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A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à
diversidade, mantendo comitês internos para realização de campanhas,
programas e ações voltados para disseminar idéias, conhecimentos e
atitudes de respeito à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e
todas as demais diferenças que caracterizam uma sociedade plural.
Os projetos patrocinados são escolhidos via seleção pública, uma opção
da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de
produtores e artistas de todo o país como também dar mais transparência
à utilização dos recursos da empresa.
Com a mostra de filmes Diretoras Negras no Cinema Brasileiro, a CAIXA
Cultural apresenta uma retrospectiva da produção cinematográfica
empreendida por cineastas negras brasileiras. Em comum nos filmes
exibidos, temas relevantes entre as mulheres afrodescendentes, como o
racismo, o empoderamento feminino e a herança cultural africana.
Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura
e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao
longo de seus 156 anos de atuação no país. Para a CAIXA, a vida pede
mais que um banco. Pede investimento e participação no presente,
compromisso com o futuro do país e criatividade para conquistar os
melhores resultados para o povo brasileiro.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
A mostra Diretoras Negras no Cinema Brasileiro conta uma história de
resistência. Desde que Adélia Sampaio, a primeira diretora negra a realizar
um longa-metragem no Brasil, teve o financiamento para “Amor Maldito”
negado pela então Embrafilme, devido ao teor lésbico da narrativa (ou seria
também por que ela era mulher e negra?), cineastas negras enfrentam o
machismo e o racismo de uma sociedade e de uma indústria cinematográ-
fica que as excluem e que as enxergam a partir de estereótipos ligados ou
à pobreza, ou à marginalidade, ou ao sexo.
De acordo com a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional: o perfil de gênero
e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros”, realizada
pelo GEEMA – Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa – da
UERJ, dos 218 objetos analisados no período de 2002 a 2012, nenhum foi
dirigido ou roteirizado por mulheres negras.
Realizada pelas pesquisadoras Gabriela Moratelli e Márcia Cândido, sob
coordenação de Verônica Toste e João Feres Júnior, “A Cara do Cinema
Nacional: o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos
filmes brasileiros” analisou as vinte maiores bilheterias (e, por conseguinte,
os vinte filmes mais vistos) do cinema brasileiro em cada ano, de 2002 a
2012, segundo os dados disponíveis no site da Ancine – Agência Nacional
de Cinema.
Os resultados são alarmantes, e mostram a ausência de diversidade de
cor e de identidade de gênero no cinema comercial brasileiro. Os filmes
produzidos e distribuídos por nossa incipiente indústria cinematográfica,
que recebem massivos recursos públicos via Fundo Setorial do Audiovisu-
al, administrado pela Ancine, que chegam às salas do circuito para serem
vistos pelo grande público, apresentam uma visão de mundo hegemonica-
mente masculina e branca, e praticamente excluem do processo de criação
as mulheres e, sobretudo, o negro, rebaixado a estereótipos associados à
pobreza e ao crime.
Embora, segundo o último censo do IBGE, de 2010, 27% da população
brasileira se identifique como mulher e negra – nosso grupo mais predomi-
nante –, as mulheres negras, como já dito, são as mais sub-representadas
dentro do cinema hegemônico nacional: exatamente 0 (ZERO) diretoras e 0
(ZERO) roteiristas (há 13% de diretoras brancas, e 26% de roteiristas bran-
cas, para comparação), e 4% de atrizes (contra 36% de atrizes brancas).
Mas não se trata de opor mulheres brancas contra mulheres negras, já que
84% dos filmes do período analisado foram dirigidos por homens brancos.
Embora a pesquisa abarque os anos entre 2002 e 2012, e não se estenda
até 2017, ela já registra o começo da explosão das comédias, produzidas
ou distribuídas principalmente pela Globo Filmes, que invadiram as salas de
cinema brasileiras: “Se Eu Fosse Você (2006), “Se Eu Fosse Você 2” (2009),
“De Pernas para o Ar” (2010), “De Pernas para o Ar 2 (2012), “Até que a
Sorte nos Separe” (2012), aos que se seguiram “Minha Mãe É Uma Peça:
O Filme” (2013), “Minha Mãe É Uma Peça 2” (2016), “Loucas para Casar”
(2015), “TOC: Transtornada Obsessiva Compulsiva” (2017). São comédias
baseadas em estereótipos do gênero feminino, e todas com direção de
homens brancos. E nenhum tem personagens negros principais.
Reconhecendo o quadro machista e racista do cinema nacional, a ANCINE,
em seu Planejamento Estratégico para o quadriênio 2017-2020, tem como
uma das metas “promover a diversidade de gênero e raça na produção das
obras audiovisuais brasileiras”. Em 2016, ela lançou o Edital de Longa Afir-
mativo, através do qual serão realizados três filmes de ficção de diretores
negros. O Edital segue a linha do Curta-Afirmativo que, em 2012 e 2014,
financiou mais de 60 obras audiovisuais, entre curtas e médias-metragens,
de diretores e produtores negros.
Nesse contexto, nas franjas de um cinema hegemonicamente masculino e
branco, diretoras negras encontraram espaço, com apoio de mecanismos
federais ou estaduais de fomento, através da televisão ou por iniciativa pró-
pria, para expressar suas demandas e experiências de vida, antes negli-
genciadas: identidade étnica e de gênero, machismo, racismo, feminismo,
cultura afro-brasileira, ancestralidade. São diretoras que vêm de todas as
partes do país, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas
Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro.
