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2 Vidas Raras Vidas Raras 3
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( )'*+,-,( página 6
Capítulos I( .'"/+,(0
( Os olhos de Matilde( 11
II( 123#',45(#5(678&
Gosto de ti, desde aqui até à lua 19
III( 123#',45(#5(7/5'9
( Vaidade Rara 27
IV( 154(#"$-3*%9":,
( Agir é acreditar( 37
V( 123#',45(#5()'$#5'(6"++"
( A Sagrada Família( 45
VI( ;%:+5',%5(<$95'$+(74",9'*=":$
( Amor Eterno( 53
VII( 123#',45(>"$%9?3":,(#5(<$4@5'9A;$9,3
( Reaprender a viver( 61
VIII( 79',="$(B539$9,A'C@',A/$+"#,A+C"%"$3$
( Sininho e Peter Pan( 69
IX( 123#',45(B"85,'-5
( A bela adormecida( 77
X( 123#',45(#5(&599
( O triunfo do amor( 85
XI( 7:,3#',/+$%"$
( A genialidade dos genes( 93
XII( 123#',45(#5(D,'3?+"$(#5(<$3-5
( O mel de Martim( 101
XIII( E4C3,#5=":"F3:"$()'"4G'"$
( O brilho de Estrelinha( 111
XIV( 123#',45(#5(D'"--+5'AH$II$'
( O olhar da diferença( 119
XV( J%95,-?35%5(E4/5'=5"9$
( Brava fragilidade( 127
XVI( 123#',45()$''KA&,4@5'-
( O caminho da vitória( 135
XVII( 123#',45(#5(65%9(15:C3#G'",
( A imperatriz dos afectos( 143
XVIII( D',4,%%,4,/$9"$(:,4/+5L$
( Pequenas singularidades( 151
XIX( 123#',45()M5+$3A>:B5'4"#
( O pequeno grande herói( 159
XX( 123#',45(N5++O5-5'
( No céu nasce uma estrela( 167
( ;/2+,-,( 174
E3#2:5
6 Vidas Raras Vidas Raras 7
)'*+,-,
Não sei como começar um prefácio com esta profundidade.
Decido então abrir meramente o meu coração.
Dor, revolta, saudade! Daria a minha vida para partilhar
com esta fantástica jornalista as tropelias do meu filho Marco,
de quem me separei fisicamente há quase seis anos, mas já é tarde!
Com ela partilho ainda hoje, diariamente, memórias, sempre
sob o olhar atento de uma foto de um metro de comprimento,
pendurada bem à frente da minha secretária e que testemunha
a veracidade das minhas palavras e a saudade no meu peito
Seis anos!… parece que foi ontem. Ainda relembro, como
a Alexandra, o seu modo maroto, a sua vaidade, a sua voz rouca,
os seus maneirismos e o seu cheiro…
Não sabem como dói recordar o seu cheiro! E o toque!
Deixamos de ter em quem tocar com a mesma intensidade,
com o mesmo sentido de protecção, com aquele amor único q
ue tomou conta das nossas vidas.
Que vidas?
Deixamos apenas de viver quando nascem, aprendemos
apenas a viver quando partem! E como custa aprender a viver!
Quem me dera não viver, quem me dera não ser quem sou hoje,
quem me dera ser apenas a mãe do Marco, como fui chamada
durante 17 anos. Mas esta foi a missão que tu me deixaste
– representar todos os MARCOS raros do meu país.
Foi esta a lição que aprendi, naquele dia frio de 16 de Janeiro de 2006.
“Eu aprendi filho e vou cumprir”! Foi esta a promessa que te fiz
enquanto sentia a tua pele esfriar… lentamente… No momento
em que me senti a pessoa mais impotente deste mundo!
Senti que quem aguenta a dor de perder um filho, aguenta tudo!
E não tem medo de nada… nada!
A vida passou por nós tão depressa! Ainda bem que abdiquei
do cabeleireiro por ti! Ainda bem que decidi comprar-te
aqueles ténis que tanto gostavas, anulando a minha vaidade!
Ainda bem que te beijei milhões de vezes, ainda bem que…
fomos tão felizes
e, com tão pouco!
Mas esta não é a minha estória. Esta é a estória de mães como eu,
que deram a sua vida por um grande amor!
Por tudo isto, era natural nascer uma obra como esta. Nascer,
simplesmente, aliás como tudo na RarÍSSIMAS. Nascer porque sim,
enquanto houver quem de nós precise.
Hoje já poucos são os que recordam a mãe do Marco. Insisto
sempre para que se refiram a mim como a mãe de todos os Marcos.
por Paula Brito e Costa
8 Vidas Raras Vidas Raras 9
Afinal, quem passa pelo que passei com o Marco e ainda detém
um sorriso nos lábios, só pode ter sido escolhido por algo superior
para defender estes filhos que amamos incondicionalmente
– os nossos filhos raros.
Sempre soubeste que a mesma mãe que te amou 17 anos teria
a capacidade de amar milhares de meninos como tu. Só eu não sabia!
O que me ensinaste! O que nos ensinam estes filhos!
A vós, mães como eu, que participaram nesta obra, e a todas
as outras que a irão ler, o meu mais sincero obrigadÍSSIMA
por mostrarem ao nosso povo o que é, afinal, amar acima de tudo!
10 Vidas Raras Vidas Raras 11
.'"/+,(0
Capítulo I
12 Vidas Raras Vidas Raras 13
No ATL da Escola Básica nº 1 do Linhó, a estrela do dia cha-
ma-se Matilde. À volta da mesa discute-se o Facebook e o livro pro-
tagonizado pela adolescente.
As amigas de infância, o grande suporte da jovem, dão ideias
sobre a estória a contar. Reservada, Matilde devolve-nos um sorriso
sarcástico revelando, qual estrela de cinema, que ainda irá pensar
sobre se fala, ou não, connosco. A fotografia parece ser agora uma
área muito mais aliciante para a jovem que, ao ritmo da Shakira, lá
vai ensaiando poses para a fotógrafa, sempre adjuvada pelas ami-
guinhas. Distinguir a doente, da menina doce e alegre, torna-se,
nesta fase, quase impossível. Tudo graças ao espírito invencível de
uma mãe que não aceitou nãos como resposta e de uma menina,
muito especial, que faz da perseverança o
seu lema de vida!
Matilde significa guerreira, que comba-
te com energia! Nenhum nome seria mais
indicado do que este, dado a uma menina
rara, nascida no mês das doenças raras –
Fevereiro, de 2000, data em que começa a
Os olhos
de Matilde
>$9"+#5
14 Vidas Raras Vidas Raras 15
sua grande luta, lado a lado com Gabriela, a mãe, uma mulher que,
curiosamente, também possui um nome à sua altura – a enviada de
Deus. “Nada acontece por acaso” começa por desabafar Gabriela,
ou Gaby como prefere ser chamada, ao lembrar a história da sua
Matilde e da luta contra tudo e contra todos. “Ainda bem que eu
tenho o feitio que tenho… pela Matilde. Eu não desisto! Posso já
não ter forças para mim mas tenho para ela… Sempre!”. Foi esta
perseverança que a levou a não aceitar as respostas, tanta vezes va-
zias, dos diversos médicos por onde Matilde passou: “Fui acusada
de muitas coisas… De ser uma mãe ansiosa… Eu queria respostas
e, por isso, fui acusada de expor a Matilde a muitos médicos. Che-
guei a ir a um médico afamado que me disse que a Matilde ia ser
um vegetal… se não tivesse esta insatisfação natural, provavelmente
ter-me-ia ficado por aquela resposta, mas não. Sempre exigi aquilo
a que achei que a minha filha tinha direito!”, relata, com convic-
ção. Efectivamente assim foi desde a primeira ecografia, às 12 se-
manas, onde a translucência da nuca apontava para uma eventual
Trissomia 21. “Soube o resultado da amniocentese de uma forma
cruel. Entrei no consultório, a médica estava ao telefone e, em cima
da mesa, sublinhado a fluorescente estava Trissomia X. Comecei a
chorar convulsivamente e a médica, de forma arrogante, ainda per-
guntou – está a chorar porquê?”. A falta de humanismo nos serviços
médicos não se ficou por aqui… Apesar da Matilde ser um parto de
risco, Gabriela deu à luz sem a presença de qualquer médico, com-
pletamente sozinha, no hospital Amadora Sintra e, nem os pedidos
desesperados feitos a um enfermeiro para lhe dar a mão na altura
da expulsão lhe valeram “ele respondeu de forma insensível – Para
quê? Foi tudo muito cruel. Senti-me completamente abandonada…”
confessa, emocionada. Durante o parto, a pequenina Matilde teve
um enfarte cerebral e uma anemia aguda que a colocaram entre a
vida e a morte, com direito a várias transfusões de sangue. “Senti
um vazio enorme… Vê-la numa caixinha e não a poder ter no meu
colo… Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ela mamou.
As lágrimas vieram-me aos olhos e pensei, ela conseguiu! Ainda
hoje sinto que esse momento foi realmente o primeiro passo para a
vitória dela!” recorda Gaby, comovida. Na realidade, esta foi apenas
a primeira, de muitas vitórias, da pequenina Matilde que, graças à
sua doença raríssima, só conseguiu andar aos 25 meses e pronun-
ciou as primeiras palavras já muito tarde. Parecia que não existia
nada no mundo que não acontecesse a esta menina: “a cada consulta
que ia descobriam um novo problema. Cheguei a um ponto que
pensei, eu não aguento mais”… Porém, a ambição e força de vencer
de ambas, acabaria por resultar, juntamente com o apoio da educa-
ção especial e de muitas consultas de fisioterapia. “Sempre acreditei
nela e continuo a acreditar! Tanto, que muitas vezes chego a julgar
que ela é exactamente igual às outras crianças. Ela tem tantas re-
acções próprias da idade. Só volto à realidade quando acontecem
aquelas coisas menos boas”. É nestes momentos que Gaby se volta
para aqueles médicos que, desde sempre, ou quase sempre, apoia-
ram a Matilde na busca pela sua recuperação. “A grande médica e
grande amiga é a pediatra dela, Ariane Brand, que a acompanha
desde que nasceu. É uma pessoa que ouve os pais. Porque muitas
vezes ouvi – a senhora é mãe, eu sou médica e eu é que sei! Foi ela que, no
dia do resultado da amniocentese, teve a coragem de chamar as coi-
sas pelos nomes. Foi ela que chorou comigo. Sei que posso contar
sempre com ela!”. Também o Pediatra de Desenvolvimento, Miguel
Palha, foi uma grande inspiração. “Ele costumava dizer que os olhos
da Matilde não enganavam. Na realidade, ela era muito parada, mas
os olhos eram muito expressivos, quase como se falassem. Foi ele
que me fez acreditar que, apesar da doença, a minha filha era real-
mente especial e me dizia, em tom brincalhão, que ela poderia não
chegar a ser uma tenista famosa mas que certamente seria alguma
coisa na vida!”. E foi justamente esta fé, esta esperança e desejo ar-
dente de ver a filha feliz e com saúde que fez com que Gaby nunca se
intimidasse perante os obstáculos da vida, tantos que “lhe sei dizer
o porquê de cada cabelo branco que tenho”. São justamente esses
cabelos brancos, essa sabedoria feita de experiência, que conferem
a Gaby um estatuto muito acima de qualquer diploma médico, até
Os olhos
de Matilde
16 Vidas Raras Vidas Raras 17
porque, tal como ela própria afirma “eu levo o meu processo clínico
para casa”! Um processo feito de alegrias e reveses, tantos quantos
os avanços e retrocessos a que a própria doença está sujeita e que,
segundo Gaby, se assemelham em tudo a uma sentença daquilo que
um dia se recusou fazer: “aos 20 anos disse à minha professora da
cadeira de Necessidades Educativas Especiais que nunca iria tra-
balhar com crianças com deficiência”. A verdade é que o destino
lhe pregou uma verdadeira partida de mau gosto e hoje, Gaby par-
tilha com Matilde todo o know-how adquirido no curso e anos de
diagnósticos e terapêuticas, afinal “pudemos não compreender ou
questionar o porquê mas temos de aceitar aquilo que temos!” afirma
Gaby, com convição.
Por isso Gaby percorre, lado a lado com Matilde, o caminho
espinhoso da recuperação e da vitória. Da fisiatria, em Alcoitão, às
operações ósseas em virtude da deformação que tem no pé, devido
à hemiparésia que não deixa o músculo acompanhar o crescimento
dos ossos, passando pelas visitas regulares ao dentista, por causa do
aparelho nos dentes, tudo na vida destas duas mulheres é uma luta e,
até umas simples férias, podem revelar-se um verdadeiro inferno de
Dante: “uma vez, nas férias, ela começou a fazer convulsões. Liguei
por diversas vezes à pediatra mas ela própria não conseguia perceber
o que se passava. Um dia, ao observar a Matilde, percebi que as con-
vulsões aconteciam imediatamente a seguir a ela estar na água. Tele-
fonei à pediatra e perguntei se o reflexo do Sol na água não poderia
seroresponsávelporessasituação.Efectivamente,depoisdelhecom-
prar uns óculos escuros, nunca mais aconteceu” comenta triunfante
Gaby. É graças a esta sagacidade e empreendedorismo, partilhada
pela filha, que ambas olham o futuro com um brilhozinho nos olhos.
“Eu quero é que ela seja feliz… não me interessa o resto!”, exclama
Gaby lembrando a personalidade vincada de Matilde “que tem sido
uma mais valia, uma vez que tenta fazer sempre tudo o que os outros
meninos fazem”. É essa força que faz com que Matilde, apesar das
suas limitações, tenha notas óptimas, sobretudo a inglês; sempre com
o apoio das sua amigas de infância, completamente inseparáveis. “O
ano passado ela começou a confrontar-se mais com as suas limita-
ções e a aperceber-se da sua diferença”, recorda a mãe que refere que
foi justamente o suporte emocional da amizade que fez com que os
reveses se transformassem em vitórias. “Sempre fiz um esforço para
levar as amigas lá a casa, porque é difícil para as outras pessoas terem
a Matilde. Durante três anos seguidos fiz noites do pijama” diz Gaby
que adianta desde logo o sonho profissional da filha – “A Matilde
quer ser treinadora de cavalos”, uma paixão que poderá advir do facto
de ser com eles que a Matilde resolve grande parte dos seus confli-
tos. “A Matilde não gosta de sair. Gosta de estar em casa e fica horas
a brincar com os cavalos dela. Ela resolve muitos dos seus medos
através do jogo lúdico”, refere Gaby.
Sentiu-se sozinha durante muitos anos, mas hoje Gaby afiança
“a Matilde é a pessoa que me faz rir! É a minha cúmplice!”. E juntas
percorrem o sinuoso caminho da doença. Matilde, apesar de fazer
praticamente tudo, tem algumas limitações, devido à hemiparesia e
não tem a motricidade fina ainda desenvolvida. Nada que a dupla
vencedora não pense em ultrapassar! Para Gaby “o que me preocu-
pa em relação ao futuro da Matilde é apenas a epilepsia dela, por-
que neste momento não está controlada, apesar de hiper-medicada”.
Porém, a espontaneidade de Matilde, de olhos postos no mundo, e
a garra com que Gaby fala do seu benjamim, levam-nos a acreditar
nas palavras dirigidas pela pediatra a Gaby, há alguns anos: “já pen-
sou que foi a Matilde que a escolheu, a si, para mãe…”.
Os olhos
de Matilde
18 Vidas Raras Vidas Raras 19
123#',45((
#5(678&
Capítulo II
20 Vidas Raras Vidas Raras 21
Detentora de uma memória absolutamente prodigiosa e um ta-
lento muito especial para a música, Leonor é a prova viva de que a nos-
sa existência é repleta de pequenas coincidências. “No Natal de 2005, a
Raríssimas fez uma publicidade muito gira que me deixou comovida.
Nunca imaginei que, passado um mês, a Leonor nascesse com uma do-
ença muito rara” lembra, comovida, Ana. Apesar dos 33 anos de idade
e de dois abortos espontâneos, nada fazia prever que a pequenina Leo-
nor viesse a ter qualquer problema. “No parto, apenas detectaram que
ela tinha um dedo a mais no pé esquerdo, mas disseram que não seria
motivo de preocupação”. Porém, o caso mudou de figura quando, aos
dois meses, os jovens papás se aperceberam, movidos por uma sagaci-
dade quase intuitiva, que o olhar da sua bebé era diferente. Na realida-
de, também a médica de família haveria de
alertar para o mesmo facto. “Tivemos então
uma consulta em Santa Maria e foi quando
detectaram o problema. Fez uma ressonância
magnética para despistagem de problemas a
nível das órbitas e aí verificaram uma defici-
ência a nível do corpo caloso. Fomos então
Gosto de ti,
desde aqui até à lua
<5,3,'
22 Vidas Raras Vidas Raras 23
referenciados para a consulta de genética e, após o estudo do cariótipo,
foi detectado uma delecção no cromossoma 11, ao qual estava asso-
ciada a anirídia, o dedo a mais, a hipoplasia do corpo caloso, chamada
síndrome de WAGR”. Um diagnóstico complicado, para um problema
raríssimo, que afectaria de sobremaneira estes pais que, há muito, dese-
javam um filho. Porém, talvez pelo facto de Leonor ser uma bebé muito
desejada, depois do choque inicial, surgiu a fé, a esperança e, sobretu-
do, a energia com que estes pais enfrentarem, de cabeça erguida, aquilo
que para muitos seria o fim. “Desde muito cedo que percebi que este
era um problema para toda a vida. Em família, decidimos que nos res-
tava dar-lhe o melhor e fazer tudo para que ela tivesse uma vida, o mais
normal possível”. E assim foi, enquanto Ana procurava os melhores es-
pecialistas, as melhores opiniões e, até, as melhores brincadeiras, Ricar-
do, movido por uma fé inabalável, procurava na internet respostas que
pudessem mudar o destino da pequerrucha. Apesar de ser o grande su-
porte de Ana, Ricardo contínua a não entender porque é que isto acon-
teceu. “Nunca hei-de entender, sou super-revoltado. Ninguém ajuda
a minha filha que é doente e depois dão tudo às minorias étnicas e a
toxicodependentes. Eu, que desconto todos os meses, não tenho direito
a nada!”, atira indignado Ricardo. Foi este mesmo sentido de injustiça
que levou Ricardo, nas suas deambulações pela net, a temer tantas ve-
zes pela vida de Leonor, tantas quantas aquelas em que sorriu, perante a
esperança de uma cura, de um dia melhor: “Da minha pesquisa, houve
muita coisa que me chocou, mas que me levou também a perceber que
aquilo que existia há 20 ou 30 anos, não é o que existe hoje. Há que dar
a oportunidade a estas crianças de irem mais além…” Foi justamente a
sua perseverança e a fé do casal na recuperação da sua princesa que os
levou a procurar de novo a net para perceber o problema oftalmológico
da pequenita. “Comunicámos com a associação dos EUA e tentámos
informar-nos. A informação que preciso tenho que ser eu a ir buscá-la;
eu é que vou dando a informação aos médicos e aos hospitais porque
eles podem ter conhecimento, mas não aprofundam a questão. Os pais
são os pilares dos filhos. Cabe a eles, também, procurarem a informa-
ção!” exclama, seguro, Ricardo. Como que desperta pelas eloquentes
palavras do seu protector, a pequena Leonor, que é realmente formosa
mas, nem sempre segura, entra trôpega pela sala, ainda recém desperta
da sua pequena sesta. Dirigindo-se até nós, os olhos semicerrados de
Leonor começam agora a crescer até pousarem sobre as nossas mãos,
mostrando de forma inequívoca que havia algo, que muito lhe tinha
agradado. Depressa nos apercebemos que o tom do verniz da jorna-
lista tinha deixado a princesinha encantada. A mãe revela então que
além do gosto pelas cores fortes, Leonor tem também imenso jeito para
cantar, especialmente André Sardet. Perante este comentário, Leonor
decide presentear-nos com alguns versos da célebre melodia Adivinha
o quanto gosto de ti. Poucos profissionais de saúde terão, certamente, a
oportunidade de testemunhar aquilo que vai além da doença… Afinal,
desde os seis meses que a Leonor faz ecografias renais, de três em três
meses, em virtude de se temer que venha a desenvolver um tumor de
Williams, característico da doença. “Até agora tem estado tudo normal
e a grande fase de risco, entre os 18 meses e os 3 anos, já passou. Porém,
de toda a investigação que fizemos, pode sempre aparecer, embora seja
muito mais raro. Por isso, até aos 8 anos faz-se este controle trimestral
e, depois passará a ser semestral e, mais tarde, anual”, assegura a mãe.
Além disso, Leonor é permanentemente acompanhada por uma equi-
pa multidisciplinar que reúne a Oftalmologia, passando pela Genética
até ao ensino especial, sendo ainda acompanhada pela Neurologia, no
hospital São Francisco Xavier. Em Alcoitão encontra-se referenciada
para a fisioterapia e terapia ocupacional.
Operada aos seis meses a uma catarata completa, Leonor usa
óculos escuros desde os 3 porque não tem íris nos dois olhos. “Te-
mos muito cuidado com os olhos dela. Ela nunca pode sair à rua
sem os óculos uma vez que pode queimar a retina, o que será irre-
versível”. Também a nível físico, Leonor lida com algumas dificulda-
des, nomeadamente no que se refere ao apetite. “A Leonor tem um
apetite muito grande, característica da doença, mas nós controla-
mos imenso. Ela tem de perceber que não pode comer certas coisas.
Neste momento está um bocadinho gordinha, mas apenas porque
como tem alguma dificuldade motora não tem o mesmo tipo de
Gosto de ti,
desde aqui até à lua
24 Vidas Raras Vidas Raras 25
exercício. No entanto, não come bolos, chocolates, doces e tem até,
umas bolachinhas próprias. Ela própria já não pede. Aliás, nem se-
quer temos esse tipo de coisas cá em casa”, acentua Ana.
Apesar de os pais de Leonor serem umas verdadeiras forças de
vida, a verdade é que, se perante a doença sempre lutaram, perante a
crise estão quase a baixar os braços. “Os óculos dela são extremamen-
te caros, as terapias não são comparticipadas, porque Alcoitão deixou
de ter esse serviço. Inclusivamente existem crianças lá que sempre
tiveram este acompanhamento e que agora, em virtude de não ser
comparticipado, tiveram de as retirar” destaca Ricardo que continua
os seus queixumes referindo que “recebo dois subsídios para a Le-
onor – o de deficiência que são 56 euros e consegui o subsídio de
terceira pessoa. Neste momento recebo à volta de 140 e poucos euros.
Serve apenas para ajudar a pagar as terapias de Alcoitão. Até o abono
de família me retiraram!”, diz indignado aquele que sempre tentou
que a pequenita tivesse acesso a tudo o que “tinha direito”. Da escola
particular à terapia da fala particular, nada faltou à pequenita. Infe-
lizmente, os tempos hoje são outros e o casal teve de colocar Leonor
na escola oficial. Lá “tem algumas terapias gratuitas, nomeadamente a
terapia da fala e acompanhamento especial. Tenho notado uma dife-
rença enorme!”, exclama a mãe. Leonor cresceu, efectivamente, como
garota e ser humano. Culpa dos pais, talvez, que trabalharam para
isso. “Apesar de termos muitas dificuldades e uma vida muito des-
gastante, com as constantes idas a médicos, tentamos sempre que ela
aproveite a vida ao máximo” ou, quem sabe, da própria Leonor que,
simpática e divertida, resolveu pregar uma partida à doença e mos-
trar a sua verdadeira raça: “começa já a desenhar círculos. Já distingue
as cores, à excepção daquelas que são muito parecidas”. Para tudo isto
contribuiu, certamente, a preciosa ajuda dos amiguinhos docentes.
“Os meninos da escola são super-queridos com ela. Gostam muito
dela e andam sempre a perguntar se precisa de alguma coisa”, lem-
bra Ana. Unindo armas com a pequena Leonor, estes pais guerreiros
acreditaram que era possível tentar de novo… dar um irmão à Leo-
nor. “Antes de ter o bebé, falámos com a genética e ela disse-nos que
nem eu nem o meu marido tínhamos qualquer problema a nível dos
cariótipos. Falei com  o meu marido e achámos que seria bom para a
Leonor ter um irmão, apesar das despesas. Porém, como engravidei
com 37 anos, fui para as consultas de alto risco, até fazer a amniocen-
tese. Fizeram também o estudo do cromossoma. Quando o Lourenço
nasceu, a vida deu outra volta. Hoje, brincam os dois muito e ouvem
histórias e música juntos. Ela é fantástica com ele e ele gosta imenso
dela”, diz embevecida Ana, enquanto olha os seus rebentos. Na reali-
dade, Leonor tornou-se hoje naquilo a que chamamos em tom quase
coloquial – a irmã mais velha. “Ela já tem alguma conversa connosco
e faz pequenos recados” refere Ana adiantando desde logo que cada
passo que ela dá é uma vitória. Um triunfo feito de pequenos avanços
e alguns recuos, mas com uma novidade diária: “vivemos um dia de
cada vez e da forma mais intensa possível. Tentamos sempre que cada
dia seja diferente, cada vez melhor!”, garante o casal que acompanha
diariamente as peripécias da pequenita e cresce com ela, aprende
com ela. É esta aprendizagem de experiências feita que leva o casal a
sentir-se na obrigação de motivar outros tantos pais: “o fundamental
é, quando se recebe a notícia de que se vai ter uma criança diferente,
aceitar. Temos de investir nestas crianças, falar com elas, dar-lhes ca-
rinho, amor e estar o mais possível presente na vida delas”.
