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Atração de hoje no Circo Voador, Manu Chao                                                                                                                       Emma Stone, a atriz da vez em Hollywood,
fala da sua relação de 20 anos com o Rio • 2                                                                                                                 promove por aqui o novo ‘Homem-Aranha’ • 10




                   SEGUNDO CADERNO                                                QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2012




                                   Vertigem                                                                                            Antônio Araújo revê a trajetória de seu grupo,
                                                                                                                                       que há duas décadas leva peças ousadas a
                                                                                                                                       espaços inusitados e revelou atores como
                                                                                                                                       Matheus Nachtergaele e Mariana Lima
       20 anos de




                                                                                                                                                                                                         Marcos Alves
                                                                                                                                                                                                                        ANTÔNIO
                                                                                                                                                                                                                        ARAÚJO,
                                                                                                                                                                                                                        o Tó: diretor
                                                                                                                                                                                                                        e professor, ele
                                                                                                                                                                                                                        lança livro
                                                                                                                                                                                                                        sobre o Teatro
                                                                                                                                                                                                                        da Vertigem e
                                                                                                                                                                                                                        prepara novo
                                                                                                                                                                                                                        espetáculo,
                                                                                                                                                                                                                        DVD com
                                                                                                                                                                                                                        sua famosa
                                                                                                                                                                                                                        “Trilogia
                                                                                                                                                                                                                        bíblica” e a
                                                                                                                                                                                                                        segunda edição
                                                                                                                                                                                                                        do projeto
                                                                                                                                                                                                                        Novos
                                                                                                                                                                                                                        Encenadores
                                                                                                                                                                                   Fotos de divilgação
               QUATRO CAPÍTULOS:         1                              2                         3                                             4
              1. “O paraíso perdido”
               (1992), montado em
           igrejas; 2. “O livro de Jó”
           (1995), em hospitais; 3.
          “Apocalipse 1,11” (2000),
            em presídios; 4. “BR-3”
               (2006), no Rio Tietê



      O GLOBO: A estreia de “O paraíso                                                             Luiz Felipe Reis                                                       acontecimentos que atravessam
      perdido” e a formação da companhia                                                          luiz.reis@oglobo.com.br                                                 os indivíduos e a sociedade?




                                                   A
      não vieram do desejo de montar uma                                                                                                                                  Apareceram outros meios que so-
      peça, mas de se reunir para uma pes-                       importância de Antônio Araújo no cenário teatral brasileiro pode ser medida por duas escalas.            maram e também cumprem esse pa-
      quisa. Essa perspectiva coloca a peça                      Como diretor, ele é o fundador do Teatro da Vertigem, principal companhia surgida no cenário             pel, mas o que me angustia não é o
      como a ponta de uma cadeia, a resul-                       paulista dos anos 1990, e que revelou atores hoje consagrados como Matheus Nachtergaele e                fato de a internet aparecer e se tor-
      tante de um processo. O que mudou?                         Mariana Lima. Já como professor do curso de Artes Cênicas da USP, ele é o responsável por                nar um fórum mundial. O problema
      ANTÔNIO ARAÚJO: No início, fa-                             oxigenar o pensamento de toda uma nova geração. O trânsito livre entre a arte e a academia, entre        é o quanto o teatro está conseguin-
      zer uma peça não era uma necessi-                          prática e teoria, rende agora o livro “A gênese da Vertigem”, em que ele investiga a origem do           do problematizar e mobilizar discus-
      dade. Mas das experiências surgiu            próprio grupo, que completa 20 anos de uma trajetória que prima por espetáculos fortes e ousados, realizados           sões e provocar novas experiências
      um material e aí resolvemos montar.          fora da sala de teatro, em locais inusitados. Depois de encenar peças em igrejas (“O paraíso perdido”, 1992),          sobre as questões contemporâneas.
