SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 1
Baixar para ler offline
22 Centrais 13 Novembro, 2015
Gazeta das Caldas
Carlos Cipriano
cc@gazetacaldas.com
O estudante de Engenharia do
Técnico nunca antes tinha entra-
do no Convento de Mafra. Mas foi
lá que assentou praça em Julho
de 1973, com o curso ainda por
concluir. No Instituto Superior
Técnico, as crises académicas de
1971 e 1972 tinham feito mossa
no regime e foram muitos os es-
tudantes que foram recambiados
para a tropa. Uma forma de o re-
gime tentar apaziguar os ânimos
revolucionários dos universitários.
Rolim Oliveira era um deles. Fez a
instrução em Mafra, passou a as-
pirante, foi alferes e tenente. Em
Janeiro de 1974 partiu para a sua
primeira comissão no Ultramar
(como então se dizia). Esteve
em Moçambique entre Janeiro
e Maio. O 25 de Abril apanhou-
-o lá, em Téte, afastado da ca-
pital Lourenço Marques (hoje
Maputo). Mas esse dia foi um
dia igual aos outros. Não soube
de nada. A revolução só lá che-
gou três dias depois, o que era
normal para as comunicações da
época.
Nessa altura ficou praticamente
adquirido que a guerra termina-
ra – pelo menos naquela zona –
tendo as tropas portuguesas pas-
sado a viver em harmonia com os
guerrilheiros moçambicanos.
Em Maio de 1974 vem para
Portugal. Passa pelos quar-
téis das Caldas da Rainha e de
Estremoz. É promovido a capi-
tão miliciano em Maio do ano
seguinte e parte imediatamente
para Angola.
“Já sabíamos que iria haver a
independência e estava previs-
to que nós regressaríamos a 28
de Fevereiro. Não sabíamos era
que a situação no terreno se iria
degradar e que acabaríamos
por voltar mais cedo”, contou à
Gazeta das Caldas.
A situação em Angola era de pré-
-guerra civil e tornava-se cada
vez mais evidente que os milita-
res portugueses já pouco mais
poderiam fazer ali. Tinha tido iní-
cio a ponte área que iria trazer
para Portugal milhares de “re-
tornados” e a tropa pouco mais
poderia fazer do que proteger os
portugueses que ainda estavam
no território.
O capitão Rolim é enviado para a
Lunda, a conhecida zona de dia-
mantes, a fim de enquadrar com
a sua companhia o acompanha-
mento de uma força de catan-
gueses que ali estava acantonada.
O Katanga era uma província do
sul do antigo Congo Belga e estes
mercenários iriam ter, pouco me-
ses depois, em Agosto, um papel
decisivo na batalha de Luanda, ao
lado do MPLA contra um ataque
da FNLA.
Depois da Lunda a companhia
de Rolim Oliveira é enviado em
Setembro para o Dondo. Mas an-
tes disso, numa viagem relâm-
pago a Portugal e às Caldas da
Rainha, o jovem capitão vem ain-
da assistir ao nascimento da sua
filha, Patrícia Rolim. Nesta visita
fugaz à ainda Metrópole, é por-
tador de missivas secretas que
entrega em mão a alguns dos
dignatários que emergiram da
Revolução de Abril: o almirante
Rosa Coutinho e o general Costa
Gomes.
Regressado a Angola, a sua mis-
são no Dondo é proteger a barra-
gem de Cambambe que produz
energia eléctrica para Luanda,
e manter aberta a estrada de
Catete, que era a principal porta
de entrada da capital. Serão os úl-
timos militares portugueses que
ali permanecem.
A dado momento é enviado a
Malange para trazer uma coluna
de camiões e jeeps que se desti-
navam a transportar as tropas da
Lunda para a zona de Luanda. Foi
ali que viveu o momento de maior
tensão durante a sua guerra afri-
cana pois o MPLA, que já ocupa-
ra o terreno, não queria autorizar-
-lhes o acesso. Contudo a missão
era para se cumprir e não lhe pas-
sava pela cabeça regressar sem o
material bélico que fora incum-
bido de ir buscar. Felizmente,
com alguma diplomacia, tudo se
resolveu.
À medida que o tempo passa e
com a situação militar a deterio-
rar-se devido à guerra civil en-
tre angolanos, torna-se clara a
emergência da partida. Estamos
em finais de Outubro de 1975. A
tropa portuguesa destrói armas
e outros equipamentos militares,
atirando-os para o fosso da bar-
ragem. E partem para Luanda,
em coluna, onde ficam alojados
no Grafanil. As últimas noites
são passadas com os militares já
acantonados no aeroporto. Rolim
Oliveira já veste à civil. Conta que
ainda se podia passear pela cida-
de com relativa segurança, mas
já escasseavam produtos. Por fim
embarca num avião da Swissair
fretado pelo governo português.
“Quando aterrei em Portugal
nem tinha feito a liquidatária
da companhia. Tivemos de re-
constituir tudo para poder fazer
o fecho de contas”, relata. Fê-
lo no quartel de Campolide, em
Caçadores 5, onde Rolim Oliveira
passa os seus últimos meses de
tropa.
Em 2 de Maio de 1976 é desmobi-
lizado. “Um erro”, dirá 40 anos
mais tarde. “Eu podia ter ficado
na tropa e como capitão tinha
acabado o curso no Técnico.
Assim, vim para as Caldas e ia
de carro para Lisboa para fre-
quentar as aulas”.
Rolim Oliveira acabaria por licen-
ciar-se em Engenharia Civil em
1981. Grande parte da sua car-
reira foi passada nos Serviços
Municipalizados das Caldas da
Rainha. Hoje está aposentado.
A INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA HÁ 40 ANOS
Assinalou-se esta semana, a 11 de Novembro, os 40 anos da independência de Angola. Gazet
dias da presença portuguesa na então colónia africana. Quase nada correu bem na descolo
antes dos militares portugueses
Rolim Oliveira – o capitão miliciano
O caldense Rolim Oliveira era capitão miliciano em 1975 quando Angola se tornou independente. Fez tropa
em Portugal, Moçambique (onde diz que o 25 de Abril lhe chegou três dias depois) e em Angola. Viveu
momentos de grande tensão, mas nunca esteve debaixo de fogo. Regressou a Portugal poucos dias antes da
independência.
Rolim Oliveira foi dos últimos militares portugueses a sair de Angola Na Lunda no quartel dos katangueses. Rolim Oliveira está ao cerco, ladeado de camaradas portugueses e militares do Katanga que,
dias depois, irão ter um papel decisivo na Batalha de Luanda.
MariaBeatrizRaposo
mbraposo@gazetacaldas.com
Com 20 anos, José Ventura já tinha
passado por dois empregos e pensa-
va agora na ascensão da sua carrei-
ra. Aliás, pouco tempo antes de partir
para Angola tinha ido a uma entrevis-
ta numa prestigiada fábrica de mol-
des, na Mantingança. Depois de fazer
alguns testes, o lugar era seu e podia
começar no dia seguinte. O que não
esperava é que, prestes a sair da por-
ta, o patrão lhe perguntasse: “Já fez
a tropa?”. “Não era o caso”, lem-
bra-se de ter dito José. Uma respos-
ta que lhe roubou a oportunidade de
trabalho.
José Ventura (conhecido por Leite
Silva entre os camaradas) acentou
praça em Vendas Novas, em 1973,
onde recebeu guia de marcha para
Estremoz.EmMaio1975émobilizadio
para Angola. “Já havia um ano de
revoluçãoemPortugal,masosâni-
mos ainda estavam muito contur-
bados porque os movimentos de
esquerda radical tinham como slo-
gan ‘Nem mais um soldado para o
Ultramar’. “Efectivamente a guer-
ratinhaterminado,maserapreciso
fazeradescolonização”,contaoex-
-furriel miliciano que integrou, com
23 anos, a Companhia de Comandos
e Serviços do Batalhão de Cavalaria
8322, que reunia 150 militares.
Quem também partiu com ele para
Henrique Carvalho (hoje, a cidade de
Saurimo) foi António Roque, na al-
tura primeiro sargento, que já tinha
estado em missão na Índia (1953),
Guiné (1963), Moçambique (1967)
e Cabo Verde (1971). Relembrando
os anos coloniais, o ex-militar de 86
anos (que chegou a sargento mor),
afirma que as relações entre nati-
vos e portugueses “eram óptimas”.
A segregação acontecia apenas no
mato e, nessas alturas, “as metra-
lhadoras resolviam”.
O Batalhão tinha a missão de formar
um exército misto com os movimen-
tos de libertação de Angola: FNLA
(Frente Nacional de Libertação de
Angola),UNITA(UniãoNacionalpara
a Independência de Angola) e MPLA
(Movimento Popular de Libertação
de Angola).
Contudo, como revelam os ex-cama-
radas, o acordo não passou do papel.
Na
luta
rio”
do
isso
e d
três
do
ape
dos
O d
dat
ria
dep
17h
um
aba
nha
se,
“to
Car
min
No
Com
(CC
-se
qua
Ven
sist
nem
vas
o q
top
má
tim
ant
que
o p
“se
ass
te,
sala
Por
As histórias
que então se iniciaria não
tiroteios. Alguns, arrastava
Uma
Testemunhos caldenses do fim de uma g
DR
CarlosCipriano
2313 Novembro, 2015
Gazeta das Caldas Centrais
ta das Caldas ouviu três caldenses que na altura assistiram aos últimos
onização angolana, bem como na das outras colónias. Envolvidos em
partirem.
verdade, “o que havia era uma
a pela hegemonia do territó-
”. Luta essa onde, na faixa Leste
país, o MPLA saiu vitorioso. Por
o mesmo, a transmissão do poder
do controlo de território para os
s movimentos angolanos, tarefa
Batalhão português, resumiu-se
enas ao estabelecimento de acor-
s com um dos partidos, o MPLA.
dia 12 de Junho de 1975 é uma
ta que continua fresca na memó-
de José Ventura, quarenta anos
pois. “Íamos jantar, eram essas
h30 ou 18h00, quando ouvimos
m estrondo enorme, até a terra
anou. Sabíamos que o acordo ti-
a terminado”, relembra o calden-
adiantando que, a partir deste dia
odo o eixo que ligava Henrique
rvalhoaLuandapassouaserdo-
nado pelo MPLA”.
final de mês de Junho, a
mpanhia de Comandos e Serviços
CS) abandona o quartel e instala-
na Base Aérea Nº 4, localizada a
atro quilómetros de Saurimo. José
ntura, que era responsável pelo
tema eléctrico e pela sala de ci-
ma, não poupava elogios às no-
s instalações, mais modernas que
quartel e equipadas com material
po de gama. “O cinema tinha uma
áquina de projecção Philips, o úl-
mogritodastecnologias”,afirmao
tigomiliciano,quetambémnãoes-
ece o primeiro filme que projectou,
português “José do Telhado” que,
ejamos sinceros, não teve muita
sistência, ao contrário do seguin-
‘Emanuelle’[erótico],quelotoua
a”, diz entre gargalhadas.
rsaberqueabaseaéreaseriatrans-
feridaparaoMPLA,JoséVentura,que
integrou o batalhão com a função de
rádio montador, andava preocupado
com o domínio técnico que os equi-
pamentos implicavam. “Eram mui-
tos pormenores específicos, como