Ainda que, no final do dia, a preocupação de Ricardo seja “morrer
sem eles terem crescido”, a alegria de ver Leonor crescer, feliz, formo-
sa e segura dá um novo alento a esta casal guerreiro que sonha um
dia levar Leonor aos EUA onde, além do outrora  prometido ouro,
poderá estar a esperança da cura!
Gosto de ti,
desde aqui até à lua
26 Vidas Raras Vidas Raras 27
123#',45(
#5(7/5'9
Capítulo III
28 Vidas Raras Vidas Raras 29
Trabalha no jardim de de infância da Câmara Municipal
do Seixal, onde todos a mimam e adoram. Vaidosa por nature-
za, Márcia faz questão de exibir, orgulhosamente, a sua diferen-
ça, deixando para trás mágoas e lembranças de um passado e de
uma sociedade que nem sempre foi justa para com ela, o fruto
de uma ignorância naturalmente inerente a tudo o que não é es-
tandardizado. “A sociedade olha-nos como se tivéssemos algo que
se pegasse”, alega Márcia lembrando todos os olhares de soslaio,
cochichos e comentários desagradáveis a que esteve, desde sem-
pre, sujeita. Hoje, com 27 anos, Márcia confessa-se uma mulher
realizada e insubmissa, oferecendo à mãe os louros daquilo que
é hoje “A minha mãe é uma grande mãe, uma mulher com muita
força. Se não fosse ela eu não estava como
estou”. Talvez por isso, Márcia prefere
que seja a sua mãe a relatar a estória de
vida que ambas têm vindo a trilhar, lado
a lado, ao longo destas quase três décadas
de vida. Uma estória onde predomina a
convicção, o engenho e a atitude de uma
Vaidade
Rara
>G':"$
30 Vidas Raras Vidas Raras 31
mulher, tantas vezes apelidada de má, por força de querer que a
sua filha fosse… Capaz! Capaz de coisas simples como abotoar
uma camisa, comer sozinha ou até, imagine-se, ir para uma esco-
la pública. “Quando pus a Márcia a comer sozinha, diziam que
maltratava a minha filha e que era má mãe. Tudo porque a Márcia
não tinha dedos. Obrigava-a a limpar-se na casa de banho, o que
ela fazia com dificuldade, porque não consegue chegar bem com
o braço atrás. Porém, hoje ela faz tudo! Eu sei que não é fácil de
ver. Mas eu preferia vê-la a esforçar-se, do que não conseguir fazer
nada!” afiança Gisela, uma verdadeira heroína para quem a pala-
vra não ser capaz é apenas sinónimo de preguiça.
“Amar um filho deficiente é acreditar nele, é respeitá-lo”! É des-
ta forma que Gisela se refere à sua menina e ao longo, penoso mas
vitorioso rumo que têm delineado. “Fiz uma jura que ela havia de
ser, um dia, aquilo que eu tinha sonhado!”, regista decidida. Apesar
da garra e perseverança que hoje demonstra, esta mãe confessa que
no início foi muito complicado. “Há uma imagem que vou guardar
para sempre comigo – quando a Márcia nasceu, fez-se um silêncio
desconfortável e eu perguntei o que se passava. Foi quando entra
uma enfermeira com ela embrulhada, num pano azul; a Márcia
coloca o pé fora do pano e eu vejo um pé, sem dedos”! Apesar da
grande mulher que é, Gisela deixa-se abalar pelas lembranças para
logo se recompor e afirmar, sem receio de qualquer avaliação mo-
ral: “fiz rejeição – eu não queria aquilo. Não foi aquilo que pedi
– berrei, saltei e fiz o meu luto logo ali, naquele momento”. Afi-
nal, Márcia era a sua primeira gravidez. Uma filha muito desejada
numa gravidez que decorreu normalmente. Após a reacção inicial
Gisela, graças à providencial intervenção de uma enfermeira, de-
cidiu que a filha haveria de ser igual a todos os meninos. “Tive alta
da MAC e ela ficou internada. Durante 15 dias eu ia vê-la, mas ao
longe! Passados este dias a Márcia passou para a Estefânia e jamais
me esqueço de uma enfermeira, que ainda hoje é nossa amiga, que
me disse: como é mãe? Veste-a você ou eu? Eu, ainda em choque, dis-
se para ser ela e fiquei estupefacta quando a vi acarinhá-la. Quase
com a bebé vestida eu disse – eu acabo! Foi nesse dia que a aceitei!”,
conta. Já para o pai de Márcia, nem o choque estético o demoveu
do amor imenso que sentia por aquele pequeno ser. “O pai da Már-
cia quando a viu disse-me que ela era tão bonita ao que eu respon-
di e tu és muito burro. Aos meus olhos, a minha filha não tinha
qualquer tipo de beleza. Ainda hoje, para o Francisco, a Márcia é a
menina dos seus olhos! A princesa!”, conta Gisela.
Na Estefânia, já com quase três semanas, surgiu o primei-
ro diagnóstico. “O Professor Gentil Martins veio ter connosco e
disse-me que era uma síndrome de Apert, adiantando desde logo
que, apesar de não saber muito sobre a doença, a menina teria de
ser sujeita a várias intervenções cirúrgicas”. E assim foi. A primeira
surgiu logo aos quatro meses, ao cérebro. Seguiram-se várias à au-
dição, mas sem resultados! A Márcia acabou por desenvolver uma
surdez completa e hoje ouve, graças a uma prótese. As mãos tam-
bém foram alvo de cirurgia: cinco em cada uma. “Nos pés nunca
mexemos”, relembra a mãe a quem os médicos afiançaram que a
menina não iria andar, não iria passar dos 4/6 anos e que “eu es-
tava a criar uma expectativa muito grande. O braço não mexia, o
andar era dificultado porque não fazia o movimento das pernas,
enfim, pintaram a coisa muito negra”. Como se isto não fosse des-
de logo um fardo extremamente pesado, acresce o facto de Márcia
ter tido as doenças típicas de infância – quase todas – e de fazer
bronquiolites de repetição. Nada que amedrontasse Gisela, habi-
tuada às agruras da sua vida: “às tantas, já era eu que a aspirava!
As mães vão-se tornando médicas dos seus filhos!” confessa, or-
gulhosa do seu desempenho.
Porém, nem só do mal físico padecia Márcia. Esse, aliás, viria
afinal a ser, provavelmente, o menor dos sofrimentos. O maior de
todos era, aquele que ainda hoje se verifica: a discriminação. “Aos
dois anos entendi que a minha filha tinha de ir para uma escola
pública. Chamaram-me louca! Passou por três ou quatro colégios
onde estava apenas umas horas e me mandavam ir buscá-la por-
que não a podiam ter lá. Diziam que os meninos quando olha-
Vaidade
Rara
32 Vidas Raras Vidas Raras 33
vam para ela choravam”! Nessa altura, e perante a rejeição de uma
sociedade hipócrita e cruel, Gisela sentiu-se impotente. “Estava
desorientada! O mundo desabou; não havia portas, janelas, nada.
Tudo se fechava”! Porém, como que por magia, ajudada pelo inte-
resse de um jornalista do extinto Tal e Qual, as coisas acabariam
por mudar, ainda que as mentalidades continuassem retrogradas.
“A história tocou muita gente e, aí, apareceram vários colégios
que a queriam lá. De todos, só um fazia, já na altura, inclusão – o
externato Piaget, em Lisboa. Ela tinha quatro anos e eu pagava
então 27 contos de mensalidade, sem qualquer comparticipação”
denuncia Gisela para quem, a falta de apoios financeiros para a re-
cuperação da filha sempre foi uma constante. Tanto, que obrigou
o marido a trabalhar arduamente para lhes poder proporcionar
o melhor, enquanto perdia, assim, a infância da filha. “Comemos
muitas iscas para ela ter boas botas! A última operação que fez às
mãos, na Clínica de Todos os Santos, pelo Prof. Batista Fernan-
des, o único cirurgião da mão em Portugal, custou-me 500 contos.
Cada atestado médico custava-me 15 contos porque era assistida
em particular, porque o Professor Gentil Martins me disse que eu
não podia exigir mais porque o que estava feito era uma obra mui-
to bem feita, por ele…”, acusa revoltada.
A prova do equívoco deste médico está hoje à nossa frente.
Uma rapariga bem formada, senhora do seu nariz, que já não se
deixa abater por comentários menos próprios e, muito menos,
pela sua aparência. A mãe, não tendo formação médica, tinha
uma qualidade única: o amor de mãe. Foi esse amor que a levou
a confrontar a filha com a sua própria deficiência, numa tentati-
va de a chamar à realidade e de lhe provar que isso, era o menos
importante. “Sempre achei que a Márcia devia de ter espelhos no
quarto para que se pudesse olhar e gostar dela como é”. Apesar
disso, a jovem viria a ter o confronto da sua vida quando, um dia,
na escola, os colegas a chamaram deficiente: “Com oito anos ela
chegou a casa e perguntou-me o que era um deficiente. Levei-a
para a frente de um espelho e disse: olha para mim e olha para ti
Vaidade
Rara
– o que vês minha filha? Nada. Ao que respondi – já reparaste que
tens um nariz diferente, uns olhos diferentes… a tua maior beleza
está dentro de ti, não se vê. Porque te acham diferente e não vêm
essa beleza eles chamam-te deficiente. Ser deficiente é isso mesmo, é
ser diferente daquilo que nos rodeia. Tu és mais bela que qualquer
um de nós, porque não te questionas por não seres igual aos outros.
Tu aceitas-nos, o que revela que és um ser humano muito superior a
todos nós” revive Gisela, com emoção.
Os 12 anos foram outra época complicada, por força da con-
vicção desta mãe que entendeu “que ela tinha de ser capaz, porque
quando eu fechar os olhos não existe ninguém para tomar conta
dela. Teve dificuldades na escola porque não conseguia assimilar a
matéria. Acabou o 9º ano aos 18 anos. Até aqui, tudo corria muito
bem, porque era bom para os colégios terem uma criança com
Apert que conseguia fazer tudo o que ela conseguia. Porém, ela
não quis continuar a estudar e saídas para trabalhar não existiam.
Também se sentia mal porque já era uma mulher numa turma de
crianças”… Assim, após a conclusão do 9º ano, a única hipótese
que esta mãe viu para a sua filha, foi aquela que sempre tinha re-
jeitado – a Cercis. Lá fizeram questão que ela fosse o exemplo. Um
exemplo de garra e convicção para os outros meninos! Porém, esta
opção também não agradava à jovem Márcia. “Quando saímos da
escola a Márcia disse-me: é aqui que me vais pôr, ao pé daqueles. Res-
pondi-lhe que aqueles eram iguais a ela, apenas tinham tido um
percurso diferente”.
Aqui, Márcia adquiriu novas competências e encontrou, tam-
bém, o seu primeiro amor, um adolescente com Trissomia 21. Um
amor que, mais uma vez graças aos preconceitos sociais, não teve
o final feliz que a jovem Márcia tanto sonhava. “Os pais, quan-
do souberam, não aceitaram o namoro porque a Márcia era feia”,
confirma a mãe. Márcia, como que atiçada pelas amargas recor-
dações, interrompe agora e afiança: “não quero mais namorados.
Sofri muito e pensei que o melhor era estar sozinha…” confessa.
A seu lado, a mãe lembra que, foi também nesta época que ela
34 Vidas Raras Vidas Raras 35
própria teve um grande desgosto. A paixão por estas crianças tão
especiais era de tal forma que Gisela decidiu procurar emprego a
fazer aquilo que achava que sabia melhor – lidar com estes meni-
nos. Porém, “a dada altura, as funcionárias das Unidades tinham
de ser das Cercis e eu fui obrigada a sair. Foi o ano mais difícil da
minha vida! Estes meninos fazem parte de mim!”, recorda chorosa
Gisela que, durante algum tempo ainda tentou ter um espaço seu
mas que “tive de fechar porque não tinha ajudas”. Magoada, lá vai
adiantando que hoje tem os meninos na sua casa porque “as pes-
soas que trabalham hoje com estas crianças não sabem respeitar o
seu espaço e respeitar a forma de amar deles”.
Márcia, por seu lado, e apesar de ter momentaneamente ab-
dicado dos namoros, hoje não dispensa os amigos, com quem
partilha, diariamente, histórias no Facebook. Amante de música
e dança, a jovem não dispensa as saídas à noite e as visitas ao sho-
pping, onde se diverte com a sua grande paixão: comprar brincos.
Desde sempre fez questão de se arranjar e de se cuidar como que
querendo, a todo o custo, contrariar uma comunidade que teima
em colocar rótulos numa mulher que, afinal, é tão pura e simples-
mente isso – uma mulher!
“A Márcia aprendeu a não se esconder e a impor-se!”, ajuda a
mãe, lembrando uma história curiosa que revela a personalidade
forte destas duas grandes Senhoras: “A Márcia é muito vaidosa e
adorava camisas. Eu dizia-lhe: consegues abotoá-las? Não mãe. En-
tão não as podes ter. No dia em que conseguires, compro-te aquelas
que quiseres… Esse dia chegou”! Foi também esta forma vincada
de ser que a transformou numa educadora de excelência: “lá ensi-
namos e aprendemos. A última coisa que lhes ensinei, que apren-
di com os meus pais, foi que não devem ter medo… Os meninos
aqui aceitam-me, como se nada fosse” assegura Márcia, orgulhosa
dos seus petizes. A seu lado, a mãe sorri e garante-nos desde logo:
“qualquer família com uma criança deficiente é abençoada. É uma
família muito especial! Eu sou uma mãe muito realizada!”. De la-
grimita ao canto dos seus olhos rasgados, também Márcia faz uma
Vaidade
Rara
pequena troca de afectos: “apercebi-me, graças aos meus pais, que
somos todos iguais”. Da nossa parte, gostaríamos apenas de salien-
tar um pequeníssimo grande adjectivo; todos iguais talvez, mas
uns mais tenazes que outros…
A nossa Márcia, ultrapassando todas as barreiras da vida, dá
uma grande lição a todos aqueles que se queixam, tantas vezes, de
coisas comezinhas e que teimam em discriminar os que, pelo seu
carácter e estória de vida os assustam – porque lhes lembram a sua
insignificância!
36 Vidas Raras Vidas Raras 37
154
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Capítulo IV
38 Vidas Raras Vidas Raras 39
São 17.30h – Lá fora, uma carrinha da APERCIM traz ao nos-
so encontro a protagonista desta estória. Rita de seu nome, faz jus ao
significado do mesmo – alegre, radiante. A mãe, de sorriso também
rasgado, dá-nos uma calorosas boas-vindas. Apesar da vida difícil
e problemática que ambas têm, estas mulheres sabem, como pouca
gente, que tal como afirmou outrora o defensor da liberdade, Martin
Luther King: “Pouca coisa é necessária para transformar inteiramente
uma vida: amor no coração e sorriso nos lábios”. São justamente estas
duas grandes premissas que as têm guiado pelos atalhos da vida. “Eu
conto as coisas a rir porque só assim se consegue seguir em frente; é
mais fácil”, justifica Deolinda, soltando uma forte gargalhada, misto
de nervosismo e de uma disposição verdadeiramente inacreditável.
Para esta mulher que, até hoje, luta para sa-
ber o diagnóstico da patologia da sua filha,
na vida não existem pontes nem barreiras,
apenas muros, muitos muros… que teima
em derrubar: “Se tenho dado ouvidos às
opiniões dos médicos, que diziam que não
havia nada a fazer, com certeza ela não teria
Agir
é acreditar
&"9$
40 Vidas Raras Vidas Raras 41
chegado aqui” afirma, veementemente, Deolinda. Afinal Rita, hoje
com 21 anos, apesar de se encontrar presa a uma cadeira de rodas,
irradia uma paz de espírito e tranquilidade, só abaladas por rasgados
sorrisos, sempre que se fala directamente no seu nome.
O percurso de vida desta família é, verdadeiramente, um exemplo
de tenacidade e constância. Deolinda tinha 33 anos quando nasceu
Rita, tendo o problema da bebé sido notado apenas às 30 semanas.
“Numa ecografia, o perímetro cefálico estava abaixo da média e tinha
deixado de se desenvolver, porém a médica desvalorizou e disse que
poderia ser do aparelho onde a eco tinha sido tirada” diz Deolinda.
Porém, quando Rita nasceu, os receios da mãe provaram-se: “Quan-
do ela nasceu tinha o nariz achatado e as orelhas estavam coladas à
cabeça” asserta. Seguiram-se numerosos exames – cardíacos, oftal-
mológicos, genéticos… Diagnóstico: síndrome malformativo, um
nome tão vago quantas as inúmeras patologias raras que a ele podem
estar associadas. “O mundo caiu-me em cima. Não sou diferente das
outras pessoas! Fui-o apenas porque, contra a opinião de todos, fiz o
que achei ser o melhor para a minha filha”. E assim foi, perante um
diagnóstico muito triste, onde a palavra recuperação ou esperança
teimavam em não caber: “A médica assistente confessou ao meu ma-
rido que aquela criança não era suposto ter sobrevivido”. Mas Rita,
de espírito triunfante, viveu, coadjuvada pela sua grande parceira de
luta, Deolinda, que teimava em contrariar médicos e especialistas,
provando que tinha razão em… acreditar!
Um dia, uma fisiatra da Liga Portuguesa dos Deficientes Moto-
res perguntou-lhe, em tom irónico, o que ia fazer com a filha para
a piscina. “Retirei do saco um biberão de água e perguntei à Rita,
então com 15 meses, se queria água. A menina respondeu abrindo
a boca! Depois voltei-me para a fisiatra e disse-lhe – agora explique-
-me porque é que me diz que esta criança não entende nada” lembra,
emocionada. Também o neurologista da pequena Rita parecia tei-
mar em abalar as convicções de Deolinda. “Eu não me entendia com
o neurologista porque ele só sabia dizer que ela não havia de fazer
nada e que não valiam a pena terapias. Lembro-me de a levar para a
praia e a obrigar a andar pela praia fora, para que se desenvolvesse a
nível motor. Um dia volto à consulta e ela, muito bem disposta, sor-
ria e olhava para tudo à sua volta. Aí, o médico deu-me os parabéns
e disse-me que ele nunca tinha acreditado que fosse possível. Foi o
seu trabalho que conseguiu isso, disse ele”. Foram estas as palavras, pro-
feridas por um especialista, que deram a determinação a Deolinda
para continuar, contra as opiniões de todos, a tentar despertar a sua
Bela Adormecida Rita. Daí em diante, Deolinda teve a certeza que,
com carinho e o estímulo correcto, era possível obter respostas des-
tas crianças… bastava olhá-las com atenção. “Eu percebo-a porque
olho para ela” salienta esta verdadeira pietá.
Um dia, a mãe de Rita achou que estava na hora de a sua prin-
cesa aprender e conviver com outros meninos. Por isso, apressou-
-se a inscrevê-la num infantário, perante o descrédito da directora:
“para que quer que ela esteja aqui? É para saberem que ela existe? Mas eu
insisti e revirei tudo até conseguir, inclusivamente, que ela tivesse
apoio especial. Os pais dos meninos ficavam horrorizados porque
achavam que as crianças não tinham que levar com isto. Ouve uma
mãe que, inclusivamente, disse que a filha dela comia pior desde que
a Rita frequentava o infantário”, lembra em tom irónico. Esta satis-
fação em confrontar tudo e todos na defesa dos interesses maiores
daquela que é do seu sangue trouxe muito mais situações de pura
discriminação e falta de informação da nossa sociedade para com
estas crianças. “À chegada da escola primária a directora chegou a
dizer-me que só por cima do cadáver dela é que a Rita entrava. Ao
que eu respondi que a escola era obrigada a criar condições para que
a minha filha lá pudesse andar. É incrível, porque os miúdos falavam
na Rita aos pais, como uma colega! Só quando chegava a Festa de
Natal, é que os pais se confrontavam com esta realidade…” recorda,
com um ar de estupefacção.
Ao nosso lado, de olhos serenos e sorriso rasgado nos lábios, Rita
agita-se agora alegremente. Segundo a mãe, quer tocar piano, como
que a brindar a nossa presença com os seus feitos. Esta persistência
em comunicar foi, desde sempre, algo que acalentou as esperanças de
Agir
é acreditar
42 Vidas Raras Vidas Raras 43
Deolinda. “Fui para a natação tinha ela 15 meses. Apesar de os mé-
dicos dizerem que ela não entendia, eu sabia que ela gostava de água.
Por isso, em vez das terapias, usei a parte lúdica, para obter respostas
dela”, concluí. Para Rita, foi graças a esta interacção que conseguiu
sempre vencer todas as adversidades. Dorme mal, desde sempre, e
acorda várias vezes por noite. Aos dois meses começou a ter convul-
sões, que hoje estão controladas com medicação e, a dada altura, “to-
dos os dias ia com ela ao hospital, pelas mais diversas razões e pelas
constantes crises de falta de ar” comenta rindo Deolinda.
Diz que não tem postura de coitadinha e assegura-nos, desde
logo que, se assim fosse, talvez tudo fosse mais fácil: “há dias em
que não apetece sequer levantar-me”, confessa rendida. Logo depois,
como que esquecendo a tristeza, Deolinda assegura-nos que será a
última a partir e, por isso, mudou de casa para assegurar à filha que
a protegia e defenderia… até ao fim! “Ela hoje está aqui, com uma
qualidade de vida razoável, porque eu mudei a minha vida em fun-
ção dela. Eu morava em Caneças e era a Liga que me ajudava. Aqui
em Mafra têm todas as terapias” salienta a mãe, destacando que es-
tas escolas têm já currículos alternativos para os meninos especiais,
apesar de nem sempre serem aplicados, de forma efectiva e trans-
versal. “Aqui na Apercim (Associação para Educação e Reabilitação
de Crianças Inadaptadas de Mafra) quiseram passá-la vários anos
seguidos para que ela abandonasse o ensino mais rapidamente. Fui
lá e disse que ela teria de cumprir o currículo, como todos os outros
meninos. Salientei ainda que eu queria que ela fizesse a universidade
básica (Escola Básica Hélia Correia), que existe também aqui”, asse-
gura de sorriso sarcástico nos lábios.
Há alguns anos, quando o neurologista de Rita afirmou que não
havia nada a fazer, Deolinda escreveu! Escreveu muito… “Cheguei
a mandar a informação dela para Cuba, para a Suécia, e as respostas
que me deram levaram-me a pensar que o melhor era tentar viver a
vida, da melhor forma possível, no meu país” afirma resignada, mas
com firmeza, prosseguindo a estória com uma forte componente dis-
criminatória: “O grave nestes casos é que não basta ter de lidar com
a doença, como também ter de ultrapassar os obstáculos que os ou-
tros teimam em nos colocar”. De uma coisa Deolinda tem a certeza.
Não será o irmão de Rita quem terá de acompanhar a irmã até ao seu
desígnio. “Eu, ao contrário da maioria das mães, não acho que tenha
de ser ele a ficar com ela”, refere Deolinda, quase incrédula perante a
atitude de outros pais de meninos com patologias raras. “A maioria
dos pais desistem. Não os levam para a escola porque não querem
enfrentar as outras pessoas”, lamenta. Mesmo perante tantas adver-
sidades, Deolinda não é pessoa de se abater ou amedrontar e garante
que todos os seus dias serão passados a encontrar as melhores alter-
nativas, os melhores colégios, as melhores pessoas até, quem sabe, a
cura para a sua filha. “Desde que existe a Raríssimas e graças à mãe do
Marco eu passei a achar que não estava sozinha e que o futuro há-de
ser diferente. Quando a ouço falar ligo para os meus amigos e digo,
ouçam aquela senhora!” diz de sorriso aberto.
Não, de facto Deolinda não está só, nem tão pouco a sua Rita.
Existem milhares de estórias semelhantes, de dor, sofrimento e an-
gústia, mas poucas poderão ter o vosso final feliz, o da vitória do
amor sobre a doença!
Agir
é acreditar
44 Vidas Raras Vidas Raras 45
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Capítulo V
46 Vidas Raras Vidas Raras 47
É num remoto vilarejo do Conselho de Santarém que vivem
Francisco e Cristiano, dois irmãos gémeos, extremamente traquinas e
com uma inteligência e poder de argumentação que nos deixaram, ab-
solutamente, fascinados. À volta da mesa, toda a família se reúne para
partilhar a estória destes dois meninos, uma estória contada a várias
vozes, ou não fossem eles uma verdadeira Unidade Familiar. Afinal, o
problema das doenças raras, quase nunca é de uma só pessoa. A família
tem, na maioria destes casos, um papel absolutamente preponderante.
Francisco não consegue esconder o seu nervosismo perante a imi-
nência de, segundo a sua imaginação, ser levado por nós. Envergonha-
do, esconde o rosto, belisca-se e contorce-se… É Cristiano, com um
ar bonacheirão, que avança e nos conta que o irmão está um bocadi-
nho aflito! Depois de lhe mostrarmos que
estamos ali apenas para contar uma estória,
o ambiente torna-se mais descontraído, es-
pecialmente quando Cristiano nos confessa
que adora comida e que o seu grande sonho
é ser cozinheiro, desejo partilhado por Fran-
cisco, como aliás tudo o resto! “O grande
A Sagrada
Família
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48 Vidas Raras Vidas Raras 49
mal foi não os terem separado na escola. Eles andaram sempre juntos
e influenciaram-se um ao outro. Por exemplo, o Francisco não sabia,
mas apoiava-se no irmão”, aponta a mãe perante o olhar reprovador e
malandreco de Cristiano que depressa contrapõe essa afirmação com
um displicente: “os outros meninos são mais piores que nós”.