Reunimos 46 filmes, e agradecemos às diretoras Adélia Sampaio, Carmen
Luz, Carol Rodrigues, Ceci Alves, Danddara, Edileuza Penha de Souza,
Elen Linth, Eliciana Nascimento, Everlane Moraes, Flora Egécia, Janaína
Oliveira, Juliana Vicente, Keila Serruya, Larissa Fulana de Tal, Lilian Solá
Santiago, Sabrina Fidalgo, Renata Martins, Tainá Rei, Tatyana dos Praze-
res, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Coletivo Nós, Madalenas e Coletivo
Revisitando Zózimo Bulbul + Mulheres de Pedra por compartilharem co-
nosco seus filmes e nos darem a oportunidade de conhecer e aprender
com suas lutas.
No contexto atual, em que observamos no curta-metragem independente
o surgimento de uma nova e potente geração de diretoras negras no Brasil,
acreditamos que uma mostra que exiba e celebre o cinema das diretoras
negras se faz urgente.
Kênia Freitas e Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida
[Curadores]
ÍNDICE
Diretoras Negras - Construindo um cinema de identidades e afeto
Edileuza Penha de Souza
Cinema Negro contemporâneo e protagonismo feminino
Janaína Oliveira
O olhar das mulheres negras em filmes Kênia Freitas
Imagens afro-brasileiras em movimento:
construindo uma fábrica de sonhos Lilian Solá Santiago
Sair do armário e ousar dizer seu nome: prazer, cinema LGBT!
Labelle Rainbow
Entrevista com Adélia Sampaio Kênia Freitas e
Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida
Entrevista com Danddara Janaína Oliveira
Filmografia
Sobre as Diretoras
9
19
31
41
51
61
69
80
88
DIRETORAS NEGRAS
CONSTRUINDO UM CINEMA
DE IDENTIDADES E AFETO
10 11
DIRETORAS NEGRAS
CONSTRUINDO UM CINEMA DE IDENTIDADES E AFETO
Edileuza Penha de Souza1
(...)
tem
fragmentos
no feminismo procurando
meu próprio olhar,
mas vou seguindo
com a certeza de sempre ser
mulher
Olhar Negro - Esmeralda Ribeiro
1. Edileuza Penha de Souza é Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), onde leciona as
disciplinas “Pensamento negro Contemporâneo” e “Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema. Historiadora (UFES),
mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB), pesquisadora e documentarista, foi estudante Especial da Cátedra de
Documentários na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Banõs – República de Cuba.
13
O machismo e o racismo são deformações que historicamente têm excluído mu-
lheres e negros do fazer cinema. A invisibilidade de diretoras como a francesa Alice
Guy Blaché2
e a brasileira Adélia Sampaio3
, e tantas outras que, ao longo de suas
carreiras, infundiram em seus filmes particularidades do universo feminino, como
a senegalesa Safi Faye4
(1943), a sueca Anna Hofman-Uddgren (1868-1947), a in-
diana Shobhna Samarth (1915-2000), a estadunidense Lois Weber (1879-1939), a
ucraniana Maya Deren (1917-1961), a angolana Sarah Maldoror5
(1938), a brasileira
Jacira Martins da Silveira6
(1909-1972), a russa Yuliya Solntseva (1901-1989), o que
demonstra o quanto o masculino e a branquitude ocultam da história do cinema o
pioneirismo e o talento de mulheres e negras.
	 Somente para se deter em Alice Blaché e Adélia Sampaio – a primeira
mulher cineasta do mundo e a primeira negra cineasta do Brasil –, cada uma em
seu tempo e no seu território desenvolveu roteiros polêmicos com debates sobre
questões sociais e culturais. Ambas denunciaram as múltiplas violências contra
as mulheres e a LGBTfobia, perfilhando estratégias de abrir caminhos à geração
vindoura de mulheres e negras.
	 Nossa escolha por discutir um Cinema Negro Feminino enraíza-se em
estratégias de pertencimento e afeto. A produção de diretoras negras possibilita
descortinar um cinema que rompe com os estereótipos e o racismo de uma “so-
ciedade esteticamente regida por um paradigma branco” (SODRÉ, 2001, p. 235).
Seus filmes fazem incursões em experiências de ancestralidade, herança, memó-
ria, identidade e amor. Nessa perspectiva, a atuação da mulher no cinema – em
2. Edileuza Penha de Souza é Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), onde leciona as
disciplinas “Pensamento negro Contemporâneo” e “Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema. Historiadora (UFES),
mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB), pesquisadora e documentarista, foi estudante Especial da Cátedra de
Documentários na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Banõs – República de Cuba.
3. Sampaio trabalhou em diversos segmentos do teatro e do cinema, foi a primeira mulher negra a dirigir um filme. Adélia iniciou
sua vida profissional muito cedo, como comerciária. Em 1969, conseguiu um trabalho como telefonista na DIFILM – distribuidora
criada por expoentes do Cinema Novo, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Luiz Carlos Barreto –, e já em 1972,
consegue frequentar um set de filmagens exercendo várias atividades até assinar produção, roteiro e direção de seus próprios
filmes. Hoje, aos 74 anos, Adélia continua produzindo.
4. Primeira mulher africana a dirigir um longa-metragem dirigido comercialmente, ela se dedicou a dirigir filmes de ficção e
documentários enfocando a vida rural no Senegal.
5. Nascida Sarah Ducados, é uma das primeiras mulheres a dirigir um longa-metragem no continente africano. Sua produção
fílmica é habitualmente incluída em estudos sobre as mulheres diretoras no cinema africano.
6. Conhecida como Cleo de Verberena, escreveu, produziu, financiou e atuou no primeiro filme dirigido por uma mulher no Brasil,
“O Mistério do Dominó Preto”. Esse drama, que tem como tema o carnaval e o crime, fez sucesso em muitas salas de cinema. O
segundo filme de Verberena, “Canção do destino”, nunca foi concluído e, juntamente com ele, a própria cineasta desapareceu
do cenário cinematográfico.
particular, de diretoras negras no cinema nacional brasileiro – concatena-se com a
obra da cineasta Adélia Sampaio, coroando a produção de diretoras negras, como
possibilidade de se pensar e construir um cinema de territorialidade e comunalida-
de como patrimônio negro feminino.