      Até hoje demoramos entre um espe-            hospitais (“O livro de Jó”, 1995), presídios (“Apocalipse 1,11”, 2000) e ganhar o prêmio máximo da Quadrienal          Como é que o teatro vai lidar com
      táculo e outro. Tudo começa ao               de Praga de 2011 pela cenografia de “BR-3” (2006), montada às margens do Rio Tietê, ele estreia, em maio, um           isso talvez seja a minha angústia, tal-
      identificarmos um incômodo. Avalia-          novo projeto em algum ponto do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. No segundo semestre, Tó, como é                     vez não resolvível. Mas enquanto fa-
      mos ideias e quando chegamos a               conhecido, pretende lançar uma caixa de DVDs com os três espetáculos que compõem a “Trilogia bíblica” e                zedor de teatro, isso me movimenta.
      um tema que interessa à maioria co-          realiza a segunda edição do projeto Novos Encenadores, com cinco peças de jovens diretores na sede da sua              Posso avançar ou fracassar redon-
      meçamos a pesquisar. Isso dura o             companhia, que hoje se mantém através de um regular patrocínio da Petrobras.                                           damente nessa tentativa. Será que
      tempo que tiver de durar, mas tam-              — O Tó foi determinante, ajudou-me a descobrir e a alargar meus limites. Ele nos leva a situações muito             vou conseguir criar uma experiência
      bém há a vontade de compartilhar e           difíceis, mas sempre com muita doçura — diz Mariana Lima, que permaneceu dez anos no grupo.                            artística capaz de provocar encon-
      abrir para uma discussão pública                                                                                                                                    tros e mobilizações? É uma questão
      maior. É aí que surge a peça, como       cômodo entre a ausência e a presen-      são de mundo, o testemunho crítico         Não tenho nada contra o teatro ins-    e uma crise permanentes.
      uma instância do processo.               ça do sentimento do sagrado. Isso é      do artista sobre um tema. E é das          titucional, vi peças que me marca-
                                               radicalizado em “O livro de Jó”, em      tensões e dos choques entre pers-          ram. Minha questão é menos um in-      ● E hoje, qual é o papel da cidade
      ●  O nome Vertigem vem dessa in-         que um homem crê tão intensamen-         pectivas pessoais que, aos poucos,         cômodo com a moldura do palco          no trabalho do grupo?
      clinação ao mergulho, mais do            te até levar a crença ao limite. Já em   se materializa um depoimento cole-         italiano e mais um desejo de chamar    A partir de “O livro de Jó” a crise
      que à exposição?                         “Apocalipse 1,11” aparece uma ins-       tivo sobre algo, a peça.                   a atenção para lugares que as pes-     da saúde pública da cidade con-
      É engraçado, eu não gostava do no-       tância menos particular, que discute                                                soas não olham, e questões que são     tamina inteiramente o trabalho,
      me. Fui voto vencido. Acho que ver-      o fundamentalismo religioso, um          ● O que o levou a descartar a sala         varridas para debaixo do tapete.       mas é a partir de “BR-3” que a ci-
      tigem começou a fazer sentido em         problema social.                         de teatro?                                                                        dade se transforma no eixo cen-
      “O livro de Jó”, quando as pessoas                                                Foi acidental. Em “O paraíso...” lidá-     ● As escolhas de um hospital pa-       tral. É a partir das experiências vi-
      desmaiavam. Mas, sério, o nome res-      ● Algo que já se prenunciava em          vamos com o afastamento entre as           ra “O livro de Jó” e de um presí-      vidas nela que o tema nasce. É
      ponde à ideia de trabalhar na crise,     “O livro...”                             dimensões sagradas e humanas, en-          dio para “Apocalipse 1,11” res-        uma pesquisa de campo, assim
      com algo não resolvido. Isso perma-      “O livro...” já apontava, porque levar   tão pensamos em nos aproximar e            pondiam à procura de um lugar          como estamos fazendo em proje-
      nece e ainda faz sentido para mim.       a Aids ao palco naquele momento          levar a questão a um lugar sagrado,        que se adequasse ao espetáculo,        to “Bom Retiro”, onde é a vivência
                                               era lidar com um problema que mar-       a Igreja de Santa Ifigênia. Foi a partir   e não o contrário?                     no lugar que gera o espetáculo.