Anabela teve os gémeos aos 33 anos, mas o diagnóstico apenas sur-
giria um ano depois do seu nascimento. “Ia todos os meses à pediatra,
no hospital de Santarém, e comentava que achava estranho eles não
chorarem, não acordarem para comer e, no geral, serem muito moles.
Eu dizia que achava que havia qualquer coisa e a pediatra ralhava co-
migo e respondia que parecia que eu não era mãe!” conta. Porém, esse
fabuloso sexto sentido que assiste às mães não a enganava. Cada vez que
choravam, o som que ecoava pela casa era quase um miar de gato, algo a
que, Anabela, mãe de duas outras meninas, em nada achava semelhan-
ças. As dúvidas que assolavam a alma desta mãe eram mais que muitas e
o tempo não tardou a responder-lhe, da forma mais cruel possível. “Um
dia, foi o meu marido foi com eles à consulta e foi atendido por uma
outra médica. Depois de lhe explicar aquilo que eu já havia relatado ao
longo dos meses, esta médica disse que eles deveriam ficar internados
para observação. Foi neste internamento que vim a conhecer duas mé-
dicas, que eram de Santa Maria mas que estavam a estagiar ali. Foi a
minha salvação!”, explode Anabela recordando a proposta das jovens
estagiárias que, movidas pelo espírito científico, quiseram que os géme-
os fossem vistos por um professor, da área das doenças metabólicas.
Os gémeos deram entrada no hospital de Santa Maria onde, após
uma semana de internamento, análises genéticas, a eles e aos pais, anali-
sadas por laboratórios do Porto e de Espanha, tiveram finalmente o seu
diagnóstico. Eles eram, tal como Anabela suspeitava, diferentes, raros
– Prader Willi. “Lembro-me que houve um médico que abriu um livro
ondehaviaumhomemmuitoobesoequesómedissequeosmeusfilhos
iam ficar assim – aquele homem tinha uns duzentos e tal quilos. Adian-
tou ainda que era possível que eles viessem a ir ao caixote do lixo à pro-
curadecomer.Eufiqueiempânico”afiançaAnabela.Nãoseriaparame-
nos… Afinal a Prader Willi, raramente sendo fatal, poderá trazer graves
complicações a estas crianças. Problemas como hiperactividade e ligeiro
défice cognitivo são frequentemente associadas a esta síndrome rara.
A comida é, aliás, a grande tentação destes dois meninos que, com 16
anos, pesam já mais de 90 quilos. Preocupados com a situação, tentámos,
de uma forma divertida, explicar aos gémeos que deveriam ter cuidado
com a alimentação para não terem problemas de saúde e para ficarem
mais elegantes para a tal namorada que Cristiano já tem desenhada na
sua cabeça: loira, alta e de olhos azuis! Por causa da pequena reprimenda,
Francisco responde de forma peremptória que a sua comida preferida é
a salada, rindo à socapa da pequena mentira que nos contou. Afinal, ele
gosta mesmo é de sopa de pedra. “Agora temos de ir a Santa Maria a con-
sultas do sono por causa da apneia. Eles terão de passar a ficar ligados a
uma máquina durante a noite, por causa da respiração. O Francisco tem
quase 90 quilos e o irmão pesa menos uns 5 ou 6 quilos”, conta a mãe que
acusaosserviçosdenutriçãodeSantaMariadefaltadeassistência:“Tive-
mos consultas de nutrição em Santa Maria, mas nunca fomos atendidos
porqueamédicafaltavasempre.Háquaseumanoquenãotemosdietista”.
Peranteanossaestupefacçãoenovainsistênciaparaqueosgémeosadop-
tassem uma nova postura alimentar, Cristiano decide meter-se connosco
e diz “tenho muita vontade de comer e gosto de tudo”. Quisemos saber a
opinião do mais caladinho… o Francisco. Não durou muito a conversa
uma vez que Cristiano, sentindo uma pontinha de ciúmes, revela a sua
agitação rasgando aos bocadinhos a camisola de uma famosa marca de
telemóveis. À repreensão da irmã, Cristiano retruca, “esta foi dada. Se es-
tragararranja-seoutra”.Demãospostasàcabeça,amãelávaidizendoem
tom de lamentação: “está a ver, é isto o dia inteiro. Eles brigam constante-
mente um com o outro e ultimamente tem sido pior”. Na realidade, a ida-
deemnadaajudaestesmeninosquelidamagora,alémdadoença,comas
famosas hormonas da adolescência e nem as 40 mg de Ritalina parecem
ajudar. O pai confessa que tem de ir novamente à médica para que aju-
de os seus meninos a acalmar. “Eles fazem birras atrás de birras. Chega a
uma altura em que já não aguento. Nós não conhecíamos ninguém com
este problema… Assim que acordam começam aos gritos. Brigam por
tudo e por nada, até por causa da roupa…” lamenta, em tom cansado,
A Sagrada
Família
50 Vidas Raras Vidas Raras 51
Anabelaqueemvirtudedeterestedia-a-dianomínimo,animado,játeve
de pedir ajuda; anda a ser seguida, no hospital de Santa Maria, na área da
psiquiatria. “Há mês e meio fui parar ao hospital por causa deles gritarem
e arrancarem os cabelos. Enervei-me de tal modo que não consegui…
Eles apanham o meu fraco!” esclarece com ar reprovador a mãe.
Lidar com dois Prader Willi em simultâneo é, de facto, uma tarefa
digna de Hércules. Porém, com o devido acompanhamento, estes meni-
nos acabam por se tornar seres humanos autónomos, com capacidade
para amar e para dar. “São simpáticos para toda a gente e têm um carinho
muitograndepornós.Senãoestivermostodosjuntosachamquejánãoé
uma família”, graceja a mãe. Na realidade, o conceito de família está nesta
casa perfeitamente implantado e denota-se a união e objectivos comuns.
“Eles têm descobertas muito engraçadas. Uma vez, fui a casa de um se-
nhor que está separado e o Cristiano disse-me que eles não eram uma
família porque faltava a mãe”, lembra Anabela. Completamente depen-
dentesemocionalmentedamãe,aquemlevamporvezesaodesespero,os
nossos gémeos garantem que não querem ir para lado nenhum. Apenas
ficar com a sua família. “Eles não nos querem largar de modo nenhum.
Não querem ir para colónias, nem escuteiros, nada. Só querem o pai e a
mãe”, garante a mãe. Ao nosso lado, a irmã mais nova aproveita para dar
mais sabor à nossa conversa e conta um episódio dos irmãos, para gran-
de gáudio dos mesmos: “Durante a noite eles comeram o bolo. Quando
chegoàcozinhametadedobolotinhaido.OFranciscodizquefoioCris-
tiano e este diz que não o obrigou. Pu-los de castigo. Disse aos pais para
os virem buscar”. Francisco sente-se agora um bocadinho incomodado.
Afinal, a irmã estava a envergonhá-lo à frente de estranhos. E, como que
querendodesviarasatenções,decideavançarparaatertúlia:“eutenhoum
gatoqueéoTobiaseomanotemumagataqueéaPrincesaetemosoutro
que era abandonado. Temos também três cães”. A seu lado, qual Dupont,
Cristianoreplica“eugostodeandardebicicleta…mastenhomedo”!Agi-
tados,osgémeosvoltamaenvolver-senumpequenodespique,comoque
lembrando aos presentes quem eram os protagonistas do livro.
“Adoram tomar banho. Mas brigam para saber quem toma primei-
ro” refere Anabela, interrompida em sussurro por Cristiano que acusa
o irmão de comer muito queijo! Os desagravos são contidos por umas
pancadas na porta. Junta-se o nosso encontro, a prima, a segunda avó
do Francisco e Cristiano, segundo palavras dos mesmos. “São uns me-
ninos muito voluntariosos que adoram ajudar em tudo. Às vezes esse
espírito não ajuda muito porque as tropelias são mais que muitas” su-
gere, rindo, a avó.
Nada que a nossa dupla dinâmica não esteja decidida a ultrapassar,
agora que mudaram de escola e frequentam a Associação Portuguesa
de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental, em Santarém.
“Vou todos os dias de autocarro”, refere triunfante Cristiano, de 15 anos.
Francisco revela-nos então que está na cozinha da escola a aprender a
fazer pratos e o irmão está na lavandaria, adiantando ainda que, além da
escola, gosta de jogar à bisca. Cristiano replica que adora o Tony Carrei-
raeoMichaelequegostavamuitodeiraumconcertodeles.Nomeioda
agitação, o bom senso da restante família apazigua a situação e recorda a
harmoniafamiliar.Anabela,deolhosesperançadosnofuturodestesdois
meninos traquinas, segreda-nos agora: “o meu maior sonho é eles serem
capazesdefazeravidinhadelesesetornaremmaisindependentes”.Nem
que tenha de os obrigar a andar na natação, duas vezes por semana e a
fazer ginástica. Nem que lhes tenha de trancar a comida, ouvindo frases
insistentes e chorosas como tu és uma gulosa que comes tudo e não me dás
nada a mim. “Dói muito!”, garante-nos Anabela. No final, o sentimento
de partilha de afectos e de estórias, parte connosco. Francisco e Cristia-
no prometem-nos variar a sua dieta, de forma a estarem elegantérrimos
para o dia em que receberem o nosso convite para ir a Lisboa.
Suspeitamos que ainda iremos ouvir falar desta dupla enérgica de
Chefs de Cuisine!
A Sagrada
Família
52 Vidas Raras Vidas Raras 53
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Capítulo VI
54 Vidas Raras Vidas Raras 55
Helenaéenfermeiradiplomadanaáreadareabilitação.Porironia
do destino, a tese de mestrado veio bater-lhe à porta… O marido, João,
com quem partilha sentimentos e espaços há 25 anos, foi diagnosticado
com Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença altamente incapacitante
efatal.“TeveosprimeirossintomassériosemMarço,emboraocansaçojá
osentiaháalgumtempo,mascomoéumsinalmuitodifuso,nãoassociá-
mos. Em Junho, na praia, ele próprio percebeu que havia algo que não es-
tava bem porque o dedo grande do pé começou a bater na areia. Eu tam-
bémnoteiqueelejánãonosacompanhava”lembraHelena,olhandopara
Joãoquevaidandooseuacordoatravésdosolhos.Apesardeseencontrar
completamenteparalisado,Joãofazquestãonãosódeescutaratentamen-
te a nossa conversa mas, mais tarde, acrescentar-lhe a sua própria experi-
ência. Munido de um computador especial fez
questão de, na primeira pessoa, nos dar as suas
impressões. “Quando a doença começou não
tinha conhecimento das limitações que esta-
vam para vir” confessa João, através da escrita.
Porém, após o reconhecimento de que
algo não estaria bem, o casal visitou o médi-
Amor
Eterno
Q,R,
56 Vidas Raras Vidas Raras 57
co de família que encaminhou, de imediato, João para a Neurologia, em
Coimbra onde, após um breve internamento, se confirmou o temível
diagnóstico. Recorrendo aos seus conhecimentos, Helena apercebe-se
que no hospital Santa Maria se encontra a decorrer um ensaio clínico
sobre a doença e, como lutadores que são, ela e João decidem que o me-
lhor era tentarem uma oportunidade com o responsável pelo estudo –
o professor Mamede de Carvalho. “Na altura estava a ser desenvolvido
um ensaio clínico e ele acabou por o integrar, durante um ano. Conti-
nua hoje a ser lá seguido. Os resultados não foram os que esperávamos
porque não houve efeitos positivos”, afirma Helena. João aproveita para
lembrar as suas incursões neste serviço hospitalar, alertando para a situ-
ação dos técnicos de saúde face a doentes como ele. “Tenho sido muito
bem acompanhado no hospital Santa Maria, apesar desta doença deixar
uma sensação de impotência aos técnicos de saúde. Acho que devia ha-
ver acompanhamento psicológico para doentes e cuidadores e formação
aos técnicos de saúde para saberem comunicar com os doentes que não
falam,(estiveinternadoebemsentiasdificuldadesdostécnicoscomuni-
caremcomigo).Bastasaberutilizarumatabeladeletrasqueeramaisfácil
para todos” alerta João, um homem que não se deixa vencer pela doença
e convive com ela da forma mais harmoniosa que possam imaginar.
Apesar do insucesso do ensaio clínico, este casal não se deixou aba-
ter e lá foi arranjando formas para aprender a viver uma nova e dura re-
alidade. Munidos de um amor único e incondicional e uma força avas-
saladora o casal tenta viver intensamente a vida, apesar das limitações,
cada vez maiores, de João. “Quando recebemos o diagnóstico cai-nos
tudo em cima mas, depois temos de reformular o nosso projecto de
vida” diz, pacífica, Helena. Afinal, para ela, que diariamente acompa-
nha vários doentes com ELA, esta situação não é uma novidade. “Estou
a trabalhar com pessoas com esta patologia. Estou a tentar construir
uma teoria sobre a transição para dependência que estas pessoas vivem
– as estratégias que desenvolvem para tentarem ser mais autónomos,
embora a autonomia, no caso do João, acabe por ser mais a nível de
decisão. Decidi fazer isto após o diagnóstico”, conta aquela a quem a
doença de João faz parte de um ensinamento de vida.
O carinho com que Helena ajeita, constantemente, João asseguran-
do que nada lhe falta, rivaliza com a luta para acabar a tese de mestrado
sobre ELA, que o marido faz questão de acompanhar e de incentivar
à sua conclusão. Entre as aulas, a assistência ao grupo de ELA, os fi-
lhos, um com 18 e outro com 13 e o marido, ela é a verdadeira Helena
de Tróia. Compreende-se agora porque é que estas duas almas gémeas
estão juntas há, precisamente, 25 anos. Também João é um guerreiro.
Apesar de aprisionado pela doença, lá vai desenvolvendo estratégias
diárias para se manter activo… como sempre foi. “Não mexo pratica-
mente nada: não seguro a cabeça, o tronco, não controlo a saliva, tenho
de ser alimentado por uma sonda, dormir com o ventilador e o mais
difícil é não conseguir fazer a minha higiene pessoal e principalmente
não falar. Apesar de tudo isto, tenho prazer em viver e nunca tive uma
depressão. Faço projectos e planos, mesmo que sejam virtuais… é uma
maneira de despistar a doença do capacete. Havia e há momentos de
tristeza e revolta, mas sei que isso não ajuda nada. Talvez tenha vivido
depressa de mais… e agora estou prisioneiro do meu próprio corpo”.
A falta de mobilidade, apesar de ter levado o casal a repensar a vida,
não os absteve de fazer aquilo que mais gostam e que, por isso, fazem
questão de manter… até que a doença permita! “O João quer sempre
viajar. A partir do momento em que soube da doença começou a que-
rer fazer mais viagens e para mais longe. Porém, neste momento as via-
gens longas já são mais difíceis… Mas vamos para mais pertinho: Cabo
Verde, Tenerife, Palma de Maiorca, enfim. Este ano lembro-me de lhe
ter dito que esta fase era difícil por causa da tese, mas ele disse que tí-
nhamos de aproveitar, por isso…”, lá foram eles viajar… rumo ao so-
nho! A estória contada por Helena não faz, de todo, juz à personalidade
forte deste SENHOR que, através de uma voz roufenha projectada pelo
seu computador, lá nos vai aconselhando a viver intensamente a vida
porque temos muito tempo para descansar quando estivermos mortos!
O sentido de humor parece, aliás, ser outra das grandes virtudes deste
casal que, apesar da tragédia que se lhes afigura e que deixaria qualquer
dosmortaisderastos,aparentemente,paraestecasalapaixonadíssimoé
uma força motriz. “Uma coisa a que não me habituei é ter muito tempo
Amor
Eterno
58 Vidas Raras Vidas Raras 59
disponível e ter sempre pressa. Continuo a querer viajar e ir de férias,
mesmo sabendo que não tenho o conforto do lar e só desfrute com o
olhar, pois não tenho o direito de limitar mais a família, principalmente
os filhos, já que a mulher, há 25 anos, jurou acompanhar-me sempre,
ah,ah,ah” escreve, com ironia, João.
Outrora membro da autarquia do Luso, o espírito empreendedor
de João não foi quebrado pela doença e, como tal, servindo-se de um
computador movido pelo toque da cabeça, lá vai fazendo projectos…
muitos projectos. Curioso e arguto, João pensa em como dar um novo
rumo a diversas situações, nomeadamente aquela que constata, sempre
quequerpassearnasuabelíssimavila–oLuso.“Hápoucosacessospara
cadeiras de rodas e muitos obstáculos, principalmente em lugares pú-
blicos e muitas rampas que só dão para desportos radicais. Eu também
sou culpado destas situações, porque fui autarca e essas situações pas-
savam ao lado. É uma questão de educação de base, ainda vai demorar
algumas gerações. Só quem está nesta situação dá realmente valor. Os
políticos e autarcas haviam de passar só uma semana numa cadeira de
rodas, para verem e sentirem as barreiras e dificuldades” escreve João.
Os amigos são a grande rede de apoio do casal. “Temos um grupo
de seis casais amigos com os quais viajamos todos os anos, um fim de
semana. Este ano fomos para junto da serra do Açôr. O próprio grupo
adaptou-se à situação do João e temos por isso optado por locais mais
perto. Este núcleo não é preciso chamar. Eles pura e simplesmente vêem
eseforprecisotrazemojantar.Nãoénecessárioquasepedir.Saberdisso
dá-me uma grande segurança” salienta Helena olhando, enternecida, o
seu amor de sempre. Perante a nossa dúvida sobre se ainda namoravam,
no dia em que faziam justamente anos de casados, os olhos de Helena
brilham quando exclama: “O namoro é feito de muitas coisas! O cuidar
dele ou ele falar-me com os olhos faz parte da nossa relação. A cumpli-
cidade continua a existir. Os olhos dele dizem tudo!”, concluí convicta.
Para ela, a doença do marido é, antes de tudo, uma experiência enrique-
cedora! Para nós também foi enriquecedor conhecer duas pessoas com
esta grandeza! Por isso, quisemos fazer a devida homenagem ao casal e
transcrever, algumas das palavras sábias que João nos dedicou.
Olá, viva, sou o João Carlos Ferreira de Freitas,
tenho quarenta e nove anos e nasci na Figueira da Foz.
A vantagem, dentro deste infortúnio, é que dá tempo
para nos irmos adaptando, pior deve ser quando se tem um acidente
e se fica assim de repente. Parece irónico, mas cheguei a ter inveja
dos paraplégicos, agora tenho inveja dos tetraplégicos. Ver o meu rosto
a degradar-se não é agradável, mas isso pouco me importa,
não é o embrulho que conta, mas sim o que está lá dentro.
Não deixem que pequenos problemas limitem a vossa felicidade,
pois a maior parte das vezes somos felizes e não sabemos. Agora
tenho tempo para ver com outros olhos “pequenas” grandes coisas
da natureza, como as plantas e os animais… apesar que há horas
que custam a passar, no entanto os meses voam. Continuo
apaixonado pela vida, mas sei que essa paixão não é correspondida.
Fiz várias medicinas alternativas, os resultados só se fizeram
sentir na carteira. Comunico com a ajuda de um computador
adaptado. O rato do computador está junto à cabeça e com o toque
de cabeça manipulo o computador.
Não é justo não agradecer aos meus cuidadores, principalmente,
à minha mulher e amiga que divide comigo esta situação. A vida
não é como nós queremos e julgamos merecer, mas temos
que nos adaptar e vivê-la conforme ela se nos apresenta. Estou focado
em viver um dia de cada vez. O futuro é quando lá chegarmos.
Acredito que o amanhã será melhor. Com o apoio da família e amigos,
continuo a lutar pela vida.
Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho.
Bem hajam
Amor
Eterno
60 Vidas Raras Vidas Raras 61
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Capítulo VII
62 Vidas Raras Vidas Raras 63
Desde sempre que ouvi uma frase, tantas vezes repetida em
tom melancólico e que, na abordagem desta estória, me parece fazer
todo o sentido. “Viver não custa. O que custa, é saber viver”! Efecti-
vamente, esta expressão tantas vezes por todos nós repetida, poderia
servir de máxima a Cláudia, uma mulher expedita e corajosa que, aos
33 anos, como que assinalando uma data tantas vezes fatídica para os
maiores ícones mundiais, se viu a braços com uma doença raríssima,
que todos teimavam em ignorar, e que lhe roubou parte da sua ale-
gria. “Perdi a liberdade” refere Cláudia entre lágrimas, ainda comba-
lida pelo recente diagnóstico.
Os primeiros sintomas surgiram logo após o nascimento da sua
primeira filha, como se de uma divina providência se tratasse. Afinal,
aquele bebé tão desejado e um dos maiores
sonhos de vida desta jovem mulher, marcou
a vida da mamã de duas maneiras perfeita-
mente antagónicas: a felicidade versus a dor.
Na altura, as dores musculares e a falta de
vontade para a vida assolavam o espírito
de Cláudia que, perante a incapacidade de
Reaprender
a viver
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64 Vidas Raras Vidas Raras 65
reacção, pediu baixa após o parto, acabando por ficar, durante seis
meses, em casa. Quando finalmente regressa ao trabalho, a situação
deteriora-se. Assistente Administrativa na Segurança Social, o vo-
lume de trabalho era imenso e Márcia, super organizada e aplicada,
não conseguia ver o trabalho acumulado, não descansando enquanto
não o concluiu. Este esforço veio a revelar-se ingrato já que permitira
o avanço da doença e a degradação do estado de saúde de Cláudia.
“Havia dias completamente insuportáveis. Inicialmente, julguei que
era uma grande depressão porque uns dias eu estava bem e no dia se-
guinte já não conseguia fazer nada”. Como continuava a perder peso,
a nossa interlocutora vai de novo ao médico onde lhe são feitos diver-
sos exames, todos com o mesmo resultado – nada. “Desconfiou-se da
tiróide e o médico receitou-me magnésio, o que me aliviou. Entre-
tanto, comecei a perder muito peso. Passei de um 48 para um 44 e o
estranho é que eu comia normalmente. Sentia-me muito em baixo”,
lamenta Cláudia.
O ano de 2008 foi tenebroso para a jovem doente. O cansaço ex-
tremo e o esgotamento psicológico que o mesmo acarretava levaram
Cláudia ao limite. Apesar de, na época, tomar exaustivamente injec-
ções de B12, nada parecia aliviá-la do seu suplício e as idas ao hospital
eram uma constante. “No final de 2008, as pernas começaram a doer
muito, já quase não conseguia conduzir. Vinha do trabalho, deitava-
-me no sofá e não tinha reacção para absolutamente nada. Depois
disto, o meu marido começou a levar-me ao trabalho. Quando ele
não podia, o meu irmão substitui-a-o. Ou então vinha de autocarro
e a minha mãe ia-me buscar e eu, com muito custo, arrastava-me até
casa. Levava cerca de 15 minutos a subir as escadas” conta, amargu-
rada Cláudia, num torpor que teimou sempre em contrariar, diaria-
mente! Até Março, o corpo ainda respondeu mas, a partir dessa altu-
ra, e perante a insistência de todos os que a rodeavam, Cláudia achou
que estava na hora de ouvir a opinião de um psiquiatra, já que todos
sugeriam ser uma depressão pós-parto o motivo das queixas da jo-
vem mamã. “Na altura, a psiquiatra colocou-me em tratamento mas,
desconfiava que havia mais qualquer coisa porque eu a andar parecia
um autêntico boneco. Eu não dobrava as pernas! Tinha uma fraqueza
como se fosse desmaiar…” argumenta. Foi justamente esse sintoma
mais anómalo que levou esta profissional a indicar o caso a um colega
de Neurologia que, pura e simplesmente, o descartou corroborando
o diagnóstico anterior da colega – depressão.
Enquanto a verdadeira questão não é identificada, a situação de
Cláudia agrava-se e ela deixa de andar. “Um dia, sai do quarto, e até
chegar à casa de banho caí, porque deixei de ter força nas pernas. Fi-
cámos todos em pânico. Com um sacrifício enorme lá me consegui
levantar mas, no dia seguinte, ao levantar-me da cama, a cena voltou
a repetir-se. Passei a dormir no sofá, no cimo da casa, porque o meu
quarto tenho de descer as escadas e eu não tinha forças”. O medo de
voltar a cair era muito e as dores lancinantes. Deixou de querer sair, ir
ao médico, comer e, até fazer a sua higiene diária. “Tinha dores enor-
mes no corpo todo”, exclama. Perante a relutância de Cláudia em acei-
tar que estas dores imensas se deviam a uma simples depressão volta
ao médico. Ressonâncias e potenciais evocados (ambos na área neu-
rológica) não bastaram para chegar ao diagnóstico e, só depois de um
electromiagrama, (exame utilizado no diagnóstico de doenças neuro-
musculares) surgiu a primeira resposta concreta: Miopatia. Contudo,”
o médico achava que não podia ser só isso. Mandou-me fazer análises
específicas ao laboratório. O resultado demorou imenso porque tinha
de vir de Espanha (estive um mês e tal à espera) e, quando chegou, lá
estava: síndrome Misténico de Eaton Lambert” sustenta Cláudia.
Uma doença raríssima, em particular em jovens, e ainda mais em
mulheres. Os jackpots da vida podem proporcionar-nos este prémios
envenenados porém, Cláudia continua em jogo e, como tal, tem de
seguir com determinação em busca do seu grande prémio – voltar a
ter qualidade de vida. O neurologista que agora a acompanha encami-
nha-a para um hospital público, afastando desde logo os custos da te-
rapêutica que ele mesmo iria sugerir. Capuchos seria o escolhido, com
a devida indicação de máxima urgência na aplicação da terapêutica.
