1. O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 2 - Edição: 8/04/2012 - Impresso: 7/04/2012 — 02: 26 h PRETO/BRANCO
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● SEGUNDO CADERNO O GLOBO Domingo, 8 de abril de 2012
Da periferia paulistana à ‘Bahia fantástica’
Celebrado como um dos maiores de sua geração ao lançar seu primeiro disco, em 2009, Rodrigo Campos volta com nova estética
Divulgação/Ding Musa
Leonardo Lichote ecos de São Mateus.
— A periferia ainda habita
llichote@oglobo.com.br
no meu imaginário e ainda me
D
orival Caymmi escre- cerca. Alexandre, personagem
veu: “Adalgisa man- que rouba carros em “Sete ve-
dou dizer/ Que a Ba- la”, existe, é um amigo meu —
hia tá viva ainda lá/ conta o compositor. — A Ba-
Que a Bahia tá viva ainda lá/ hia que me interessa é uma pe-
Que a Bahia tá viva ainda lá.” riferia. Em alguns sentidos, é a
Em “Cinco doces”, faixa que periferia do Brasil, pela coisa
abre seu segundo disco, “Bahia do negro, da música popular.
fantástica” (YB), Rodrigo Cam- Musicalmente, o disco traz a
pos canta: “Daqui pra lá não vá sofisticada herança afro de um
dizer/ Que a Bahia não lhe Baden Powell, de um Moacir
achou/ Que a Bahia não lhe Santos, vertida para uma pega-
achou/ Que a Bahia não lhe da funk-soul — mas sem con-
achou.” Mais que uma referên- cessões nem reverências exces-
cia consciente (o compositor sivas a nenhuma das escolas.
não se lembra de já ter ouvido — Baden tem um caminho
“Adalgisa”), as palavras do modal que existe também em
mestre baiano revelam a maté- Miles Davis, no cool jazz. Mas
ria de que é feito o cenário mí- ele usa isso de um jeito afro, al-
tico, imaginado, fantasioso que go próprio. E ele usa muito o riff
Campos constrói no CD, a tal no violão, mais que um violão
Bahia fantástica: cacos dos harmônico convencional. Nesse
olhares de Caymmi, Jorge disco busco muito esses riffs. E,
Amado, Ary Barroso, Carybé, por outro lado, o diálogo com o
tropicalistas, Pierre Verger, Vi- soul também. Um gênero que
nicius de Moraes, somados a tem um nome (alma, em portu-
vivências pessoais, tudo cruza- guês), aliás, que dialoga com a
do sem fronteiras muito defini- temática da morte presente no
das, num terreno de mistério, disco. São riffs modais, que le-
expresso nos versos secos, de vam para Baden, mas com uma
narrativas incompletas. RODRIGO CAMPOS: mergulho na Bahia depois de São Mateus, bairro da periferia de SP onde cresceu e que serviu de cenário para seu CD de estreia força funk se repetindo, levando
— No meu imaginário, a Ba- a música mais ritmicamente do
hia é algo profundo, o início de que harmonicamente. Na pri-
algo, do Brasil, um berço de meira sessão de gravação do CD
religiões, misticismo. Como o
disco fala muito da morte, re- Um trabalho novamente incômodo e deslumbrante (feito ao vivo no estúdio), levei
referências de bateria de discos
fletindo um momento de soli- de Curtis Mayfield, Funkadelic.