      ● O que o levou a criar a “Trilo-        cou a minha geração. No anos 1990,       da experiência e de toda a polêmica        O motor central era habitar teatral-   Você chega a uma questão a par-
      gia bíblica”?                            São Paulo era a cidade com o maior       sobre proibir ou não uma peça ali          mente a cidade em locais onde o tea-   tir de um lugar, e não em um lugar
      Tudo surgiu da crise de perceber         número de mortes por Aids no país.       que a questão do espaço irrompeu.          tro não acontece. É um desejo utó-     por causa da questão.
      que nenhuma instância religiosa da-      Perdi muitos amigos, havia uma sen-      A discussão pública nos fez questio-       pico de ativar outra forma de rela-
      va conta de responder a questões         sação de impotência, era um proble-      nar qual seria o lugar do teatro. En-      ção com a cidade. Foi por isso que     ● E o que vocês identificaram co-

      existenciais. Nem a religião oficial,    ma da cidade, que atravessava uma        tendi que não era o convencional.          levamos “Apocalipse 1,11” para a       mo tema nesta experiência?
      católica, nem o ateísmo universitá-      grave crise na saúde pública.            Surgiu um desejo de ocupar e inva-         Zona Leste, onde o aparelho cultural   “Bom Retiro” parte de uma pes-
      rio, nem o misticismo meio new age                                                dir a cidade.                              era quase zero. O espetáculo come-     quisa sobre o multiculturalismo
      em voga à época. A partir dessa per-     ● Qual é a gênese do processo co-                                                   çava antes, com as pessoas pegando     de um bairro atravessado por on-
      plexidade, encontramos uma ques-         laborativo do grupo?                     ● Era uma resposta ao confina-             mapas, se ligando, combinando de ir    das migratórias de italianos, ju-
      tão. E mesmo ao fim da “Trilogia...”     Venho de uma década em que o de-         mento do teatro a uma estrutura            juntas a um lugar desconhecido.        deus, coreanos, bolivianos... A
      não encontramos uma resposta.            poimento principal era o do diretor.     arquitetônica rígida, uma sala, e                                                 questão dos fluxos migratórios
      Não acho que a arte ou o teatro te-      Então acho que havia uma recusa a        social, como o lugar do espetácu-          ● Há uma busca por recuperar o         marcou o início dos trabalhos e
      nham de oferecê-las. A ideia em “O       essa visão única. O ator ficava à        lo pago para que as pessoas se             lugar do teatro como espaço pri-       deve estar presente quando es-
      paraíso...” era problematizar esse in-   sombra. Era preciso revelar sua vi-      entretenham?                               vilegiado para a discussão dos         trearmos, em maio. ■

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Antônio Araújo revê trajetória do Teatro da Vertigem e fala sobre desafios do teatro contemporâneo

  • 1. Atração de hoje no Circo Voador, Manu Chao Emma Stone, a atriz da vez em Hollywood, fala da sua relação de 20 anos com o Rio • 2 promove por aqui o novo ‘Homem-Aranha’ • 10 SEGUNDO CADERNO QUARTA-FEIRA, 8 DE FEVEREIRO DE 2012 Vertigem Antônio Araújo revê a trajetória de seu grupo, que há duas décadas leva peças ousadas a espaços inusitados e revelou atores como Matheus Nachtergaele e Mariana Lima 20 anos de Marcos Alves ANTÔNIO ARAÚJO, o Tó: diretor e professor, ele lança livro sobre o Teatro da Vertigem e prepara novo espetáculo, DVD com sua famosa “Trilogia bíblica” e a segunda edição do projeto Novos Encenadores Fotos de divilgação QUATRO CAPÍTULOS: 1 2 3 4 1. “O paraíso perdido” (1992), montado em