Clarice Niskier é uma atriz brasileira de 52 anos que comemora 30 anos de carreira no teatro. Ela estreou como diretora da peça "Aquela outra" e prepara novas adaptações, como "A arte e a maneira de abordar seu chefe para pedir um aumento". Ao longo de sua carreira, Clarice superou dúvidas pessoais e se firmou como uma das principais atrizes do teatro brasileiro, com sucessos como "A alma imoral".
Clarice Niskier: a atriz que sempre precisou se entender na solidão
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l SEGUNDO CADERNO O GLOBO Sábado, 12 de novembro de 2011
PERFIL
Leonardo Aversa
AOS 52 ANOS,
Clarice Niskier
prepara
para 2012
Que mistério tem Clarice?
a adaptação
do livro “A arte
e a maneira
de abordar seu
chefe para pedir
um aumento”,
de George
Perec, e começa
a reunir textos
para a peça
“Confissões
das mulheres
de 50”
Sucesso em ‘A alma imoral’, no teatro há seis anos, a atriz comemora
três décadas de carreira e estreia como diretora na peça ‘Aquela outra’
“
Luiz Felipe Reis nós? Onde estamos? Sempre duas mulheres em tempos dis- existência? Como posso estar houvesse mais vogais, eu con-
me fiz essas perguntas. tintos: os anos 1950 e a atuali- tão feliz e de repente tão infeliz? tinuaria a elogiá-la...
C
luiz.reis@oglobo.com.br
Em seu primeiro emprego, dade. Num polo, está Dália (Ta- Por que o teatro é bom e de re- — No começo, eu via em ce-
larice era — e ain- como repórter do “Jornal do nia Costa), uma dona de casa pente ruim? Tudo é o tom... Isso na uma jovem judia num espe-
da é — morena. Já Brasil”, Clarice roía as unhas devotada aos três filhos, à casa me fascina. O texto fala desse lu- táculo que tocava na transgres-
foi “pequena” no para chegar à objetividade do e ao marido, enquanto sonha gar onde o mundo material e o são — diz o diretor Amir Had-
Sempre precisei me jeito de ser — coi- texto jornalístico. com um futuro de mais indepen- invisível se harmonizam. dad, que a supervisionou em
sa de que hoje, — Eu chegava em casa e dência afetiva e financeira para Nesses 52 anos de vida, 30 de “A alma...”. — Mas, como uma
entender na solidão. atriz consolidada, sentia a necessidade de fazer as mulheres. Do outro lado, está carreira, Clarice reconhece que peça é uma engrenagem mora-
E o teatro é onde ela passa longe. Tímida, jamais
quis se despir. Tinha um corpo
uma poesia sobre o assunto
do dia. Sempre precisei elabo-
Júlia (Cristina Flores), uma exe-
cutiva dividida entre a vida pro-
atravessou muitas dúvidas:
— Se ia conseguir ou não ul-
lizadora que te educa, aos pou-
cos vi essa jovem se transfor-
permanece comigo que não mostrava, feito de adi- rar o que eu testemunhava na fissional e a familiar, nostálgica trapassar os obstáculos que mar numa mulher do mundo,
e, ao mesmo tempo, vinhações — como diz a can-
ção “Clarice”, de Caetano Velo-
solidão. Achava que era uma
maluquice, mas sentia que ali
de um passado onde a mulher
tinha mais tempo. Em cena,
existem dentro e fora de mim.
Dilemas comigo, com os cole-
amadurecida, opinando e par-
ticipando da realidade. Clarice
é compartilhada. A gente so, que traduz de modo preciso eu reunia forças. E, quando num dado momento, as duas se gas, com a sobrevivência, o deixou a antiga atriz se des-
alguns de seus passos. Aos 21 lia, vinha a surpresa: olha o encontram, invertem papéis, se sustento da família, do amor, montar para aparecer outra,
quer se conhecer, mas anos, aprisionada num papel que acho mesmo sobre isso! questionam. É nesse ponto que do casamento, a organização absolutamente inteira.
há sempre um mistério que não era o dela, deixou o jor-
Análise ou teatro?
atravessam a vida de Clarice. da vida. Mas, agora, essas dú-
Mais Nilton Bonder?
nalismo de lado, se aventurou Também fragmentada entre vidas eu não tenho mais. Acon-
Clarice Niskier num palco e... desabrochou. Com problemas gástricos de muitos personagens, foi tentan- teça o que acontecer, esta é a Enquanto segue com “A al-
Desfez pudores aos poucos. Até fundo nervoso, a repórter foi do tomar as rédeas de si que de- minha vida. Eu teria que nas- ma...” e “Aquela outra”, Clarice
ter a coragem de se desnudar, parar no consultório médico. O cidiu montar “A alma imoral”: cer de novo. O que é o teatro se prepara para levar aos pal-
literalmente. E é assim que, há especialista sugeriu análise. — Eu havia passado os últi- para mim? É a minha vida. cos em 2012 “A arte e a maneira
seis anos, Clarice Niskier vem Mas um amigo indicou O Tabla- mos 20 anos trabalhando em Amigo da infância em Copa- de abordar seu chefe para pedir
comovendo plateias pelo país, do. Ela foi e ficou. Ali, no palco, grupo, com o Domingos (Olivei- cabana, colega de colégio e um aumento”, de George Perec.
