz respeito somente ao trato do cabelo. De fato, é sobre o cabelo que recaem as atenções de todos que transitam nesses espaços. Ele é um dos principais ícones identitários para os negros. Porém, o cabelo sozinho não diz tudo. A sua representação se constrói no âmago das relações sociais e raciais. Pegar no cabelo é tocar no corpo. Cabelo crespo e corpo negro, colocados nessa ordem, são expressões de negritude. Por isso não podem ser pensados separadamente. A antropologia ajuda a pensar como o corpo é visto em cada cultura e a entender esse corpo para além da sua fisicalidade orgânica e plástica, mas sobretudo como uma construção cultural, sempre ligado a visões de mundo específicas. As singularidades culturais são dadas também pelas posturas, pelas predisposições, pelos humores e pela manipulação de diferentes partes do corpo. Por isso o corpo é importante para pensar a cultura. ESTÉTICA, PROJETOS POLÍTICOS E SALÕES ÉTNICOS A dimensão estética e sensível presente nos salões étnicos não está isenta de uma dimensão política. Para ser mais precisa, é difícil separar-se dessa última quando falamos em beleza ou estética negra. A expressão estética negra é inseparável do plano político, do econômico, da urbanização da cidade, dos processos de afirmação étnica e da percepção da diversidade. A particularidade dos salões pesquisados em relação à estética negra só pôde ser vista através da comparação. No caso dessa pesquisa, a comparação dos diferentes salões possibilitou perceber que, apesar de desenvolverem a sua prática em torno de questões semelhantes, cada estabelecimento possui concepções e projetos distintos em relação à estética negra. Se a comparação inspira cuidados do antropólogo para não incorrer no risco de generalização de aspectos observados em realidades diferentes, por outro lado, é só através dela que pude perceber a coexistência de particularidades e de características universais no universo dos salões. A formulação de uma proposta de intervenção estética que postula o direito à beleza para o povo negro, o desenvolvimento de ações comunitárias nas vilas e favelas, a maquiagem gratuita para dançarinos e militantes do movimento negro durante eventos públicos da comunidade negra, a construção de um discurso afirmativo e de valorização dos padrões estéticos negros são exemplos de atividades desenvolvidas pelos quatro salões pesquisados, porém de maneira e intensidade diferentes. Mesmo que tais práticas aconteçam coladas à figura da dona ou do dono do salão elas não deixam de possuir uma dimensão pública. Nesse caso podem ser considerados como projetos sociais, pois o seu alcance extrapola a prestação de serviços e os trabalhos cotidianos de um salão de beleza. Tais projetos, elaborados dentro de um campo de possibilidades, possuem também diferentes níveis de clareza quanto à explicitação dos seus objetivos, formas de comunicação e de alcance. Eles estão 18
  • 19. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 diretamente relacionados à história de vida, à construção da identidade negra e à inserção política da cabeleireira ou do cabeleireiro em relação à questão racial. Tomando cada salão em particular, é possível observar que o projeto da cabeleireira ou do cabeleireiro não garante a adesão de todos/as profissionais que atuam no interior do seu estabelecimento. O envolvimento da/o cabeleireira/o em projetos que extrapolam o salão pode provocar tensões e discordâncias, sobretudo quando se refere ao envolvimento com a militância negra. Durante a pesquisa de campo foi possível observar a existência de diferentes interpretações, desacordos e insatisfações de alguns profissionais com o projeto político e a prática dos salões. Essas tensões e discordâncias resultaram, em alguns casos, em demissões, brigas e separações. Como os salões também se organizam em torno de laços de amizade e consangüinidade, a divergência quanto à implementação de um projeto social e à interferência deste na prática cotidiana dos salões resultou, em alguns momentos, em rupturas afetivas. Algumas foram contornadas mais tarde e outras não. Há uma tensão entre o projeto individual e o social. Muitas vezes, uma ação extra salão corresponde ao interesse pessoal do cabeleireiro ou da cabeleireira frente à questão racial e não ao da sua equipe. Além disso, muitas vezes o/a cabeleireiro/a proprietário/a cobra dos demais integrantes da equipe o envolvimento em trabalhos sociais de maneira voluntária, durante horas de folga ou dias de descanso. Nem sempre essa demanda é respondida com agrado por todos. Alguns aderem ao projeto social por se identificarem com a proposta e outros não. E há outros que aderem como uma estratégia para permanecer no emprego, pois percebem que a recusa de