Historicamente, mulheres cineastas têm construído estratégias de luta
por visibilidade, produzem narrativas que são verdadeiros manifestos
políticos e sociais; seus trabalhos apresentam responsabilidade
histórica de combate a todo e qualquer tipo de violência, preconceito
e discriminação, e nos possibilitam edificar um imaginário positivo
do papel que as mulheres representam na história da humanidade.
(SOUZA, 2017).
A definição de um cinema negro feminino floresce da territorialidade, possibilita re-
criar os espaços-território do racismo e da heteronormatividade. Na territorialidade
estão firmados os princípios de coletividade e de comunalidade. É a territorialidade
que redimensiona o fazer cinema. No reduto do cinema negro feminino, as direto-
ras negras trazem para seus filmes os ensinamentos ancestrais, demonstram que
a territorialidade do fazer cinema é demarcada pelo respeito às experiências de
vida da comunidade onde estão inseridas. Seus filmes irradiam o reconhecimento
de domínio das técnicas; representam cultura e mundo dos valores ancestrais em
que a comunicação, em diferentes circunstâncias, legitima e edifica um conjunto
de informações e emoções trazidas pela diversidade; um território onde cada ci-
neasta se constitui como ícone de empoderamento. Desse modo, a territorialidade
pode ser percebida como espaço de práticas culturais e sociais. Mais que isso,
apesar de todas as tentativas de silenciamento, diretoras negras produzem um
cinema de arte com temas plurais que compõem a diversidade humana, colhidos
nas experiências individuais ou coletivas. Afinal, “o cinema é uma das artes que
pode transformar a realidade em interpretações, de modo que essa representação
do real possa estar em todas as palavras, em todas as coisas” (SOUZA, 2013, p. 5).
	 Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edifi-
cado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos
negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora
da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas,
políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeida-
de como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade.
14
	 A exemplo da cineasta Adélia Sampaio que, antes de produzir e diri-
gir filmes, foi telefonista, exerceu cargos de continuísta, claquetista, assistente de
produção e maquiadora, muitas mulheres negras chegaram à direção do cinema
trabalhando como fotógrafa, figurinista, argumentista, dialoguista, pesquisadora,
eletricista, contrarregra, cabeleireira, trilheira, laboratorista, marcadora de luz, e
muitas outras funções que o cinema emprega.
	 Urge pensar uma catalogação das produções fílmicas de cineastas
negras brasileiras. Apenas para citar alguns nomes, Alexandra G. Dumas, Aline
Lourena, Amanda Faustino, Amanda Prado, Ana Beatriz Sacramento, Ana Claudia
Okuti, Ana Paula Alves Ribeiro, Anahí Borges, Barbara Marques, Beatriz Vieirah,
Calila das Mercês, Camila de Moraes, Carmem Luz, Carol Rodrigues, Cida Reis,
Cíntia Maria, Cirlla Machado, Clarissa Brandão, Charlene Bicalho, Dayane Gomes,
Elaine Ramos, Elcimar Pereira, Eliciana Nascimento, Everlane Moraes, Fabíola Ale-
crim, Flora Egécia, Gabriela Barreto, Ingrid Mabelle, Isa Oliveira, Izabel Neiva, Ísis
Higino, Jamile Coelho, Janaina Oliveira Re.Fem, Jessica Queiroz, Juliana Lima,
Juliana Vicente, Katiusca Demetino, Keila Serruya, Larissa Fulana de Tal, Laura
Guerreira, Letícia Bispo, Lilian Solá Santiago, Luana Dias, Luciana Oliveira, Lua-
na Paschoa, Madara Luiza, Maria Dealves (falecida em 2008), Mariana Campos,
Mariani Ferreira, Marta Nunes, Nadir Nóbrega Oliveira, Naymare Azevedo, Neide
Rafael, Paola Botelho, Priscila Oliveira, Raysa Oliveira, Renata Martins, Sabrina
Rosa, Thaina Farias, Thayná Torella, Thamires Vieira, Urânia Munzanzu, Vilma Ne-
res, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Yane Mendes, Ziza Fagundes.
	 Muitas delas foram discípulas de Mestre Zózimo Bulbul7
, participaram
dos Encontros de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, onde aprenderam que
fazer Cinema Negro é dominar as linguagens, técnicas e estéticas do audiovisual,
tanto quanto criar referência sobre a história e a cultura do povo negro na diáspora.
Essas mulheres negras diretoras configuram um marco do cinema brasileiro da
contemporaneidade, complementam lacunas e omissões da cinematografia brasi-
leira e criam um cinema negro no feminino. Elas são responsáveis por construir-se
um cinema de identidade entendido como espaço de pertencimento, e como tal,
são agentes recriadoras de mundos e de possibilidades de amor e afetos. Elas
criam um processo de identidade étnica, fazendo de seus filmes um verdadeiro
manifesto de gênero e raça (SOUZA, 2016).
7. O cineasta e ator Zózimo Bulbul produziu e dirigiu filmes e vídeos documentários de curta, média e longa-metragem...
(CARVALHO, 2005). Atualmente é considerado o pai do Cinema Negro Brasileiro.
Mulheres de Barro | Dir. Edileuza Penha de Souza
16 17
das águas, da natureza, do corpo e do orí; usar as mãos, esculpir, filosofar, apren-
der, ensinar (FREIRE, 1998), pois de outro modo não há cinema. Nossa identidade
de diretoras negras se define dentro da magnitude interna do desde dentro e nos
possibilita arquitetar, por meio do cinema, a integridade negra, a força vital, o axé
e a arkhé de nossa ancestralidade.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Noel dos S. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul.
2005. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade,
Porto Alegre, v. 16, n. 2, jul./dez. 1990.