Havia apenas um senão – tratava-se de um medicamento órfão, ainda
não disponível em Portugal. “Era necessária uma autorização especial,
Reaprender
a viver
66 Vidas Raras Vidas Raras 67
que eu continuo à espera – há um ano e tal” confidencia-nos Cláu-
dia. Entre orçamentos e burocracias, a jovem aguarda, expectante, o
medicamento milagroso mas, enquanto tal não acontece, sujeitasse à
terapêutica geral aplicada às miastenias: “Faço o Imuran e o Mestinon.
Todos os meses faço imunoglobina, 15 frascos, no hospital de dia dos
Capuchos, no serviço de neurologia, que é fantástico” exclama.
Cláudia continua a aguardar pelo seu órfão e, apesar da sua ac-
tual medicação apenas lhe atenuar o problema, ela não desiste em
recuperar a vida. “Durante as duas primeiras semanas a coisa corre
bem, a partir daí começo a ter desequilíbrios constantes, perda da
força, enfim fico de rastos”. Antevendo o seu filme, Cláudia arranja
verdadeiras estratégias, qual Roberto Benigni em A Vida é Bela, para
que, pelo menos enquanto não tiver dores, voltar a ser independente.
“Tento organizar a minha vida de modo a fazer tudo o que preciso
nessas semanas”. E assim vai tendo um pouco da sua vida de volta.
Das compras, agora acompanhada pelo marido, à esteticista onde in-
siste em ir todos os meses, passando pelas verdadeiras estratégias de
limpeza, tudo na vida desta jovem é agora suado, muito suado, mas
sempre atingindo, no final, o doce sabor da vitória: “tudo que faço é
uma conquista. Este ano decidi fazer a festa de anos da Madalena.
Sentada, fiz a ementa toda! Estava já no último dia de tratamento e,
apesar de ter feito tudo a muito custo, consegui!” afirma em tom de
glória aquela que nos garante ser muito exigente consigo própria e ter
um medo terrível da dependência que sente, um dia, poderá ser total.
Por isso, evita voltar ao trabalho ou tentar realizar tarefas que envol-
vam a ajuda de terceiros. Um dos seus grandes feitos, uma habilidade
recentemente reconquistada, foi a condução. “Já comecei a conduzir.
É uma vitória. É uma sensação de liberdade!”, brada Cláudia.
Recuperar forças foi o que motivou, recentemente, Cláudia a pas-
sar uns dias de férias na praia com a filha e o marido. Apesar de não ter
nadado como uma sereia, como seria a sua ambição, em virtude de o
tratamento estar praticamente no final, com a ajuda de todos Cláudia
ganhou energias e até já se sente com forças para dar alento a outros…
“Costumo equilibrar a minha situação, lembrando-me que existem
situações muito piores e mais graves. O mês passado, quando fui ao
tratamento, estive 15 dias com um grupo muito bom e estava lá uma
senhora com uma doença neuromuscular, com 25 anos, que estava
paralisada. Aí eu disse-lhe que há um ano atrás eu também não anda-
va e hoje, felizmente, já consigo”, lembra vitoriosa. A conversa é inter-
rompida por Madalena que, querendo mostrar a coragem da mamã,
nos vai buscar todos os trabalhinhos que ela já fez para a escola. A seu
lado, a avó, uma mulher marcada pela doença da filha e do marido, la-
menta a sua neta ter de passar por estas privações que a levaram, inclu-
sivamente, a ser acompanhada por uma psicóloga na escola. Também
para esta pequena grande mulher os sofrimentos e pequenas conquis-
tas são vitórias: “Quando faço os tratamentos a Madalena pergunta:
vais fazer isso que é para pegares-me ao colo em pé? Não tenhas medo mãe que eu
estou aqui. Quando vou à escola é uma festa. Ela vive intensamente es-
tas questões”, recorda a mãe orgulhosa do seu maior projecto de vida.
Tanto, que neste momento a ideia de ter mais uma criança enche-a de
esperança no futuro: “o meu maior sonho era ter outro filho!”, garan-
te agora lembrando que, apesar da doença, não se irá deixar derrotar.
Para isso, faz do seu dia-a-dia um conjunto de sucessivos projectos,
com pequenas manhas reinventadas, de forma a recuperar tudo aquilo
que já teve – mobilidade, alegria e vontade de viver. “Todos os meses
a gente aprende com os outros doentes do hospital. Esse elo de amiza-
de que se cria é muito importante. Não se consegue fazer tudo, faz-se
mais devagar. Acima de tudo, é reaprender a viver” conclui.
Reaprender
a viver
68 Vidas Raras Vidas Raras 69
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Capítulo VIII
70 Vidas Raras Vidas Raras 71
É numa pequenina casinha da zona ribeirinha que testemunhá-
mos a vida difícil, cruel, mas cheia de amor de Pedro e Mariana, dois
irmãos bafejados pela mesma raridade. A seu lado está, desde sempre,
a mãe, uma mulher a quem a vida sempre fez caretas mas que, como
que movida por uma força divina, se reergue das cinzas, qual Fénix,
e segue em frente – um dia de cada vez… “O meu único objectivo de
vida, neste momento, é tentar levar o barco em frente e fazer tudo o
que é preciso ser feito!” confessa Maria José, com um ar cansado e mei-
go. A seu lado está, no exíguo espaço a que, gentilmente, chamaremos
cozinha, a auxiliar da Santa Casa da Misericórdia, entidade solicitada
para a ajudar na árdua tarefa de cuidar de duas crianças doentes, mui-
to doentes, que têm de ser alimentadas através de sondas e para quem
a vida corre… serenamente.
Anos de convivência com a situação de
dependência do marido e depois de uma
filha, aparentemente, sem qualquer tipo de
problemas, nada podia preparar Maria José
para a espécie de calvário que iria experien-
ciar. “Não tive qualquer problema com a
Sininho
e Peter Pan
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72 Vidas Raras Vidas Raras 73
Mariana durante a gravidez e o parto foi normal. Tinha 25 anos. Nada
indiciava que ela tivesse problemas… começou a andar aos quatro
meses…” reflecte Maria José. Porém, já no infantário, aos quatro
anos, os problemas da pequena Mariana começavam a evidenciar-se
e a mãe é então chamada à atenção para o facto. “A Mariana andou
em estudo durante anos. Primeiro fomos ao médico de família, este
passou-a para o psicólogo e este achava que havia ali alguma coisa…
Andei também durante anos na medicina pediátrica do hospital! Fez
testes a tudo e nada acusava nada. Chegou a fazer os cariótipos e era
tudo inconclusivo” observa.
Aos sete anos, Mariana tem a primeira convulsão epiléptica. Face
ao inexplicável sintoma, a pediatra da pequenita fada decide transfe-
ri-la para os colegas de Neurologia, onde esteve a ser acompanhada
durante algum tempo.
“Em 2001 a doença foi diagnosticada a um tio avô da linha pa-
terna. Uma cunhada falou-me disso e eu, desconfiada, pedi para me
dizerem que doença era. Apresentei-me na Estefânia e falei sobre a
doença à médica que me perguntou que raio de coisa era essa. Ela
desconhecia…” diz estupefacta aquela que viria a ser essencial na ob-
tenção do diagnóstico correcto da sua filha. Afinal, aquela que não
possuía conhecimentos científicos, mas que tinha um sexto sentido
apuradíssimo deu à médica a chave do diagnóstico. “A médica pediu
então análises genéticas ao Porto e confirmou-se o diagnóstico. Mo-
mentaneamente, senti um alívio… Pelo menos já sei o que eles têm.
Porém, depois, só pensei – e agora? O que é que isto representa? Nem
os próprios médicos sabiam” ostenta Maria José. Fala-nos agora no
plural, referindo-se ao seu benjamim, vítima da mesma patologia.
Pedro é o mais pequenito. Apesar de não ter apresentado inicial-
mente crises fortes, mostrava alguns sintomas da doença que viriam
a ser confirmados após o diagnóstico da irmã. Ainda assim, o fac-
to é que Pedro desde sempre manifestara sintomas, não entendidos
como tal pelos médicos, mas que na realidade correspondiam a uma
raríssimas patologia denominada Atrofia-Dentato-Rubro-Pálido-
-Luisiana. “Fui chamada a Santa Maria onde um grupo de médicos
me explicou então o que vinha a seguir. Ai foi tudo abaixo!” recorda,
desesperada Maria José.
Sentindo que os seus filhos precisariam desesperadamente de si
e de toda a sua atenção, Maria José decide dar um novo rumo à sua
vida e parte com os filhos… para um novo começo! “O diagnóstico
dos meninos apenas apressou aquilo que não estava bem, já há bas-
tante tempo! A sensação que eu tinha é que só eu é que percebia o
problema… Cheguei a ser acusada pela família de ser louca! Agarrei
nos meus filhos e abandonei o meu marido e a casa… Mudei-me para
outro lugar, para tentar começar tudo de novo, sozinha com eles! Tive,
na altura, a ajuda da Santa Casa que me ajudou a pagar a renda”. Po-
rém, para uma mulher sozinha, dois filhos nos braços, duas doenças
raríssimas, não foi nada fácil acreditar… Acreditar que seria capaz!
“Tive de renascer das cinzas. Tive uma depressão gravíssima, a
família abandonou-me… é para esquecer! Estão de costas voltadas…
Há muita mágoa, muita coisa que se tenta enterrar bem fundo mas
que, de vez em quando, vem ao de cimo! Perdi imenso peso, não dor-
mia…” relembra Maria José. Porém, contra tudo e contra todos, esta
grande mulher conseguiu o seu objectivo – que os filhos tivessem
sempre o que de melhor lhes pudesse proporcionar: “eles têm esta-
do no externato Alfredo Binet, mas têm de o abandonar porque já
não têm condições para eles. Neste momento, estão matriculados no
Colégio das Descobertas, que já tem outras competências. Porém, no
caso da Mariana, como já não tem idade escolar, terá de pagar 420 eu-
ros por mês, não sei muito bem o que vou fazer” afirma, lamentando
o facto de os pais destas crianças estarem completamente desprotegi-
dos. Tendo, na sua grande maioria, de abandonar os seus empregos
para cuidar destes meninos, estes pais heróis pouco podem recorrer à
segurança do Estado. Da medicação, não totalmente comparticipada,
aos colégios ou ao facto de não trabalharem para cuidar deles e, por
isso, nada receberem, a verdade é que por cá, os pais destes meninos
nem sempre recebem a atenção desejada…
Na pequenina sala ao lado, Pedro e Mariana, lado a lado, assistem
ao famoso Faísca McQueen, um pequenino carro animado que faz as
Sininho
e Peter Pan
74 Vidas Raras Vidas Raras 75
delícias de Pedro e provoca alguma agitação em Mariana. Maria José,
olha agora com orgulho as suas alegrias, o seu Peter Pan, sobranceiro
àquela a quem, carinhosamente, achámos por bem e por respeito ao
original de James Matthew Barrie apelidar de Sininho. “O Pedro ado-
ra o Faísca McQueen e a Mariana ver filmes, especialmente aqueles
que têm casais aos beijinhos. Delira com a Anatomia de Grae!” diz,
gracejando, Maria José. Afinal, eles são a razão da sua existência, o seu
sopro de vida! Tanto que, na semana anterior à nossa presença, esta
mãe coragem ofereceu a Pedro o único presente que lhe era possível
proporcionar mas que, seguramente, faria o filho radiante – uma fes-
ta de aniversário. “Apesar de já não dizerem nada, vocalizam apenas,
mas entendem tudo o que dizemos” salienta Maria José.
“Neste momento, neste país sobrevive-se”, dispara Maria José.
Assim é… esta mamã é realmente uma sobrevivente, mais uma, do
imenso role de mães-coragem que asseguram, da forma mais eficaz
e efectiva, que os seus filhos terão tudo aquilo a que elas possam ter
acesso. “E vou conseguindo… O agravamento da doença deles impe-
de-me de trabalhar a tempo inteiro. Neste momento faço apoio domi-
ciliário… Esta doença é imprevisível porque eles estão estabilizados
durante um tempo e, de repente, ficam piores” comenta Maria José
como que a recordar a necessidade, urgente, de ajudar os cuidadores,
não só a nível psicológico mas, muito principalmente, a nível efectivo.
O tom mais grave que a saborosa conversa estava a tomar foi, de
súbito, quase providencialmente, interrompido. A Mariana queria
juntar-se à estória. Afinal, ela e o seu bravo irmão, companheiro de
tantas aventuras, eram os verdadeiros heróis. Eles são o motivo de ali
estarmos, a partilhar lágrimas, abraços e forças. Na pequenina sala,
Mariana está em êxtase perante a objectiva da nossa fotógrafa, curio-
samente, também ela uma Mariana. Sentada, enroladinha a Pedro,
está a nossa pequena fada. Para ela, que conheceu a alegria de correr,
embora seja uma recordação distante, deve ser realmente divertido
ser o rosto das nossas imagens. “A Mariana é muito sociável e tem um
mau feito tremendo. É muito teimosa e muito senhora de si. Sempre
teve uma personalidade muito vincada. O Pedro é o oposto. É o meu
Peter Pan. Uma criança extremamente meiga. É o meu anjinho” afir-
ma orgulhosamente Maria José enquanto olha, embevecida, os seus
grandes orgulhos.
Para esta mãe o dia de hoje é que conta e, cada dia passado com
a Sininho e o Peter Pan é, naturalmente, mais uma vitória. “Eles con-
tinuam a ser acompanhados na Estefânia…” revela triunfante Maria
José, apesar de não esquecer nunca a doença. Até porque ela teima
em aparecer. Existe, pelo menos, mais um caso na família: “O pai dos
meninos teve sintomas a partir dos 40 anos. Como teve um passado
de toxicodependência, ele ligou sempre os primeiros sintomas a esse
facto e nunca à doença”. Porém, aquela que mais dor lhe causa é a que,
por força das circunstâncias, se quis associar à dúvida. A filha mais
velha de Maria José, há muito dela afastada em virtude da separação,
pode sofrer do mesmo problema… Hoje, com 23 anos, ela não apre-
senta quaisquer sintomas da doença, do foro genético. “Ela na altura
fez testes mas nunca quis saber o resultado” confessa a mãe, ainda
expectante. Maria José prefere acreditar que ainda é possível que, nos
meandros de uma vida tão difícil e confusa, ela ainda possa vir a ser
feliz, junto dos seus filhos. “Limito-me a viver o dia a dia, da melhor
forma que conseguir, para assegurar o bem estar dos meus filhos, en-
quanto cá estiverem”.
É assim que falam os melhores pais do mundo. Aqueles que são lu-
tadores, vitoriosos, gentis, carinhosos e, acima de tudo, perseverantes!
Essa arma, ninguém lhes pode tirar!
Sininho
e Peter Pan
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B"85,'-5
Capítulo IX
78 Vidas Raras Vidas Raras 79
Com apenas 6 anos de idade, Matilde é já uma menina de sucesso!
Não em termos da fama ou glamour mas tão somente em forma de per-
severança e espírito lutador. É nos cuidados intensivos da urgência pedi-
átrica do hospital de São João, no Porto, que a vamos encontrar, envolta
nos braços do Hipnos, o deus do sono que, num embalo forçado, tenta
ajudar os médicos a recuperar a saúde desta pequenita guerreira. “A Ma-
tilde está internada por causa de crises convulsivas” esclarece-nos a mãe,
Gabriela, narradora desta saga heróica. Em Novembro do ano passado,
Matildeteveasuaprimeiracriseconvulsiva,queduroucercade30minu-
tos. Esporádicas no início, as crises passam a ser diárias, com intervalos
de segundos. “Por causa dessas crises ela esteve internada em Fevereiro,
em Maio em Junho e voltou em Agosto”, refere Gabriela adiantando que,
pouco antes do último internamento, a parte
respiratóriadeMatildeficoutambémafectada
o que aumentava o número de crises e estas,
por sua vez, não lhe permitiam o fôlego da
vida. No dia 20 de Novembro, após um exame
noserviçodeotorrinodestehospital,osmédi-
cos constataram que a pequena Matilde tinha
A bela
adormecida
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80 Vidas Raras Vidas Raras 81
umedemamuitograndee,porisso,nãoconseguiarespirar.Apesardeser
oseudiadeaniversário,Matildeéobrigadaafestejarjuntodaequipamé-
dica, da pior maneira possível: “tentaram pôr-lhe uma máscara, mas ela
fazia paragens respiratórias cada vez que o faziam e, apesar de terem sido
incansáveis, não conseguiram! Tentaram então colocá-la a dormir para
descansar um bocadinho. De manhã acordou, ainda se riu para mim,
dei-lhe a minha mão e ela puxou-ma, com tanta força e… apagou. Daí
foi para os cuidados intensivos, foi entubada e induziram-lhe o coma”.
Aquelaqueeraparaserumasoluçãotemporáriaacabou,eventualmente,
por se prolongar. Após cinco dias de descanso forçado para que as crises
passassem e as ondas cerebrais voltassem à sua actividade regular, os mé-
dicos apercebem-se que o seu esforço estava a ser em vão. “Quando lhe
fazemoelectroencefalograma,verificamqueocérebroestavaemdescar-
gaconstante.Elanãoestavaadescansarnadaetiveramquelheaumentar
a escala do coma (Glasgow)”, recorda a mãe entristecida.
DiGeorge é a terrível e rara síndrome, caracterizada por uma delec-
ção de uma parte do cromossoma 22, e que levou Matilde a esta situação
tão ingrata. A terceira filha de Gabriela, nascida de uma gravidez tar-
dia, nunca demonstrou a sua inconstância cerebral até às 38 semanas de
gravidez: “achei que estava tudo atabalhoado na minha barriga e pedi à
médica para ma tirar. Parecia que andava aos trambolhões na barriga.
Deduzo agora que poderia ser os espasmos que fez quando nasceu, em
que se esticava toda, e que provavelmente na barriga também o faria e
que como não tinha espaço para se esticar me magoava” lembra agora a
informada mãe. Apesar do baixo peso e da fenda palatina, os pediatras
desvalorizaramasituaçãodaMatildeeafiançaramàmãequetudoseiria
resumir a uma pequena cirurgia. Porém, Gabriela mostrava-se inquieta:
“dentro da incubadora, ela não reagia bem ao toque. Não lhe podíamos
tocar que ela ficava muito vermelha e dura… fazia um arco! Acho que
os médicos sabiam o que se estava a passar, mas não havia exames que
comprovassem e eles então não dizem nada”, confessa.
Aos seis meses de idade, Matilde tem a primeira crise convulsiva e,
nas urgências do hospital do Porto, fazem um despiste para meningi-
te cujos resultados vêm negativos. Não sabendo a origem daquela crise,
os médicos encaminham Matilde para a consulta de desenvolvimento e
aqui, após a realização de uma ressonância magnética, os profissionais de
saúde confirma uma polimicrogiria bilateral. “Eles acharam logo que ti-
nha que ver com uma síndrome qualquer, mas como não sabiam o que
era,integraram-nanasparalisiascerebrais”,explicaamãe.Porémaexperi-
ência e intuição de uma mãe de dois filhos, não deixariam Gabriela satis-
feita com aquela situação. Consulta após consulta, Gabriela insistia para a
raridadedamenina,exigindoaosmédicosdiversosestudosdecariótipos,
àprocuradeumarespostaparaaaparenteagoniadasuamenina.“Notava
que a Matilde era diferente porque ela não se mexia praticamente, não
segurava a chupeta, não agarrava nada. A gente deitava-a e conforme a
deixávamos,alificava.Haviaumgestoqueelafaziacomalíngua,logoque
nasceu, que eu chorava sempre que isso acontecia. Não eram os pequeni-
nosdefeitoscomoaorelhinha,queagoranemsenota,osdedinhosdeum
dospéstodosencavalitados,osdamãoencolhidos…não!Nadadissome
preocupava! Era aquele gesto da língua que me levou logo a pensar em
algum atraso mental, algo mais profundo. Eu tinha razão, infelizmente!”.
Apesar de não conseguir expressar os seus sentimentos através do
discurso oral, Matilde não deixa de fazer valer os seus interesses recor-
rendo aos seus sentidos. “O olhar da Matilde diz tudo! Consigo per-
ceber o que ela quer, transmite se está ou não contente. É uma criança
muito expressiva. Ela não fala, mas comunica tudo com os olhinhos, o
sorriso, diz que não com a cabeça. Ela percebe muita coisa…”, afiança a
mãe que se sentiu tantas vezes ressentida por os médicos não acredita-
rem naquilo que ela experiencia, diariamente. “Os pediatras acham que
as mães julgam que os seus filhos percebem mais do que aquilo que na
realidade percebem. Mas os pais é que os entendem!”, garante Gabriela
com um sorriso de esperança.
Foi justamente esta motivação, o acreditar na expressão terna da
sua filha, que encorajou Gabriela a não se deixar abater nem vencer por
todas as adversidades que viria a experimentar. Apostada em recuperar
a filha daquela síndrome, tão misteriosa que os médicos pareciam não
conseguir descobrir o nome, Gabriela coloca a filha em tudo o que são
consultas e sessões terapêuticas. “Andei no Centro RarÍSSIMO da Maia
A bela
adormecida
82 Vidas Raras Vidas Raras 83
com ela e foi o período em que notei mais melhorias. Fiz hipoterapia
mas tive de deixar porque era ao ar livre e não dava pela parte respira-
tória. Fiz cinesoterapia no particular mas tive de desistir”.
Este abster em nada teve a ver com a falta de motivação de Gabriela,
mas sim com a insustentável situação financeira que a mesma acarreta-
va. “As ajudas são uma desgraça. O meu marido ganha um bocadinho
mais que o salário mínimo. Não existem ajudas para nada. O subsídio
de deficiência é de 55 euros – parece que estão a brincar! É fazer pouco
das famílias! Ela tem 95% de deficiência. A ajuda à terceira pessoa é 80
euros”, afirma indignada. Decididas a não se deixarem vencer por este
tipo de contrariedades Matilde e a mãe criam uma associação, não só
para fazer valer a sua voz, mas a de tantos outros meninos, na mesma
situação. “Se não formos à luta, não temos nada para os nosso filhos”,
garante Gabriela. Foi justamente essa luta que a levou a conseguir um
generoso donativo por parte de uma empresa que lhe ofereceu o pri-
meiro carro de transporte, facilitando as deslocações de Matilde, além
de uma cadeira de banho e uma cadeira para o infantário. Apesar dos
recorrentes pedidos efectuados à Segurança Social e à DREN de apoio
à sua menina, a resposta foi sempre peremptória – não existiam verbas!
Os apoios técnicos são, aliás, uma das muitas dores de cabeça desta
mãe e que dificultam constantemente o desenvolvimento da pequena
Matilde. “Ainda não tive uma ajuda técnica que fosse até hoje. Prescreve-
ram-me um carro para a Matilde, porque a médica disse-me que a próxi-
ma vez que eu aparecesse na consulta com o carro antigo, não consultava
a menina porque ela estava a ficar torta. Ela tem razão, só que eu não te-
nho dinheiro para comprar um!”, atira Gabriela. Afinal, os preços dispo-
níveis no mercado não se compadecem com o magro salário que o mari-
do de Gaby traz para casa e que tem de sustentar a família inteira. “Tudo
o que é apoios técnicos tem uns preços que eu acho que são um exagero.
É ganhar dinheiro à custa da desgraça dos outros. Não se justifica uma
cadeira de banho custar para cima de 500 euros, a cadeira para o carro
três mil e tal euros. Uma cadeira eléctrica custa 15 500 euros – um carro
é mais barato e é para lazer e leva cinco pessoas. Estes meninos não têm
direito a deslocar-se como os outros?”, questiona Gabriela indignada.
Apesar de só em Janeiro de 2011 ter sabido, finalmente, o nome da
patologia da sua filha, através de um estudo genético aprofundado, Ga-
briela vê nos profissionais de saúde e terapeutas os seus principais alia-
dosegrandesamigos.FoiaterapeutadeMatilde,atravésdeumcatálogo
da Toys“R”Us, que arranjou uma solução mais económica para a meni-
na se deslocar de carro com a mãe. E médicas, muito especiais, deram
alento e esperança a esta mãe. “Tenho apanhado gente muito boa no
hospital de S. João. Todos os que lidam connosco têm sido maravilho-
sos. Sinto que são meus amigos e nos apoiam. Existe uma médica aqui
nos cuidados intensivos que me transmite uma segurança tão grande e
que esteve a lutar pela minha filha até onde foi preciso! E o turno dela
já tinha acabado! Ela chorou comigo!” recorda Gabriela, visivelmente
agradecida. Também a identificação de outra destas profissionais com a
situação de Matilde deixou Gabriela menos desamparada. “Houve um
dia em que eu me sentia mais em baixo e a médica passou e eu disse-
-lhe – sabe, só nós os pais é nos entendemos; ao que ela respondeu – não
é bem assim… eu também tenho um menino como a sua filha. Parece até
que é impossível um médico ter um filho assim…”, exclama Gabriela.
Efectivamente, a doença é uma situação à qual todos os seres hu-
manos estão expostos. E os médicos não são diferentes. Ainda assim,
apesar da situação única de Matilde, que ao escrevermos estas palavras
ainda continua o seu sono de reparação, em virtude de ter contraído
um vírus hospitalar que obrigou, de novo, à indução do coma, todos
temos fé na grande vitória de Matilde. “Já não me importa nada, só
quero é que esta rapariguinha fique bem! Temos de lutar mesmo dan-
do a cara à vergonha, fazendo feirinhas, o que for preciso! Vale sempre
a pena. Aprendemos muito com estas crianças!”, conclui Gabriela.