participar de tais ações e projetos pode repercutir negativamente diante da cabeleireira ou do cabeleireiro-chefe, podendo afetar a sua permanência no salão. Mas entre os salões e os seus projetos também acontecem conflitos. O fato de serem concorrentes, pois não podemos esquecer de que eles são, antes de mais nada, estabelecimentos comerciais, desencadeia algumas brigas pessoais e discordâncias entre alguns profissionais. Essas divergências não são apenas profissionais. Elas referem-se ao julgamento da “autenticidade étnica” da proposta de valorização da negritude desenvolvida pelo salão concorrente. Assim, nem sempre os diferentes projetos dos salões se articulam entre si. Isso nos mostra que, apesar de sua importância, esses estabelecimentos ainda não conseguiram dar aos seus projetos estabilidade e continuidade supra-individuais, o que afeta, de alguma maneira, sua eficácia política. Por outro lado, as tensões em torno de um alcance político mais amplo não impedem que consideremos os salões como espaços que, com alguns limites, impostos inclusive pela sua própria natureza comercial, desenvolvem importantes projetos sociais, principalmente quando divulgam publicamente a profunda imbricação entre o estético e o político. Como diz Gilberto VELHO (1987), a viabilidade política de um projeto social, propriamente dita, dependerá de sua eficácia em mapear e dar sentido às emoções e sentimentos individuais. Esta é uma função que, com dificuldades, os salões conseguem desenvolver. Além disso, só o fato de afirmar publicamente a existência de uma “beleza negra”, de se especializar em tratar e valorizar o cabelo crespo e de atender uma clientela negra e mestiça, já faz com que os salões étnicos cumpram uma importante função política no contexto das relações raciais estabelecidas em nossa sociedade. Entretanto, apesar de realizar o seu trabalho de forma alegre e festiva, os salões também são espaços tensos. A rotina é desgastante, os horários de almoço e de saída são fluidos. Trabalha-se geralmente em pé, o que acarreta doenças da profissão: varizes, problemas na coluna, alergias aos produtos químicos e várias lesões por esforço repetitivo (L.E.R.). Há também um desgaste emocional pois trabalhar 19
  • 20. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 cotidianamente com processos delicados como a auto-estima e com as questões da subjetividade não é uma tarefa simples. Além disso, as preocupações de ordem financeira e o desdobramento para cumprir os projetos sociais, geralmente às noites e nos fins-de-semana, contribuem para aumentar a tensão. CONCLUINDO... Mesmo que não queiramos cobrar desses estabelecimentos uma eficácia política nos moldes tradicionais da militância, uma vez que são estabelecimentos comerciais e não entidades do movimento negro, o fato é que, ao se autodenominarem “étnicos” e se apregoarem como divulgadores de uma auto-imagem positiva do negro em uma sociedade racista, os salões se colocam no cerne de uma luta política e ideológica. A questão racial, em um país racista, sempre será política e ideológica, quer queiramos ou não, pois se contrapor ao racismo é se contrapor a práticas, posturas e ideologias. Exige posicionamento e mudança de comportamento. Assim, os salões são lugares em que se cruzam projetos individuais e sociais desenvolvidos em meio a instabilidades, conflitos e negociações. Cada um encontra maneiras variadas de comunicar a sua proposta de estética negra e o seu trabalho enquanto profissional da beleza. Ao longo dos anos, esses espaços transformam, alteram e substituem os seus projetos devido às mudanças no campo da estética, das novas tendências da moda, do mercado de produtos étnicos e das transformações sofridas no campo das políticas de identidade. Através da sua prática cotidiana e dos seus projetos, os salões étnicos tentam consciente e inconscientemente dar um sentido ou uma coerência a uma experiência identitária fragmentada vivida pelo negro. O contato com os salões me leva a refletir que ser negro no mundo está relacionado com uma dimensão estética, com um corpo, com uma aparência que pode ou não resgatar de forma positiva as nossas referências ancestrais africanas recriadas no Brasil. Isso precisa ser mais a sério quando investigamos a questão racial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS D’ADESKY, Jacques. Racismos e anti-racismos no Brasil; pluralismo étnico e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como ícones de construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos de Belo Horizonte. São Paulo:USP, 2002 (tese: doutorado). HARRIS, Marvin and KOTAK, Conrad. The structural significance of Brazilian racial categories. Sociologia, v.25, n.3, p.203-208, set. 1963. LOVELL, Peggy A (Org.). Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Cedeplar/Face/UFMG, 1991. MAGGIE, Yvonne. Aqueles a quem foi negada a cor do dia: as categorias cor e raça na cultura brasileira. In: MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura (Orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1998, p.225-234. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990. 20