íamos explicar-lhes tudo?”, ques-
tionava-se. Ficou espantado quan-
do, poucos dias após se ter reunido
com Ernesto Liberdade (major do
MPLA) lhe apareceram quatro an-
golanos que acabavam de termi-
nar os estudos na União Soviética e
que, com poucas explicações e em
apenas três dias, já sabiam manu-
sear “tudo aquilo”. Na verdade, o
apoio da URSS ao MPLA era eviden-
te, a começar pelos navios que par-
tiam da União Soviética carregados
com “doses industriais” de arma-
mento até Ponta Negra (República
do Congo), nos limites da fronteira
com Angola.
Contudo, explica José Ventura, a
maioria dos militares da força an-
golana desconheciam as armas com
que disparavam. “Na mão levavam
uma arma e na cartucheira as balas
para outra”.
REFUGIADOS PORTUGUESES
Ainda na base aérea, os militares
da CCS viram-se confrontados com
uma das situações mais dramáticas
da história da Companhia e que, em-
bora em menor escala, José Ventura
equipara com a actual crise dos re-
fugiados. “As pessoas gostam mui-
to de comentar, sentadas no sofá,
mas não sabem o que é estar do
outro lado do arame onde milha-
res de pessoas precisam de ajuda”,
conta.
Numa fase de conflitos violentos,
muitos dos portugueses residentes
em Henrique Carvalho pegaram nos
seus haveres e foram pedir auxílio à
base. Estavam assustados porque o
refúgio do lar não era mais seguro.
“Havia mulheres, homens, crian-
ças, novos e velhos e foi preciso
tratar daquela gente toda. As pa-
nelas estavam ao lume toda a noi-
te a aquecer leite e água para dar
banho aos bebés”, recorda António
Roque, que salienta o “trabalho
exemplar” do seu camarada Leite
Silva no acolhimento aos refugiados
portugueses acampados do lado de
fora da base. Este, por sua vez, revela
que os “militares eram obrigados a
ter alguma frieza para lidar com a
situação”.
Apesar dos esforços da Companhia
que, segundo António Roque, fez “o
máximo possível”, num dos dias o
arame farpado segurava um gran-
de papel que, explicitamente dizia:
“Cada refugiado mata um soldado
português,atécapitão”.
ASAVENTURASDEJIPE
Cuba também esteve presente no
território angolano, prestando apoio
ao MPLA com o envio de militares.
José Ventura lembra-se de um en-
contro com os guerrilheiros cuba-
nos, que acabaram mesmo por sal-
var os soldados portugueses. De
jipe, a Companhia saíra de Henrique
Carvalho até Luanda: 1200 quilóme-
tros, a maioria percorridos de noi-
te, onde as estradas se cruzam com
o mato. O relógio marcava as 3h00
quando o tubo do óleo se rompeu.
“Começámos a ver umas luzes ao
fundo, eles aproximaram-se num
Land Rover azul. Eram quatro, ar-
mados até aos dentes e nós senti-
mo-nos pequeninos, mas acabaram
porarranjarojipeegraçasaelesse-
guimos viagem”, relembra o ex-fur-
riel de 63 anos.
Foi novamente numa viagem de jipe,
também à noite, que José Ventura e
António Roque viveram o seu mo-
mento de maior tensão em Angola. A
estrada estava cortada com uma can-
cela e sob vigia de uma força armada
do MPLA. Uma semana antes, as tro-
pas portuguesas haviam invadido um
musseque naquele que ficou conhe-
cido como o Massacre de Vila Alice.
SegundocontaJosé,“asbrigadasdo
MPLA eram muito rigorosas quan-
to à prostituição, não queriam dei-
xar sair os nossos militares que ali
seforamencontrarcomumasmeni-
nas. Os militares portugueses arra-
saram aquilo tudo para tirar dali os
camaradas”.
Pois agora, com o massacre ainda na
memória,queriamajustarcontascom
osmilitaresqueseguiamnaquelejipe.
António Roque, que seguia na frente,
perguntou a um deles “Tu fumas?”,
e assim que o viu acenar atirou-lhe o
maço de tabaco que levava no bolso.
Estavam quites.
Foi de uma Angola devastada, onde
os funcionários da Câmara andavam
com escavadoras a recolher cadá-
veres, que os dois caldenses se des-
pediram, a 11 dias da independência.
António Roque arreou a última ban-
deira portuguesa do leste angolano,
que ainda hoje mantém guardada
numa vitrine em casa. Curiosamente,
está assinada por Leite Silva. Os dois
camaradas voaram para Portugal
num avião da Swissair, “com hos-
pedeiras lindíssimas”, brinca José
Ventura.
De volta ao seu país, José Ventura
passou por diversos postos de traba-
lho, até abrir a Electrolider, uma loja
de electrodomésticos que se aproxi-
ma dos 30 anos de existência.
Alguns dos militares da CCS conti-
nuam a encontrar-se religiosamente
todos os anos, em almoços de con-
vívio, e criaram mesmo um nome de
grupo: “Pandilha”.
s do furriel Ventura e do sargento Roque
envolvesse portugueses, a verdade é que eles estavam no meio e, tal como as forças dos movimentos de libertação, tinham que enfrentar
am-se mesmo durante horas. De uma Angola devastada trouxeram histórias de desespero, de camaradagem e uma amizade para a vida.
José Ventura e António Roque no rio Lucala, perto de Saurimo, e nas Caldas da Rainha, 40 anos depois
a casa com as marcas dos confrontos entre movimentos angolanos
guerra e do começo de outra
BEatrizRaposo
DR
DR
DR
(Foto de Furriel Romão)