dão em que pensei muito no andava no fio da navalha do mar”), “Aninha”, Mino num “outro” lugar que é
tema, a Bahia acaba sendo a ‘Bahia fantástica’ do lirismo e não caía na (de “Ribeirão”, com parti- infestado de mitologias. Convidados como Criolo
metáfora perfeita. Metáfora Rodrigo Campos pieguice. Era e é incômodo cipação de Criolo), Nani e Mas não cria simulacros A sonoridade que atravessa
para a morte, como algo que Luiz Fernando Vianna e deslumbrante. Beto (de “Beco”), “Capi- de candomblé, Caymmi, as faixas carrega a assinatura
não compreendo — reflete o Para não virar um cro- tão”, “General Geral”. samba-reggae... Tudo isso do núcleo formado por artis-
luiz.vianna@oglobo.com.br
compositor, celebrado como nista de seu bairro, pois já O que Rodrigo continua perpassa discretamente tas como Fróes (diretor artís-
um dos maiores de sua gera- Se não é o me- tinha dado ple- a fazer e já é arranjos e canções, pois o tico-musical), Dinucci (guitar-
ção quando lançou seu CD de DISCO lhor compositor na conta disso sua marca: lugar da música de Rodri- ra), Cabral (baixo), Thiago
estreia, “São Mateus não é um
lugar assim tão longe”, em
CRÍTICA da tal nova cena
musical paulis-
no outro disco,
Rodrigo usa a
cria uma mito-
logia da vida
go, sobretudo neste se-
gundo CD, é qualquer lu-
França (sopros) — nomes que
se cruzam em projetos como
2009. — Os personagens vi- tana — e possivelmente o é Bahia como anônima (de- gar. Os cruzamentos de Metá Metá e Passo Torto, além
vem situações de morte. Um —, Rodrigo Campos se tra- fonte de inspi- salentada, gau- atabaques, sopros e sinte- dos CDs solos de cada um. A
acaba de matar o dono da bo- ta, pelo menos, do mais ração para che, periférica tizadores aproximam “Jar- eles se juntam outros menos
ca (“Jardim Japão”), tem o la- original. O impacto de seu suas novas his- nos dois senti- dim Japão” e “Elias”, pas- ou mais próximos do núcleo,
drão de carro que morreu segundo CD só não é maior tórias. Pois ele dos) a par tir sadas na periferia de São como Juçara Marçal, Criolo,
(“Sete vela”)... Mas ao mesmo porque não há como supe- é um composi- de pequenos Paulo, de “Morte na Ba- Luísa Maita e Guilherme Held
tempo não deixo tudo tão cla- rar a força do primeiro. tor dramatúrgico. Agora contos — as letras estão hia” e “Sou de Salvador”, — alguns dos convidados de
ro, porque é um assunto pesa- “São Mateus não é um lu- não fala de personagens ainda menores. Em vez, quatro faixas de um traba- “Bahia fantástica”.
do e eu não queria um disco gar assim tão longe” (2009) reais, mas de criações a porém, de contar e cantar lho novamente incômodo — O samba, e o desejo de fa-
pesado. Deixo várias lacunas. combinava delicadeza que as músicas conferem o “seu” lugar, dando visibi- e deslumbrante. zer algo diferente com ele, foi
É essa incompreeensão das com grito de periferia, concretude, como Andre- lidade àqueles fragmentos um ponto de partida que nos
coisas que me pega. E que aju- samba com programações, za (da dançante “Princesa de vida, ele agora dialoga Cotação: ótimo aproximou. Mas as coisas fo-
da a construir esse universo ram caminhando, e hoje nossa
fantástico que queria. relação é muito maior do que
isso — conta Campos.
Projetos paralelos bairro da periferia paulistana No Passo Torto — projeto cius, andei por Itapuã... Quando explica Campos, que encerra o Como a Bahia fantástica que
Nessa perspectiva, Campos onde cresceu e que serviu de que integra com Romulo Fróes, voltei, comecei a compor coisas disco com uma canção que afir- se ergue das canções do disco
explica, a voz de “Cinco doces” cenário para as canções de Kiko Dinucci e Marcelo Cabral, pensando na Bahia. Me questio- ma já no título: “Sou de Salva- — narrativas banais, nada épi-
pode ser o barqueiro que con- seu primeiro disco — em dire- que lançou seu também elogia- nei muito, porque sempre falei dor.” — Mas tem ironia. Digo cas, sobre a profundidade da
duz as almas no início da via- ção à Bahia foi movida pelo do CD de estreia no ano passa- de lugares e personagens com que sou de Salvador e comple- morte.