  • 21. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. ______. Projeto e metamorfose; antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. WOOD, Charles H. Categorias censitárias e classificações subjetivas de raça no Brasil. In: LOVELL, Peggy A (Org.) . Desigualdade racial no Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Cedeplar/Face/UFMG, 1991. DADOS DA AUTORA: NILMA LINO GOMES, doutora em Antropologia Social/USP, é professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da UFMG e coordenadora do Projeto Ações Afirmativas na UFMG, aprovado pelo concurso Cor no Ensino Superior do Programa Políticas da Cor, do Laboratório de Políticas Públicas/UERJ. ENTREVISTA: Corporeidade transgressora A educadora Nilma Lino Gomes acha que pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e sexualidade pode ajudar a aprofundar e dar outras interpretações a questões como a dos direitos reprodutivos e contracepção versus religiosidade. Em junho de 2002, Nilma defendeu sua tese no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP), a qual apresentava uma etnografia em salões étnicos na cidade de Belo Horizonte, espaços, segundo ela, onde corpo e cabelo são tomados como expressões da identidade negra. A pesquisa destacava o importante papel desempenhado pela dupla cabelo e cor de pele na construção dessa identidade e na maneira como o negro se vê e é visto pelos outros. “Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão ‘cabelo ruim’, ‘cabelo bom’ tão usada em nossa sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais no Brasil”, diz ela. Algumas reflexões decorrentes da tese estão no artigo “Salões étnicos como espaços estéticos e políticos de identidade negra”, integrante da coletânea Movimentos Sociais, Educação e Sexualidades (CLAM/Editora Garamond), lançada recentemente em Florianópolis. Nilma é coordenadora do programa Ações Afirmativas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo a pesquisadora, “a importância do programa é o fato de comprovar que é necessário e possível o investimento na permanência bem sucedida de alunos negros na universidade. Não dá para pensar que a assistência estudantil oferecida pela universidade atinge a todos os alunos da mesma forma e nem dá para reduzir a questão do negro no ensino superior à idéia de assistência”, afirma nesta entrevista. Em sua tese, a sra. define os salões étnicos como espaços estéticos e políticos de identidade negra, lugares em que corpo e cabelo são tomados como expressão da identidade negra. Qual a importância desses dois ícones identitários? No que se refere à questão do negro, destaco que para se entender o corpo e o cabelo como símbolos identitários é preciso compreendê-los no contexto da cultura, ou seja, a forma como ambos são vistos por nós, dizem respeito a uma construção cultural. Ambos ganham simbolismo nos contextos históricos, sociais e políticos que se inserem. No processo de classificação dos grupos étnico-raciais, a materialidade do corpo recebe uma leitura cultural e, no caso dos negros brasileiros, essa leitura é atravessada pela forma como as relações raciais se construíram no Brasil, ou seja, num contexto marcado pela escravidão, 21
  • 22. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 pelo racismo ambíguo, pelo mito da democracia racial e pela desigualdade social e racial. Ao mesmo tempo, o corpo e o cabelo são marcados também por uma história de luta, de transgressão, de busca de expressão e de construção da identidade advinda dos próprios negros. Esses fatores todos estão presentes na sociedade quando lidamos, classificamos, interagimos e vivenciamos o “ser negro” na sociedade brasileira. Por isso a dupla cabelo e cor da pele pode ser entendida como um dos fatores primordiais para se compreender a maneira como o negro se vê e é visto pelo outro. Não se pode pensar a corporeidade negra dissociada desses fatores. Penso que o cabelo do negro é um dado da corporeidade que nos ajuda a compreender o conflito racial vivido por negros e brancos no Brasil. A expressão “cabelo ruim”, “cabelo bom” tão usada em nossa sociedade é um dos exemplos de como o cabelo crespo expressa a tensão estrutural das relações raciais no Brasil, a qual tem sido alvo de reações, transgressões e ressignficações oriundas dos próprios negros organizados em movimentos sociais ou por meio