A bela
adormecida
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Capítulo X
86 Vidas Raras Vidas Raras 87
Olhar doce, simpatia e curiosidade são alguns dos muitos atri-
butos da pequena Maria, uma menina especial que assume a música
como forma de expressão. Aos nove anos de idade ela é já uma devota
dos sons, quem sabe fruto da sua incapacidade de se exprimir de forma
pedagogicamente correcta. Porém, a ausência do verbo é perfeitamente
dispensável na sua narrativa já que o seu rosto expressionista comunica
na perfeição cada momento da sua vida, cada emoção que partilha com
a sua família, também ela muito peculiar e única.
Irmã da Margarida, actualmente com 13 anos, Maria é a segunda
filha de um casal da zona Norte e que veio ao mundo na sequência de
uma gravidez perfeita, com um desenvolvimento intra-uterino normal
e um parto, também ele normal, apesar de se tratar de uma cesariana.
Até ao ano de idade, Maria desenvolveu-se tal
qual a irmã, deixando os jovens pais felizes e
a acreditar no futuro de êxito de ambas. Po-
rém, a partir dessa idade, a bela Maria viria a
apresentar algumas particularidades que des-
pertariam, nos já experientes pais, algumas
dúvidas. “Começámos a achar que ela tinha
O triunfo
do amor
>$'"$
A luta de Matilde
A luta de Matilde
A luta de Matilde
A luta de Matilde
A luta de Matilde
A luta de Matilde
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A luta de Matilde
A luta de Matilde
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  • 1. 2 Vidas Raras Vidas Raras 3 !"#$%&'()*& +$&,&- .,/0- 10%0-
  • 4. ( )'*+,-,( página 6 Capítulos I( .'"/+,(0 ( Os olhos de Matilde( 11 II( 123#',45(#5(678& Gosto de ti, desde aqui até à lua 19 III( 123#',45(#5(7/5'9 ( Vaidade Rara 27 IV( 154(#"$-3*%9":, ( Agir é acreditar( 37 V( 123#',45(#5()'$#5'(6"++" ( A Sagrada Família( 45 VI( ;%:+5',%5(<$95'$+(74",9'*=":$ ( Amor Eterno( 53 VII( 123#',45(>"$%9?3":,(#5(<$4@5'9A;$9,3 ( Reaprender a viver( 61 VIII( 79',="$(B539$9,A'C@',A/$+"#,A+C"%"$3$ ( Sininho e Peter Pan( 69 IX( 123#',45(B"85,'-5 ( A bela adormecida( 77 X( 123#',45(#5(&599 ( O triunfo do amor( 85 XI( 7:,3#',/+$%"$ ( A genialidade dos genes( 93 XII( 123#',45(#5(D,'3?+"$(#5(<$3-5 ( O mel de Martim( 101 XIII( E4C3,#5=":"F3:"$()'"4G'"$ ( O brilho de Estrelinha( 111 XIV( 123#',45(#5(D'"--+5'AH$II$' ( O olhar da diferença( 119 XV( J%95,-?35%5(E4/5'=5"9$ ( Brava fragilidade( 127 XVI( 123#',45()$''KA&,4@5'- ( O caminho da vitória( 135 XVII( 123#',45(#5(65%9(15:C3#G'", ( A imperatriz dos afectos( 143 XVIII( D',4,%%,4,/$9"$(:,4/+5L$ ( Pequenas singularidades( 151 XIX( 123#',45()M5+$3A>:B5'4"# ( O pequeno grande herói( 159 XX( 123#',45(N5++O5-5' ( No céu nasce uma estrela( 167 ( ;/2+,-,( 174 E3#2:5
  • 5. 6 Vidas Raras Vidas Raras 7 )'*+,-, Não sei como começar um prefácio com esta profundidade. Decido então abrir meramente o meu coração. Dor, revolta, saudade! Daria a minha vida para partilhar com esta fantástica jornalista as tropelias do meu filho Marco, de quem me separei fisicamente há quase seis anos, mas já é tarde! Com ela partilho ainda hoje, diariamente, memórias, sempre sob o olhar atento de uma foto de um metro de comprimento, pendurada bem à frente da minha secretária e que testemunha a veracidade das minhas palavras e a saudade no meu peito Seis anos!… parece que foi ontem. Ainda relembro, como a Alexandra, o seu modo maroto, a sua vaidade, a sua voz rouca, os seus maneirismos e o seu cheiro… Não sabem como dói recordar o seu cheiro! E o toque! Deixamos de ter em quem tocar com a mesma intensidade, com o mesmo sentido de protecção, com aquele amor único q ue tomou conta das nossas vidas. Que vidas? Deixamos apenas de viver quando nascem, aprendemos apenas a viver quando partem! E como custa aprender a viver! Quem me dera não viver, quem me dera não ser quem sou hoje, quem me dera ser apenas a mãe do Marco, como fui chamada durante 17 anos. Mas esta foi a missão que tu me deixaste – representar todos os MARCOS raros do meu país. Foi esta a lição que aprendi, naquele dia frio de 16 de Janeiro de 2006. “Eu aprendi filho e vou cumprir”! Foi esta a promessa que te fiz enquanto sentia a tua pele esfriar… lentamente… No momento em que me senti a pessoa mais impotente deste mundo! Senti que quem aguenta a dor de perder um filho, aguenta tudo! E não tem medo de nada… nada! A vida passou por nós tão depressa! Ainda bem que abdiquei do cabeleireiro por ti! Ainda bem que decidi comprar-te aqueles ténis que tanto gostavas, anulando a minha vaidade! Ainda bem que te beijei milhões de vezes, ainda bem que… fomos tão felizes e, com tão pouco! Mas esta não é a minha estória. Esta é a estória de mães como eu, que deram a sua vida por um grande amor! Por tudo isto, era natural nascer uma obra como esta. Nascer, simplesmente, aliás como tudo na RarÍSSIMAS. Nascer porque sim, enquanto houver quem de nós precise. Hoje já poucos são os que recordam a mãe do Marco. Insisto sempre para que se refiram a mim como a mãe de todos os Marcos. por Paula Brito e Costa
  • 6. 8 Vidas Raras Vidas Raras 9 Afinal, quem passa pelo que passei com o Marco e ainda detém um sorriso nos lábios, só pode ter sido escolhido por algo superior para defender estes filhos que amamos incondicionalmente – os nossos filhos raros. Sempre soubeste que a mesma mãe que te amou 17 anos teria a capacidade de amar milhares de meninos como tu. Só eu não sabia! O que me ensinaste! O que nos ensinam estes filhos! A vós, mães como eu, que participaram nesta obra, e a todas as outras que a irão ler, o meu mais sincero obrigadÍSSIMA por mostrarem ao nosso povo o que é, afinal, amar acima de tudo!
  • 7. 10 Vidas Raras Vidas Raras 11 .'"/+,(0 Capítulo I
  • 8. 12 Vidas Raras Vidas Raras 13 No ATL da Escola Básica nº 1 do Linhó, a estrela do dia cha- ma-se Matilde. À volta da mesa discute-se o Facebook e o livro pro- tagonizado pela adolescente. As amigas de infância, o grande suporte da jovem, dão ideias sobre a estória a contar. Reservada, Matilde devolve-nos um sorriso sarcástico revelando, qual estrela de cinema, que ainda irá pensar sobre se fala, ou não, connosco. A fotografia parece ser agora uma área muito mais aliciante para a jovem que, ao ritmo da Shakira, lá vai ensaiando poses para a fotógrafa, sempre adjuvada pelas ami- guinhas. Distinguir a doente, da menina doce e alegre, torna-se, nesta fase, quase impossível. Tudo graças ao espírito invencível de uma mãe que não aceitou nãos como resposta e de uma menina, muito especial, que faz da perseverança o seu lema de vida! Matilde significa guerreira, que comba- te com energia! Nenhum nome seria mais indicado do que este, dado a uma menina rara, nascida no mês das doenças raras – Fevereiro, de 2000, data em que começa a Os olhos de Matilde >$9"+#5
  • 9. 14 Vidas Raras Vidas Raras 15 sua grande luta, lado a lado com Gabriela, a mãe, uma mulher que, curiosamente, também possui um nome à sua altura – a enviada de Deus. “Nada acontece por acaso” começa por desabafar Gabriela, ou Gaby como prefere ser chamada, ao lembrar a história da sua Matilde e da luta contra tudo e contra todos. “Ainda bem que eu tenho o feitio que tenho… pela Matilde. Eu não desisto! Posso já não ter forças para mim mas tenho para ela… Sempre!”. Foi esta perseverança que a levou a não aceitar as respostas, tanta vezes va- zias, dos diversos médicos por onde Matilde passou: “Fui acusada de muitas coisas… De ser uma mãe ansiosa… Eu queria respostas e, por isso, fui acusada de expor a Matilde a muitos médicos. Che- guei a ir a um médico afamado que me disse que a Matilde ia ser um vegetal… se não tivesse esta insatisfação natural, provavelmente ter-me-ia ficado por aquela resposta, mas não. Sempre exigi aquilo a que achei que a minha filha tinha direito!”, relata, com convic- ção. Efectivamente assim foi desde a primeira ecografia, às 12 se- manas, onde a translucência da nuca apontava para uma eventual Trissomia 21. “Soube o resultado da amniocentese de uma forma cruel. Entrei no consultório, a médica estava ao telefone e, em cima da mesa, sublinhado a fluorescente estava Trissomia X. Comecei a chorar convulsivamente e a médica, de forma arrogante, ainda per- guntou – está a chorar porquê?”. A falta de humanismo nos serviços médicos não se ficou por aqui… Apesar da Matilde ser um parto de risco, Gabriela deu à luz sem a presença de qualquer médico, com- pletamente sozinha, no hospital Amadora Sintra e, nem os pedidos desesperados feitos a um enfermeiro para lhe dar a mão na altura da expulsão lhe valeram “ele respondeu de forma insensível – Para quê? Foi tudo muito cruel. Senti-me completamente abandonada…” confessa, emocionada. Durante o parto, a pequenina Matilde teve um enfarte cerebral e uma anemia aguda que a colocaram entre a vida e a morte, com direito a várias transfusões de sangue. “Senti um vazio enorme… Vê-la numa caixinha e não a poder ter no meu colo… Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ela mamou. As lágrimas vieram-me aos olhos e pensei, ela conseguiu! Ainda hoje sinto que esse momento foi realmente o primeiro passo para a vitória dela!” recorda Gaby, comovida. Na realidade, esta foi apenas a primeira, de muitas vitórias, da pequenina Matilde que, graças à sua doença raríssima, só conseguiu andar aos 25 meses e pronun- ciou as primeiras palavras já muito tarde. Parecia que não existia nada no mundo que não acontecesse a esta menina: “a cada consulta que ia descobriam um novo problema. Cheguei a um ponto que pensei, eu não aguento mais”… Porém, a ambição e força de vencer de ambas, acabaria por resultar, juntamente com o apoio da educa- ção especial e de muitas consultas de fisioterapia. “Sempre acreditei nela e continuo a acreditar! Tanto, que muitas vezes chego a julgar que ela é exactamente igual às outras crianças. Ela tem tantas re- acções próprias da idade. Só volto à realidade quando acontecem aquelas coisas menos boas”. É nestes momentos que Gaby se volta para aqueles médicos que, desde sempre, ou quase sempre, apoia- ram a Matilde na busca pela sua recuperação. “A grande médica e grande amiga é a pediatra dela, Ariane Brand, que a acompanha desde que nasceu. É uma pessoa que ouve os pais. Porque muitas vezes ouvi – a senhora é mãe, eu sou médica e eu é que sei! Foi ela que, no dia do resultado da amniocentese, teve a coragem de chamar as coi- sas pelos nomes. Foi ela que chorou comigo. Sei que posso contar sempre com ela!”. Também o Pediatra de Desenvolvimento, Miguel Palha, foi uma grande inspiração. “Ele costumava dizer que os olhos da Matilde não enganavam. Na realidade, ela era muito parada, mas os olhos eram muito expressivos, quase como se falassem. Foi ele que me fez acreditar que, apesar da doença, a minha filha era real- mente especial e me dizia, em tom brincalhão, que ela poderia não chegar a ser uma tenista famosa mas que certamente seria alguma coisa na vida!”. E foi justamente esta fé, esta esperança e desejo ar- dente de ver a filha feliz e com saúde que fez com que Gaby nunca se intimidasse perante os obstáculos da vida, tantos que “lhe sei dizer o porquê de cada cabelo branco que tenho”. São justamente esses cabelos brancos, essa sabedoria feita de experiência, que conferem a Gaby um estatuto muito acima de qualquer diploma médico, até Os olhos de Matilde
  • 10. 16 Vidas Raras Vidas Raras 17 porque, tal como ela própria afirma “eu levo o meu processo clínico para casa”! Um processo feito de alegrias e reveses, tantos quantos os avanços e retrocessos a que a própria doença está sujeita e que, segundo Gaby, se assemelham em tudo a uma sentença daquilo que um dia se recusou fazer: “aos 20 anos disse à minha professora da cadeira de Necessidades Educativas Especiais que nunca iria tra- balhar com crianças com deficiência”. A verdade é que o destino lhe pregou uma verdadeira partida de mau gosto e hoje, Gaby par- tilha com Matilde todo o know-how adquirido no curso e anos de diagnósticos e terapêuticas, afinal “pudemos não compreender ou questionar o porquê mas temos de aceitar aquilo que temos!” afirma Gaby, com convição. Por isso Gaby percorre, lado a lado com Matilde, o caminho espinhoso da recuperação e da vitória. Da fisiatria, em Alcoitão, às operações ósseas em virtude da deformação que tem no pé, devido à hemiparésia que não deixa o músculo acompanhar o crescimento dos ossos, passando pelas visitas regulares ao dentista, por causa do aparelho nos dentes, tudo na vida destas duas mulheres é uma luta e, até umas simples férias, podem revelar-se um verdadeiro inferno de Dante: “uma vez, nas férias, ela começou a fazer convulsões. Liguei por diversas vezes à pediatra mas ela própria não conseguia perceber o que se passava. Um dia, ao observar a Matilde, percebi que as con- vulsões aconteciam imediatamente a seguir a ela estar na água. Tele- fonei à pediatra e perguntei se o reflexo do Sol na água não poderia seroresponsávelporessasituação.Efectivamente,depoisdelhecom- prar uns óculos escuros, nunca mais aconteceu” comenta triunfante Gaby. É graças a esta sagacidade e empreendedorismo, partilhada pela filha, que ambas olham o futuro com um brilhozinho nos olhos. “Eu quero é que ela seja feliz… não me interessa o resto!”, exclama Gaby lembrando a personalidade vincada de Matilde “que tem sido uma mais valia, uma vez que tenta fazer sempre tudo o que os outros meninos fazem”. É essa força que faz com que Matilde, apesar das suas limitações, tenha notas óptimas, sobretudo a inglês; sempre com o apoio das sua amigas de infância, completamente inseparáveis. “O ano passado ela começou a confrontar-se mais com as suas limita- ções e a aperceber-se da sua diferença”, recorda a mãe que refere que foi justamente o suporte emocional da amizade que fez com que os reveses se transformassem em vitórias. “Sempre fiz um esforço para levar as amigas lá a casa, porque é difícil para as outras pessoas terem a Matilde. Durante três anos seguidos fiz noites do pijama” diz Gaby que adianta desde logo o sonho profissional da filha – “A Matilde quer ser treinadora de cavalos”, uma paixão que poderá advir do facto de ser com eles que a Matilde resolve grande parte dos seus confli- tos. “A Matilde não gosta de sair. Gosta de estar em casa e fica horas a brincar com os cavalos dela. Ela resolve muitos dos seus medos através do jogo lúdico”, refere Gaby. Sentiu-se sozinha durante muitos anos, mas hoje Gaby afiança “a Matilde é a pessoa que me faz rir! É a minha cúmplice!”. E juntas percorrem o sinuoso caminho da doença. Matilde, apesar de fazer praticamente tudo, tem algumas limitações, devido à hemiparesia e não tem a motricidade fina ainda desenvolvida. Nada que a dupla vencedora não pense em ultrapassar! Para Gaby “o que me preocu- pa em relação ao futuro da Matilde é apenas a epilepsia dela, por- que neste momento não está controlada, apesar de hiper-medicada”. Porém, a espontaneidade de Matilde, de olhos postos no mundo, e a garra com que Gaby fala do seu benjamim, levam-nos a acreditar nas palavras dirigidas pela pediatra a Gaby, há alguns anos: “já pen- sou que foi a Matilde que a escolheu, a si, para mãe…”. Os olhos de Matilde
  • 11. 18 Vidas Raras Vidas Raras 19 123#',45(( #5(678& Capítulo II
  • 12. 20 Vidas Raras Vidas Raras 21 Detentora de uma memória absolutamente prodigiosa e um ta- lento muito especial para a música, Leonor é a prova viva de que a nos- sa existência é repleta de pequenas coincidências. “No Natal de 2005, a Raríssimas fez uma publicidade muito gira que me deixou comovida. Nunca imaginei que, passado um mês, a Leonor nascesse com uma do- ença muito rara” lembra, comovida, Ana. Apesar dos 33 anos de idade e de dois abortos espontâneos, nada fazia prever que a pequenina Leo- nor viesse a ter qualquer problema. “No parto, apenas detectaram que ela tinha um dedo a mais no pé esquerdo, mas disseram que não seria motivo de preocupação”. Porém, o caso mudou de figura quando, aos dois meses, os jovens papás se aperceberam, movidos por uma sagaci- dade quase intuitiva, que o olhar da sua bebé era diferente. Na realida- de, também a médica de família haveria de alertar para o mesmo facto. “Tivemos então uma consulta em Santa Maria e foi quando detectaram o problema. Fez uma ressonância magnética para despistagem de problemas a nível das órbitas e aí verificaram uma defici- ência a nível do corpo caloso. Fomos então Gosto de ti, desde aqui até à lua <5,3,'
  • 13. 22 Vidas Raras Vidas Raras 23 referenciados para a consulta de genética e, após o estudo do cariótipo, foi detectado uma delecção no cromossoma 11, ao qual estava asso- ciada a anirídia, o dedo a mais, a hipoplasia do corpo caloso, chamada síndrome de WAGR”. Um diagnóstico complicado, para um problema raríssimo, que afectaria de sobremaneira estes pais que, há muito, dese- javam um filho. Porém, talvez pelo facto de Leonor ser uma bebé muito desejada, depois do choque inicial, surgiu a fé, a esperança e, sobretu- do, a energia com que estes pais enfrentarem, de cabeça erguida, aquilo que para muitos seria o fim. “Desde muito cedo que percebi que este era um problema para toda a vida. Em família, decidimos que nos res- tava dar-lhe o melhor e fazer tudo para que ela tivesse uma vida, o mais normal possível”. E assim foi, enquanto Ana procurava os melhores es- pecialistas, as melhores opiniões e, até, as melhores brincadeiras, Ricar- do, movido por uma fé inabalável, procurava na internet respostas que pudessem mudar o destino da pequerrucha. Apesar de ser o grande su- porte de Ana, Ricardo contínua a não entender porque é que isto acon- teceu. “Nunca hei-de entender, sou super-revoltado. Ninguém ajuda a minha filha que é doente e depois dão tudo às minorias étnicas e a toxicodependentes. Eu, que desconto todos os meses, não tenho direito a nada!”, atira indignado Ricardo. Foi este mesmo sentido de injustiça que levou Ricardo, nas suas deambulações pela net, a temer tantas ve- zes pela vida de Leonor, tantas quantas aquelas em que sorriu, perante a esperança de uma cura, de um dia melhor: “Da minha pesquisa, houve muita coisa que me chocou, mas que me levou também a perceber que aquilo que existia há 20 ou 30 anos, não é o que existe hoje. Há que dar a oportunidade a estas crianças de irem mais além…” Foi justamente a sua perseverança e a fé do casal na recuperação da sua princesa que os levou a procurar de novo a net para perceber o problema oftalmológico da pequenita. “Comunicámos com a associação dos EUA e tentámos informar-nos. A informação que preciso tenho que ser eu a ir buscá-la; eu é que vou dando a informação aos médicos e aos hospitais porque eles podem ter conhecimento, mas não aprofundam a questão. Os pais são os pilares dos filhos. Cabe a eles, também, procurarem a informa- ção!” exclama, seguro, Ricardo. Como que desperta pelas eloquentes palavras do seu protector, a pequena Leonor, que é realmente formosa mas, nem sempre segura, entra trôpega pela sala, ainda recém desperta da sua pequena sesta. Dirigindo-se até nós, os olhos semicerrados de Leonor começam agora a crescer até pousarem sobre as nossas mãos, mostrando de forma inequívoca que havia algo, que muito lhe tinha agradado. Depressa nos apercebemos que o tom do verniz da jorna- lista tinha deixado a princesinha encantada. A mãe revela então que além do gosto pelas cores fortes, Leonor tem também imenso jeito para cantar, especialmente André Sardet. Perante este comentário, Leonor decide presentear-nos com alguns versos da célebre melodia Adivinha o quanto gosto de ti. Poucos profissionais de saúde terão, certamente, a oportunidade de testemunhar aquilo que vai além da doença… Afinal, desde os seis meses que a Leonor faz ecografias renais, de três em três meses, em virtude de se temer que venha a desenvolver um tumor de Williams, característico da doença. “Até agora tem estado tudo normal e a grande fase de risco, entre os 18 meses e os 3 anos, já passou. Porém, de toda a investigação que fizemos, pode sempre aparecer, embora seja muito mais raro. Por isso, até aos 8 anos faz-se este controle trimestral e, depois passará a ser semestral e, mais tarde, anual”, assegura a mãe. Além disso, Leonor é permanentemente acompanhada por uma equi- pa multidisciplinar que reúne a Oftalmologia, passando pela Genética até ao ensino especial, sendo ainda acompanhada pela Neurologia, no hospital São Francisco Xavier. Em Alcoitão encontra-se referenciada para a fisioterapia e terapia ocupacional. Operada aos seis meses a uma catarata completa, Leonor usa óculos escuros desde os 3 porque não tem íris nos dois olhos. “Te- mos muito cuidado com os olhos dela. Ela nunca pode sair à rua sem os óculos uma vez que pode queimar a retina, o que será irre- versível”. Também a nível físico, Leonor lida com algumas dificulda- des, nomeadamente no que se refere ao apetite. “A Leonor tem um apetite muito grande, característica da doença, mas nós controla- mos imenso. Ela tem de perceber que não pode comer certas coisas. Neste momento está um bocadinho gordinha, mas apenas porque como tem alguma dificuldade motora não tem o mesmo tipo de Gosto de ti, desde aqui até à lua
  • 14. 24 Vidas Raras Vidas Raras 25 exercício. No entanto, não come bolos, chocolates, doces e tem até, umas bolachinhas próprias. Ela própria já não pede. Aliás, nem se- quer temos esse tipo de coisas cá em casa”, acentua Ana. Apesar de os pais de Leonor serem umas verdadeiras forças de vida, a verdade é que, se perante a doença sempre lutaram, perante a crise estão quase a baixar os braços. “Os óculos dela são extremamen- te caros, as terapias não são comparticipadas, porque Alcoitão deixou de ter esse serviço. Inclusivamente existem crianças lá que sempre tiveram este acompanhamento e que agora, em virtude de não ser comparticipado, tiveram de as retirar” destaca Ricardo que continua os seus queixumes referindo que “recebo dois subsídios para a Le- onor – o de deficiência que são 56 euros e consegui o subsídio de terceira pessoa. Neste momento recebo à volta de 140 e poucos euros. Serve apenas para ajudar a pagar as terapias de Alcoitão. Até o abono de família me retiraram!”, diz indignado aquele que sempre tentou que a pequenita tivesse acesso a tudo o que “tinha direito”. Da escola particular à terapia da fala particular, nada faltou à pequenita. Infe- lizmente, os tempos hoje são outros e o casal teve de colocar Leonor na escola oficial. Lá “tem algumas terapias gratuitas, nomeadamente a terapia da fala e acompanhamento especial. Tenho notado uma dife- rença enorme!”, exclama a mãe. Leonor cresceu, efectivamente, como garota e ser humano. Culpa dos pais, talvez, que trabalharam para isso. “Apesar de termos muitas dificuldades e uma vida muito des- gastante, com as constantes idas a médicos, tentamos sempre que ela aproveite a vida ao máximo” ou, quem sabe, da própria Leonor que, simpática e divertida, resolveu pregar uma partida à doença e mos- trar a sua verdadeira raça: “começa já a desenhar círculos. Já distingue as cores, à excepção daquelas que são muito parecidas”. Para tudo isto contribuiu, certamente, a preciosa ajuda dos amiguinhos docentes. “Os meninos da escola são super-queridos com ela. Gostam muito dela e andam sempre a perguntar se precisa de alguma coisa”, lem- bra Ana. Unindo armas com a pequena Leonor, estes pais guerreiros acreditaram que era possível tentar de novo… dar um irmão à Leo- nor. “Antes de ter o bebé, falámos com a genética e ela disse-nos que nem eu nem o meu marido tínhamos qualquer problema a nível dos cariótipos. Falei com  o meu marido e achámos que seria bom para a Leonor ter um irmão, apesar das despesas. Porém, como engravidei com 37 anos, fui para as consultas de alto risco, até fazer a amniocen- tese. Fizeram também o estudo do cromossoma. Quando o Lourenço nasceu, a vida deu outra volta. Hoje, brincam os dois muito e ouvem histórias e música juntos. Ela é fantástica com ele e ele gosta imenso dela”, diz embevecida Ana, enquanto olha os seus rebentos. Na reali- dade, Leonor tornou-se hoje naquilo a que chamamos em tom quase coloquial – a irmã mais velha. “Ela já tem alguma conversa connosco e faz pequenos recados” refere Ana adiantando desde logo que cada passo que ela dá é uma vitória. Um triunfo feito de pequenos avanços e alguns recuos, mas com uma novidade diária: “vivemos um dia de cada vez e da forma mais intensa possível. Tentamos sempre que cada dia seja diferente, cada vez melhor!”, garante o casal que acompanha diariamente as peripécias da pequenita e cresce com ela, aprende com ela. É esta aprendizagem de experiências feita que leva o casal a sentir-se na obrigação de motivar outros tantos pais: “o fundamental é, quando se recebe a notícia de que se vai ter uma criança diferente, aceitar. Temos de investir nestas crianças, falar com elas, dar-lhes ca- rinho, amor e estar o mais possível presente na vida delas”. Ainda que, no final do dia, a preocupação de Ricardo seja “morrer sem eles terem crescido”, a alegria de ver Leonor crescer, feliz, formo- sa e segura dá um novo alento a esta casal guerreiro que sonha um dia levar Leonor aos EUA onde, além do outrora  prometido ouro, poderá estar a esperança da cura! Gosto de ti, desde aqui até à lua