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Tropa gazeta

A revolução republicana os acontecimentos de 4 e 5 de outubro
A revolução republicana   os acontecimentos de 4 e 5 de outubroA revolução republicana   os acontecimentos de 4 e 5 de outubro
A revolução republicana os acontecimentos de 4 e 5 de outubroGina Rodrigues
 
A Revolução de 25 de Abril de 1974
A Revolução de 25 de Abril de 1974A Revolução de 25 de Abril de 1974
A Revolução de 25 de Abril de 1974Jorge Almeida
 
Implantação da república
Implantação da repúblicaImplantação da república
Implantação da repúblicajufec
 
Implantação da república
Implantação da repúblicaImplantação da república
Implantação da repúblicajufec
 
O Dia 25 de Abril de 1974
O Dia 25 de Abril de 1974O Dia 25 de Abril de 1974
O Dia 25 de Abril de 1974diuguitofelgas
 
Trabalhos Alunos Grupo C
Trabalhos Alunos Grupo CTrabalhos Alunos Grupo C
Trabalhos Alunos Grupo Cmariasrt4
 
Implantação república
Implantação repúblicaImplantação república
Implantação repúblicajufec
 
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974124481
 
Boletim bib 25 abril ael
Boletim bib 25 abril aelBoletim bib 25 abril ael
Boletim bib 25 abril aelAELPB
 
A inaudita guerra da avenida gago coutinho final
A inaudita guerra da avenida gago coutinho finalA inaudita guerra da avenida gago coutinho final
A inaudita guerra da avenida gago coutinho finalliofer21
 
