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CIÊNCIA O GLOBO Sábado, 17 de dezembro de 2011
. HISTÓRIA
Arquivo/AP
Argentina
reescreve
o passado
Intelectuais veem
ameaça à democracia na
tentativa do governo de
rever personagens e fatos
DO BALCÃO DA Casa Rosada, Juan e Eva Perón saúdam uma multidão em fevereiro de 1950. Os dois estão entre as figuras históricas que o governo de Cristina Kirchner quer promover uma nova versão oficial
11-12-2011/AFP La Nación
Janaína Figueiredo O GOVERNO de
janaina.figueiredo@oglobo.com.br
Cristina Kirchner
Correspondente • BUENOS AIRES
E
nomeou o
m março de 2004, o então
presidente argentino Néstor historiador Pacho
Kirchner inaugurou um mu- O’Donnell,
seu da memória política na
Escola de Mecânica da Marinha (Es- militante
ma), um dos principais centros peronista, para
clandestinos de tortura da última
ditadura (1976-1983), e pediu “per- comandar a
dão por parte do Estado nacional revisão da história
pela vergonha de ter calado tantas
atrocidades (cometidas pelos mili- da Argentina e da
tares) durante 20 anos de democra- América Latina
cia”. Na época, Kirchner foi critica-
do por ter ignorado as históricas in-
vestigações realizadas durante o
governo Raúl Alfonsín (1976-1983)
e, sobretudo, o impulso dado pelo
ex-presidente da União Cívica Radi- Vicente Palermo, presidente do
cal (UCR) ao julgamento dos chefes
militares que comandaram a repres-
são nos anos 1970. Kirchner sim-
Cristina se compara a Dorrego Clube Político Argentino.
Segundo ele, “esta iniciativa é gra-
víssima e tem potencialidades funes-
plesmente apagou da História ar- tas. O Estado não pode identificar-se
gentina a elaboração do documento Presidente diz ser vítima de ‘fuzilamento’ da mídia com nenhuma corrente histórica”.
"Nunca Mais", fruto do trabalho em — Tudo isso é muito curioso, por-
equipe da Comissão Nacional para que o revisionismo sempre atacou a
o Desaparecimento de Pessoas (Co- ● BUENOS AIRES. A presidente argentina, Cristina Kir- ca vou me arrepender de ter estado onde estive, por- história oficial do liberalismo — dis-
nadep), comandada pelo escritor chner, escolheu o nome de Manuel Dorrego para o que sempre estive do lado do povo — assegurou a se Palermo.
Ernesto Sábato. Com a mesma in- novo instituto encarregado de revisar a História do chefe de Estado argentina.
tenção de reescrever a História ar-
gentina, o governo Cristina Kirch-
país. Esta não é a primeira vez que Cristina destaca Dorrego, considerado por muitos um caudilho ir-
a figura de Dorrego (1787-1828), que foi governador reverente, participou das guerras da independência Instituto planeja
ner anunciou recentemente a cria-
ção do Instituto Nacional de Revi-
da província de Buenos Aires, a mais importante do argentina. Ele foi deposto por um golpe orquestrado
país, em 1820 e entre 1827 e Reprodução pelo general Juan Lavalle e assas- orientar ensino
sionismo Histórico Argentino e Ibe- 1828. Em alguns discursos, a pre- sinado 12 dias depois. Durante
ro-americano Manuel Dorrego, cujo sidente argentina chegou a se seus anos de poder, Dorrego ten- ● Para o historiador argentino, “se o
objetivo será, segundo consta no comparar com Dorrego, cujo fu- tou construir uma base de poder Estado fala através de uma orienta-
decreto assinado pela presidente, zilamento é considerado a pri- político na província de Buenos ção, qualquer que seja, essa orien-
“estudar, pesquisar e divulgar a vi- meira morte por razões políticas Aires, venceu eleições e com isso tação está se apropriando do Esta-
da e obra de personalidades e cir- da História argentina. ganhou o ódio de outros caudi- do, incluindo os cidadãos que não
cunstâncias destacadas de nossa — Talvez este tipo de fuzila- lhos, os chamados unitários. se identificam com ela”. O docu-
história que não receberam o reco- mentos não se repita, ou talvez O governador Dorrego inte- mento firmado pelos mais de 300 in-
nhecimento adequado”. surjam outros tipos de fuzilamen- grava o grupo dos federais, os telectuais argentinos assegura que
tos, talvez midiáticos — declarou caudilhos que pretendiam des- “criar uma instituição estatal cujo
Manifesto contra Cristina, há cerca de dois anos.