com o premiado espetáculo “A enxergou que sua personalida- ra) e o Eduardo (Wotzik). Quis auto-escola, incentivador da Enquanto isso, ela troca e-mails
“
alma imoral”, visto por mais de de reflexiva não era “defeito”, e viver aquilo, mas foi um longo virada que girou sua vida e di- confessionais com Maitê Proen-
140 mil espectadores. Hoje, ao sim “qualidade”. caminho de uma escolha não in- retor de boa parte de suas pe- ça, Clarice Derzié, Priscilla Ro-
completar 30 anos de carreira, Hoje, Clarice ainda se surpre- dividualizada. Até que pensei: E ças, Eduardo Wotzik a define: zenbaum e Dedina Bernardelli
ela diz que quase tudo mudou: ende ao rever seus traços e pas- se eu seguisse meu caminho? E — Ela une talento nato e uma para moldar o texto de “Confis-
— A maior diferença entre a sos. Como quando estreou “A se tudo o que aprendi pudesse enorme vocação. Acreditamos sões das mulheres de 50” —
Clarice que começou e a de hoje alma imoral”, numa pequena sa- ser aplicado do meu jeito? Será que vocação, estudo e preparo continuação dos sucessos
é que agora eu consigo realmen- la para 50 pessoas no Espaço que eu conseguiria? para o ritual caminham juntos, “Confissões das mulheres de
te viver do teatro — conta. Sesc, desnudando o corpo e o O livro, de mesmo nome, es- uma ideia que parece estar em 30” e “Confissões... de 40”.
Mas o percurso até aí deixa espírito diante da plateia. E fez crito pelo rabino Nilton Bonder, desuso. Tem gente que tem até Paralelamente, a atriz ainda
Aos poucos vi essa acesa a canção: que mistério tanto sucesso que ganhou, en- caiu em suas mãos, mas ficou talento, mas não quer. Ela tem e trabalha para adaptar textos
tem Clarice, para guardá-lo tre outros, o Prêmio Shell de um tempo na estante. quer, e é por isso que honra a da jornalista libanesa Jouma-
jovem se transformar assim tão firme até decidir co- melhor atriz, em 2007, rodou o — Até que li, e era como se nossa profissão. Para fazer o na Haddad. E não descarta a
numa mulher do mundo, locá-lo em cena?
— Sempre precisei me en-
país, e ainda segue com o espe-
táculo em cartaz, até 18 de de-
ele dissesse: “Marche!” — recor-
da. — Eu precisava viver e falar
que ela faz é preciso requisitos.
Requisitos que Domingos
hipótese de transformar o no-
vo livro de Nilton Bonder, “Se-
opinando e participando tender na solidão. E o teatro zembro, no Teatro do Leblon, daquela coragem, de transgres- Oliveira, que a dirigiu em seu gundas intenções”, em peça.
da realidade. Clarice é onde ela permanece comi-
go e, ao mesmo tempo, é
onde uma outra Clarice também
pode ser vista desde anteon-
são, de desobediência, de liber-
dade interna. Ele diz que pode-
primeiro texto, “Buda”, distri-
bui assim:
— Li duas vezes, mas não há
nada certo. Até porque ele é o
deixou a antiga atriz compartilhada. Sinto que so- tem. Aos 52 anos, casada com o mos ser escravos no mundo — Clarice é inteligente, inte- avesso de “A alma...”, que de-
mos um pouco separados e músico e produtor José Maria aqui fora, mas sempre fomos li- lectual e inocente. Esses são pois de seis anos continua tão
se desmontar para juntos. Somos ilhas, abismos. Braga e mãe de Vitor, de 12 vres por dentro. Então, eu que- os três “is”. Também é esoté- viva dentro de mim que não sei
aparecer outra, inteira A gente quer se conhecer, anos, ela estreia como diretora ria tratar dessa tensão entre o rica, esperta e engraçada. Or- como vai parar, se é que vai. Já
mas há sempre um lado ocul- de “Aquela outra”. A peça, escri- corpo moral e a alma imoral. gânica e otimista, única, unâni- não sei mais. Os convites che-
Amir Haddad, diretor to, um mistério. Quem somos ta por Lícia Manzo, põe em cena Qual a medida da vida? E dessa me e a última a desistir. E, se gam, e é ela que me leva. n