2. RECALCAMENTO
• O recalcamento é, sem dúvida alguma, um dos conceitos mais importantes da metapsicologia
freudiana, e esta importância pode ser atestada pela afirmação contida em A História do
Movimento Psicanalítico, onde Freud declara que “o recalcamento é o pilar fundamental sobre o
qual descansa o edifício da psicanálise”.
• Trauma e defesa:
• O recalque está presente deste os primeiros escritos de Freud, tanto nos textos clínicos, em
relatos de casos, como em textos teóricos (A Interpretação dos sonhos, 1900). Mas é quando
Freud abandona a prática da hipnose e se defronta com o fenômeno clínico da resistência que o
conceito de recalcamento começa a se delinear.
• A resistência foi interpretada por Freud como o sinal externo de uma defesa cuja finalidade era
manter fora da consciência a ideia ameaçadora. A defesa é exercida pelo eu sobre uma
representação ou conjunto de representações que despertam sentimento de vergonha e de dor.
3. Da defesa ao recalque:
A partir da elaboração do modelo de aparato psíquico apresentado no capítulo 7 da Interpretação dos
Sonhos, o inconsciente passa a ser concebido como um sistema, com uma estrutura e um modo de
funcionamento distintos do sistema pré-consciente/consciente. E o operador dessa distinção, e o que
responde pelo modo de ser do conteúdo do inconsciente, é precisamente o recalque.
Um determinado processo psíquico, pertencente ao sistema inconsciente, procura acesso à consciência em
busca de satisfação. A censura que opera na passagem do inconsciente para o pré-consciente/consciente
opõe-se a este propósito. A razão da oposição é que a satisfação de um desejo inconsciente, que em si
mesmo provocaria prazer, provoca também desprazer, relativamente às exigências do pré-
consciente/consciente. Em decorrência da censura, o desejo tem que permanecer inconsciente, podendo
retornar, por exemplo, sob a forma de sintomas ou procurar expressão através do sonho.
4. Recalque, destino da pulsão:
Se a satisfação da pulsão deve sempre ser algo prazeroso, por que se lhe deveriam propor
resistências a ponto de torná-la inoperante? A resposta cabível é: porque o caminho em
direção à satisfação pode produzir mais desprazer do que prazer. Há uma economia do
prazer/desprazer que tem que ser levada em conta no que se refere à satisfação da pulsão.
Na verdade, o que o recalque faz é operar uma cisão no universo simbólico do sujeito,
reduzindo uma parte desse universo ao silêncio, recusando-lhe o acesso à consciência.
Ocorre, porém, que a clivagem da subjetividade em dois sistemas, o inconsciente e o pré-
consciente/consciente, é operada precisamente pelo recalque. É o recalque que cinde o
aparato em dois grandes sistemas, o que nos coloca frente a um paradoxo. O recalque é ao
mesmo tempo um mecanismo do sistema Pcs/Cs contra os efeitos do Ics, e o mecanismo
responsável pela divisão do aparato psíquico em Ics e Pcs/Cs.
5. Recalque originário. Fixação e inscrição:
No caso Schreber, cinco anos antes da publicação do artigo metapsicológico sobre o
recalque, Freud já havia admitido a decomposição do processo de recalcamento em fases
distintas. As distinções são: 1) A fixação; 2) O recalque propriamente dito e 3) o retorno do
recalque.
A primeira fase, a da fixação, corresponde à do recalque primários.
Freud emprega ainda o termo inscrição designar essa fixação da pulsão ao representante
da representação e a manutenção deste último num registro psíquico inteiramente
inacessível à consciência.
A fixação ou inscrição ou ainda recalque primário são, portanto, anteriores à constituição
do inconsciente concebido como um sistema psíquico (cujos conteúdos, como dirá Lacan
mais tarde, são estruturados como linguagem).