SHOHAT, Ella. STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naif, 2006.
SILVA, Conceição de Maria Ferreira. Mulheres negras e (in)visibilidade: imaginários sobre a
intersecção de raça e gênero no cinema brasileiro (1999-2009). 2016. 297f. Tese (Doutorado
em Comunicação). Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. 4. ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, narrativas de
amor, afeto e identidade, 2013. Tese (Doutorado em Educação), Universidade de Brasília
(UnB). Brasília, 2013.
______. Contando nossas próprias histórias: Mulheres negras arquitetando o cinema
brasileiro. In: AVANCA: Edições Cine-Clube de Avanca, 2016. p. 485-502.
______. Ancestralidade e memória na animação Órun Áiyé: o cinema negro feminino e as
tessituras da identidade. In: AVANCA: Edições Cine-Clube de Avanca, 2017 (no prelo).
STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no
cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008.
	 Ainda que seja induvidoso que a imagem da mulher negra no cinema e na
sociedade historicamente esteve presa a preconceitos e estereótipos, nota-se que
ao assumirem o comando da direção, as mulheres exercitam a possibilidade de
novos olhares e concepções, desde a estética e a linguagem até outros elementos,
de maior subjetividade, como identidades e representações.
	 A territorialidade do Cinema Negro Feminino tem sido pautada, nos úl-
timos anos, por trabalhos acadêmicos que surgem com o intuito de historicizar a
presença de mulheres negras nas produções cinematográficas. Essas produções
interagem com a literatura específica sobre o cinema e ensejam discussões de
gênero e raça, incidindo alusões à negritude e a todos os demais elementos que
a temática do cinema produzido por mulheres negras tem alcançado. O Cinema
Negro Feminino pode ser percebido também como espaço de práticas culturais
nas quais se criam mecanismos identitários de representação a partir da memória
coletiva e ancestral.
	 É oportuno salientar que, ao propor ao campo do cinema estudos es-
pecíficos sobre a produção de diretoras negras, não se objetiva centralizar uma
abordagem sobre minorias, mas compreender que, além de as mulheres negras
representarem pelo menos um quarto da população brasileira, seus filmes tendem
a possibilitar rompimentos com as representações e, ainda, transformam os para-
digmas do conhecimento tradicional, impõem “um reexame crítico das premissas
e dos critérios do trabalho científico existente” (SCOTT, 1990, p. 5).
	 Com esse entendimento, para além de pesquisadora, me coloco aqui
como uma diretora negra e ressalto que o processo de construir um cinema negro
no feminino nos torna também responsáveis por erguer um cinema de identidade.
A responsabilidade social com que nos envolvemos torna nossos trabalhos, mes-
mo na produção mais imperfeita, um elemento de arte e existência, onde se con-
figura a nossa territorialidade negra, como bem se pode observar nas produções
das diretoras negras brasileiras.
	 Ao nos conduzir ao mundo da educação formal, e a partir dela, o acesso
do fazer cinema, nossas ancestrais negras fizeram de nós, diretoras negras, her-
deiras de um legado que nos impele a dar continuidade aos sonhos. Desse modo,
para nós mulheres negras cineastas o fazer cinema negro no feminino significa
estar no mundo, fazer história, fazer cultura, sonhar, cantar, pintar, cuidar da terra,
CINEMA NEGRO CONTEMPORÂNEO
E PROTAGONISMO FEMININO
20 21
CINEMA NEGRO CONTEMPORÂNEO
E PROTAGONISMO FEMININO
Por Janaína Oliveira1
Das margens para o centro, é esse o movimento contemporâneo das mulheres
no contexto do Cinema Negro Nacional. Se durante as três primeiras décadas da
história do cinema negro as mulheres diretoras tiveram suas presença e represen-
tatividade invisibilizadas, nos últimos sete anos (aproximadamente) a centralidade
do cenário é ocupada por uma nova geração de cineastas que ganha destaque
não só pela qualidade, mas pelas formas de produção, distribuição e divulgação
dos filmes. O que se pode perceber é que além das carreiras individuais, proces-
sos coletivos de produção entram em cena, das temáticas à plateia, passando pelo
mapeamento desta própria presença no setor. As mulheres negras no cinema hoje
estabelecem em suas produções diálogos com o mundo, mas sobretudo, entre
si e para si mesmas, criando os “espaços de agenciamento” de que nos fala Bell
Hooks em “O olhar opositivo”:
1. Janaína Oliveira é pesquisadora e curadora, é doutora em História e professora desta disciplina no Instituto Federal do Rio de
Janeiro – Campus São Gonçalo, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI). É membro da APAN
(Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) e idealizadora e coordenadora do FICINE, Fórum Itinerante de Cinema
Negro (www.ficine.org).
22 23
Espaços de agenciamento existem para as pessoas negras, dentro dos
qual podemos tanto interrogar o olhar do Outro, mas também olhar para
trás, e para nós mesmos, nomeando o que vemos. O “olhar” foi e é um
lugar de resistência para o povo negro colonizado ao redor do globo. Os
subordinados em relações de poder aprendem com a experiência que
existe um olhar crítico, que “olha” para documentar, que é opositivo. Na
luta pela resistência, o poder do dominado para garantir o agenciamento
ao reivindicar e cultivar a “consciência” politiza as relações “do olhar”
– aprende-se a olhar de um certo modo para resistir. (...) Foi o olhar
opositivo que respondeu a essas relações do olhar ao desenvolver o
cinema negro independente. (Hooks, 1992, p.116)2
2. Estou usando aqui a tradução para o português do capítulo 8, “The opositional gaze”, feita por Maria Carolina de Moraes que
se encontra no blog “Fora de Quadro” da crítica de cinema Carol Almeida. Disponível em https://foradequadro.com/2017/05/26/
o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/ .