  • 15. 26 Vidas Raras Vidas Raras 27 123#',45( #5(7/5'9 Capítulo III
  • 16. 28 Vidas Raras Vidas Raras 29 Trabalha no jardim de de infância da Câmara Municipal do Seixal, onde todos a mimam e adoram. Vaidosa por nature- za, Márcia faz questão de exibir, orgulhosamente, a sua diferen- ça, deixando para trás mágoas e lembranças de um passado e de uma sociedade que nem sempre foi justa para com ela, o fruto de uma ignorância naturalmente inerente a tudo o que não é es- tandardizado. “A sociedade olha-nos como se tivéssemos algo que se pegasse”, alega Márcia lembrando todos os olhares de soslaio, cochichos e comentários desagradáveis a que esteve, desde sem- pre, sujeita. Hoje, com 27 anos, Márcia confessa-se uma mulher realizada e insubmissa, oferecendo à mãe os louros daquilo que é hoje “A minha mãe é uma grande mãe, uma mulher com muita força. Se não fosse ela eu não estava como estou”. Talvez por isso, Márcia prefere que seja a sua mãe a relatar a estória de vida que ambas têm vindo a trilhar, lado a lado, ao longo destas quase três décadas de vida. Uma estória onde predomina a convicção, o engenho e a atitude de uma Vaidade Rara >G':"$
  • 17. 30 Vidas Raras Vidas Raras 31 mulher, tantas vezes apelidada de má, por força de querer que a sua filha fosse… Capaz! Capaz de coisas simples como abotoar uma camisa, comer sozinha ou até, imagine-se, ir para uma esco- la pública. “Quando pus a Márcia a comer sozinha, diziam que maltratava a minha filha e que era má mãe. Tudo porque a Márcia não tinha dedos. Obrigava-a a limpar-se na casa de banho, o que ela fazia com dificuldade, porque não consegue chegar bem com o braço atrás. Porém, hoje ela faz tudo! Eu sei que não é fácil de ver. Mas eu preferia vê-la a esforçar-se, do que não conseguir fazer nada!” afiança Gisela, uma verdadeira heroína para quem a pala- vra não ser capaz é apenas sinónimo de preguiça. “Amar um filho deficiente é acreditar nele, é respeitá-lo”! É des- ta forma que Gisela se refere à sua menina e ao longo, penoso mas vitorioso rumo que têm delineado. “Fiz uma jura que ela havia de ser, um dia, aquilo que eu tinha sonhado!”, regista decidida. Apesar da garra e perseverança que hoje demonstra, esta mãe confessa que no início foi muito complicado. “Há uma imagem que vou guardar para sempre comigo – quando a Márcia nasceu, fez-se um silêncio desconfortável e eu perguntei o que se passava. Foi quando entra uma enfermeira com ela embrulhada, num pano azul; a Márcia coloca o pé fora do pano e eu vejo um pé, sem dedos”! Apesar da grande mulher que é, Gisela deixa-se abalar pelas lembranças para logo se recompor e afirmar, sem receio de qualquer avaliação mo- ral: “fiz rejeição – eu não queria aquilo. Não foi aquilo que pedi – berrei, saltei e fiz o meu luto logo ali, naquele momento”. Afi- nal, Márcia era a sua primeira gravidez. Uma filha muito desejada numa gravidez que decorreu normalmente. Após a reacção inicial Gisela, graças à providencial intervenção de uma enfermeira, de- cidiu que a filha haveria de ser igual a todos os meninos. “Tive alta da MAC e ela ficou internada. Durante 15 dias eu ia vê-la, mas ao longe! Passados este dias a Márcia passou para a Estefânia e jamais me esqueço de uma enfermeira, que ainda hoje é nossa amiga, que me disse: como é mãe? Veste-a você ou eu? Eu, ainda em choque, dis- se para ser ela e fiquei estupefacta quando a vi acarinhá-la. Quase com a bebé vestida eu disse – eu acabo! Foi nesse dia que a aceitei!”, conta. Já para o pai de Márcia, nem o choque estético o demoveu do amor imenso que sentia por aquele pequeno ser. “O pai da Már- cia quando a viu disse-me que ela era tão bonita ao que eu respon- di e tu és muito burro. Aos meus olhos, a minha filha não tinha qualquer tipo de beleza. Ainda hoje, para o Francisco, a Márcia é a menina dos seus olhos! A princesa!”, conta Gisela. Na Estefânia, já com quase três semanas, surgiu o primei- ro diagnóstico. “O Professor Gentil Martins veio ter connosco e disse-me que era uma síndrome de Apert, adiantando desde logo que, apesar de não saber muito sobre a doença, a menina teria de ser sujeita a várias intervenções cirúrgicas”. E assim foi. A primeira surgiu logo aos quatro meses, ao cérebro. Seguiram-se várias à au- dição, mas sem resultados! A Márcia acabou por desenvolver uma surdez completa e hoje ouve, graças a uma prótese. As mãos tam- bém foram alvo de cirurgia: cinco em cada uma. “Nos pés nunca mexemos”, relembra a mãe a quem os médicos afiançaram que a menina não iria andar, não iria passar dos 4/6 anos e que “eu es- tava a criar uma expectativa muito grande. O braço não mexia, o andar era dificultado porque não fazia o movimento das pernas, enfim, pintaram a coisa muito negra”. Como se isto não fosse des- de logo um fardo extremamente pesado, acresce o facto de Márcia ter tido as doenças típicas de infância – quase todas – e de fazer bronquiolites de repetição. Nada que amedrontasse Gisela, habi- tuada às agruras da sua vida: “às tantas, já era eu que a aspirava! As mães vão-se tornando médicas dos seus filhos!” confessa, or- gulhosa do seu desempenho. Porém, nem só do mal físico padecia Márcia. Esse, aliás, viria afinal a ser, provavelmente, o menor dos sofrimentos. O maior de todos era, aquele que ainda hoje se verifica: a discriminação. “Aos dois anos entendi que a minha filha tinha de ir para uma escola pública. Chamaram-me louca! Passou por três ou quatro colégios onde estava apenas umas horas e me mandavam ir buscá-la por- que não a podiam ter lá. Diziam que os meninos quando olha- Vaidade Rara
  • 18. 32 Vidas Raras Vidas Raras 33 vam para ela choravam”! Nessa altura, e perante a rejeição de uma sociedade hipócrita e cruel, Gisela sentiu-se impotente. “Estava desorientada! O mundo desabou; não havia portas, janelas, nada. Tudo se fechava”! Porém, como que por magia, ajudada pelo inte- resse de um jornalista do extinto Tal e Qual, as coisas acabariam por mudar, ainda que as mentalidades continuassem retrogradas. “A história tocou muita gente e, aí, apareceram vários colégios que a queriam lá. De todos, só um fazia, já na altura, inclusão – o externato Piaget, em Lisboa. Ela tinha quatro anos e eu pagava então 27 contos de mensalidade, sem qualquer comparticipação” denuncia Gisela para quem, a falta de apoios financeiros para a re- cuperação da filha sempre foi uma constante. Tanto, que obrigou o marido a trabalhar arduamente para lhes poder proporcionar o melhor, enquanto perdia, assim, a infância da filha. “Comemos muitas iscas para ela ter boas botas! A última operação que fez às mãos, na Clínica de Todos os Santos, pelo Prof. Batista Fernan- des, o único cirurgião da mão em Portugal, custou-me 500 contos. Cada atestado médico custava-me 15 contos porque era assistida em particular, porque o Professor Gentil Martins me disse que eu não podia exigir mais porque o que estava feito era uma obra mui- to bem feita, por ele…”, acusa revoltada. A prova do equívoco deste médico está hoje à nossa frente. Uma rapariga bem formada, senhora do seu nariz, que já não se deixa abater por comentários menos próprios e, muito menos, pela sua aparência. A mãe, não tendo formação médica, tinha uma qualidade única: o amor de mãe. Foi esse amor que a levou a confrontar a filha com a sua própria deficiência, numa tentati- va de a chamar à realidade e de lhe provar que isso, era o menos importante. “Sempre achei que a Márcia devia de ter espelhos no quarto para que se pudesse olhar e gostar dela como é”. Apesar disso, a jovem viria a ter o confronto da sua vida quando, um dia, na escola, os colegas a chamaram deficiente: “Com oito anos ela chegou a casa e perguntou-me o que era um deficiente. Levei-a para a frente de um espelho e disse: olha para mim e olha para ti Vaidade Rara – o que vês minha filha? Nada. Ao que respondi – já reparaste que tens um nariz diferente, uns olhos diferentes… a tua maior beleza está dentro de ti, não se vê. Porque te acham diferente e não vêm essa beleza eles chamam-te deficiente. Ser deficiente é isso mesmo, é ser diferente daquilo que nos rodeia. Tu és mais bela que qualquer um de nós, porque não te questionas por não seres igual aos outros. Tu aceitas-nos, o que revela que és um ser humano muito superior a todos nós” revive Gisela, com emoção. Os 12 anos foram outra época complicada, por força da con- vicção desta mãe que entendeu “que ela tinha de ser capaz, porque quando eu fechar os olhos não existe ninguém para tomar conta dela. Teve dificuldades na escola porque não conseguia assimilar a matéria. Acabou o 9º ano aos 18 anos. Até aqui, tudo corria muito bem, porque era bom para os colégios terem uma criança com Apert que conseguia fazer tudo o que ela conseguia. Porém, ela não quis continuar a estudar e saídas para trabalhar não existiam. Também se sentia mal porque já era uma mulher numa turma de crianças”… Assim, após a conclusão do 9º ano, a única hipótese que esta mãe viu para a sua filha, foi aquela que sempre tinha re- jeitado – a Cercis. Lá fizeram questão que ela fosse o exemplo. Um exemplo de garra e convicção para os outros meninos! Porém, esta opção também não agradava à jovem Márcia. “Quando saímos da escola a Márcia disse-me: é aqui que me vais pôr, ao pé daqueles. Res- pondi-lhe que aqueles eram iguais a ela, apenas tinham tido um percurso diferente”. Aqui, Márcia adquiriu novas competências e encontrou, tam- bém, o seu primeiro amor, um adolescente com Trissomia 21. Um amor que, mais uma vez graças aos preconceitos sociais, não teve o final feliz que a jovem Márcia tanto sonhava. “Os pais, quan- do souberam, não aceitaram o namoro porque a Márcia era feia”, confirma a mãe. Márcia, como que atiçada pelas amargas recor- dações, interrompe agora e afiança: “não quero mais namorados. Sofri muito e pensei que o melhor era estar sozinha…” confessa. A seu lado, a mãe lembra que, foi também nesta época que ela
  • 19. 34 Vidas Raras Vidas Raras 35 própria teve um grande desgosto. A paixão por estas crianças tão especiais era de tal forma que Gisela decidiu procurar emprego a fazer aquilo que achava que sabia melhor – lidar com estes meni- nos. Porém, “a dada altura, as funcionárias das Unidades tinham de ser das Cercis e eu fui obrigada a sair. Foi o ano mais difícil da minha vida! Estes meninos fazem parte de mim!”, recorda chorosa Gisela que, durante algum tempo ainda tentou ter um espaço seu mas que “tive de fechar porque não tinha ajudas”. Magoada, lá vai adiantando que hoje tem os meninos na sua casa porque “as pes- soas que trabalham hoje com estas crianças não sabem respeitar o seu espaço e respeitar a forma de amar deles”. Márcia, por seu lado, e apesar de ter momentaneamente ab- dicado dos namoros, hoje não dispensa os amigos, com quem partilha, diariamente, histórias no Facebook. Amante de música e dança, a jovem não dispensa as saídas à noite e as visitas ao sho- pping, onde se diverte com a sua grande paixão: comprar brincos. Desde sempre fez questão de se arranjar e de se cuidar como que querendo, a todo o custo, contrariar uma comunidade que teima em colocar rótulos numa mulher que, afinal, é tão pura e simples- mente isso – uma mulher! “A Márcia aprendeu a não se esconder e a impor-se!”, ajuda a mãe, lembrando uma história curiosa que revela a personalidade forte destas duas grandes Senhoras: “A Márcia é muito vaidosa e adorava camisas. Eu dizia-lhe: consegues abotoá-las? Não mãe. En- tão não as podes ter. No dia em que conseguires, compro-te aquelas que quiseres… Esse dia chegou”! Foi também esta forma vincada de ser que a transformou numa educadora de excelência: “lá ensi- namos e aprendemos. A última coisa que lhes ensinei, que apren- di com os meus pais, foi que não devem ter medo… Os meninos aqui aceitam-me, como se nada fosse” assegura Márcia, orgulhosa dos seus petizes. A seu lado, a mãe sorri e garante-nos desde logo: “qualquer família com uma criança deficiente é abençoada. É uma família muito especial! Eu sou uma mãe muito realizada!”. De la- grimita ao canto dos seus olhos rasgados, também Márcia faz uma Vaidade Rara pequena troca de afectos: “apercebi-me, graças aos meus pais, que somos todos iguais”. Da nossa parte, gostaríamos apenas de salien- tar um pequeníssimo grande adjectivo; todos iguais talvez, mas uns mais tenazes que outros… A nossa Márcia, ultrapassando todas as barreiras da vida, dá uma grande lição a todos aqueles que se queixam, tantas vezes, de coisas comezinhas e que teimam em discriminar os que, pelo seu carácter e estória de vida os assustam – porque lhes lembram a sua insignificância!
  • 20. 36 Vidas Raras Vidas Raras 37 154 #"$-3*%9":, Capítulo IV
  • 21. 38 Vidas Raras Vidas Raras 39 São 17.30h – Lá fora, uma carrinha da APERCIM traz ao nos- so encontro a protagonista desta estória. Rita de seu nome, faz jus ao significado do mesmo – alegre, radiante. A mãe, de sorriso também rasgado, dá-nos uma calorosas boas-vindas. Apesar da vida difícil e problemática que ambas têm, estas mulheres sabem, como pouca gente, que tal como afirmou outrora o defensor da liberdade, Martin Luther King: “Pouca coisa é necessária para transformar inteiramente uma vida: amor no coração e sorriso nos lábios”. São justamente estas duas grandes premissas que as têm guiado pelos atalhos da vida. “Eu conto as coisas a rir porque só assim se consegue seguir em frente; é mais fácil”, justifica Deolinda, soltando uma forte gargalhada, misto de nervosismo e de uma disposição verdadeiramente inacreditável. Para esta mulher que, até hoje, luta para sa- ber o diagnóstico da patologia da sua filha, na vida não existem pontes nem barreiras, apenas muros, muitos muros… que teima em derrubar: “Se tenho dado ouvidos às opiniões dos médicos, que diziam que não havia nada a fazer, com certeza ela não teria Agir é acreditar &"9$
  • 22. 40 Vidas Raras Vidas Raras 41 chegado aqui” afirma, veementemente, Deolinda. Afinal Rita, hoje com 21 anos, apesar de se encontrar presa a uma cadeira de rodas, irradia uma paz de espírito e tranquilidade, só abaladas por rasgados sorrisos, sempre que se fala directamente no seu nome. O percurso de vida desta família é, verdadeiramente, um exemplo de tenacidade e constância. Deolinda tinha 33 anos quando nasceu Rita, tendo o problema da bebé sido notado apenas às 30 semanas. “Numa ecografia, o perímetro cefálico estava abaixo da média e tinha deixado de se desenvolver, porém a médica desvalorizou e disse que poderia ser do aparelho onde a eco tinha sido tirada” diz Deolinda. Porém, quando Rita nasceu, os receios da mãe provaram-se: “Quan- do ela nasceu tinha o nariz achatado e as orelhas estavam coladas à cabeça” asserta. Seguiram-se numerosos exames – cardíacos, oftal- mológicos, genéticos… Diagnóstico: síndrome malformativo, um nome tão vago quantas as inúmeras patologias raras que a ele podem estar associadas. “O mundo caiu-me em cima. Não sou diferente das outras pessoas! Fui-o apenas porque, contra a opinião de todos, fiz o que achei ser o melhor para a minha filha”. E assim foi, perante um diagnóstico muito triste, onde a palavra recuperação ou esperança teimavam em não caber: “A médica assistente confessou ao meu ma- rido que aquela criança não era suposto ter sobrevivido”. Mas Rita, de espírito triunfante, viveu, coadjuvada pela sua grande parceira de luta, Deolinda, que teimava em contrariar médicos e especialistas, provando que tinha razão em… acreditar! Um dia, uma fisiatra da Liga Portuguesa dos Deficientes Moto- res perguntou-lhe, em tom irónico, o que ia fazer com a filha para a piscina. “Retirei do saco um biberão de água e perguntei à Rita, então com 15 meses, se queria água. A menina respondeu abrindo a boca! Depois voltei-me para a fisiatra e disse-lhe – agora explique- -me porque é que me diz que esta criança não entende nada” lembra, emocionada. Também o neurologista da pequena Rita parecia tei- mar em abalar as convicções de Deolinda. “Eu não me entendia com o neurologista porque ele só sabia dizer que ela não havia de fazer nada e que não valiam a pena terapias. Lembro-me de a levar para a praia e a obrigar a andar pela praia fora, para que se desenvolvesse a nível motor. Um dia volto à consulta e ela, muito bem disposta, sor- ria e olhava para tudo à sua volta. Aí, o médico deu-me os parabéns e disse-me que ele nunca tinha acreditado que fosse possível. Foi o seu trabalho que conseguiu isso, disse ele”. Foram estas as palavras, pro- feridas por um especialista, que deram a determinação a Deolinda para continuar, contra as opiniões de todos, a tentar despertar a sua Bela Adormecida Rita. Daí em diante, Deolinda teve a certeza que, com carinho e o estímulo correcto, era possível obter respostas des- tas crianças… bastava olhá-las com atenção. “Eu percebo-a porque olho para ela” salienta esta verdadeira pietá. Um dia, a mãe de Rita achou que estava na hora de a sua prin- cesa aprender e conviver com outros meninos. Por isso, apressou- -se a inscrevê-la num infantário, perante o descrédito da directora: “para que quer que ela esteja aqui? É para saberem que ela existe? Mas eu insisti e revirei tudo até conseguir, inclusivamente, que ela tivesse apoio especial. Os pais dos meninos ficavam horrorizados porque achavam que as crianças não tinham que levar com isto. Ouve uma mãe que, inclusivamente, disse que a filha dela comia pior desde que a Rita frequentava o infantário”, lembra em tom irónico. Esta satis- fação em confrontar tudo e todos na defesa dos interesses maiores daquela que é do seu sangue trouxe muito mais situações de pura discriminação e falta de informação da nossa sociedade para com estas crianças. “À chegada da escola primária a directora chegou a dizer-me que só por cima do cadáver dela é que a Rita entrava. Ao que eu respondi que a escola era obrigada a criar condições para que a minha filha lá pudesse andar. É incrível, porque os miúdos falavam na Rita aos pais, como uma colega! Só quando chegava a Festa de Natal, é que os pais se confrontavam com esta realidade…” recorda, com um ar de estupefacção. Ao nosso lado, de olhos serenos e sorriso rasgado nos lábios, Rita agita-se agora alegremente. Segundo a mãe, quer tocar piano, como que a brindar a nossa presença com os seus feitos. Esta persistência em comunicar foi, desde sempre, algo que acalentou as esperanças de Agir é acreditar
  • 23. 42 Vidas Raras Vidas Raras 43 Deolinda. “Fui para a natação tinha ela 15 meses. Apesar de os mé- dicos dizerem que ela não entendia, eu sabia que ela gostava de água. Por isso, em vez das terapias, usei a parte lúdica, para obter respostas dela”, concluí. Para Rita, foi graças a esta interacção que conseguiu sempre vencer todas as adversidades. Dorme mal, desde sempre, e acorda várias vezes por noite. Aos dois meses começou a ter convul- sões, que hoje estão controladas com medicação e, a dada altura, “to- dos os dias ia com ela ao hospital, pelas mais diversas razões e pelas constantes crises de falta de ar” comenta rindo Deolinda. Diz que não tem postura de coitadinha e assegura-nos, desde logo que, se assim fosse, talvez tudo fosse mais fácil: “há dias em que não apetece sequer levantar-me”, confessa rendida. Logo depois, como que esquecendo a tristeza, Deolinda assegura-nos que será a última a partir e, por isso, mudou de casa para assegurar à filha que a protegia e defenderia… até ao fim! “Ela hoje está aqui, com uma qualidade de vida razoável, porque eu mudei a minha vida em fun- ção dela. Eu morava em Caneças e era a Liga que me ajudava. Aqui em Mafra têm todas as terapias” salienta a mãe, destacando que es- tas escolas têm já currículos alternativos para os meninos especiais, apesar de nem sempre serem aplicados, de forma efectiva e trans- versal. “Aqui na Apercim (Associação para Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de Mafra) quiseram passá-la vários anos seguidos para que ela abandonasse o ensino mais rapidamente. Fui lá e disse que ela teria de cumprir o currículo, como todos os outros meninos. Salientei ainda que eu queria que ela fizesse a universidade básica (Escola Básica Hélia Correia), que existe também aqui”, asse- gura de sorriso sarcástico nos lábios. Há alguns anos, quando o neurologista de Rita afirmou que não havia nada a fazer, Deolinda escreveu! Escreveu muito… “Cheguei a mandar a informação dela para Cuba, para a Suécia, e as respostas que me deram levaram-me a pensar que o melhor era tentar viver a vida, da melhor forma possível, no meu país” afirma resignada, mas com firmeza, prosseguindo a estória com uma forte componente dis- criminatória: “O grave nestes casos é que não basta ter de lidar com a doença, como também ter de ultrapassar os obstáculos que os ou- tros teimam em nos colocar”. De uma coisa Deolinda tem a certeza. Não será o irmão de Rita quem terá de acompanhar a irmã até ao seu desígnio. “Eu, ao contrário da maioria das mães, não acho que tenha de ser ele a ficar com ela”, refere Deolinda, quase incrédula perante a atitude de outros pais de meninos com patologias raras. “A maioria dos pais desistem. Não os levam para a escola porque não querem enfrentar as outras pessoas”, lamenta. Mesmo perante tantas adver- sidades, Deolinda não é pessoa de se abater ou amedrontar e garante que todos os seus dias serão passados a encontrar as melhores alter- nativas, os melhores colégios, as melhores pessoas até, quem sabe, a cura para a sua filha. “Desde que existe a Raríssimas e graças à mãe do Marco eu passei a achar que não estava sozinha e que o futuro há-de ser diferente. Quando a ouço falar ligo para os meus amigos e digo, ouçam aquela senhora!” diz de sorriso aberto. Não, de facto Deolinda não está só, nem tão pouco a sua Rita. Existem milhares de estórias semelhantes, de dor, sofrimento e an- gústia, mas poucas poderão ter o vosso final feliz, o da vitória do amor sobre a doença! Agir é acreditar
  • 24. 44 Vidas Raras Vidas Raras 45 123#',45(( #5()'$#5'( 6"++" Capítulo V
  • 25. 46 Vidas Raras Vidas Raras 47 É num remoto vilarejo do Conselho de Santarém que vivem Francisco e Cristiano, dois irmãos gémeos, extremamente traquinas e com uma inteligência e poder de argumentação que nos deixaram, ab- solutamente, fascinados. À volta da mesa, toda a família se reúne para partilhar a estória destes dois meninos, uma estória contada a várias vozes, ou não fossem eles uma verdadeira Unidade Familiar. Afinal, o problema das doenças raras, quase nunca é de uma só pessoa. A família tem, na maioria destes casos, um papel absolutamente preponderante. Francisco não consegue esconder o seu nervosismo perante a imi- nência de, segundo a sua imaginação, ser levado por nós. Envergonha- do, esconde o rosto, belisca-se e contorce-se… É Cristiano, com um ar bonacheirão, que avança e nos conta que o irmão está um bocadi- nho aflito! Depois de lhe mostrarmos que estamos ali apenas para contar uma estória, o ambiente torna-se mais descontraído, es- pecialmente quando Cristiano nos confessa que adora comida e que o seu grande sonho é ser cozinheiro, desejo partilhado por Fran- cisco, como aliás tudo o resto! “O grande A Sagrada Família P'$3:"%:, 5(D'"%9"$3,
