1) O documento discute a trajetória de 20 anos do Teatro da Vertigem e seu fundador, Antônio Araújo, que levou peças ousadas a espaços inusitados como igrejas, hospitais e presídios.
2) Araújo fala sobre como os espetáculos surgem de uma pesquisa colaborativa e buscam problematizar questões contemporâneas fora dos teatros convencionais.
3) Seu próximo projeto, "Bom Retiro", irá explorar o multiculturalismo de um bairro
Antônio Araújo revê trajetória do Teatro da Vertigem e fala sobre desafios do teatro contemporâneo
1. Atração de hoje no Circo Voador, Manu Chao Emma Stone, a atriz da vez em Hollywood,
fala da sua relação de 20 anos com o Rio • 2 promove por aqui o novo ‘Homem-Aranha’ • 10
SEGUNDO CADERNO QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2012
Vertigem Antônio Araújo revê a trajetória de seu grupo,
que há duas décadas leva peças ousadas a
espaços inusitados e revelou atores como
Matheus Nachtergaele e Mariana Lima
20 anos de
Marcos Alves
ANTÔNIO
ARAÚJO,
o Tó: diretor
e professor, ele
lança livro
sobre o Teatro
da Vertigem e
prepara novo
espetáculo,
DVD com
sua famosa
“Trilogia
bíblica” e a
segunda edição
do projeto
Novos
Encenadores
Fotos de divilgação
QUATRO CAPÍTULOS: 1 2 3 4
1. “O paraíso perdido”
(1992), montado em
igrejas; 2. “O livro de Jó”
(1995), em hospitais; 3.
“Apocalipse 1,11” (2000),
em presídios; 4. “BR-3”
(2006), no Rio Tietê
O GLOBO: A estreia de “O paraíso Luiz Felipe Reis acontecimentos que atravessam
perdido” e a formação da companhia luiz.reis@oglobo.com.br os indivíduos e a sociedade?
A
não vieram do desejo de montar uma Apareceram outros meios que so-
peça, mas de se reunir para uma pes- importância de Antônio Araújo no cenário teatral brasileiro pode ser medida por duas escalas. maram e também cumprem esse pa-
quisa. Essa perspectiva coloca a peça Como diretor, ele é o fundador do Teatro da Vertigem, principal companhia surgida no cenário pel, mas o que me angustia não é o
como a ponta de uma cadeia, a resul- paulista dos anos 1990, e que revelou atores hoje consagrados como Matheus Nachtergaele e fato de a internet aparecer e se tor-
tante de um processo. O que mudou? Mariana Lima. Já como professor do curso de Artes Cênicas da USP, ele é o responsável por nar um fórum mundial. O problema
ANTÔNIO ARAÚJO: No início, fa- oxigenar o pensamento de toda uma nova geração. O trânsito livre entre a arte e a academia, entre é o quanto o teatro está conseguin-
zer uma peça não era uma necessi- prática e teoria, rende agora o livro “A gênese da Vertigem”, em que ele investiga a origem do do problematizar e mobilizar discus-
dade. Mas das experiências surgiu próprio grupo, que completa 20 anos de uma trajetória que prima por espetáculos fortes e ousados, realizados sões e provocar novas experiências
um material e aí resolvemos montar. fora da sala de teatro, em locais inusitados. Depois de encenar peças em igrejas (“O paraíso perdido”, 1992), sobre as questões contemporâneas.
Até hoje demoramos entre um espe- hospitais (“O livro de Jó”, 1995), presídios (“Apocalipse 1,11”, 2000) e ganhar o prêmio máximo da Quadrienal Como é que o teatro vai lidar com
táculo e outro. Tudo começa ao de Praga de 2011 pela cenografia de “BR-3” (2006), montada às margens do Rio Tietê, ele estreia, em maio, um isso talvez seja a minha angústia, tal-
identificarmos um incômodo. Avalia- novo projeto em algum ponto do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. No segundo semestre, Tó, como é vez não resolvível. Mas enquanto fa-
mos ideias e quando chegamos a conhecido, pretende lançar uma caixa de DVDs com os três espetáculos que compõem a “Trilogia bíblica” e zedor de teatro, isso me movimenta.
um tema que interessa à maioria co- realiza a segunda edição do projeto Novos Encenadores, com cinco peças de jovens diretores na sede da sua Posso avançar ou fracassar redon-
meçamos a pesquisar. Isso dura o companhia, que hoje se mantém através de um regular patrocínio da Petrobras. damente nessa tentativa. Será que
tempo que tiver de durar, mas tam- — O Tó foi determinante, ajudou-me a descobrir e a alargar meus limites. Ele nos leva a situações muito vou conseguir criar uma experiência
bém há a vontade de compartilhar e difíceis, mas sempre com muita doçura — diz Mariana Lima, que permaneceu dez anos no grupo. artística capaz de provocar encon-
abrir para uma discussão pública tros e mobilizações? É uma questão
maior. É aí que surge a peça, como cômodo entre a ausência e a presen- são de mundo, o testemunho crítico Não tenho nada contra o teatro ins- e uma crise permanentes.