Assim, portanto, pensando especificamente no cinema negro feito com mulheres3
na atualidade, trata-se de olhar e produzir filmes opositivamente. A gama de his-
tórias diversas que trazem protagonistas mulheres pode ser indício disto. Seja no
documentário ou na ficção filmes como “Balé de Pé no Chão” (2005) e “Mulheres
Bordadas” (2015), de Lilian Solá Santiago, “ Cores e Botas” (2010) e “As minas do
Rap” (2015) de Juliana Vicente, “Dia de Jerusa” (2014) de Viviane Ferreira, “O tem-
po dos Orixás” (2014) de Eliciana Nascimento, “Elekô” (2015) Coletivo Mulheres de
Pedra, “Kbela” (2015) de Yasmin Thayná, “A boneca e o silêncio” (2015) de Carol
Rodrigues, “Das raízes às Pontas” (2016) de Flora Egécia, “Quijauá” (2016) Coleti-
vo Revisitando Zózimo Bulbul / Mulheres de Pedra, “Rainha” (2016) de Sabrina Fi-
dalgo, “Maria” (2017) de Elen Linth e Riane Nascimento, só para mencionar alguns,
apontam como este espaço de agenciamento e diálogos vem se consolidando.
	 Mas o que tornou possível esse momento em que vemos florescer o pro-
tagonismo feminino negro? Uma das hipóteses da pesquisa que venho desenvol-
vendo nos últimos anos sobre a participação das mulheres no cinema africano e
afrodiásporico, articula essa presença à dimensão formativa. Ou seja, o que se
percebe é que a entrada das mulheres negras na produção cinematográfica acon-
tece, de um modo geral, posteriormente `a de mulheres brancas e após o acesso a
algum tipo de formação direta ou indireta (strito sensu ou não), com cinema. Assim
que para entender o protagonismo feminino no cinema negro no cenário brasileiro
é preciso abrir o escopo da interpretação para englobar alguns acontecimentos
da história recente do país, como por exemplo, a ampliação do acesso à universi-
dade e a cursos de formação/capacitação ocorrida (como, por exemplo, ações em
Pontos e Pontões de Cultura4
), nos últimos 15 anos em decorrência de políticas
globais de educação.
	 Nesta mesma linha, estão as políticas de ações afirmativas no audiovisu-
al, sobretudo os editais ‘Curta e Longa BO Afirmativos’, lançados respectivamente
em 2012, 2014 e 2015 pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Nos
editais de Curtas Afirmativos, foram contemplados 53 projetos, dos quais 29 fo-
ram propostos por mulheres. Já no Edital de longa-metragem, três projetos foram
3. Aqui para o uso da preposição com, partilho da formulação da pesquisadora e ensaísta mineira Carla Maia em sua tese
de doutorado “Sob o risco do gênero: Clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres”, quando ela afirma: “alterar
a preposição, passando do cinema “de mulher” para um cinema “com mulheres”, é ir além de uma discussão focada em
elementos autorais ou identitários, para investir em abordagens necessariamente. relacionais, marcando predileção por uma
perspectiva animada pelo encontro contingente entre mulheres que filmam e que são filmadas.” (MAIA, 2015, p. 28).
4. Sobre Pontos e Pontões de Cultura ver: http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1
Cores e Botas | Dir. Juliana Vicente
24 25
contemplados, dentre os quais “O Dia de Jerusa”, da diretora baiana Viviane Fer-
reira5
. Com o lançamento previsto para 2018, o filme de Ferreira colocará fim a um
intervalo de 34 anos entre os únicos longas-metragens de ficção dirigidos exclu-
sivamente por mulheres negras no Brasil, antes dele há somente “Amor Maldito”,
realizado em 1984 pela pioneira do cinema negro Adélia Sampaio. Nota-se assim
que, ainda que do ponto de vista quantitativo seja consideravelmente pequena a
quantidade de mulheres negras atingidas, do ponto de vista simbólico, as ações
afirmativas se mostram não só fundamentais, como urgentes. Pois, como se per-
cebe, é no universo dos curtas-metragens que a produção de filmes de diretoras
(e diretores) negras tem se desenvolvido.
	 Historicamente, outro momento importante para o florescimento desta
geração reside nos desdobramentos das iniciativas de Zózimo Bulbul, que, no final
dos anos 2000, volta a promover mais uma grande transformação na história do
Cinema Negro no Brasil. Aos 70, Bulbul criou o Centro Afrocarioca de Cinema,
para realização dos Encontros de Cinema Negro. A proposta de criar uma ponte
entre as diásporas da América Latina, Caribe e América do Norte e o continen-
te africano gerou um espaço físico e simbólico de reunião dessa nova geração.
Essas trocas entre indivíduos, grupos e coletivos deram novo fôlego ao Cinema
Negro Brasileiro, que agora pode ser considerado um movimento, retomando em
certo sentido iniciativas dos anos 1999 e 2001, respectivamente dos Manifestos
Dogma Feijoada e do Recife, que embora fundamentais, permaneceram isolados.
Foi neste celeiro do Cinema Negro, ou Quilombo, como Bulbul gostava de dizer,
que esta nova geração vai emergir. A exemplo da já citada Viviane Ferreira, que
além da produção de filmes, é uma das principais continuadoras da missão de
Bulbul na construção dessa rede do cinema negro, atuando como uma das figu-
ras centrais na articulação das/os profissionais negras/os do audiovisual. Ferreira,
juntamente com Joyce Prado e Renato Cândido, integra a diretoria da primeira
gestão da APAN – Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro -, fundada
em dezembro de 2016 e que atualmente conta com 125 membros, entre pessoas
físicas e jurídicas, dos quais cerca de 70% são mulheres. Além dela, Larissa Fula-
na de Tal (BA), Everlane Morais (BA), Sabrina Fidalgo (RJ), Mariana Campos (RJ),
Kênia Freitas (ES), Ceci Alves (BA), Eliciana Nascimento (BA), Renata Martins (SP),
dentre outras diretoras, não só tiveram seus filmes exibidos nos Encontros, como
5. Filme homônimo do curta metragem de 2014.
também participaram de mostras menores, mesas redondas e oficinas, promovi-
dos pelo Centro Afrocarioca de Cinema6
.