  • 26. 48 Vidas Raras Vidas Raras 49 mal foi não os terem separado na escola. Eles andaram sempre juntos e influenciaram-se um ao outro. Por exemplo, o Francisco não sabia, mas apoiava-se no irmão”, aponta a mãe perante o olhar reprovador e malandreco de Cristiano que depressa contrapõe essa afirmação com um displicente: “os outros meninos são mais piores que nós”. Anabela teve os gémeos aos 33 anos, mas o diagnóstico apenas sur- giria um ano depois do seu nascimento. “Ia todos os meses à pediatra, no hospital de Santarém, e comentava que achava estranho eles não chorarem, não acordarem para comer e, no geral, serem muito moles. Eu dizia que achava que havia qualquer coisa e a pediatra ralhava co- migo e respondia que parecia que eu não era mãe!” conta. Porém, esse fabuloso sexto sentido que assiste às mães não a enganava. Cada vez que choravam, o som que ecoava pela casa era quase um miar de gato, algo a que, Anabela, mãe de duas outras meninas, em nada achava semelhan- ças. As dúvidas que assolavam a alma desta mãe eram mais que muitas e o tempo não tardou a responder-lhe, da forma mais cruel possível. “Um dia, foi o meu marido foi com eles à consulta e foi atendido por uma outra médica. Depois de lhe explicar aquilo que eu já havia relatado ao longo dos meses, esta médica disse que eles deveriam ficar internados para observação. Foi neste internamento que vim a conhecer duas mé- dicas, que eram de Santa Maria mas que estavam a estagiar ali. Foi a minha salvação!”, explode Anabela recordando a proposta das jovens estagiárias que, movidas pelo espírito científico, quiseram que os géme- os fossem vistos por um professor, da área das doenças metabólicas. Os gémeos deram entrada no hospital de Santa Maria onde, após uma semana de internamento, análises genéticas, a eles e aos pais, anali- sadas por laboratórios do Porto e de Espanha, tiveram finalmente o seu diagnóstico. Eles eram, tal como Anabela suspeitava, diferentes, raros – Prader Willi. “Lembro-me que houve um médico que abriu um livro ondehaviaumhomemmuitoobesoequesómedissequeosmeusfilhos iam ficar assim – aquele homem tinha uns duzentos e tal quilos. Adian- tou ainda que era possível que eles viessem a ir ao caixote do lixo à pro- curadecomer.Eufiqueiempânico”afiançaAnabela.Nãoseriaparame- nos… Afinal a Prader Willi, raramente sendo fatal, poderá trazer graves complicações a estas crianças. Problemas como hiperactividade e ligeiro défice cognitivo são frequentemente associadas a esta síndrome rara. A comida é, aliás, a grande tentação destes dois meninos que, com 16 anos, pesam já mais de 90 quilos. Preocupados com a situação, tentámos, de uma forma divertida, explicar aos gémeos que deveriam ter cuidado com a alimentação para não terem problemas de saúde e para ficarem mais elegantes para a tal namorada que Cristiano já tem desenhada na sua cabeça: loira, alta e de olhos azuis! Por causa da pequena reprimenda, Francisco responde de forma peremptória que a sua comida preferida é a salada, rindo à socapa da pequena mentira que nos contou. Afinal, ele gosta mesmo é de sopa de pedra. “Agora temos de ir a Santa Maria a con- sultas do sono por causa da apneia. Eles terão de passar a ficar ligados a uma máquina durante a noite, por causa da respiração. O Francisco tem quase 90 quilos e o irmão pesa menos uns 5 ou 6 quilos”, conta a mãe que acusaosserviçosdenutriçãodeSantaMariadefaltadeassistência:“Tive- mos consultas de nutrição em Santa Maria, mas nunca fomos atendidos porqueamédicafaltavasempre.Háquaseumanoquenãotemosdietista”. Peranteanossaestupefacçãoenovainsistênciaparaqueosgémeosadop- tassem uma nova postura alimentar, Cristiano decide meter-se connosco e diz “tenho muita vontade de comer e gosto de tudo”. Quisemos saber a opinião do mais caladinho… o Francisco. Não durou muito a conversa uma vez que Cristiano, sentindo uma pontinha de ciúmes, revela a sua agitação rasgando aos bocadinhos a camisola de uma famosa marca de telemóveis. À repreensão da irmã, Cristiano retruca, “esta foi dada. Se es- tragararranja-seoutra”.Demãospostasàcabeça,amãelávaidizendoem tom de lamentação: “está a ver, é isto o dia inteiro. Eles brigam constante- mente um com o outro e ultimamente tem sido pior”. Na realidade, a ida- deemnadaajudaestesmeninosquelidamagora,alémdadoença,comas famosas hormonas da adolescência e nem as 40 mg de Ritalina parecem ajudar. O pai confessa que tem de ir novamente à médica para que aju- de os seus meninos a acalmar. “Eles fazem birras atrás de birras. Chega a uma altura em que já não aguento. Nós não conhecíamos ninguém com este problema… Assim que acordam começam aos gritos. Brigam por tudo e por nada, até por causa da roupa…” lamenta, em tom cansado, A Sagrada Família
  • 27. 50 Vidas Raras Vidas Raras 51 Anabelaqueemvirtudedeterestedia-a-dianomínimo,animado,játeve de pedir ajuda; anda a ser seguida, no hospital de Santa Maria, na área da psiquiatria. “Há mês e meio fui parar ao hospital por causa deles gritarem e arrancarem os cabelos. Enervei-me de tal modo que não consegui… Eles apanham o meu fraco!” esclarece com ar reprovador a mãe. Lidar com dois Prader Willi em simultâneo é, de facto, uma tarefa digna de Hércules. Porém, com o devido acompanhamento, estes meni- nos acabam por se tornar seres humanos autónomos, com capacidade para amar e para dar. “São simpáticos para toda a gente e têm um carinho muitograndepornós.Senãoestivermostodosjuntosachamquejánãoé uma família”, graceja a mãe. Na realidade, o conceito de família está nesta casa perfeitamente implantado e denota-se a união e objectivos comuns. “Eles têm descobertas muito engraçadas. Uma vez, fui a casa de um se- nhor que está separado e o Cristiano disse-me que eles não eram uma família porque faltava a mãe”, lembra Anabela. Completamente depen- dentesemocionalmentedamãe,aquemlevamporvezesaodesespero,os nossos gémeos garantem que não querem ir para lado nenhum. Apenas ficar com a sua família. “Eles não nos querem largar de modo nenhum. Não querem ir para colónias, nem escuteiros, nada. Só querem o pai e a mãe”, garante a mãe. Ao nosso lado, a irmã mais nova aproveita para dar mais sabor à nossa conversa e conta um episódio dos irmãos, para gran- de gáudio dos mesmos: “Durante a noite eles comeram o bolo. Quando chegoàcozinhametadedobolotinhaido.OFranciscodizquefoioCris- tiano e este diz que não o obrigou. Pu-los de castigo. Disse aos pais para os virem buscar”. Francisco sente-se agora um bocadinho incomodado. Afinal, a irmã estava a envergonhá-lo à frente de estranhos. E, como que querendodesviarasatenções,decideavançarparaatertúlia:“eutenhoum gatoqueéoTobiaseomanotemumagataqueéaPrincesaetemosoutro que era abandonado. Temos também três cães”. A seu lado, qual Dupont, Cristianoreplica“eugostodeandardebicicleta…mastenhomedo”!Agi- tados,osgémeosvoltamaenvolver-senumpequenodespique,comoque lembrando aos presentes quem eram os protagonistas do livro. “Adoram tomar banho. Mas brigam para saber quem toma primei- ro” refere Anabela, interrompida em sussurro por Cristiano que acusa o irmão de comer muito queijo! Os desagravos são contidos por umas pancadas na porta. Junta-se o nosso encontro, a prima, a segunda avó do Francisco e Cristiano, segundo palavras dos mesmos. “São uns me- ninos muito voluntariosos que adoram ajudar em tudo. Às vezes esse espírito não ajuda muito porque as tropelias são mais que muitas” su- gere, rindo, a avó. Nada que a nossa dupla dinâmica não esteja decidida a ultrapassar, agora que mudaram de escola e frequentam a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental, em Santarém. “Vou todos os dias de autocarro”, refere triunfante Cristiano, de 15 anos. Francisco revela-nos então que está na cozinha da escola a aprender a fazer pratos e o irmão está na lavandaria, adiantando ainda que, além da escola, gosta de jogar à bisca. Cristiano replica que adora o Tony Carrei- raeoMichaelequegostavamuitodeiraumconcertodeles.Nomeioda agitação, o bom senso da restante família apazigua a situação e recorda a harmoniafamiliar.Anabela,deolhosesperançadosnofuturodestesdois meninos traquinas, segreda-nos agora: “o meu maior sonho é eles serem capazesdefazeravidinhadelesesetornaremmaisindependentes”.Nem que tenha de os obrigar a andar na natação, duas vezes por semana e a fazer ginástica. Nem que lhes tenha de trancar a comida, ouvindo frases insistentes e chorosas como tu és uma gulosa que comes tudo e não me dás nada a mim. “Dói muito!”, garante-nos Anabela. No final, o sentimento de partilha de afectos e de estórias, parte connosco. Francisco e Cristia- no prometem-nos variar a sua dieta, de forma a estarem elegantérrimos para o dia em que receberem o nosso convite para ir a Lisboa. Suspeitamos que ainda iremos ouvir falar desta dupla enérgica de Chefs de Cuisine! A Sagrada Família
  • 28. 52 Vidas Raras Vidas Raras 53 ;%:+5',%5( <$95'$+( Capítulo VI
  • 29. 54 Vidas Raras Vidas Raras 55 Helenaéenfermeiradiplomadanaáreadareabilitação.Porironia do destino, a tese de mestrado veio bater-lhe à porta… O marido, João, com quem partilha sentimentos e espaços há 25 anos, foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença altamente incapacitante efatal.“TeveosprimeirossintomassériosemMarço,emboraocansaçojá osentiaháalgumtempo,mascomoéumsinalmuitodifuso,nãoassociá- mos. Em Junho, na praia, ele próprio percebeu que havia algo que não es- tava bem porque o dedo grande do pé começou a bater na areia. Eu tam- bémnoteiqueelejánãonosacompanhava”lembraHelena,olhandopara Joãoquevaidandooseuacordoatravésdosolhos.Apesardeseencontrar completamenteparalisado,Joãofazquestãonãosódeescutaratentamen- te a nossa conversa mas, mais tarde, acrescentar-lhe a sua própria experi- ência. Munido de um computador especial fez questão de, na primeira pessoa, nos dar as suas impressões. “Quando a doença começou não tinha conhecimento das limitações que esta- vam para vir” confessa João, através da escrita. Porém, após o reconhecimento de que algo não estaria bem, o casal visitou o médi- Amor Eterno Q,R,
  • 30. 56 Vidas Raras Vidas Raras 57 co de família que encaminhou, de imediato, João para a Neurologia, em Coimbra onde, após um breve internamento, se confirmou o temível diagnóstico. Recorrendo aos seus conhecimentos, Helena apercebe-se que no hospital Santa Maria se encontra a decorrer um ensaio clínico sobre a doença e, como lutadores que são, ela e João decidem que o me- lhor era tentarem uma oportunidade com o responsável pelo estudo – o professor Mamede de Carvalho. “Na altura estava a ser desenvolvido um ensaio clínico e ele acabou por o integrar, durante um ano. Conti- nua hoje a ser lá seguido. Os resultados não foram os que esperávamos porque não houve efeitos positivos”, afirma Helena. João aproveita para lembrar as suas incursões neste serviço hospitalar, alertando para a situ- ação dos técnicos de saúde face a doentes como ele. “Tenho sido muito bem acompanhado no hospital Santa Maria, apesar desta doença deixar uma sensação de impotência aos técnicos de saúde. Acho que devia ha- ver acompanhamento psicológico para doentes e cuidadores e formação aos técnicos de saúde para saberem comunicar com os doentes que não falam,(estiveinternadoebemsentiasdificuldadesdostécnicoscomuni- caremcomigo).Bastasaberutilizarumatabeladeletrasqueeramaisfácil para todos” alerta João, um homem que não se deixa vencer pela doença e convive com ela da forma mais harmoniosa que possam imaginar. Apesar do insucesso do ensaio clínico, este casal não se deixou aba- ter e lá foi arranjando formas para aprender a viver uma nova e dura re- alidade. Munidos de um amor único e incondicional e uma força avas- saladora o casal tenta viver intensamente a vida, apesar das limitações, cada vez maiores, de João. “Quando recebemos o diagnóstico cai-nos tudo em cima mas, depois temos de reformular o nosso projecto de vida” diz, pacífica, Helena. Afinal, para ela, que diariamente acompa- nha vários doentes com ELA, esta situação não é uma novidade. “Estou a trabalhar com pessoas com esta patologia. Estou a tentar construir uma teoria sobre a transição para dependência que estas pessoas vivem – as estratégias que desenvolvem para tentarem ser mais autónomos, embora a autonomia, no caso do João, acabe por ser mais a nível de decisão. Decidi fazer isto após o diagnóstico”, conta aquela a quem a doença de João faz parte de um ensinamento de vida. O carinho com que Helena ajeita, constantemente, João asseguran- do que nada lhe falta, rivaliza com a luta para acabar a tese de mestrado sobre ELA, que o marido faz questão de acompanhar e de incentivar à sua conclusão. Entre as aulas, a assistência ao grupo de ELA, os fi- lhos, um com 18 e outro com 13 e o marido, ela é a verdadeira Helena de Tróia. Compreende-se agora porque é que estas duas almas gémeas estão juntas há, precisamente, 25 anos. Também João é um guerreiro. Apesar de aprisionado pela doença, lá vai desenvolvendo estratégias diárias para se manter activo… como sempre foi. “Não mexo pratica- mente nada: não seguro a cabeça, o tronco, não controlo a saliva, tenho de ser alimentado por uma sonda, dormir com o ventilador e o mais difícil é não conseguir fazer a minha higiene pessoal e principalmente não falar. Apesar de tudo isto, tenho prazer em viver e nunca tive uma depressão. Faço projectos e planos, mesmo que sejam virtuais… é uma maneira de despistar a doença do capacete. Havia e há momentos de tristeza e revolta, mas sei que isso não ajuda nada. Talvez tenha vivido depressa de mais… e agora estou prisioneiro do meu próprio corpo”. A falta de mobilidade, apesar de ter levado o casal a repensar a vida, não os absteve de fazer aquilo que mais gostam e que, por isso, fazem questão de manter… até que a doença permita! “O João quer sempre viajar. A partir do momento em que soube da doença começou a que- rer fazer mais viagens e para mais longe. Porém, neste momento as via- gens longas já são mais difíceis… Mas vamos para mais pertinho: Cabo Verde, Tenerife, Palma de Maiorca, enfim. Este ano lembro-me de lhe ter dito que esta fase era difícil por causa da tese, mas ele disse que tí- nhamos de aproveitar, por isso…”, lá foram eles viajar… rumo ao so- nho! A estória contada por Helena não faz, de todo, juz à personalidade forte deste SENHOR que, através de uma voz roufenha projectada pelo seu computador, lá nos vai aconselhando a viver intensamente a vida porque temos muito tempo para descansar quando estivermos mortos! O sentido de humor parece, aliás, ser outra das grandes virtudes deste casal que, apesar da tragédia que se lhes afigura e que deixaria qualquer dosmortaisderastos,aparentemente,paraestecasalapaixonadíssimoé uma força motriz. “Uma coisa a que não me habituei é ter muito tempo Amor Eterno
  • 31. 58 Vidas Raras Vidas Raras 59 disponível e ter sempre pressa. Continuo a querer viajar e ir de férias, mesmo sabendo que não tenho o conforto do lar e só desfrute com o olhar, pois não tenho o direito de limitar mais a família, principalmente os filhos, já que a mulher, há 25 anos, jurou acompanhar-me sempre, ah,ah,ah” escreve, com ironia, João. Outrora membro da autarquia do Luso, o espírito empreendedor de João não foi quebrado pela doença e, como tal, servindo-se de um computador movido pelo toque da cabeça, lá vai fazendo projectos… muitos projectos. Curioso e arguto, João pensa em como dar um novo rumo a diversas situações, nomeadamente aquela que constata, sempre quequerpassearnasuabelíssimavila–oLuso.“Hápoucosacessospara cadeiras de rodas e muitos obstáculos, principalmente em lugares pú- blicos e muitas rampas que só dão para desportos radicais. Eu também sou culpado destas situações, porque fui autarca e essas situações pas- savam ao lado. É uma questão de educação de base, ainda vai demorar algumas gerações. Só quem está nesta situação dá realmente valor. Os políticos e autarcas haviam de passar só uma semana numa cadeira de rodas, para verem e sentirem as barreiras e dificuldades” escreve João. Os amigos são a grande rede de apoio do casal. “Temos um grupo de seis casais amigos com os quais viajamos todos os anos, um fim de semana. Este ano fomos para junto da serra do Açôr. O próprio grupo adaptou-se à situação do João e temos por isso optado por locais mais perto. Este núcleo não é preciso chamar. Eles pura e simplesmente vêem eseforprecisotrazemojantar.Nãoénecessárioquasepedir.Saberdisso dá-me uma grande segurança” salienta Helena olhando, enternecida, o seu amor de sempre. Perante a nossa dúvida sobre se ainda namoravam, no dia em que faziam justamente anos de casados, os olhos de Helena brilham quando exclama: “O namoro é feito de muitas coisas! O cuidar dele ou ele falar-me com os olhos faz parte da nossa relação. A cumpli- cidade continua a existir. Os olhos dele dizem tudo!”, concluí convicta. Para ela, a doença do marido é, antes de tudo, uma experiência enrique- cedora! Para nós também foi enriquecedor conhecer duas pessoas com esta grandeza! Por isso, quisemos fazer a devida homenagem ao casal e transcrever, algumas das palavras sábias que João nos dedicou. Olá, viva, sou o João Carlos Ferreira de Freitas, tenho quarenta e nove anos e nasci na Figueira da Foz. A vantagem, dentro deste infortúnio, é que dá tempo para nos irmos adaptando, pior deve ser quando se tem um acidente e se fica assim de repente. Parece irónico, mas cheguei a ter inveja dos paraplégicos, agora tenho inveja dos tetraplégicos. Ver o meu rosto a degradar-se não é agradável, mas isso pouco me importa, não é o embrulho que conta, mas sim o que está lá dentro. Não deixem que pequenos problemas limitem a vossa felicidade, pois a maior parte das vezes somos felizes e não sabemos. Agora tenho tempo para ver com outros olhos “pequenas” grandes coisas da natureza, como as plantas e os animais… apesar que há horas que custam a passar, no entanto os meses voam. Continuo apaixonado pela vida, mas sei que essa paixão não é correspondida. Fiz várias medicinas alternativas, os resultados só se fizeram sentir na carteira. Comunico com a ajuda de um computador adaptado. O rato do computador está junto à cabeça e com o toque de cabeça manipulo o computador. Não é justo não agradecer aos meus cuidadores, principalmente, à minha mulher e amiga que divide comigo esta situação. A vida não é como nós queremos e julgamos merecer, mas temos que nos adaptar e vivê-la conforme ela se nos apresenta. Estou focado em viver um dia de cada vez. O futuro é quando lá chegarmos. Acredito que o amanhã será melhor. Com o apoio da família e amigos, continuo a lutar pela vida. Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho. Bem hajam Amor Eterno
  • 32. 60 Vidas Raras Vidas Raras 61 123#',45( >"$%9?3":,( #5(<$4@5'9A( A;$9,3 Capítulo VII
  • 33. 62 Vidas Raras Vidas Raras 63 Desde sempre que ouvi uma frase, tantas vezes repetida em tom melancólico e que, na abordagem desta estória, me parece fazer todo o sentido. “Viver não custa. O que custa, é saber viver”! Efecti- vamente, esta expressão tantas vezes por todos nós repetida, poderia servir de máxima a Cláudia, uma mulher expedita e corajosa que, aos 33 anos, como que assinalando uma data tantas vezes fatídica para os maiores ícones mundiais, se viu a braços com uma doença raríssima, que todos teimavam em ignorar, e que lhe roubou parte da sua ale- gria. “Perdi a liberdade” refere Cláudia entre lágrimas, ainda comba- lida pelo recente diagnóstico. Os primeiros sintomas surgiram logo após o nascimento da sua primeira filha, como se de uma divina providência se tratasse. Afinal, aquele bebé tão desejado e um dos maiores sonhos de vida desta jovem mulher, marcou a vida da mamã de duas maneiras perfeita- mente antagónicas: a felicidade versus a dor. Na altura, as dores musculares e a falta de vontade para a vida assolavam o espírito de Cláudia que, perante a incapacidade de Reaprender a viver D+GC#"$
  • 34. 64 Vidas Raras Vidas Raras 65 reacção, pediu baixa após o parto, acabando por ficar, durante seis meses, em casa. Quando finalmente regressa ao trabalho, a situação deteriora-se. Assistente Administrativa na Segurança Social, o vo- lume de trabalho era imenso e Márcia, super organizada e aplicada, não conseguia ver o trabalho acumulado, não descansando enquanto não o concluiu. Este esforço veio a revelar-se ingrato já que permitira o avanço da doença e a degradação do estado de saúde de Cláudia. “Havia dias completamente insuportáveis. Inicialmente, julguei que era uma grande depressão porque uns dias eu estava bem e no dia se- guinte já não conseguia fazer nada”. Como continuava a perder peso, a nossa interlocutora vai de novo ao médico onde lhe são feitos diver- sos exames, todos com o mesmo resultado – nada. “Desconfiou-se da tiróide e o médico receitou-me magnésio, o que me aliviou. Entre- tanto, comecei a perder muito peso. Passei de um 48 para um 44 e o estranho é que eu comia normalmente. Sentia-me muito em baixo”, lamenta Cláudia. O ano de 2008 foi tenebroso para a jovem doente. O cansaço ex- tremo e o esgotamento psicológico que o mesmo acarretava levaram Cláudia ao limite. Apesar de, na época, tomar exaustivamente injec- ções de B12, nada parecia aliviá-la do seu suplício e as idas ao hospital eram uma constante. “No final de 2008, as pernas começaram a doer muito, já quase não conseguia conduzir. Vinha do trabalho, deitava- -me no sofá e não tinha reacção para absolutamente nada. Depois disto, o meu marido começou a levar-me ao trabalho. Quando ele não podia, o meu irmão substitui-a-o. Ou então vinha de autocarro e a minha mãe ia-me buscar e eu, com muito custo, arrastava-me até casa. Levava cerca de 15 minutos a subir as escadas” conta, amargu- rada Cláudia, num torpor que teimou sempre em contrariar, diaria- mente! Até Março, o corpo ainda respondeu mas, a partir dessa altu- ra, e perante a insistência de todos os que a rodeavam, Cláudia achou que estava na hora de ouvir a opinião de um psiquiatra, já que todos sugeriam ser uma depressão pós-parto o motivo das queixas da jo- vem mamã. “Na altura, a psiquiatra colocou-me em tratamento mas, desconfiava que havia mais qualquer coisa porque eu a andar parecia um autêntico boneco. Eu não dobrava as pernas! Tinha uma fraqueza como se fosse desmaiar…” argumenta. Foi justamente esse sintoma mais anómalo que levou esta profissional a indicar o caso a um colega de Neurologia que, pura e simplesmente, o descartou corroborando o diagnóstico anterior da colega – depressão. Enquanto a verdadeira questão não é identificada, a situação de Cláudia agrava-se e ela deixa de andar. “Um dia, sai do quarto, e até chegar à casa de banho caí, porque deixei de ter força nas pernas. Fi- cámos todos em pânico. Com um sacrifício enorme lá me consegui levantar mas, no dia seguinte, ao levantar-me da cama, a cena voltou a repetir-se. Passei a dormir no sofá, no cimo da casa, porque o meu quarto tenho de descer as escadas e eu não tinha forças”. O medo de voltar a cair era muito e as dores lancinantes. Deixou de querer sair, ir ao médico, comer e, até fazer a sua higiene diária. “Tinha dores enor- mes no corpo todo”, exclama. Perante a relutância de Cláudia em acei- tar que estas dores imensas se deviam a uma simples depressão volta ao médico. Ressonâncias e potenciais evocados (ambos na área neu- rológica) não bastaram para chegar ao diagnóstico e, só depois de um electromiagrama, (exame utilizado no diagnóstico de doenças neuro- musculares) surgiu a primeira resposta concreta: Miopatia. Contudo,” o médico achava que não podia ser só isso. Mandou-me fazer análises específicas ao laboratório. O resultado demorou imenso porque tinha de vir de Espanha (estive um mês e tal à espera) e, quando chegou, lá estava: síndrome Misténico de Eaton Lambert” sustenta Cláudia. Uma doença raríssima, em particular em jovens, e ainda mais em mulheres. Os jackpots da vida podem proporcionar-nos este prémios envenenados porém, Cláudia continua em jogo e, como tal, tem de seguir com determinação em busca do seu grande prémio – voltar a ter qualidade de vida. O neurologista que agora a acompanha encami- nha-a para um hospital público, afastando desde logo os custos da te- rapêutica que ele mesmo iria sugerir. Capuchos seria o escolhido, com a devida indicação de máxima urgência na aplicação da terapêutica. Havia apenas um senão – tratava-se de um medicamento órfão, ainda não disponível em Portugal. “Era necessária uma autorização especial, Reaprender a viver