de diversas práticas culturais e estéticas. O cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Por isso, é importante compreender melhor a relação do negro com o corpo e com o cabelo. A mudança do cabelo pode significar várias e múltiplas vivências, situações sociais e processos identitários. O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre as relações raciais. Em seu trabalho, a sra. analisa a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade. Como articular esses temas? Essa é uma articulação complexa e há muito que se estudar sobre ela. A corporeidade está profundamente relacionada com as identidades que construímos em sociedade e na cultura. Ela está relacionada com a construção do masculino e do feminino, com as hierarquias de poder, com a diversidade étnico-racial, com as leituras, vivências e interpretações sobre a sexualidade. Acho que o mais importante é pensar a relação entre identidade negra, corpo, gênero e sexualidade para além da leitura sobre “a sexualidade da mulher negra e do homem negro” no contexto do racismo e das relações de poder. Esses fatores são importantes e não se pode desconsiderá-los quando estudamos as relações raciais, porém, há também um outro lado: aquele que se refere ao negro e à negra como sujeitos, que lidam com sua corporeidade e sua sexualidade e fazem escolhas. Essas escolhas são também políticas e é importante entendermos como o corpo negro pode ser considerado historicamente não como um corpo submisso mas, sim, um corpo transgressor diante do processo de dominação, dos padrões morais e sociais impostos. Pensar a relação entre gênero, corpo, identidade negra e sexualidade pode nos ajudar a aprofundar e dar outras interpretações a questões como: direitos reprodutivos, contracepção versus religiosidade, a esfera dos afetos, sexo, corpo e poder, corpo e trabalho, posturas masculinas e femininas, considerando que estes têm implicações diferentes na vida dos sujeitos quando articulamos gênero, raça, idade e classe. Em seu artigo, a sra. assinala que o processo de construção da identidade/corporeidade negra no país – processo de tornar-se negro – se dá por meio de um movimento dialético de rejeição/aceitação e negação/afirmação do corpo. Esse processo é o mesmo para todas as pessoas negras? Eu diria que há uma probabilidade muito grande de que muitas pessoas negras vivenciem o processo de construção da identidade negra dessa maneira. Tal situação não está impregnada “nas pessoas”, mas precisa ser entendida no contexto do racismo e das relações raciais construídas no Brasil. As pesquisas já realizadas sobre a construção da identidade negra apontam nessa direção. Porém, observo que as 22
  • 23. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 análises realizadas tendem a privilegiar o movimento de “rejeição/aceitação” do ser negro. Eu mesma no início das minhas pesquisas me voltava mais para esse aspecto. No entanto, o contato com os salões étnicos me fez compreender o movimento de “ressignificação” do ser negro e este é o que eu considero atualmente como o mais importante e pouco explorado pelo campo de estudos sobre relações raciais e identidade negra no Brasil. Essa ressignificação vai depender da forma como o sujeito lida com a sua identidade e com a sua corporeidade, da sua inserção em diferentes espaços sociais e das leituras e interpretações sociais e individuais sobre o “ser negro” no Brasil. Por isso, a ressignificação da identidade negra é coletiva, mesmo que se anuncie individual. Eu diria que, até o momento, esse é o entendimento que a pesquisa me possibilitou sobre o complexo processo de construção da identidade negra no Brasil mas, tenho certeza, de que há mais coisas que ainda não descobrimos. E é esse “a mais” que estou empenhada a pesquisar. Por que boa parte de homens e mulheres negras lidam com a corporeidade (cabelo, corpo etc) de forma tão conflituosa e o que isso nos mostra? Acho que nos mostra como o corpo foi transformado pela cultura num símbolo identitário, independentemente do sexo, idade, cor, nacionalidade etc. Estamos diante de um significado social do corpo que permeia todos os povos. Nesse processo, o contexto histórico e político vivido pelos homens e mulheres imprimem marcas e especificidades a esse corpo. Eu diria que o simbolismo do corpo assume uma tal importância na cultura que, através do estudo dos corpos, podemos compreender vários aspectos da vida social e da individualidade das pessoas. O cabelo ganha importância na constituição da corporeidade nas diversas culturas por ser um veículo capaz de transmitir diferentes mensagens, por isso possibilita as mais diferentes leituras e interpretações. Desse modo, para muitos, o cabelo é a moldura do rosto e um dos