uma instância do processo. ça do sentimento do sagrado. Isso é do artista sobre um tema. E é das titucional, vi peças que me marca-
radicalizado em “O livro de Jó”, em tensões e dos choques entre pers- ram. Minha questão é menos um in- ● E hoje, qual é o papel da cidade
● O nome Vertigem vem dessa in- que um homem crê tão intensamen- pectivas pessoais que, aos poucos, cômodo com a moldura do palco no trabalho do grupo?
clinação ao mergulho, mais do te até levar a crença ao limite. Já em se materializa um depoimento cole- italiano e mais um desejo de chamar A partir de “O livro de Jó” a crise
que à exposição? “Apocalipse 1,11” aparece uma ins- tivo sobre algo, a peça. a atenção para lugares que as pes- da saúde pública da cidade con-
É engraçado, eu não gostava do no- tância menos particular, que discute soas não olham, e questões que são tamina inteiramente o trabalho,
me. Fui voto vencido. Acho que ver- o fundamentalismo religioso, um ● O que o levou a descartar a sala varridas para debaixo do tapete. mas é a partir de “BR-3” que a ci-
tigem começou a fazer sentido em problema social. de teatro? dade se transforma no eixo cen-
“O livro de Jó”, quando as pessoas Foi acidental. Em “O paraíso...” lidá- ● As escolhas de um hospital pa- tral. É a partir das experiências vi-
desmaiavam. Mas, sério, o nome res- ● Algo que já se prenunciava em vamos com o afastamento entre as ra “O livro de Jó” e de um presí- vidas nela que o tema nasce. É
ponde à ideia de trabalhar na crise, “O livro...” dimensões sagradas e humanas, en- dio para “Apocalipse 1,11” res- uma pesquisa de campo, assim
com algo não resolvido. Isso perma- “O livro...” já apontava, porque levar tão pensamos em nos aproximar e pondiam à procura de um lugar como estamos fazendo em proje-
nece e ainda faz sentido para mim. a Aids ao palco naquele momento levar a questão a um lugar sagrado, que se adequasse ao espetáculo, to “Bom Retiro”, onde é a vivência
era lidar com um problema que mar- a Igreja de Santa Ifigênia. Foi a partir e não o contrário? no lugar que gera o espetáculo.
● O que o levou a criar a “Trilo- cou a minha geração. No anos 1990, da experiência e de toda a polêmica O motor central era habitar teatral- Você chega a uma questão a par-
gia bíblica”? São Paulo era a cidade com o maior sobre proibir ou não uma peça ali mente a cidade em locais onde o tea- tir de um lugar, e não em um lugar
Tudo surgiu da crise de perceber número de mortes por Aids no país. que a questão do espaço irrompeu. tro não acontece. É um desejo utó- por causa da questão.
que nenhuma instância religiosa da- Perdi muitos amigos, havia uma sen- A discussão pública nos fez questio- pico de ativar outra forma de rela-
va conta de responder a questões sação de impotência, era um proble- nar qual seria o lugar do teatro. En- ção com a cidade. Foi por isso que ● E o que vocês identificaram co-
existenciais. Nem a religião oficial, ma da cidade, que atravessava uma tendi que não era o convencional. levamos “Apocalipse 1,11” para a mo tema nesta experiência?
católica, nem o ateísmo universitá- grave crise na saúde pública. Surgiu um desejo de ocupar e inva- Zona Leste, onde o aparelho cultural “Bom Retiro” parte de uma pes-
rio, nem o misticismo meio new age dir a cidade. era quase zero. O espetáculo come- quisa sobre o multiculturalismo
em voga à época. A partir dessa per- ● Qual é a gênese do processo co- çava antes, com as pessoas pegando de um bairro atravessado por on-
plexidade, encontramos uma ques- laborativo do grupo? ● Era uma resposta ao confina- mapas, se ligando, combinando de ir das migratórias de italianos, ju-
tão. E mesmo ao fim da “Trilogia...” Venho de uma década em que o de- mento do teatro a uma estrutura juntas a um lugar desconhecido. deus, coreanos, bolivianos... A
não encontramos uma resposta. poimento principal era o do diretor. arquitetônica rígida, uma sala, e questão dos fluxos migratórios
Não acho que a arte ou o teatro te- Então acho que havia uma recusa a social, como o lugar do espetácu- ● Há uma busca por recuperar o marcou o início dos trabalhos e
nham de oferecê-las. A ideia em “O essa visão única. O ator ficava à lo pago para que as pessoas se lugar do teatro como espaço pri- deve estar presente quando es-
paraíso...” era problematizar esse in- sombra. Era preciso revelar sua vi- entretenham? vilegiado para a discussão dos trearmos, em maio. ■