6. Fixação, inscrição e recalque primário não são, pois, sinônimos, mas correspondem, cada
um a sua maneira, ao mesmo momento ou à mesma fase do recalcamento, no caso, ao
momento do recalque original ou primordial. Este corresponde a uma primeira inscrição e
simultaneamente a uma fixação da pulsão numa determinada representação. A partir de
então, estabelece-se uma moção pulsional, de tal modo que a representação fixada
funciona como polo de atração para o recalque posterior ou recalque propriamente dito.
O recalque originário corresponde a um momento anterior a Constituição do sistema
inconsciente, o que não significa que não possamos falar em processos inconscientes. O
termo “inconsciente“ é empregado de forma adjetiva, designando processos que não
chegam a se tornar conscientes, mas que nem por isso pertence é um sistema inconsciente.
Podemos, quando muito, dizer que neste momento há um inconsciente em função, Mas
não inconsciente concebido como um sistema psíquico distinto dos demais.
Num primeiro momento ou primeiro nível de simbolização, haveria apenas uma rede de
oposições significantes sem que nenhum significado particular estivesse Preso a ela. É o
caso da experiência do Fort-Da Descrito por Freud em além do princípio do prazer.
7. No recalque originário “é recusado ao representante psíquico da pulsão o acesso a
consciência“. Ora, para que esse acesso lhe seja negado, é necessário que exista uma
instância responsável por essa função; ocorre, porém, que essa instância surge apenas
após a clivagem do psiquismo, isto é, após o recalque. É necessário, pois, a existência do
recalque para que o recalque possa se dar. Aí residiu o paradoxo do recalque
propriamente dito, razão pela qual Freud teve que postular a existência de um recalque
originário anterior ao recalque propriamente dito, que passa a ser designado de abre
aspas secundário”.
O essencial a se destacar na contribuição de Lacan e dos seus então discípulos é ideia de
que antes mesmo de se formar o inconsciente como um sistema psíquico, uma rede de
oposições significantes opera a captura das representações elementares, criando uma
primeira cadeia inconsciente – Esta é a inscrição. Simultaneamente, dá-se também a
captura Da energia pulsional por essa trama de oposições Significantes, de tal modo que
estabelece-se uma ligação da pulsão a representação – É a fixação.
8. Recalque secundário o recalque propriamente dito:
Quando da publicação do texto sobre Schreber, Freud aponta como uma das distinções entre o recalque primário e o
recalque secundário o caráter passivo do primeiro a diferença do segundo, essencialmente ativo. De fato, a fixação
ou inscrição decorre das primeiras ligações, correspondentes ao primeiro esboço de organização do aparato
psíquico, e essas primeiras ligações são sínteses passivas, apenas limitam ou impedem, através do mecanismo do
contra investimento, o livre escoamento das excitações.
O destino dos derivados é o mesmo que o da representação original: são excluídos da consciência. No entanto, para
que haja o recalque secundário é necessário não apenas o repúdio por parte do sistema pré-consciente/consciente,
mas também atração exercida pelo recalcado primordial; daí Freud se referir ao recalque secundário como uma
pressão posterior.
Um dos objetivos do trabalho do sonho é produzir uma suficiente de formação do conteúdo latente de modo a
tornar possível o sonho como expressão consciente de pensamentos inconscientes os quais, de outra forma, seria
um em toleráveis para o sonhador.
9. Freud destaca a importância dos derivados do recalcado original para prática psicanalítica. É através deles que se
pode ter acesso ao material recalcado, ou melhor, é através daqueles derivados que se conseguiram escapar ao
recalcamento que é possível rastrear a série que conduz ao recalcado. A formação de derivados do recalcado
continua a ser feita, independentemente da distância temporal em relação a recalcado original. Esses derivados
surgem nos sintomas, nos atos falhos, nos sonhos, assim como surgem nas associações feitas pelo paciente na
situação analítica. A chamada “regra fundamental“, que orienta prática clínica psicanalítica, nada mais é do que
uma solicitação aqui o analisando, livre o mais possível da censura consciente, produza derivados do recalcado não
se trata, por parte do analisando, de uma deliberada produção de derivados do recalcado.