gem para a sua Bahia (os versos desejo de mudança. do —, Rodrigo já havia saído de os quais tinha uma profunda re- to: “Cheguei na Bahia de ma- — Isso tem a ver comigo,
continuam: “Fiz cinco doces pra — Queria uma estética no- São Mateus para um cenário lação. Tinha até um certo pre- nhã.” É um pouco do que eu não com meu jeito de buscar a sim-
lhe ver/ E alguém um dia lhe fa- va, sair de um terreno no qual maior, a cidade de São Paulo co- conceito, por exemplo, com disse no primeiro disco, quando plicidade. Sou um cara que vou
lou/ Tenho Bahia pra você/ Te- eu já estava ficando estigmati- mo um todo. O desejo de am- compositores de samba de São podia ter dito que o samba é consolar você se sua mãe mor-
nho Bahia pra você”): zado. Não queria outro disco pliar ainda mais e, mais que is- Paulo que emulavam composi- meu também, apesar de eu não rer com o mesmo tom com que
— Tem a ver com o caráter de periferia. Minha ideia era so, a escolha do cenário da Ba- tores da Portela, São Mateus ti- ser carioca. darei parabéns se você ganhar
sedutor da morte, associado a fazer algo menos cronológico, hia veio após uma temporada nha isso. Mas fui entendendo A escolha por retratar uma na loteria. Não sou intenso no
algo doce, talvez Caymmi esta- real, e mais fantástico — diz, de dez dias em Salvador, num que a Bahia era uma metáfora, Bahia marginal, despida de gla- trato. Minha intensidade se dá
ja de novo aí, “é doce morrer referindo-se ao disco de es- hotel que incorporou a casa em uma sensação de algo que era mour — seus personagens são de maneira menos clara — diz,
no mar”... treia, uma espécie de crônica que Vinicius de Moraes viveu. meu. E essa Bahia de que falo é traficantes, ladrões, escravos, novamente como se falasse de
A saída de São Mateus — autobiográfica do bairro. — Dormi no quarto de Vini- um patrimônio de nós todos — moleques, loucos — carrega sua Bahia. ■
O ‘popstar’ dos clássicos • Continuação da página 1
E
x-empresário de precisava trazer 15 contêine- trabalho, ele vai logo pergun- Com a quantidade de ingres- patrocinador. Não quero ficar dley com músicas que vão de
Elis Regina, Gal res, e o André é muito zeloso. tando o que está acontecendo. sos vendidos, a solução foi ir perto da falência novamente! “Tico-tico no fubá” (de Zequi-
Costa e RPM, até Seu espetáculo é um Cirque du Para participar da orquestra, para estádios de futebol, onde — brinca ele, que deve, antes nha de Abreu) a “La bamba”
hoje cuidando de Soleil da música. você tem que ser uma pessoa você pode botar 30 mil, 40 mil disso (provavelmente em se- (canção tradicional mexicana
Rita Lee, Manoel Para sua turnê brasileira, aberta, que consiga passar pessoas de uma vez só, em vez tembro), testar seu espetáculo adaptada por Ritchie Valens).
Poladian levou André Rieu deve trazer uma muito tempo fora de casa. Ele de sete ou oito mil. E, quando em alguma arena da cidade. — Isso não é bom, “La bam-
anos (e várias viagens a Maas- equipe de 110 pessoas. Entre diz que somos ciganos de luxo você vai para um estádio de ba” não é brasileira, eu sabia.
tricht) até convencer André elas, as sopranos brasileiras — conta Carla, que mora em futebol, você tem que levar Seis meses no Rio nos anos 1970 Mas não vamos toca- lá no Bra-
Rieu a vir ao Brasil — e a dividir Carmen Monarcha (de Belém) Maastricht e está preparando um cenário grande. Daí o cas- O Rio não é um desconheci- sil. Estamos preparando um
com ele a produção dessa turnê e Carla Maffioletti (de Porto seu primeiro CD solo, “Blue- telo — conta ele, que pediu do para André Rieu. Em 2009, novo repertório — promete.