	 Em uma perspectiva mais ampliada, o debate sobre a participação das
mulheres negras no audiovisual tem seu ponto de virada em 2014, quando da
publicação da pesquisa “‘A Cara do Cinema Nacional’: gênero e cor dos atores,
diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, realizada pelo Grupo de
Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do IESP/UERJ. Esta inau-
gura uma série de pesquisas do GEMAA, com base no conceito da “intersecciona-
lidade relacional”, cunhado por Kimberlé Crenshaw (1991), que buscam “mapear
as representações mais recorrentes nessa mídia que dizem respeito a eixos funda-
mentais de construção da identidade nacional brasileira: cor, gênero, sexualidade
e classe” e que tiveram grande impacto e repercussão nas mídias e redes sociais.
	 Um desdobramento positivo de tal repercussão foi, por exemplo, o início
de um diálogo com a Ancine (Agência Nacional de Cinema) ainda que a contra-
pelo. Isto porque logo quando a pesquisa foi divulgada, Isabela Vieira, repórter da
EBC, perguntou qual era o posicionamento da Agência a respeito. A Ancine então
informou que “não opina sobre conteúdo dos filmes, elenco ou qualquer coisa
do tipo”7
. Depois deste momento, um grupo de servidoras que estava à frente da
Associação de Servidores da Ancine, começou uma série de encontros no audi-
tório da instituição, localizado no centro do Rio de Janeiro. Instaurou-se ali, ainda
que de forma inicial, um canal de diálogo no qual realizadoras, diretoras e demais
profissionais negras do cinema tiveram oportunidade de explicitar demandas e a
necessidade de buscar estratégias que incluam nas políticas públicas de cinema a
perspectiva interseccional8
. Pois ainda que a questão de gênero venha ganhando
cada vez mais espaço, como por exemplo, com a paridade nas comissões de ava-
liação de fundos e editais, é preciso abrir a discussão de forma real para ausência
das mulheres negras quando se fala de cinema.
6. Ao longo das 8 edições dos ‘Encontros de Cinema Negro Zózimo Bulbul – África, Brasil, América Latina e Caribe (de 2007 a
2015)’, cerca de 40 diretoras negras brasileiras de diferentes gerações e regiões do país tiveram seus filmes exibidos.
7. Reportagem disponível para leitura em http://www.ebc.com.br/cultura/2014/07/pesquisa-revela-que-mulheres-negras-estao-
fora-do-cinema-nacional
8. No segundo encontro da série que ocorreu em dezembro de 2015, foi a primeira vez na história da instituição que o auditório
realizou a exibição de um filme aberta ao público. Na ocasião, foi exibido “Kbela” (2015) de Yasmin Thayná, com a presença
da diretora e também da jornalista Sil Bahia, responsável pelo projeto de comunicação do filme para uma plateia lotada de
servidores e servidoras de diferentes níveis da ANCINE.
26 27
	 Tal como atestam todas as pesquisas do GEMAA, em especial o último
boletim publicado em junho de 2017, uma atualização dos dados das pesquisas
anteriores que ampliou o recorte temporal, passando a analisar o período de 1970
a 2016, no qual foram analisados além da direção, elenco e roteiristas dos filmes
com público acima de meio milhão de espectadores, com base nos dados disponi-
bilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA-ANCINE).
No resultado, a ausência completa de mulheres negras na função criativa mais
prestigiosa do cinema, como se pode ler a seguir:
“Entre os anos de 1970 e 2016 os filmes com grande público (acima
de 500.000 espectadores) foram predominantemente dirigidos por
homens (98%). Sequer um diretor não branco foi identificado, ainda
que pese o fato de não termos podido identificar 13% dos casos
por falta de dados. No que se refere ao gênero, chama atenção o
baixíssimo índice de mulheres na direção dessas produções, apenas
2%. Além disso, nenhuma delas é negra. [Grifos meus] “(Candido et al.,
Boletim GEMAA, n.2, 2017).
Essa ausência histórica “fricciona os limites da visibilidade”, como afirmou Ama-
ranta César. num debate sobre curadoria ao comentar sobre a trajetória singular
de “Kbela”, curta-metragem dirigido por Yasmin Thayná9
. O filme foi lançado em
setembro de 2015 no Cinema Odeon (uma das salas de cinema mais tradicionais
da cidade do Rio de Janeiro e que comporta 400 pessoas), em quatro sessões que
transcorreram durante dois fins de semana, com venda prévia de ingressos que se
esgotaram com antecedência10
. Até o fim de junho de 2017, o filme já tinha alcan-
çado mais de 85 exibições em todo o país e em mostras e festivais no exterior (em
países da África, Europa e também nos Estados Unidos)11
. E ainda assim, o filme
ficou de fora das seleções dos grandes festivais de cinema nacionais, como nos
lembra o crítico Heitor Augusto em uma reflexão fundamental sobre os filmes que
elegemos para ver e falar sobre. Diz Augusto: “Kbela tornou-se um filme invisibiliza-
do desse circuito prestigioso. Isso não deveria ter acontecido” (Augusto, 2017, p.4).
9. IV Colóquio Cinema, Estética e Política – As insurreições do presente. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=PAFYNMcZks
10. O sucesso do evento fez com que os responsáveis pelo cinema oferecessem à equipe do filme mais um fim de semana para
projeção, que lotou igualmente nos dois dias.