Implantação da República
Implantação da RepúblicaImplantação da República
Implantação da RepúblicaHelena
 
Bruno Micael Daniela V
Bruno Micael Daniela VBruno Micael Daniela V
Bruno Micael Daniela Vrfneto
 

Semelhante a Tropa gazeta (20)

A revolução republicana os acontecimentos de 4 e 5 de outubro
A revolução republicana   os acontecimentos de 4 e 5 de outubroA revolução republicana   os acontecimentos de 4 e 5 de outubro
A revolução republicana os acontecimentos de 4 e 5 de outubro
 
A Revolução de 25 de Abril de 1974
A Revolução de 25 de Abril de 1974A Revolução de 25 de Abril de 1974
A Revolução de 25 de Abril de 1974
 
Implant republica
Implant republicaImplant republica
Implant republica
 
Implantação da república
Implantação da repúblicaImplantação da república
Implantação da república
 
Implantação da república
Implantação da repúblicaImplantação da república
Implantação da república
 
O Dia 25 de Abril de 1974
O Dia 25 de Abril de 1974O Dia 25 de Abril de 1974
O Dia 25 de Abril de 1974
 
Guerra Colonial
Guerra ColonialGuerra Colonial
Guerra Colonial
 
Cronologia
CronologiaCronologia
Cronologia
 
Trab1 8a grp07
Trab1 8a grp07Trab1 8a grp07
Trab1 8a grp07
 
Guerra colonial
Guerra colonialGuerra colonial
Guerra colonial
 
Guerra Colonial
Guerra ColonialGuerra Colonial
Guerra Colonial
 
A República
A RepúblicaA República
A República
 
Trabalhos Alunos Grupo C
Trabalhos Alunos Grupo CTrabalhos Alunos Grupo C
Trabalhos Alunos Grupo C
 
Implantação república
Implantação repúblicaImplantação república
Implantação república
 
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974
Mais sobre a revolução do dia 25 de abril de 1974
 
Boletim bib 25 abril ael
Boletim bib 25 abril aelBoletim bib 25 abril ael
Boletim bib 25 abril ael
 
A inaudita guerra da avenida gago coutinho final
A inaudita guerra da avenida gago coutinho finalA inaudita guerra da avenida gago coutinho final
A inaudita guerra da avenida gago coutinho final
 
Implantação da República
Implantação da RepúblicaImplantação da República
Implantação da República
 
Bruno Micael Daniela V
Bruno Micael Daniela VBruno Micael Daniela V
Bruno Micael Daniela V
 