primeiros sinais a serem observados no corpo humano. A manipulação do cabelo se faz presente nos mais diversos povos. A meu ver, essa situação apresenta algo mais complexo: para se compreender o sentido social do cabelo e do corpo nas diversas culturas, precisamos aprofundar um pouco mais o estudo sobre as técnicas corporais e sua relação com os fatores fisio-psico-sociológicos que as acompanham, conforme nos ensinou Marcel Mauss. Isso nos ajudará a entender os conflitos em torno da corporeidade. Como a sra. analisa as referências ancestrais africanas recriadas no Brasil? Acho que o mais importante é conhecer melhor a África, sua história, sua cultura e seus povos. Vivemos, no Brasil, uma total ignorância em relação a esses aspectos. Essa ignorância não é construída no vazio, mas é fruto do racismo, do mito da democracia racial, de uma imagem distorcida e/ou mitificada sobre a África que aprendemos a construir em sociedade. Mudar essa visão é desencadear um processo educativo na sociedade brasileira em relação às nossas referências ancestrais africanas, não para cultuá-las e cristalizá-las, mas para conhecê-las, compreendê-las e valorizá-las como formadoras da nossa sociedade. Poderemos, então, ter uma outra compreensão sobre a escravidão e a história de dominação colonial dos países africanos, da riqueza das culturas e reinos africanos, as guerras, os conflitos, a arte, a metalurgia, a estética. Penso que ao conhecermos mais as nossas referências ancestrais africanas conheceremos um pouco mais a forma como a sociedade brasileira se construiu e entenderemos o que alguns autores chamam de “africanidades brasileiras”. Não há aqui nenhuma leitura essencialista sobre a África mas o reconhecimento de que sabemos pouco sobre uma das matrizes da construção da nossa sociedade e sobre a diáspora africana. Porém, esse conhecimento não pode ficar restrito às referências ancestrais 23
  • 24. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 vendo-as apenas na perspectiva do passado. Ele tem que se articular com o que é a África, hoje, seus dilemas, conflitos, etnias, história e inserção internacional. Atualmente, há tentativas de inserir esse processo educativo desde a educação básica. Temos, hoje, a lei 10.639/03 e as diretrizes curriculares nacionais dela advindas. Por meio destas, o estudo da história da África e das culturas afro-brasileiras tornou-se obrigatório nas escolas de educação básica públicas e privadas. Há um processo longo a ser realizado para que a lei se transforme efetivamente em práticas pedagógicas. Espero que esse movimento feito na educação básica traga luzes e estimule a discussão nos cursos superiores. Publicada em: 29/01/2006 às 16:15 entrevista 24
  • 25. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Enegrecer o feminismo: a situação da mulher Negra na América Latina a partir de uma Perspectiva de gênero Sueli Carneiro (*) No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas conseqüências. Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional”, através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”. O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras. Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”. Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. 25
  • 26. Agenda Política -------- CAMPANHA NACIONAL PELO FIM DA VIOLENCIA CONTRA AS MULHERES NEGRAS ------- Circulação Interna 25/07/2011 Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, esse também um alienígena para a nossa cultura. Fazemos parte de um contingente de mulheres ignoradas pelo sistema de saúde na sua especialidade, porque o mito da democracia racial presente em todas nós torna desnecessário o registro da cor dos pacientes nos formulários da rede pública, informação que seria indispensável para avaliarmos as condições de saúde das mulheres negras no Brasil, pois sabemos, por dados de outros países, que as mulheres brancas e negras apresentam diferenças significativas em termos de saúde. Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades. Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades não depende apenas da nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo. O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira. Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimento negro e de mulheres do país, enegrecendo de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro. Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras. Tem-se, ainda, estudado e atuado politicamente sobre os aspectos éticos e eugênicos colocados pelos avanços das pesquisas nas áreas de biotecnologia, em particular da engenharia genética. Um exemplo concreto refere-se, por exemplo, às questões de saúde e de população. Se, historicamente, 26