11. Um dos exemplos mais emblemáticos disto foi o fato de Yasmin Thayná ter sido a primeira diretora brasileira a participar
do Festival Internacional de Rotterdam em fevereiro de 2017, onde não só exibiu “Kbela”, mas também “Alma no Olho”, de
Zózimo Bulbul num painel chamado Black Rebels que contava com a presença dos diretores Barry Jenkins, Charles Burnett,
dentre outros nomes importantes do Cinema Negro mundial, e absolutamente nenhum meio de comunicação ou mesmo a
Ancine, noticiaram o fato.
	 Contudo, apesar dos números denunciarem uma realidade dura e com
um longo caminho pela frente a se transformar, penso que podemos ficar com a
presença e os avanços. Cultivando, por exemplo, uma expectativa positiva sobre
as políticas públicas considerando que a Ancine pela primeira vez incluiu “gênero
e raça” em seu planejamento estratégico para o quadriênio 2017-202012
. O que
proponho é que de algum modo nos inspiremos em “Kbela”, filme que aborda o
processo de construção e afirmação da identidade das mulheres negras, juntas,
reunidas, coletivamente, trabalhando para um processo de fortalecimento mútuo,
na superação das dificuldades estruturais da sociedade em que vivemos. “Kbela”,
disse em outro lugar, é um filme de celebração (Oliveira, 2016, p.197). Nesse sen-
tido, celebremos o florescimento de uma geração de diretoras que tem grandes
chances de alterar a médio prazo o status atual da representatividade das mul-
heres negras no cinema brasileiro.
12. https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/ancine-divulga-planejamento-estrat-gico-para-o-quadri-
nio-2017-2020
O Dia de Jerusa | Dir. Viviane Ferreira
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REFERÊNCIAS
AUGUSTO, Heitor “Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?”. In https://
ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-ou-o-problema-tambem-somos-nos-
mostra-de-tiradentes/. Acessado em 20/02/2017.
CANDIDO, Marcia Rangel; MARTINS, Cleissa, RODRIGUES, Raissa FERES Júnior, João.
Raça e Gênero no Cinema Brasileiro (1995-2016). Boletim GEMAA, n.2, 2017.
CANDIDO, Marcia Rangel; MORATELLI, Gabriela; DAFLON, Verônica Toste; FERES Júnior,
João. “A Cara do Cinema Nacional”: gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos
filmes brasileiros (2002-2012). Textos para discussão GEMAA (IESP-UERJ), n.6, 2014, p. 1-2.
CARVALHO, Noel dos Santos. “Esboço para uma História do Negro no Cinema Brasileiro”
In Carvalho, Noel e Jéferson De. Dogma Feijoada, o cinema negro brasileiro. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2005.
HOOKS, Bell, Black Looks: Race and Representation. Boston: South and Press, 1992.
IVANOV, Debora. Presença feminina no audiovisual brasileiro. I Seminário Internacional
Mulheres no Audiovisual, Ancine, 30 mar 2017.
MAIA, Carla. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres.
Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2015.
OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada”
aos dias de hoje. In FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Encrespando - Anais do I Seminário
Internacional: Refetindo a Década Internacional dos Afrodescentendes (ONU, 2015-2024).
Brasília: Brado Negro, 2016, p.175-198.
SILVA, Conceição de Maria Ferreira. Mulheres negras e (in)visibilidade: imaginários sobre a
intersecção de raça e gênero no cinema brasileiro (1999-2009). Tese de doutorado. Brasília:
UnB, 2016.
SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de
amor, afeto e identidade. Tese (doutorado). Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2013.
Das raízes às Pontas | Dir. Flora Egécia | Foto Janine Moraes
O OLHAR
DAS MULHERES NEGRAS EM FILMES
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O OLHAR DAS MULHERES NEGRAS EM FILMES
Kênia Freitas1
Ao olharem e olharem de volta, as mulheres negras se
envolvem em um processo por meio do qual vemos nossa
história como uma contramemória, usando-a como uma
forma de conhecer o presente e inventar o futuro.
Bell Hooks
Rita olha. O seu rosto de olhar fixo ocupa o plano inteiro. Rosto fortemente ma-
quiado e adornado de rainha da bateria. Ela transpira purpurina. Na voz off, ouvi-
mos as bênçãos e proteções da ancestralidade africana para os caminhos de Rita:
a mulher negra de olhos escuros que encara a câmera por quase 15 segundos. En-
tão, as pálpebras fecham acompanhando o beijo nas mãos que consagram o ritual
de proteção. É essa a primeira imagem de “Rainha” (Sabrina Fidalgo, 2016). São
pelos olhos da protagonista que entraremos na narrativa dos sonhos de reinado
de Rita frente à escola de samba. E também será pelo seu olhar fixo que sairemos.
1. Pós-doutoranda do programa de Mestrado da Universidade Católica de Brasília.Possui pesquisas em andamento no campo
do documentário, das novas tecnologias e do movimento afrofuturista. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema
e música em uma diáspora intergaláctica” (2015/ Caixa Belas Artes/SP) e “A Magia da Mulher Negra” (2017/Sesc Belenzinho/
SP). Integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
34 35
	 Após o final do filme, esse olhar nos persegue ainda: da mulher negra que
encara de forma frontal a quem assiste. Um olhar firme de mulher negra tão rara-
mente visto no cinema. Penetrante em sua imagem do rosto em close que domina
a quem assiste; mas penetrante também nas lacunas de genealogias que sustenta.
Afinal, como podem olhar as mulheres negras nos filmes? Quem constrói esses
olhares? E quem os encara e os sustenta? Quantos olhares como os de Rita vimos
antes em tela grande? E quantos desses foram construções de uma outra mulher
negra? Como agora os olhos de Rita são a construção de Sabrina Fidalgo...
