1. Ode a Salvador Dalí Tua fantasia chega onde chegam tuas mãos,
e gozas o soneto do mar em tua janela.
Uma rosa no alto do jardim que tu desejas. O mundo tem surdas penumbras e desordem,
Uma roda na pura sintaxe do aço. nos primeiros términos que o humano frequenta
Desnuda a montanha de névoa impressionista. Porém já as estrelas ocultando paisagens
Os grises observando suas balaustras ultimas. assinalam o esquema perfeito de suas órbitas.
Os pintores modernos, em seus brandos A corrente do tempo se remansa e se ordena
estúdios, nas formas numéricas de um século e outro
cortam a flor asséptica da raiz quadrada. século.
Nas águas do Sena um iceberg de mármore E a Morte vencida se refugia tremendo
esfria as janelas e dissipa as eras. no circúloestreito do minuto presente.
O homem pisa forte nas ruas lajeadas. Ao pegar tua palheta, com um tiro em uma asa,
Os cristais se esquivam da magia e do reflexo. pedes a luz que anima a copa da oliveira.
O governo fechou as lojas de perfume. Larga luz de Minerva, construtora de andaimes,
A máquina eterniza seus compassos binários. onde não cabe o sonho nem sua flora inexata.
Uma ausência de bosques, biombos e Pedes a luz antiga que fique na frente,
sobrecenhos sem baixar a boca nem o coração do homem.
erra pelos telhados das casas antigas. Lua que temem as vides estranháveis de Baco
O ar pule seu prisma sobre o mar e a força sem ordem que leva a água curva.
e o horizonte sobe como um grande aqueduto.
Fazes bem em pôr bandeirolas de aviso,
Marinheiros que ignoram o vinho e a no limite escuro que relumbra a noite.
penumbra Como pintor não queres que te abrande a forma
decapitam sereias nos mares de chumbo. o algodão cambiante de uma nuvem imprevista.
A Noite, negra estátua da prudência, tem
O peixe no aquário e o pássaro na gaiola.
o espelho redondo d lua em sua mão.
Não queres inventa-lo no mar ou no vento.
Um desejo de formas e limite arrebatada. Estilizas ou copias depois de ter olhado
Vem o homem que olha com o metro amarelo. com honestas pupilas seus corpinhos ágeis.
Vênus é uma branca natureza morta
Amas uma máteria definida e exata
e os colecionadores de mariposas fogem.
onde o fungo não possa armar acampamento.
* Amas a arquitetura que constrói no ausente
Cadaqués, no fiel da água e da colina, e admites a bandeira como uma simples pilhéira.
eleva escalinatas e oculta caracóis. Diz o compasso de aço seu curto verso
As flautas de madeira pacificam o ar. elástico.
Um velho Deus silvestre dá frutas aos meninos. Desconhecidas ilhas já a esfera.
Seus pescadores dormem, sem sonho, na areia. Diz a linha reata seu vertical esforço
Em alto-mar lhes serve de bússola uma rosa. e os sábios cristais cantam suas geometrias.
O horizonte virgem de lencinhos feridos *
junta os grandes vidros do peixe e da lua. Mas também a rosa do jardim onde vives.
Uma dura coroa de brancos bergantins Sempre a rosa, sempre, norte e sul de nós!
cinge frontes amargas e cabelos de areia. Tranquila e concentrada como uma estátua cega,
As sereias convencem, mas não sugestionam, ignorante de esforços soterrados que causa.
e saem mostrando um copo de água doce. Rosa pura que limpa de artifícios e esboços
* e nos abre as asas tênues do sorriso.
(Mariposa pregada que medita seu vôo.)
Alma higiênica, vives sobre marmores novos.
Rosa do equilíbrio sem dores buscadas.
Foges à escura selva de formas incríveis.
Sempre a rosa!
2. *
Oh! Salvador Dalí, de voz azeitonada!
Digo o que me dizem a tua pessoa e teus
quadros.
Não te louvo o imperfeito pincel adolescente,
mas canto a firme direção das tuas flechas.
Canto teu belo esforço pelas luzes catalãs,
teu amor ao que tem explicação possível.
Canto teu coração astronômico e terno,
de baralha francesa e sem nenhuma ferida.
Canto a ânsia de estátua que seus personagens
sem trégua,
o medo à emoção que te aguarda na rua.
Canto a sereiazinha do mar que te canta
montada na bicicleta de corais e conchas.
Mas antes de tudo canto um comum
pensamento
que nos une nas horas escuras e douradas.
Não a Arte a luz que nos cega os olhos.
É primeiro o amor, a amizade e a esgrima.
É primeiro o quadro que paciente desenhas
o seio de Tereza, a de cútis insone,
o apertado cacho de Matilde, a ingrata,
nossa amizade pintada como um jogo de oca.
Sinais datilográficos de sangue sobre o ouro
risquem o coração da Catalunha eterna.
Estrelas como punhos sem falcão te relumbram,
enquanto tua pintura e tua vida florescem.
Não olhes a clepsidra com asas membranosas,
nem a dura gadanha das alegorias.
Veste e desnuda sempre o teu pincel no ar,
ante o mar povoado com barcos e marinheiros.
Federico Garcia Lorca.