Este documento analisa as obras e reações de Augusto Boal e Caetano Veloso à promessa não cumprida do nacional-desenvolvimentismo no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. A pesquisa sugere que, apesar de divergências sobre a resistência à ditadura, ambos os artistas convergiam em torno do tema da brasilidade e da modernização do país. O espetáculo "Arena canta Bahia" ilustra essa análise ao abordar a imigração nordestina de forma crítica ao regime militar.
1. Reações diversas à promessa
nacional-desenvolvimentista não cumprida:
Augusto Boal e Caetano Veloso
Mariana Figueiró Klafke
(Bolsista de Iniciação Científica Voluntária/UFRGS)
Orientador: Prof. Dr. Homero José Vizeu Araújo
PROJETO: Literatura e nacional-desenvolvimentismo: promessas de integração social e tensão formal na literatura
2. Augusto Boal e Caetano Veloso, dois dos mais
visados artistas dos decênios de 1960 e 1970 no
Brasil, respectivamente no teatro e na música, são
freqüentemente apontados pela fortuna crítica
disponível como antagônicos, aparentemente
priorizando-se as posições divergentes tomadas por
ambos os artistas em relação à ditadura militar e as
referências mútuas decorrentes deste fato.
3. Através da análise das memórias de ambos os
artistas e de obras de Marcelo Ridenti, Marilena
Chauí e Roberto Schwarz que indicam a possibilidade
de um sistema cultural conciso e interligado no
período democrático, esta pesquisa sugere rever o
cenário cultural de 1960 e 1970 sob outro prisma,
anterior e mais amplo, que não o da resistência à
ditadura militar: o prisma da promessa nacional-
desenvolvimentista não cumprida.
4. Marcelo Ridenti aponta um “dualismo” predominante nos
debates sobre sociedade brasileira nos anos de 1950 e 1960, que
pressupunha a existência de dois Brasis: um moderno e um
arcaico. Esse ideário é visível tanto nos meios intelectuais e
artísticos de esquerda quanto no Tropicalismo. Ridenti também
argumenta que cabe à produção artística e intelectual de 1960 e
1970 o título de romântico-revolucionária; acrescentando a isso
as reflexões de Raymond Williams sobre as “estruturas de
sentimento”, Ridenti propõe que haveria na produção cultural
brasileira dessa época uma espécie de estrutura de sentimento
de brasilidade envolta de romantismo revolucionário, proveniente
não da luta contra a ditadura, mas sim da experiência
democrática de 1946-1964. Tanto o Tropicalismo como o teatro
novo, por exemplo, aparentemente tão diversos, fariam parte
desse mesmo ideário de brasilidade.
5. Marilena Chauí afirma que nos anos 50 e 60 havia
uma tentativa de desmontar o ideário verdeamarelo. O
verdeamarelismo foi uma ideologia estabelecida pela
elite brasileira enquanto celebração do país como
sendo essencialmente agrário e rico em natureza, o
que se sustenta em uma tradição advinda do sistema
colonial na qual o Brasil figura como colônia de
exploração com posto definido no sistema do
capitalismo mercantil – fonte de matéria prima e
trabalho barato. Haveria no período supracitado forte
tendência a renegar o verdeamarelismo através da
ação cultural das esquerdas, calcada na perspectiva de
“identidade nacional”. Chauí inclui nessa perspectiva de
arte em prol da “identidade nacional” tanto os CPCs, a
música de protesto e o teatro novo como o
Tropicalismo e o Cinema Novo.
6. Roberto Schwarz, no ensaio “Cultura e Política,
1964-1969”, propõe que o movimento cultural dos
anos em questão, o que inclui o estopim do
Tropicalismo de Caetano e o desenvolvimento do
Teatro de Arena de Boal, “é uma espécie de floração
tardia, o fruto de dois decênios de democratização,
que veio amadurecer agora, em plena ditadura,
quando as suas condições sociais já não existem”
(SCHWARZ, 1978, p.89).
7. ARENA CANTA BAHIA
O espetáculo “Arena canta Bahia” (1965) e as histórias
da sua montagem, revistas através das memórias de
Caetano Veloso (“Verdade Tropical”, 1997) e de Augusto
Boal (“Hamlet e o filho do padeiro”, 2000), são
sintomáticas para essa revisão do cenário cultural, pois a
peça tem caráter duplo: trabalha um tema ligado à
desilusão com as promessas de integração social (a
imigração mal-sucedida do nordeste para o sudeste do
país) de uma forma contestadora em relação ao regime
militar em vigência.
8. “Essas discrepâncias com o gosto e as posições de Boal
eram um fator a mais a trazer infelicidade à minha estada em
São Paulo. Eu não apenas estava numa cidade que me
parecia feia e inóspita: eu também descobria que minha
visão das coisas nem sequer poderia insinuar-se nos
ambientes geradores de cultura, e que a chegada de
Bethânia ao estrelato, se tinha aberto portas para mim no
terreno profissional, não necessariamente significava que a
intervenção estética que me parecia correta se fazia
possível” (VELOSO, 1997, p. 88).
“Verdade Tropical”
Caetano Veloso
2000
“Caetano não se conformava: inconcebível espetáculo
cujo título continha a palavra mágica, Bahia, Caymmi
estando ausente. [...] Não se tratava, porém, de gostar ou
não, mas de escolher músicas que condenassem a
ditadura cada vez mais desumana” (BOAL, 2000, p. 233).
“Hamlet e o filho do
padeiro”
Augusto Boal
2003
9. Como se vê pelo caso específico anteriormente
tratado, as divergências entre Caetano Veloso e
Augusto Boal se dão essencialmente no que se
refere à resistência à ditadura, mas há uma
convergência pouco analisada no que se refere à
matéria geral que dá corpo a suas obras: a
brasilidade, tema caro à atividade artística do período
democrático que veio a amadurecer nos anos 60 e
70. A presente pesquisa aponta para a necessidade
de rever o cenário cultural brasileiro pós-45 sob a
perspectiva da modernização e seus efeitos e do
ideário nacional-desenvolvimentista refletido em
diversos momentos.
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
BOAL, Augusto. Milagre no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
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BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1980.
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RIDENTI, Marcelo. Artista e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo Social, revista de sociologia da USP. São
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VIANNA, Hermano. Políticas da Tropicália. In: BASSUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura
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