  • 35. 66 Vidas Raras Vidas Raras 67 que eu continuo à espera – há um ano e tal” confidencia-nos Cláu- dia. Entre orçamentos e burocracias, a jovem aguarda, expectante, o medicamento milagroso mas, enquanto tal não acontece, sujeitasse à terapêutica geral aplicada às miastenias: “Faço o Imuran e o Mestinon. Todos os meses faço imunoglobina, 15 frascos, no hospital de dia dos Capuchos, no serviço de neurologia, que é fantástico” exclama. Cláudia continua a aguardar pelo seu órfão e, apesar da sua ac- tual medicação apenas lhe atenuar o problema, ela não desiste em recuperar a vida. “Durante as duas primeiras semanas a coisa corre bem, a partir daí começo a ter desequilíbrios constantes, perda da força, enfim fico de rastos”. Antevendo o seu filme, Cláudia arranja verdadeiras estratégias, qual Roberto Benigni em A Vida é Bela, para que, pelo menos enquanto não tiver dores, voltar a ser independente. “Tento organizar a minha vida de modo a fazer tudo o que preciso nessas semanas”. E assim vai tendo um pouco da sua vida de volta. Das compras, agora acompanhada pelo marido, à esteticista onde in- siste em ir todos os meses, passando pelas verdadeiras estratégias de limpeza, tudo na vida desta jovem é agora suado, muito suado, mas sempre atingindo, no final, o doce sabor da vitória: “tudo que faço é uma conquista. Este ano decidi fazer a festa de anos da Madalena. Sentada, fiz a ementa toda! Estava já no último dia de tratamento e, apesar de ter feito tudo a muito custo, consegui!” afirma em tom de glória aquela que nos garante ser muito exigente consigo própria e ter um medo terrível da dependência que sente, um dia, poderá ser total. Por isso, evita voltar ao trabalho ou tentar realizar tarefas que envol- vam a ajuda de terceiros. Um dos seus grandes feitos, uma habilidade recentemente reconquistada, foi a condução. “Já comecei a conduzir. É uma vitória. É uma sensação de liberdade!”, brada Cláudia. Recuperar forças foi o que motivou, recentemente, Cláudia a pas- sar uns dias de férias na praia com a filha e o marido. Apesar de não ter nadado como uma sereia, como seria a sua ambição, em virtude de o tratamento estar praticamente no final, com a ajuda de todos Cláudia ganhou energias e até já se sente com forças para dar alento a outros… “Costumo equilibrar a minha situação, lembrando-me que existem situações muito piores e mais graves. O mês passado, quando fui ao tratamento, estive 15 dias com um grupo muito bom e estava lá uma senhora com uma doença neuromuscular, com 25 anos, que estava paralisada. Aí eu disse-lhe que há um ano atrás eu também não anda- va e hoje, felizmente, já consigo”, lembra vitoriosa. A conversa é inter- rompida por Madalena que, querendo mostrar a coragem da mamã, nos vai buscar todos os trabalhinhos que ela já fez para a escola. A seu lado, a avó, uma mulher marcada pela doença da filha e do marido, la- menta a sua neta ter de passar por estas privações que a levaram, inclu- sivamente, a ser acompanhada por uma psicóloga na escola. Também para esta pequena grande mulher os sofrimentos e pequenas conquis- tas são vitórias: “Quando faço os tratamentos a Madalena pergunta: vais fazer isso que é para pegares-me ao colo em pé? Não tenhas medo mãe que eu estou aqui. Quando vou à escola é uma festa. Ela vive intensamente es- tas questões”, recorda a mãe orgulhosa do seu maior projecto de vida. Tanto, que neste momento a ideia de ter mais uma criança enche-a de esperança no futuro: “o meu maior sonho era ter outro filho!”, garan- te agora lembrando que, apesar da doença, não se irá deixar derrotar. Para isso, faz do seu dia-a-dia um conjunto de sucessivos projectos, com pequenas manhas reinventadas, de forma a recuperar tudo aquilo que já teve – mobilidade, alegria e vontade de viver. “Todos os meses a gente aprende com os outros doentes do hospital. Esse elo de amiza- de que se cria é muito importante. Não se consegue fazer tudo, faz-se mais devagar. Acima de tudo, é reaprender a viver” conclui. Reaprender a viver
  • 36. 68 Vidas Raras Vidas Raras 69 ( B539$9,A( A'C@',A( A/$+"#,A( A+C"%"$3$ Capítulo VIII
  • 37. 70 Vidas Raras Vidas Raras 71 É numa pequenina casinha da zona ribeirinha que testemunhá- mos a vida difícil, cruel, mas cheia de amor de Pedro e Mariana, dois irmãos bafejados pela mesma raridade. A seu lado está, desde sempre, a mãe, uma mulher a quem a vida sempre fez caretas mas que, como que movida por uma força divina, se reergue das cinzas, qual Fénix, e segue em frente – um dia de cada vez… “O meu único objectivo de vida, neste momento, é tentar levar o barco em frente e fazer tudo o que é preciso ser feito!” confessa Maria José, com um ar cansado e mei- go. A seu lado está, no exíguo espaço a que, gentilmente, chamaremos cozinha, a auxiliar da Santa Casa da Misericórdia, entidade solicitada para a ajudar na árdua tarefa de cuidar de duas crianças doentes, mui- to doentes, que têm de ser alimentadas através de sondas e para quem a vida corre… serenamente. Anos de convivência com a situação de dependência do marido e depois de uma filha, aparentemente, sem qualquer tipo de problemas, nada podia preparar Maria José para a espécie de calvário que iria experien- ciar. “Não tive qualquer problema com a Sininho e Peter Pan >$'"$3$(( 5()5#',
  • 38. 72 Vidas Raras Vidas Raras 73 Mariana durante a gravidez e o parto foi normal. Tinha 25 anos. Nada indiciava que ela tivesse problemas… começou a andar aos quatro meses…” reflecte Maria José. Porém, já no infantário, aos quatro anos, os problemas da pequena Mariana começavam a evidenciar-se e a mãe é então chamada à atenção para o facto. “A Mariana andou em estudo durante anos. Primeiro fomos ao médico de família, este passou-a para o psicólogo e este achava que havia ali alguma coisa… Andei também durante anos na medicina pediátrica do hospital! Fez testes a tudo e nada acusava nada. Chegou a fazer os cariótipos e era tudo inconclusivo” observa. Aos sete anos, Mariana tem a primeira convulsão epiléptica. Face ao inexplicável sintoma, a pediatra da pequenita fada decide transfe- ri-la para os colegas de Neurologia, onde esteve a ser acompanhada durante algum tempo. “Em 2001 a doença foi diagnosticada a um tio avô da linha pa- terna. Uma cunhada falou-me disso e eu, desconfiada, pedi para me dizerem que doença era. Apresentei-me na Estefânia e falei sobre a doença à médica que me perguntou que raio de coisa era essa. Ela desconhecia…” diz estupefacta aquela que viria a ser essencial na ob- tenção do diagnóstico correcto da sua filha. Afinal, aquela que não possuía conhecimentos científicos, mas que tinha um sexto sentido apuradíssimo deu à médica a chave do diagnóstico. “A médica pediu então análises genéticas ao Porto e confirmou-se o diagnóstico. Mo- mentaneamente, senti um alívio… Pelo menos já sei o que eles têm. Porém, depois, só pensei – e agora? O que é que isto representa? Nem os próprios médicos sabiam” ostenta Maria José. Fala-nos agora no plural, referindo-se ao seu benjamim, vítima da mesma patologia. Pedro é o mais pequenito. Apesar de não ter apresentado inicial- mente crises fortes, mostrava alguns sintomas da doença que viriam a ser confirmados após o diagnóstico da irmã. Ainda assim, o fac- to é que Pedro desde sempre manifestara sintomas, não entendidos como tal pelos médicos, mas que na realidade correspondiam a uma raríssimas patologia denominada Atrofia-Dentato-Rubro-Pálido- -Luisiana. “Fui chamada a Santa Maria onde um grupo de médicos me explicou então o que vinha a seguir. Ai foi tudo abaixo!” recorda, desesperada Maria José. Sentindo que os seus filhos precisariam desesperadamente de si e de toda a sua atenção, Maria José decide dar um novo rumo à sua vida e parte com os filhos… para um novo começo! “O diagnóstico dos meninos apenas apressou aquilo que não estava bem, já há bas- tante tempo! A sensação que eu tinha é que só eu é que percebia o problema… Cheguei a ser acusada pela família de ser louca! Agarrei nos meus filhos e abandonei o meu marido e a casa… Mudei-me para outro lugar, para tentar começar tudo de novo, sozinha com eles! Tive, na altura, a ajuda da Santa Casa que me ajudou a pagar a renda”. Po- rém, para uma mulher sozinha, dois filhos nos braços, duas doenças raríssimas, não foi nada fácil acreditar… Acreditar que seria capaz! “Tive de renascer das cinzas. Tive uma depressão gravíssima, a família abandonou-me… é para esquecer! Estão de costas voltadas… Há muita mágoa, muita coisa que se tenta enterrar bem fundo mas que, de vez em quando, vem ao de cimo! Perdi imenso peso, não dor- mia…” relembra Maria José. Porém, contra tudo e contra todos, esta grande mulher conseguiu o seu objectivo – que os filhos tivessem sempre o que de melhor lhes pudesse proporcionar: “eles têm esta- do no externato Alfredo Binet, mas têm de o abandonar porque já não têm condições para eles. Neste momento, estão matriculados no Colégio das Descobertas, que já tem outras competências. Porém, no caso da Mariana, como já não tem idade escolar, terá de pagar 420 eu- ros por mês, não sei muito bem o que vou fazer” afirma, lamentando o facto de os pais destas crianças estarem completamente desprotegi- dos. Tendo, na sua grande maioria, de abandonar os seus empregos para cuidar destes meninos, estes pais heróis pouco podem recorrer à segurança do Estado. Da medicação, não totalmente comparticipada, aos colégios ou ao facto de não trabalharem para cuidar deles e, por isso, nada receberem, a verdade é que por cá, os pais destes meninos nem sempre recebem a atenção desejada… Na pequenina sala ao lado, Pedro e Mariana, lado a lado, assistem ao famoso Faísca McQueen, um pequenino carro animado que faz as Sininho e Peter Pan
  • 39. 74 Vidas Raras Vidas Raras 75 delícias de Pedro e provoca alguma agitação em Mariana. Maria José, olha agora com orgulho as suas alegrias, o seu Peter Pan, sobranceiro àquela a quem, carinhosamente, achámos por bem e por respeito ao original de James Matthew Barrie apelidar de Sininho. “O Pedro ado- ra o Faísca McQueen e a Mariana ver filmes, especialmente aqueles que têm casais aos beijinhos. Delira com a Anatomia de Grae!” diz, gracejando, Maria José. Afinal, eles são a razão da sua existência, o seu sopro de vida! Tanto que, na semana anterior à nossa presença, esta mãe coragem ofereceu a Pedro o único presente que lhe era possível proporcionar mas que, seguramente, faria o filho radiante – uma fes- ta de aniversário. “Apesar de já não dizerem nada, vocalizam apenas, mas entendem tudo o que dizemos” salienta Maria José. “Neste momento, neste país sobrevive-se”, dispara Maria José. Assim é… esta mamã é realmente uma sobrevivente, mais uma, do imenso role de mães-coragem que asseguram, da forma mais eficaz e efectiva, que os seus filhos terão tudo aquilo a que elas possam ter acesso. “E vou conseguindo… O agravamento da doença deles impe- de-me de trabalhar a tempo inteiro. Neste momento faço apoio domi- ciliário… Esta doença é imprevisível porque eles estão estabilizados durante um tempo e, de repente, ficam piores” comenta Maria José como que a recordar a necessidade, urgente, de ajudar os cuidadores, não só a nível psicológico mas, muito principalmente, a nível efectivo. O tom mais grave que a saborosa conversa estava a tomar foi, de súbito, quase providencialmente, interrompido. A Mariana queria juntar-se à estória. Afinal, ela e o seu bravo irmão, companheiro de tantas aventuras, eram os verdadeiros heróis. Eles são o motivo de ali estarmos, a partilhar lágrimas, abraços e forças. Na pequenina sala, Mariana está em êxtase perante a objectiva da nossa fotógrafa, curio- samente, também ela uma Mariana. Sentada, enroladinha a Pedro, está a nossa pequena fada. Para ela, que conheceu a alegria de correr, embora seja uma recordação distante, deve ser realmente divertido ser o rosto das nossas imagens. “A Mariana é muito sociável e tem um mau feito tremendo. É muito teimosa e muito senhora de si. Sempre teve uma personalidade muito vincada. O Pedro é o oposto. É o meu Peter Pan. Uma criança extremamente meiga. É o meu anjinho” afir- ma orgulhosamente Maria José enquanto olha, embevecida, os seus grandes orgulhos. Para esta mãe o dia de hoje é que conta e, cada dia passado com a Sininho e o Peter Pan é, naturalmente, mais uma vitória. “Eles con- tinuam a ser acompanhados na Estefânia…” revela triunfante Maria José, apesar de não esquecer nunca a doença. Até porque ela teima em aparecer. Existe, pelo menos, mais um caso na família: “O pai dos meninos teve sintomas a partir dos 40 anos. Como teve um passado de toxicodependência, ele ligou sempre os primeiros sintomas a esse facto e nunca à doença”. Porém, aquela que mais dor lhe causa é a que, por força das circunstâncias, se quis associar à dúvida. A filha mais velha de Maria José, há muito dela afastada em virtude da separação, pode sofrer do mesmo problema… Hoje, com 23 anos, ela não apre- senta quaisquer sintomas da doença, do foro genético. “Ela na altura fez testes mas nunca quis saber o resultado” confessa a mãe, ainda expectante. Maria José prefere acreditar que ainda é possível que, nos meandros de uma vida tão difícil e confusa, ela ainda possa vir a ser feliz, junto dos seus filhos. “Limito-me a viver o dia a dia, da melhor forma que conseguir, para assegurar o bem estar dos meus filhos, en- quanto cá estiverem”. É assim que falam os melhores pais do mundo. Aqueles que são lu- tadores, vitoriosos, gentis, carinhosos e, acima de tudo, perseverantes! Essa arma, ninguém lhes pode tirar! Sininho e Peter Pan
  • 40. 76 Vidas Raras Vidas Raras 77 123#',45 B"85,'-5 Capítulo IX
  • 41. 78 Vidas Raras Vidas Raras 79 Com apenas 6 anos de idade, Matilde é já uma menina de sucesso! Não em termos da fama ou glamour mas tão somente em forma de per- severança e espírito lutador. É nos cuidados intensivos da urgência pedi- átrica do hospital de São João, no Porto, que a vamos encontrar, envolta nos braços do Hipnos, o deus do sono que, num embalo forçado, tenta ajudar os médicos a recuperar a saúde desta pequenita guerreira. “A Ma- tilde está internada por causa de crises convulsivas” esclarece-nos a mãe, Gabriela, narradora desta saga heróica. Em Novembro do ano passado, Matildeteveasuaprimeiracriseconvulsiva,queduroucercade30minu- tos. Esporádicas no início, as crises passam a ser diárias, com intervalos de segundos. “Por causa dessas crises ela esteve internada em Fevereiro, em Maio em Junho e voltou em Agosto”, refere Gabriela adiantando que, pouco antes do último internamento, a parte respiratóriadeMatildeficoutambémafectada o que aumentava o número de crises e estas, por sua vez, não lhe permitiam o fôlego da vida. No dia 20 de Novembro, após um exame noserviçodeotorrinodestehospital,osmédi- cos constataram que a pequena Matilde tinha A bela adormecida >$9"+#5
  • 42. 80 Vidas Raras Vidas Raras 81 umedemamuitograndee,porisso,nãoconseguiarespirar.Apesardeser oseudiadeaniversário,Matildeéobrigadaafestejarjuntodaequipamé- dica, da pior maneira possível: “tentaram pôr-lhe uma máscara, mas ela fazia paragens respiratórias cada vez que o faziam e, apesar de terem sido incansáveis, não conseguiram! Tentaram então colocá-la a dormir para descansar um bocadinho. De manhã acordou, ainda se riu para mim, dei-lhe a minha mão e ela puxou-ma, com tanta força e… apagou. Daí foi para os cuidados intensivos, foi entubada e induziram-lhe o coma”. Aquelaqueeraparaserumasoluçãotemporáriaacabou,eventualmente, por se prolongar. Após cinco dias de descanso forçado para que as crises passassem e as ondas cerebrais voltassem à sua actividade regular, os mé- dicos apercebem-se que o seu esforço estava a ser em vão. “Quando lhe fazemoelectroencefalograma,verificamqueocérebroestavaemdescar- gaconstante.Elanãoestavaadescansarnadaetiveramquelheaumentar a escala do coma (Glasgow)”, recorda a mãe entristecida. DiGeorge é a terrível e rara síndrome, caracterizada por uma delec- ção de uma parte do cromossoma 22, e que levou Matilde a esta situação tão ingrata. A terceira filha de Gabriela, nascida de uma gravidez tar- dia, nunca demonstrou a sua inconstância cerebral até às 38 semanas de gravidez: “achei que estava tudo atabalhoado na minha barriga e pedi à médica para ma tirar. Parecia que andava aos trambolhões na barriga. Deduzo agora que poderia ser os espasmos que fez quando nasceu, em que se esticava toda, e que provavelmente na barriga também o faria e que como não tinha espaço para se esticar me magoava” lembra agora a informada mãe. Apesar do baixo peso e da fenda palatina, os pediatras desvalorizaramasituaçãodaMatildeeafiançaramàmãequetudoseiria resumir a uma pequena cirurgia. Porém, Gabriela mostrava-se inquieta: “dentro da incubadora, ela não reagia bem ao toque. Não lhe podíamos tocar que ela ficava muito vermelha e dura… fazia um arco! Acho que os médicos sabiam o que se estava a passar, mas não havia exames que comprovassem e eles então não dizem nada”, confessa. Aos seis meses de idade, Matilde tem a primeira crise convulsiva e, nas urgências do hospital do Porto, fazem um despiste para meningi- te cujos resultados vêm negativos. Não sabendo a origem daquela crise, os médicos encaminham Matilde para a consulta de desenvolvimento e aqui, após a realização de uma ressonância magnética, os profissionais de saúde confirma uma polimicrogiria bilateral. “Eles acharam logo que ti- nha que ver com uma síndrome qualquer, mas como não sabiam o que era,integraram-nanasparalisiascerebrais”,explicaamãe.Porémaexperi- ência e intuição de uma mãe de dois filhos, não deixariam Gabriela satis- feita com aquela situação. Consulta após consulta, Gabriela insistia para a raridadedamenina,exigindoaosmédicosdiversosestudosdecariótipos, àprocuradeumarespostaparaaaparenteagoniadasuamenina.“Notava que a Matilde era diferente porque ela não se mexia praticamente, não segurava a chupeta, não agarrava nada. A gente deitava-a e conforme a deixávamos,alificava.Haviaumgestoqueelafaziacomalíngua,logoque nasceu, que eu chorava sempre que isso acontecia. Não eram os pequeni- nosdefeitoscomoaorelhinha,queagoranemsenota,osdedinhosdeum dospéstodosencavalitados,osdamãoencolhidos…não!Nadadissome preocupava! Era aquele gesto da língua que me levou logo a pensar em algum atraso mental, algo mais profundo. Eu tinha razão, infelizmente!”. Apesar de não conseguir expressar os seus sentimentos através do discurso oral, Matilde não deixa de fazer valer os seus interesses recor- rendo aos seus sentidos. “O olhar da Matilde diz tudo! Consigo per- ceber o que ela quer, transmite se está ou não contente. É uma criança muito expressiva. Ela não fala, mas comunica tudo com os olhinhos, o sorriso, diz que não com a cabeça. Ela percebe muita coisa…”, afiança a mãe que se sentiu tantas vezes ressentida por os médicos não acredita- rem naquilo que ela experiencia, diariamente. “Os pediatras acham que as mães julgam que os seus filhos percebem mais do que aquilo que na realidade percebem. Mas os pais é que os entendem!”, garante Gabriela com um sorriso de esperança. Foi justamente esta motivação, o acreditar na expressão terna da sua filha, que encorajou Gabriela a não se deixar abater nem vencer por todas as adversidades que viria a experimentar. Apostada em recuperar a filha daquela síndrome, tão misteriosa que os médicos pareciam não conseguir descobrir o nome, Gabriela coloca a filha em tudo o que são consultas e sessões terapêuticas. “Andei no Centro RarÍSSIMO da Maia A bela adormecida
  • 43. 82 Vidas Raras Vidas Raras 83 com ela e foi o período em que notei mais melhorias. Fiz hipoterapia mas tive de deixar porque era ao ar livre e não dava pela parte respira- tória. Fiz cinesoterapia no particular mas tive de desistir”. Este abster em nada teve a ver com a falta de motivação de Gabriela, mas sim com a insustentável situação financeira que a mesma acarreta- va. “As ajudas são uma desgraça. O meu marido ganha um bocadinho mais que o salário mínimo. Não existem ajudas para nada. O subsídio de deficiência é de 55 euros – parece que estão a brincar! É fazer pouco das famílias! Ela tem 95% de deficiência. A ajuda à terceira pessoa é 80 euros”, afirma indignada. Decididas a não se deixarem vencer por este tipo de contrariedades Matilde e a mãe criam uma associação, não só para fazer valer a sua voz, mas a de tantos outros meninos, na mesma situação. “Se não formos à luta, não temos nada para os nosso filhos”, garante Gabriela. Foi justamente essa luta que a levou a conseguir um generoso donativo por parte de uma empresa que lhe ofereceu o pri- meiro carro de transporte, facilitando as deslocações de Matilde, além de uma cadeira de banho e uma cadeira para o infantário. Apesar dos recorrentes pedidos efectuados à Segurança Social e à DREN de apoio à sua menina, a resposta foi sempre peremptória – não existiam verbas! Os apoios técnicos são, aliás, uma das muitas dores de cabeça desta mãe e que dificultam constantemente o desenvolvimento da pequena Matilde. “Ainda não tive uma ajuda técnica que fosse até hoje. Prescreve- ram-me um carro para a Matilde, porque a médica disse-me que a próxi- ma vez que eu aparecesse na consulta com o carro antigo, não consultava a menina porque ela estava a ficar torta. Ela tem razão, só que eu não te- nho dinheiro para comprar um!”, atira Gabriela. Afinal, os preços dispo- níveis no mercado não se compadecem com o magro salário que o mari- do de Gaby traz para casa e que tem de sustentar a família inteira. “Tudo o que é apoios técnicos tem uns preços que eu acho que são um exagero. É ganhar dinheiro à custa da desgraça dos outros. Não se justifica uma cadeira de banho custar para cima de 500 euros, a cadeira para o carro três mil e tal euros. Uma cadeira eléctrica custa 15 500 euros – um carro é mais barato e é para lazer e leva cinco pessoas. Estes meninos não têm direito a deslocar-se como os outros?”, questiona Gabriela indignada. Apesar de só em Janeiro de 2011 ter sabido, finalmente, o nome da patologia da sua filha, através de um estudo genético aprofundado, Ga- briela vê nos profissionais de saúde e terapeutas os seus principais alia- dosegrandesamigos.FoiaterapeutadeMatilde,atravésdeumcatálogo da Toys“R”Us, que arranjou uma solução mais económica para a meni- na se deslocar de carro com a mãe. E médicas, muito especiais, deram alento e esperança a esta mãe. “Tenho apanhado gente muito boa no hospital de S. João. Todos os que lidam connosco têm sido maravilho- sos. Sinto que são meus amigos e nos apoiam. Existe uma médica aqui nos cuidados intensivos que me transmite uma segurança tão grande e que esteve a lutar pela minha filha até onde foi preciso! E o turno dela já tinha acabado! Ela chorou comigo!” recorda Gabriela, visivelmente agradecida. Também a identificação de outra destas profissionais com a situação de Matilde deixou Gabriela menos desamparada. “Houve um dia em que eu me sentia mais em baixo e a médica passou e eu disse- -lhe – sabe, só nós os pais é nos entendemos; ao que ela respondeu – não é bem assim… eu também tenho um menino como a sua filha. Parece até que é impossível um médico ter um filho assim…”, exclama Gabriela. Efectivamente, a doença é uma situação à qual todos os seres hu- manos estão expostos. E os médicos não são diferentes. Ainda assim, apesar da situação única de Matilde, que ao escrevermos estas palavras ainda continua o seu sono de reparação, em virtude de ter contraído um vírus hospitalar que obrigou, de novo, à indução do coma, todos temos fé na grande vitória de Matilde. “Já não me importa nada, só quero é que esta rapariguinha fique bem! Temos de lutar mesmo dan- do a cara à vergonha, fazendo feirinhas, o que for preciso! Vale sempre a pena. Aprendemos muito com estas crianças!”, conclui Gabriela. A bela adormecida
  • 44. 84 Vidas Raras Vidas Raras 85 123#',45 #5(&599 Capítulo X
  • 45. 86 Vidas Raras Vidas Raras 87 Olhar doce, simpatia e curiosidade são alguns dos muitos atri- butos da pequena Maria, uma menina especial que assume a música como forma de expressão. Aos nove anos de idade ela é já uma devota dos sons, quem sabe fruto da sua incapacidade de se exprimir de forma pedagogicamente correcta. Porém, a ausência do verbo é perfeitamente dispensável na sua narrativa já que o seu rosto expressionista comunica na perfeição cada momento da sua vida, cada emoção que partilha com a sua família, também ela muito peculiar e única. Irmã da Margarida, actualmente com 13 anos, Maria é a segunda filha de um casal da zona Norte e que veio ao mundo na sequência de uma gravidez perfeita, com um desenvolvimento intra-uterino normal e um parto, também ele normal, apesar de se tratar de uma cesariana. Até ao ano de idade, Maria desenvolveu-se tal qual a irmã, deixando os jovens pais felizes e a acreditar no futuro de êxito de ambas. Po- rém, a partir dessa idade, a bela Maria viria a apresentar algumas particularidades que des- pertariam, nos já experientes pais, algumas dúvidas. “Começámos a achar que ela tinha O triunfo do amor >$'"$