25 de Abril de 1974
25 de Abril de 197425 de Abril de 1974
25 de Abril de 1974
 

Tropa gazeta

  • 1. 22 Centrais 13 Novembro, 2015 Gazeta das Caldas Carlos Cipriano cc@gazetacaldas.com O estudante de Engenharia do Técnico nunca antes tinha entra- do no Convento de Mafra. Mas foi lá que assentou praça em Julho de 1973, com o curso ainda por concluir. No Instituto Superior Técnico, as crises académicas de 1971 e 1972 tinham feito mossa no regime e foram muitos os es- tudantes que foram recambiados para a tropa. Uma forma de o re- gime tentar apaziguar os ânimos revolucionários dos universitários. Rolim Oliveira era um deles. Fez a instrução em Mafra, passou a as- pirante, foi alferes e tenente. Em Janeiro de 1974 partiu para a sua primeira comissão no Ultramar (como então se dizia). Esteve em Moçambique entre Janeiro e Maio. O 25 de Abril apanhou- -o lá, em Téte, afastado da ca- pital Lourenço Marques (hoje Maputo). Mas esse dia foi um dia igual aos outros. Não soube de nada. A revolução só lá che- gou três dias depois, o que era normal para as comunicações da época. Nessa altura ficou praticamente adquirido que a guerra termina- ra – pelo menos naquela zona – tendo as tropas portuguesas pas- sado a viver em harmonia com os guerrilheiros moçambicanos. Em Maio de 1974 vem para Portugal. Passa pelos quar- téis das Caldas da Rainha e de Estremoz. É promovido a capi- tão miliciano em Maio do ano seguinte e parte imediatamente para Angola. “Já sabíamos que iria haver a independência e estava previs- to que nós regressaríamos a 28 de Fevereiro. Não sabíamos era que a situação no terreno se iria degradar e que acabaríamos por voltar mais cedo”, contou à Gazeta das Caldas. A situação em Angola era de pré- -guerra civil e tornava-se cada vez mais evidente que os milita- res portugueses já pouco mais poderiam fazer ali. Tinha tido iní- cio a ponte área que iria trazer para Portugal milhares de “re- tornados” e a tropa pouco mais poderia fazer do que proteger os portugueses que ainda estavam no território. O capitão Rolim é enviado para a Lunda, a conhecida zona de dia- mantes, a fim de enquadrar com a sua companhia o acompanha- mento de uma força de catan- gueses que ali estava acantonada. O Katanga era uma província do sul do antigo Congo Belga e estes mercenários iriam ter, pouco me- ses depois, em Agosto, um papel decisivo na batalha de Luanda, ao lado do MPLA contra um ataque da FNLA. Depois da Lunda a companhia de Rolim Oliveira é enviado em Setembro para o Dondo. Mas an- tes disso, numa viagem relâm- pago a Portugal e às Caldas da Rainha, o jovem capitão vem ain- da assistir ao nascimento da sua filha, Patrícia Rolim. Nesta visita fugaz à ainda Metrópole, é por- tador de missivas secretas que entrega em mão a alguns dos dignatários que emergiram da Revolução de Abril: o almirante Rosa Coutinho e o general Costa Gomes. Regressado a Angola, a sua mis- são no Dondo é proteger a barra- gem de Cambambe que produz energia eléctrica para Luanda, e manter aberta a estrada de Catete, que era a principal porta de entrada da capital. Serão os úl- timos militares portugueses que ali permanecem. A dado momento é enviado a Malange para trazer uma coluna de camiões e jeeps que se desti- navam a transportar as tropas da Lunda para a zona de Luanda. Foi ali que viveu o momento de maior tensão durante a sua guerra afri- cana pois o MPLA, que já ocupa- ra o terreno, não queria autorizar- -lhes o acesso. Contudo a missão era para se cumprir e não lhe pas- sava pela cabeça regressar sem o material bélico que fora incum- bido de ir buscar. Felizmente, com alguma diplomacia, tudo se resolveu. À medida que o tempo passa e com a situação militar a deterio- rar-se devido à guerra civil en- tre angolanos, torna-se clara a emergência da partida. Estamos em finais de Outubro de 1975. A tropa portuguesa destrói armas e outros equipamentos militares, atirando-os para o fosso da bar- ragem. E partem para Luanda, em coluna, onde ficam alojados no Grafanil. As últimas noites são passadas com os militares já acantonados no aeroporto. Rolim Oliveira já veste à civil. Conta que ainda se podia passear pela cida- de com relativa segurança, mas já escasseavam produtos. Por fim embarca num avião da Swissair fretado pelo governo português. “Quando aterrei em Portugal nem tinha feito a liquidatária da companhia. Tivemos de re- constituir tudo para poder fazer o fecho de contas”, relata. Fê- lo no quartel de Campolide, em Caçadores 5, onde Rolim Oliveira passa os seus últimos meses de tropa. Em 2 de Maio de 1976 é desmobi- lizado. “Um erro”, dirá 40 anos mais tarde. “Eu podia ter ficado na tropa e como capitão tinha acabado o curso no Técnico. Assim, vim para as Caldas e ia de carro para Lisboa para fre- quentar as aulas”. Rolim Oliveira acabaria por licen- ciar-se em Engenharia Civil em 1981. Grande parte da sua car- reira foi passada nos Serviços Municipalizados das Caldas da