Na época, a presidente usou o
centralizar o poder no país. A
guerra entre unitários e federais
objetivo é impor uma forma permi-
tida de fazer história e uma versão
imposição oficial trágico final da vida de Dorrego pa-
ra se mostrar como vítima dos ata-
marcou a História argentina. As
tropas federais foram derrota-
maniqueísta desse passado consti-
tui um fato grave que conspira con-
ques de meios de comunicação. das em 1828 e Dorrego foi obri- tra o desenvolvimento científico e a
● A iniciativa provocou a imediata — São os riscos de escolher on- gado a fugir. Poucos dias depois circulação de diversas disciplinas
reação de mais de 300 intelectuais de estar e posso assegurar a vo- foi capturado e fuzilado, por or- historiográficas”. Os escritores e in-
“
do país, que assinaram um docu- cês que milito desde jovem e nun- MANUEL DORREGO: figura polêmica dem de Juan Lavalle.(J.F.) telectuais que se uniram ao protes-
mento questionando o surgimento to deixaram bem claro que não se
de um instituto que “usará todo o pe- trata de uma crítica ao governo e
so do Estado para promover um dis- rá tudo o que já foi feito pela his- O nome de Dorrego foi escolhido, sim da defesa da “História como um
curso oficial sobre o passado”. O ma- toriografia argentina”. de acordo com o decreto assinado campo de conhecimento”.
nifesto contou com o respaldo de im- — Agora, os que não estão de pela presidente, por “seu patriotis- — O Estado não pode impor ne-
portantíssimos intelectuais argenti- acordo com o governo são conside- mo e coragem”. O documento lem- nhuma postura histórica nem pro-
nos, entre eles a escritora Beatriz rados historiadores neoliberais. Is- bra o vínculo entre Dorrego e Simón mover uma visão — enfatizou Sába-
Sarlo, os historiadores Tulio Halpe- so, é absurdo e nos lembra bastan- Bolívar e, também, “seus esforços to, que disse não saber até onde
rin Donghi, Alberto Romero e Natálio te a experiência venezuelana — la- O Estado tentará impor para impedir que a Banda Oriental chegará esta política cultural do go-
Botana. O texto foi redigido pelos mentou Sábato. do Uruguai fosse anexada ao Bra- verno Kirchner.
também historiadores Hilda Sábato, O novo instituto será dirigido pe- uma linha de verdade e sil”. A lista de grandes figuras da Serão modificados os textos estu-
Mirta Zaida Lobato e Juan Suriano. lo escritor e historiador Pacho História argentina que serão reestu- dados em colégios e universidades
— O Estado tentará impor uma li- O’Donnell, autor de vários livros, isso não pode ser tolerado dadas pelos kirchneristas inclui o argentinas? O decreto de Cristina
nha de verdade e isso não pode ser
tolerado em nenhuma democracia
entre eles uma das últimas biogra-
fias de Ernesto “Che” Guevara.
em nenhuma democracia ex-presidente Hipólito Yrigoyen
(1916-1922 e 1928-1930), o general
não chega tão longe, mas, sim, an-
tecipa que o instituto colaborará
pluralista. O Estado deve dar instru- O’Donnell nunca escondeu sua mili- Hilda Sábato, historiadora José de San Martín, Simón Bolívar, com “autoridades nacionais, provin-
mentos para produzir a História e tância peronista e na década de José Gervasio Artigas e Juan Domin- ciais e da cidade autônoma de Bue-
não impor uma História oficial — 1990 foi funcionário do governo do go Perón e Eva Durante de Perón, nos Aires, instituições de ensino ofi-
afirmou Hilda Sábato ao GLOBO. ex-presidente Carlos Menem (1989- nicação locais, O’Donnell defen- entre outros. cial e privadas, para ensinar os vá-
Na visão da historiadora argen- 1999). Hoje, o escritor diz se sentir deu o instituto com unhas e den- — A criação deste instituto seria rios objetivos que devem orientar
tina, o mais grave desta situação é plenamente identificado com o kir- tes: “Já estava na hora, pois ne- uma banalidade, se não fosse por- os professores para melhores apro-
que “o governo financiará um ins- chnerismo e, principalmente, com o nhum dos institutos existentes de- que temos um governo que identi- veitamento e compreensão das
tituto que favorecerá uma deter- governo de Cristina Kirchner. fende as ideias da historiografia fica o Estado com uma determina- ações e das personalidades que se-
minada perspectiva e desvaloriza- Em entrevista a meios de comu- nacional e popular”. da orientação histórica — opinou rão estudadas pelo instituto”. ■