O fato de Freud articular afeto e angústia expressivo desse modo de pensar, sobretudo quando concebe angústia
como sinal. Angústia seria, sob esse aspecto, pura expressão da intensidade posicional, sem que nenhuma
representação estivesse ligada a ela. Não podendo se expressar sob a forma de um representante ideativo, ela se
expressa corporalmente como pura intensidade, sem que qualquer significação possa lhe ser atribuída. Assim, o
que do representante pulsional e recalcado não é o afeto, mas as representações que se ligam a ele ou, melhor
dito, que o ligam.
10. O caso para exemplificar a neurose de angústia foi o do homem dos lobos. Nele, o jovem aristocrata russo, quando
criança, após ter sido ameaçado de castração pela babá dirige sua sexualidade para o pai, a quem passa provocar
constantemente com objetivo de ser castigado e retirar daí uma satisfação sexual masoquista. Esse desejo sexual
pelo pai é recalcado reaparece como fobia de um animal. A repressão original é, ao longo de uma série de conexões,
substituída pela figura de um lobo, enquanto que o afeto é transformado em angústia. Freud salienta o quanto o
recalcamento, nesse caso, foi destituído de êxito, pois se ele foi eficaz no sentido de substituir a representação
penosa por outra, foi totalmente ineficaz quanto a evitar o desprazer resultante do desprendimento do quanto de
afeto a ela ligado.
Na neurose de conversão, o processo de recalcamento é em geral bem-sucedido, tendo em vista que consegue
suprimir o afeto. É verdade que em seu lugar surgem os sintomas, também incômodos, mas que na maioria dos
casos não são acompanhados de angústia. Freud cita, a esse respeito, a frase de Charcot Sobre “a dela indiferença
das histéricas” em relação aos seus sintomas.
Terceiro caso exemplificado por Freud é o da neurose obsessiva. Nele, o recalcamento é inicialmente eficaz; A
representação é substituída por deslocamento, provocando o desaparecimento do afeto. No entanto, esse
recalcamento bem-sucedido não consegue se manter e, com o passar do tempo, seu fracasso torna-se cada vez mais
evidente. Falha do recalcamento, o afeto ressurge sob a forma de angústia e autocensura, provocando novas
substituições por deslocamento e novos mecanismos de fuga como na fobia. Em geral, na neurose obsessiva esse
processo de recalcamento prossegue numa série interminável de sucessos e insucessos.
11. O retorno do recalcado se faz de forma deformada, distorcida, e não como retorno “do mesmo”, do idêntico. Aquilo que
retorna, o faz sob a forma de um compromisso entre os dois sistemas, de tal modo que o desejo recalcado encontre
uma expressão consciente, mas ao mesmo tempo não produza desprazer. O retorno do recalque não se faz, portanto,
devido a uma falha no sistema defensivo, mais precisamente porque foram produzidos derivados submetidos a
deformações tais que o caráter ameaçador do recalcado original tenha sido suficientemente atenuado de ultrapassar a
barreira impostas pelo eu às representações recalcadas.
No terceiro dos ensaios que compõem Moisés e monoteísmo (1939), publicado quando Freud já se encontrava exilado
em Londres, ele explícita as condições segundo as quais se dá o retorno do recalcado: 1) se há um enfraquecimento do
contra investimento em decorrência de algum processo patológico de afeto, ou por uma mudança de a distribuição do
investimento no interior do eu como ocorre no sono; 2) quando articulação da pulsão com recalcado recebe um reforço
especial (como ocorre na puberdade, por exemplo); 3) quando, em experiências recentes, certas impressões ou
vivências semelhantes ao recalcado têm o poder de despertá-lo. Seja qual for, porém, a condição que possibilita o
retorno do recalcado, este nunca se dá em sua forma original e sem conflito. O material recalcado é invariavelmente
submetido a deformação por exigência da censura, mesmo quando as defesas do eu são diminuídas, como no caso do
sono.