1. Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, Programa de
Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa – Estudos
Comparados em Educação (ECOE)
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa
– Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e
Desenvolvimento (CEIED)
2. O objetivo principal deste capítulo é apresentar
elementos que possam contribuir para esclarecer como
ocorre, no Brasil de hoje, a coexistência entre a
educação pública e a educação privada, do ponto de
vista da organização da educação, no sentido de dispor
de algumas ferramentas teórico-metodológicas que
permitam traçar novos caminhos de investigação para
o tema a partir dos cenários históricos presentes;
assim como permitir que possamos nos posicionar
quanto à construção da educação que queremos para o
nosso País.
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3. A relação entre a educação pública e a educação privada no Brasil
remonta à época da colonização portuguesa, com as preocupações do
colonizador com a educação e adequação moral e cultural dos gentios e
cristãos se relacionando com as ordens religiosas que se fixaram na
América portuguesa.
entre franciscanos, beneditinos, carmelitas e outras mais, foram os
jesuítas que “vieram em consequência de determinação do rei de Portugal,
sendo apoiados tanto pela Coroa portuguesa como pelas autoridades da
colônia” (SAVIANI, 2007, p. 41); assim, a construção de seu patrimônio –
bem como de seu sistema educacional – usufruiu de muitas benesses da
metrópole, como favores reais, isenção de tarifas e impostos, além de
doações ‚
financeiras, doação de terras e permissão para utilizar a mão de
obra indígena em seus empreendimentos.
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4. A partir da proclamação da independência, as preocupações com a
instrução da população reestruturaram-se e a Constituição Política do
Império do Brazil, outorgada por D. Pedro I em 1824 (que para isso
dissolveu a Assembleia Constituinte com a ajuda de militares), prescrevia,
em seu artigo 179 – que tratava dos direitos civis e políticos –, nos incisos
XXXII e XXXIII, a garantia da “Instrucção primaria, e gratuita a todos os
Cidadãos” e dos “Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os
elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes” (BRASIL, 1824, gra‚fia
original).
Eram as províncias, de forma descentralizada e de acordo com os seus
recursos, as responsáveis pelo ensino de primeiras letras. Também
partiram das províncias as iniciativas de regulamentação da educação, de
discussão sobre o cumprimento da garantia da instrução primária, da
formação dos docentes, da organização entre os níveis de ensino e da
regulamentação da educação privada.
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5. Art. 15. - O ensino primario ou superior poderá ser livremente
exercido por particulares, salvas as restricções seguintes:
§ 1.º - Obrigação de fornecer os dados estatisticos necessarios.
§ 2.º - Obrigação de cessar o exercicio do magisterio uma vez
convencido o professor de actos immoraes e de máus costumes.
Art. 21. - Nos logares onde não houverem escholas publicas ou
deixarem de existir por força da presente lei, o presidente da
provincia, ouvindo o inspector geral e este ao do districto e
presidente da camara municipal, poderá subvencionar, para o ensino
dos meninos pobres, o professor particular mais conceituado,
dispendendo para esse fim até a quantia de duzentos mil réis
annuaes, com cada professor, tendo em vista o numero de alumnos
pobres e o quantum para isso especialmente decretado no
orçamento.
§ Único - As escholas particulares subvencionadas ‚
ficarão subjeitas
à mesma inspecçao e fi‚
scalisação das escholas publicas. (ALESP,
1868, gra‚
fia original).
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6. A preocupação do legislador com o tema seria a garantia
da instrução pública, mesmo que estivesse sob
responsabilidade de professor particular ou tivesse que ser
subvencionada pelo poder público. Outra importante
discussão na época da transição para a República tratava
da liberdade de ensino, especialmente quanto à
necessidade de se ampliar o ensino secundário – custoso
para as províncias – na iniciativa privada.
Vemos assim, desde a época do Império, algumas origens
das tensões e con•
flitos de interesses entre a educação
pública e privada no Brasil de hoje, bem como o Estado
assumindo a subvenção para atividades particulares com o
argumento da falta de capacidade pública
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7. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891
expressava a necessidade urgente de diversas mudanças na relação
entre o poder público e a sociedade da época. As províncias
transformaram-se em estados-membros, os distritos, em municípios,
todos com novas obrigações legais, mais autônomos e mais
responsáveis também pela organização da dinâmica dos interesses
locais. O único artigo que faz menção à organização da educação é o
artigo 72, que reza em seu parágrafo 6º: “Será leigo o ensino
ministrado nos estabelecimentos públicos”; e em seu parágrafo 24,
de acordo com o qual “É garantido o livre exercício de qualquer
profi‚
ssão moral, intellectual e industrial” (BRASIL, 1891, gra‚
fia
original).