Rainha. Hoje está aposentado. A INDEPENDÊNCIA DE ANGOLA HÁ 40 ANOS Assinalou-se esta semana, a 11 de Novembro, os 40 anos da independência de Angola. Gazet dias da presença portuguesa na então colónia africana. Quase nada correu bem na descolo antes dos militares portugueses Rolim Oliveira – o capitão miliciano O caldense Rolim Oliveira era capitão miliciano em 1975 quando Angola se tornou independente. Fez tropa em Portugal, Moçambique (onde diz que o 25 de Abril lhe chegou três dias depois) e em Angola. Viveu momentos de grande tensão, mas nunca esteve debaixo de fogo. Regressou a Portugal poucos dias antes da independência. Rolim Oliveira foi dos últimos militares portugueses a sair de Angola Na Lunda no quartel dos katangueses. Rolim Oliveira está ao cerco, ladeado de camaradas portugueses e militares do Katanga que, dias depois, irão ter um papel decisivo na Batalha de Luanda. MariaBeatrizRaposo mbraposo@gazetacaldas.com Com 20 anos, José Ventura já tinha passado por dois empregos e pensa- va agora na ascensão da sua carrei- ra. Aliás, pouco tempo antes de partir para Angola tinha ido a uma entrevis- ta numa prestigiada fábrica de mol- des, na Mantingança. Depois de fazer alguns testes, o lugar era seu e podia começar no dia seguinte. O que não esperava é que, prestes a sair da por- ta, o patrão lhe perguntasse: “Já fez a tropa?”. “Não era o caso”, lem- bra-se de ter dito José. Uma respos- ta que lhe roubou a oportunidade de trabalho. José Ventura (conhecido por Leite Silva entre os camaradas) acentou praça em Vendas Novas, em 1973, onde recebeu guia de marcha para Estremoz.EmMaio1975émobilizadio para Angola. “Já havia um ano de revoluçãoemPortugal,masosâni- mos ainda estavam muito contur- bados porque os movimentos de esquerda radical tinham como slo- gan ‘Nem mais um soldado para o Ultramar’. “Efectivamente a guer- ratinhaterminado,maserapreciso fazeradescolonização”,contaoex- -furriel miliciano que integrou, com 23 anos, a Companhia de Comandos e Serviços do Batalhão de Cavalaria 8322, que reunia 150 militares. Quem também partiu com ele para Henrique Carvalho (hoje, a cidade de Saurimo) foi António Roque, na al- tura primeiro sargento, que já tinha estado em missão na Índia (1953), Guiné (1963), Moçambique (1967) e Cabo Verde (1971). Relembrando os anos coloniais, o ex-militar de 86 anos (que chegou a sargento mor), afirma que as relações entre nati- vos e portugueses “eram óptimas”. A segregação acontecia apenas no mato e, nessas alturas, “as metra- lhadoras resolviam”. O Batalhão tinha a missão de formar um exército misto com os movimen- tos de libertação de Angola: FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola),UNITA(UniãoNacionalpara a Independência de Angola) e MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). Contudo, como revelam os ex-cama- radas, o acordo não passou do papel. Na luta rio” do isso e d três do ape dos O d dat ria dep 17h um aba nha se, “to Car min No Com (CC -se qua Ven sist nem vas o q top má tim ant que o p “se ass te, sala Por As histórias que então se iniciaria não tiroteios. Alguns, arrastava Uma Testemunhos caldenses do fim de uma g DR CarlosCipriano 2313 Novembro, 2015 Gazeta das Caldas Centrais ta das Caldas ouviu três caldenses que na altura assistiram aos últimos onização angolana, bem como na das outras colónias. Envolvidos em partirem. verdade, “o que havia era uma a pela hegemonia do territó- ”. Luta essa onde, na faixa Leste país, o MPLA saiu vitorioso. Por o mesmo, a transmissão do poder do controlo de território para os s movimentos angolanos, tarefa Batalhão português, resumiu-se enas ao estabelecimento de acor- s com um dos partidos, o MPLA. dia 12 de Junho de 1975 é uma ta que continua fresca na memó- de José Ventura, quarenta anos pois. “Íamos jantar, eram essas h30 ou 18h00, quando ouvimos m estrondo enorme, até a terra anou. Sabíamos que o acordo ti- a terminado”, relembra o calden- adiantando que, a partir deste dia odo o eixo que ligava Henrique rvalhoaLuandapassouaserdo- nado pelo MPLA”. final de mês de Junho, a mpanhia de Comandos e Serviços CS) abandona o quartel e instala- na Base Aérea Nº 4, localizada a atro quilómetros de Saurimo. José ntura, que era responsável pelo tema eléctrico e pela sala de ci- ma, não poupava elogios às no- s instalações, mais modernas que quartel e equipadas com material po de gama. “O cinema tinha uma áquina de projecção Philips, o úl- mogritodastecnologias”,afirmao tigomiliciano,quetambémnãoes- ece o primeiro filme que projectou, português “José do Telhado” que, ejamos sinceros, não teve muita sistência, ao contrário do seguin- ‘Emanuelle’[erótico],quelotoua a”, diz entre gargalhadas. rsaberqueabaseaéreaseriatrans- feridaparaoMPLA,JoséVentura,que integrou o batalhão com a função de rádio montador, andava preocupado com o domínio técnico que os equi- pamentos implicavam. “Eram mui- tos pormenores específicos, como íamos