igrejas; 2. “O livro de Jó” (1995), em hospitais; 3. “Apocalipse 1,11” (2000), em presídios; 4. “BR-3” (2006), no Rio Tietê O GLOBO: A estreia de “O paraíso Luiz Felipe Reis acontecimentos que atravessam perdido” e a formação da companhia luiz.reis@oglobo.com.br os indivíduos e a sociedade? A não vieram do desejo de montar uma Apareceram outros meios que so- peça, mas de se reunir para uma pes- importância de Antônio Araújo no cenário teatral brasileiro pode ser medida por duas escalas. maram e também cumprem esse pa- quisa. Essa perspectiva coloca a peça Como diretor, ele é o fundador do Teatro da Vertigem, principal companhia surgida no cenário pel, mas o que me angustia não é o como a ponta de uma cadeia, a resul- paulista dos anos 1990, e que revelou atores hoje consagrados como Matheus Nachtergaele e fato de a internet aparecer e se tor- tante de um processo. O que mudou? Mariana Lima. Já como professor do curso de Artes Cênicas da USP, ele é o responsável por nar um fórum mundial. O problema ANTÔNIO ARAÚJO: No início, fa- oxigenar o pensamento de toda uma nova geração. O trânsito livre entre a arte e a academia, entre é o quanto o teatro está conseguin- zer uma peça não era uma necessi- prática e teoria, rende agora o livro “A gênese da Vertigem”, em que ele investiga a origem do do problematizar e mobilizar discus- dade. Mas das experiências surgiu próprio grupo, que completa 20 anos de uma trajetória que prima por espetáculos fortes e ousados, realizados sões e provocar novas experiências um material e aí resolvemos montar. fora da sala de teatro, em locais inusitados. Depois de encenar peças em igrejas (“O paraíso perdido”, 1992), sobre as questões contemporâneas. Até hoje demoramos entre um espe- hospitais (“O livro de Jó”, 1995), presídios (“Apocalipse 1,11”, 2000) e ganhar o prêmio máximo da Quadrienal Como é que o teatro vai lidar com táculo e outro. Tudo começa ao de Praga de 2011 pela cenografia de “BR-3” (2006), montada às margens do Rio Tietê, ele estreia, em maio, um isso talvez seja a minha angústia, tal- identificarmos um incômodo. Avalia- novo projeto em algum ponto do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. No segundo semestre, Tó, como é vez não resolvível. Mas enquanto fa- mos ideias e quando chegamos a conhecido, pretende lançar uma caixa de DVDs com os três espetáculos que compõem a “Trilogia bíblica” e zedor de teatro, isso me movimenta. um tema que interessa à maioria co- realiza a segunda edição do projeto Novos Encenadores, com cinco peças de jovens diretores na sede da sua Posso avançar ou fracassar redon- meçamos a pesquisar. Isso dura o companhia, que hoje se mantém através de um regular patrocínio da Petrobras. damente nessa tentativa. Será que tempo que tiver de durar, mas tam- — O Tó foi determinante, ajudou-me a descobrir e a alargar meus limites. Ele nos leva a situações muito vou conseguir criar uma experiência bém há a vontade de compartilhar e difíceis, mas sempre com muita doçura — diz Mariana Lima, que permaneceu dez anos no grupo. artística capaz de provocar encon- abrir para uma discussão pública tros e mobilizações? É uma questão maior. É aí que surge a peça, como cômodo entre a ausência e a presen- são de mundo, o testemunho crítico Não tenho nada contra o teatro ins- e uma crise permanentes. uma instância do processo. ça do sentimento do sagrado. Isso é do artista sobre um tema. E é das titucional, vi peças que me marca- radicalizado em “O livro de Jó”, em tensões e dos choques entre pers- ram. Minha questão é menos um in- ● E hoje, qual é o papel da cidade ● O nome Vertigem vem dessa in- que um homem crê tão intensamen- pectivas pessoais que, aos poucos, cômodo com a moldura do palco no trabalho do grupo? clinação ao mergulho, mais do te até levar a crença ao limite. Já em se materializa um depoimento cole- italiano e