São as ideias liberais consolidando-se no País, fortalecendo ainda
mais a descentralização administrativa e o poder regulatório dos
estados federados.
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8. Outro artigo da Constituição de 1937 a ser citado
para compor elementos de discussão para o nosso
tema é o artigo 125, no capítulo sobre a família,
que rezava:
A educação integral da prole é o primeiro dever e o
direito natural dos pais. O Estado não será
estranho a esse dever, colaborando, de maneira
principal ou subsidiária, para facilitar a sua
execução ou suprir as de‚
ficiências e lacunas da
educação particular. (BRASIL, 1937).
Novamente o Estado traz para si a obrigação com a
complementação privada para a educação dos
menos favorecidos.
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9. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo
ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou fi‚
lantrópicas,
de‚
finidas em lei, que: I - comprovem ‚
finalidade não-lucrativa e
apliquem seus excedentes ‚
financeiros em educação; II - assegurem a
destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, fi‚
lantrópica
ou confessional, ou ao poder público, no caso de encerramento de
suas atividades. § 1º - Os recursos de que trata este artigo poderão
ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e
médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insu‚
ficiência de
recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede
pública na localidade da residência do educando, ‚
ficando o poder
público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua
rede na localidade. § 2º - As atividades universitárias de pesquisa
e extensão poderão receber apoio ‚
financeiro do poder público
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10. Davies (2002) lembra que a cobrança de mensalidades não é a única fonte
de recursos das escolas privadas, citando fontes diretas e indiretas de
repasse de recursos públicos para as instituições privadas, tanto da
educação básica quanto do ensino superior.
Como fontes diretas de recursos públicos, podemos citar as bolsas,
subvenções, empréstimos, créditos e, no caso da educação superior, os
programas de crédito educativo; são fontes diretas que foram se
aprimorando e ampliando, tornando-se poderosos instrumentos de
acumulação de patrimônio e de ganhos; gerando uma extensa legislação
sobre a especi‚
ficidade das denominações de entidade ‚
filantrópica,
comunitária e confessional, que envolvem diversas áreas de
regulamentação jurídica.
Como fontes indiretas de recursos, Davies (2002) cita as isenções
tributárias, que de‚
fine como isenções tributárias ‚
fiscais e previdenciárias,
bem como a isenção do salário-educação, quali‚
ficando-as como mais
importantes, em termos de volume de recursos, do que as fontes diretas
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11. O caráter antipopular da política educacional neoliberal pode, com
certeza, ser apreendido através da análise de quatro das
características de suas políticas sociais, presentes, claramente, no
campo educacional: privatização, focalização, descentralização dos
encargos
e participação. (NEVES, 2002, p. 164)
A privatização do ensino público vem se dando, paulatinamente,
ao longo da década. […] o achatamento salarial do corpo docente
e de servidores, estímulo indireto para a passagem de pro‚
fissionais
quali‚
ficados da rede pública para a rede privada de ensino; a
ausência de concursos públicos […]; o corte de verbas federais […];
a cobrança de taxas diversas […] (NEVES, 2002, p. 164)
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12. A legislação funciona como cristalização das demandas e disputas da
sociedade, expressando as posições políticas, sociais, econômicas e
culturais dos grupos que conseguiram instituir seus interesses como
interesse de toda a sociedade, num momento histórico específi‚
co da
correlação de forças sociais.
Embora em nossa consolidada democracia hoje os processos sejam
públicos, é necessária uma intensa vigilância, no sentido de
acompanhamento permanente, por parte de todos os sujeitos políticos
coletivos que têm seus interesses em discussão. Algumas leis citadas não
são relativas diretamente à educação, mas tiveram e terão um grande
impacto na condução da coexistência da educação pública e privada, além
de possibilitarem um processo mais intenso de privatização da própria
educação pública.
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