explicar-lhes tudo?”, ques- tionava-se. Ficou espantado quan- do, poucos dias após se ter reunido com Ernesto Liberdade (major do MPLA) lhe apareceram quatro an- golanos que acabavam de termi- nar os estudos na União Soviética e que, com poucas explicações e em apenas três dias, já sabiam manu- sear “tudo aquilo”. Na verdade, o apoio da URSS ao MPLA era eviden- te, a começar pelos navios que par- tiam da União Soviética carregados com “doses industriais” de arma- mento até Ponta Negra (República do Congo), nos limites da fronteira com Angola. Contudo, explica José Ventura, a maioria dos militares da força an- golana desconheciam as armas com que disparavam. “Na mão levavam uma arma e na cartucheira as balas para outra”. REFUGIADOS PORTUGUESES Ainda na base aérea, os militares da CCS viram-se confrontados com uma das situações mais dramáticas da história da Companhia e que, em- bora em menor escala, José Ventura equipara com a actual crise dos re- fugiados. “As pessoas gostam mui- to de comentar, sentadas no sofá, mas não sabem o que é estar do outro lado do arame onde milha- res de pessoas precisam de ajuda”, conta. Numa fase de conflitos violentos, muitos dos portugueses residentes em Henrique Carvalho pegaram nos seus haveres e foram pedir auxílio à base. Estavam assustados porque o refúgio do lar não era mais seguro. “Havia mulheres, homens, crian- ças, novos e velhos e foi preciso tratar daquela gente toda. As pa- nelas estavam ao lume toda a noi- te a aquecer leite e água para dar banho aos bebés”, recorda António Roque, que salienta o “trabalho exemplar” do seu camarada Leite Silva no acolhimento aos refugiados portugueses acampados do lado de fora da base. Este, por sua vez, revela que os “militares eram obrigados a ter alguma frieza para lidar com a situação”. Apesar dos esforços da Companhia que, segundo António Roque, fez “o máximo possível”, num dos dias o arame farpado segurava um gran- de papel que, explicitamente dizia: “Cada refugiado mata um soldado português,atécapitão”. ASAVENTURASDEJIPE Cuba também esteve presente no território angolano, prestando apoio ao MPLA com o envio de militares. José Ventura lembra-se de um en- contro com os guerrilheiros cuba- nos, que acabaram mesmo por sal- var os soldados portugueses. De jipe, a Companhia saíra de Henrique Carvalho até Luanda: 1200 quilóme- tros, a maioria percorridos de noi- te, onde as estradas se cruzam com o mato. O relógio marcava as 3h00 quando o tubo do óleo se rompeu. “Começámos a ver umas luzes ao fundo, eles aproximaram-se num Land Rover azul. Eram quatro, ar- mados até aos dentes e nós senti- mo-nos pequeninos, mas acabaram porarranjarojipeegraçasaelesse- guimos viagem”, relembra o ex-fur- riel de 63 anos. Foi novamente numa viagem de jipe, também à noite, que José Ventura e António Roque viveram o seu mo- mento de maior tensão em Angola. A estrada estava cortada com uma can- cela e sob vigia de uma força armada do MPLA. Uma semana antes, as tro- pas portuguesas haviam invadido um musseque naquele que ficou conhe- cido como o Massacre de Vila Alice. SegundocontaJosé,“asbrigadasdo MPLA eram muito rigorosas quan- to à prostituição, não queriam dei- xar sair os nossos militares que ali seforamencontrarcomumasmeni- nas. Os militares portugueses arra- saram aquilo tudo para tirar dali os camaradas”. Pois agora, com o massacre ainda na memória,queriamajustarcontascom osmilitaresqueseguiamnaquelejipe. António Roque, que seguia na frente, perguntou a um deles “Tu fumas?”, e assim que o viu acenar atirou-lhe o maço de tabaco que levava no bolso. Estavam quites. Foi de uma Angola devastada, onde os funcionários da Câmara andavam com escavadoras a recolher cadá- veres, que os dois caldenses se des- pediram, a 11 dias da independência. António Roque arreou a última ban- deira portuguesa do leste angolano, que ainda hoje mantém guardada numa vitrine em casa. Curiosamente, está assinada por Leite Silva. Os dois camaradas voaram para Portugal num avião da Swissair, “com hos- pedeiras lindíssimas”, brinca José Ventura. De volta ao seu país, José Ventura passou por diversos postos de traba- lho, até abrir a Electrolider, uma loja de electrodomésticos que se aproxi- ma dos 30 anos de existência. Alguns dos militares da CCS conti- nuam a encontrar-se religiosamente todos os anos, em almoços de con- vívio, e criaram mesmo um nome de grupo: “Pandilha”. s do furriel Ventura e do sargento Roque envolvesse portugueses, a verdade é que eles estavam no meio e, tal como as forças dos movimentos de libertação, tinham que enfrentar am-se mesmo durante horas. De uma Angola devastada trouxeram histórias de desespero, de camaradagem e uma amizade para a vida. José Ventura e António Roque no rio Lucala, perto de Saurimo, e nas Caldas da Rainha, 40 anos depois a casa com as marcas dos confrontos entre movimentos angolanos guerra e do começo de outra BEatrizRaposo DR DR DR (Foto de Furriel Romão)