mais um desejo de chamar A partir de “O livro de Jó” a crise que à exposição? “Apocalipse 1,11” aparece uma ins- tivo sobre algo, a peça. a atenção para lugares que as pes- da saúde pública da cidade con- É engraçado, eu não gostava do no- tância menos particular, que discute soas não olham, e questões que são tamina inteiramente o trabalho, me. Fui voto vencido. Acho que ver- o fundamentalismo religioso, um ● O que o levou a descartar a sala varridas para debaixo do tapete. mas é a partir de “BR-3” que a ci- tigem começou a fazer sentido em problema social. de teatro? dade se transforma no eixo cen- “O livro de Jó”, quando as pessoas Foi acidental. Em “O paraíso...” lidá- ● As escolhas de um hospital pa- tral. É a partir das experiências vi- desmaiavam. Mas, sério, o nome res- ● Algo que já se prenunciava em vamos com o afastamento entre as ra “O livro de Jó” e de um presí- vidas nela que o tema nasce. É ponde à ideia de trabalhar na crise, “O livro...” dimensões sagradas e humanas, en- dio para “Apocalipse 1,11” res- uma pesquisa de campo, assim com algo não resolvido. Isso perma- “O livro...” já apontava, porque levar tão pensamos em nos aproximar e pondiam à procura de um lugar como estamos fazendo em proje- nece e ainda faz sentido para mim. a Aids ao palco naquele momento levar a questão a um lugar sagrado, que se adequasse ao espetáculo, to “Bom Retiro”, onde é a vivência era lidar com um problema que mar- a Igreja de Santa Ifigênia. Foi a partir e não o contrário? no lugar que gera o espetáculo. ● O que o levou a criar a “Trilo- cou a minha geração. No anos 1990, da experiência e de toda a polêmica O motor central era habitar teatral- Você chega a uma questão a par- gia bíblica”? São Paulo era a cidade com o maior sobre proibir ou não uma peça ali mente a cidade em locais onde o tea- tir de um lugar, e não em um lugar Tudo surgiu da crise de perceber número de mortes por Aids no país. que a questão do espaço irrompeu. tro não acontece. É um desejo utó- por causa da questão. que nenhuma instância religiosa da- Perdi muitos amigos, havia uma sen- A discussão pública nos fez questio- pico de ativar outra forma de rela- va conta de responder a questões sação de impotência, era um proble- nar qual seria o lugar do teatro. En- ção com a cidade. Foi por isso que ● E o que vocês identificaram co- existenciais. Nem a religião oficial, ma da cidade, que atravessava uma tendi que não era o convencional. levamos “Apocalipse 1,11” para a mo tema nesta experiência? católica, nem o ateísmo universitá- grave crise na saúde pública. Surgiu um desejo de ocupar e inva- Zona Leste, onde o aparelho cultural “Bom Retiro” parte de uma pes- rio, nem o misticismo meio new age dir a cidade. era quase zero. O espetáculo come- quisa sobre o multiculturalismo em voga à época. A partir dessa per- ● Qual é a gênese do processo co- çava antes, com as pessoas pegando de um bairro atravessado por on- plexidade, encontramos uma ques- laborativo do grupo? ● Era uma resposta ao confina- mapas, se ligando, combinando de ir das migratórias de italianos, ju- tão. E mesmo ao fim da “Trilogia...” Venho de uma década em que o de- mento do teatro a uma estrutura juntas a um lugar desconhecido. deus, coreanos, bolivianos... A não encontramos uma resposta. poimento principal era o do diretor. arquitetônica rígida, uma sala, e questão dos fluxos migratórios Não acho que a arte ou o teatro te- Então acho que havia uma recusa a social, como o lugar do espetácu- ● Há uma busca por recuperar o marcou o início dos trabalhos e nham de oferecê-las. A ideia em “O essa visão única. O ator ficava à lo pago para que as pessoas se lugar do teatro como espaço pri- deve estar presente quando es- paraíso...” era problematizar esse in- sombra. Era preciso revelar sua vi- entretenham? vilegiado para a discussão dos trearmos, em maio. ■