brasileira, que começou com Alegre), que trabalham há dez bird”, com músicas de Heitor um empréstimo para realizar a ele esteve na cidade para fazer O rock, o pop, as trilhas de
apenas seis datas no Ibirapuera anos com sua orquestra. Villa-Lobos e Jayme Ovalle. produção megalômana, regis- uma participação-relâmpago musicais estão sempre no re-
(onde cabem oito mil pessoas), — Elas estudavam no con- trada no DVD “Live in Austra- no “Domingão do Faustão”. pertório da grande festa que
e que, em poucos dias de venda, servatório em Maastricht e eu 70% do ano na estrada lia”. — Depois, o banco quis Antes disso, nos anos 1970, André Rieu promove.
antes do Natal, teve os ingres- precisava de cantoras. Fize- O tempo livre tem que ser tomar tudo isso aqui (o caste- passou uma temporada no — Só o que existe para mim
sos esgotados. De seis em seis, mos uma festa na Alemanha, bem aproveitado, porque o lo). Mas agora está tudo certo, Rio, estudando música. é música boa e música ruim.
ele chegou às 18 datas (já lota- depois de um concerto, onde circo de Rieu passa na estrada as dívidas foram saldadas. -— Fui convidado pelo (pia- Queen, Bruce Springsteen, Ma-
das, podendo levar à abertura essas duas senhoras subiram quase 70% do ano. O que não significa que ele nista e compositor brasileiro) donna... eles são todos fantás-
de um total de 24). na mesa, depois de umas cai- -— Fazer turnês pelo mundo tenha deixado de sonhar com Jaques Klein, que eu conhecia ticos. Então, pra que eu vou di-
— Há muito que ouço falar pirinhas, e cantaram divina- é a minha vida. Eu não sou um castelos no palco. Rieu prome- de uns concertos na Europa. zer “hum, não, isso não é mú-
do André Rieu — conta Pola- mente. Resolvi tê-las como so- artista de hit, então tenho que te construir outro para o cená- Ele me chamou para ficar três sica clássica...”? — pergunta-
dian. — E quem primeiro me listas — conta Rieu, que diz fazer muitos concertos — diz rio de um possível show no semanas, e eu fiquei seis me- se. — O grande barato de es-
falou dele foi o Ray Conniff, ter critérios rígidos para esco- ele, que quase foi à falência al- Rio de Janeiro, na Praia de Co- ses. Eu já conhecia algo de mú- tar no palco é ver o quanto as
que eu trouxe várias vezes ao lher seus músicos. — Eles têm guns anos atrás, por causa de pacabana, onde quer gravar sica brasileira. Quando ouvi pessoas estão felizes. Eu sem-
Brasil. Ele me mostrou um ví- que tocar bem, mas a coisa um castelo cenográfico que um DVD. Ele consegue visuali- bossa nova pela primeira vez, pre chego muito nervoso, mas
deo do André e disse: “Esse é mais importante é que eles construiu para o seu palco. zar dois milhões de pessoas meu Deus, achei fantástico — é só ver as caras da plateia
o cara!” Em 2004, quase conse- têm que gostar do que fazem. — Na Austrália a gente fez na areia, dançando valsa. diz Rieu, que em seus concer- que me acalmo. ■
gui fechar uma turnê. Mas a — Se o André sente que a muito sucesso, e eu só tinha — Por que não? Mas antes tos costuma apresentar uma
estrutura era muito grande, pessoa não está curtindo o duas semanas para ficar lá. tenho que arrumar um bom “Brazilian symphony”, um me- O repórter viajou a convite da Universal Music
● CAETANO VELOSO: a coluna volta a ser publicada no dia 15 de abril