	 Acreditamos, assim como defende Bell Hooks em seu texto seminal “O
olhar opositivo da espectadora negra”2
que olhar é uma questão de poder e tam-
bém (e por isso) de resistência. Poder de quem pode olhar livremente e quem não
o pode. Resistência de quem inventa outras formas de ver (o “olhar opositivo” da
espectadora negra como batiza Hooks), para manter-se crítico, para documentar
2. HOOKS, bell. “The Oppositional Gaze: Black Female Spectators”. Black Looks: Race and Representation. Boston: South End
Press, 1992. [Versão traduzida por Maria Carolina Morais, para o blog Fora de quadro. Disponivel em:
https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/].https://foradequadro.
com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/].
o dominante, para não ser totalmente vencido pelas imagens. Com o cinema, pas-
samos do olhar para a sua transposição em imagens. Ainda trata-se de poder e de
resistência, nesse caso tanto de quem comanda o olhar atrás das câmeras, tanto
de quem pode sustentá-lo livremente na frente dessas.
	 Nesse sentido, seguindo os olhares de Rita e de Sabrina Fidalgo, aposta-
mos que uma das entradas para se conhecer o cinema Feminino Negro Brasileiro
é o de se fazer um inventário dos olhares em seus filmes. E sobretudo dos olhares
criados sobre outras mulheres negras. A tarefa é ampla e complexa e nesse texto
deixamos apenas fragmentos desse inventário de olhares possíveis a partir de al-
guns curta-metragens dessa produção.
As meninas negras que olham e espelhos que não refletem
Em “Cores e Botas” (Juliana Vicente, 2010), seguimos os olhares de Joana, uma
menina negra de classe média alta que sonha em ser Paquita. A programação da
onipresente televisão na casa da família não nos deixa dúvida de que estamos nos
anos 1980: Xuxa comanda o seu Xou e Collor e Lula disputam a primeira eleição
presidencial direta pós ditadura militar. Mas, mais do que objeto cenográfico de
marcação histórica, a TV é também o que capta e não devolve os olhares de Jo-
ana. Assim, uma parte da coreografia da música das Paquitas é aprendida pelo
olhar fixo na tela, pela observação dos corpos brancos de cabelos loiros da apre-
sentadora e das suas assistentes. Outra parte, Joana apreende voltando-se para
o espelho e observando os movimentos do seu pequeno corpo negro. As duas
imagens, a do espelho e a da TV, divergem e jamais poderão coincidir.
	 Além de olhar, Joana é também olhada atentamente ao colocar o seu
corpo em performance para a seleção de mini Paquitas, na apresentação escolar.
Os olhos das colegas e das avaliadoras, todas brancas, a perseguem, a julgam e
denunciam a estranheza do seu corpo de menina negra simulando a imagem loira
da TV. E, nesse momento, Juliana Vicente reparte o seu olhar no filme: preserva a
visão eufórica de Joana que imagina apenas olhares de aprovação e celebração
diante do seu número; mas mostra ainda os mesmos olhares brancos que aprisio-
nam e recriminam o corpo negro fora do lugar.
	 Esse jogo de olhares se inverte em outro momento fundamental já próxi-
mo ao final do filme, quando Joana e sua família jantam em um restaurante de elite.
Rainha | Dir. Sabrina Fidalgo
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Diante da decepção da menina (preterida para ser Paquita) e dos comentários do
filho adolescente apontando o racismo da situação, é a família quem olha para as
mesas ao lado e se percebe deslocada entre todas as outras mesas com apenas
pessoas brancas. Os olhares permanecem perdidos na volta para a casa - a im-
possibilidade do espelho não está apenas na televisão, mas também no cotidiano.
Joana é quem resolve o impasse, ao descobrir a possibilidade de construção das
próprias imagens pela fotografia. A menina que queria ser Paquita agora treina para
ser fotógrafa. O controle do olhar e da imagem é assumido enfim pela criança negra.
	 Em “Entre Passos” (Elen Linth, 2012) a imagem que não corresponde
às aspirações da infância negra é a da bailarina. Porém, no curta de Elen Linth,
longe do lar confortável da família de classe média, a infância da menina negra é
marcada pelo medo e pela violência. Violência essa que se mostra nos olhares
das mulheres negras no filme: os olhos espantados da menina e os aterrorizados
da mulher (distanciadas pelo passar dos anos, mas conectadas pela memória de
dor). Esses olhares denunciam o que a diretora não precisa nos mostrar para que
enxerguemos - o abuso e a agressão doméstica.
	 No filme de Elen Linth, a menina permanecerá impotente e será apenas
a mulher quem conseguirá, anos depois, recuperar algum controle. Se a memória
violenta resta como ferida, as marcas físicas agora sao as pintadas pela própria
protagonista com batons e sombras da maquiagem diante da câmera (que simu-
la um espelho). O controle é reivindicado pelos movimentos de dança que enfim
podem ser performatizados (a bailarina mulher negra) e também pelo olhar frontal
para a câmera enquanto esse rosto marcado pinta-se obsessivamente.
Em ambos os filmes o olhar infantil anseia por imagens que não o refletem (a Pa-
quita, a bailarina inocente). Em ambos, esse olhar aprenderá a se reajustar desde a
infância. E voltamos outra vez a Hooks e `as suas observações sobre a construção
de olhar da mulher negra. A autora percebe um vínculo direto entre as experiên-
cias infantis nas famílias negras dos adultos que punem o olhar fixo da criança, o
encarar, e uma espécie de medo e fascínio que o controle desse olhar passam a
exercer no imaginário infantil. Para Hooks possivelmente existe uma relação dessa
proibição infantil com a interdição histórica de enc arar ou olhar fixamente que os
donos de escravos brancos impunham aos escravizados negros. Nos dois casos,
a repressão produziu um desejo de ver ainda maior e criou formas de reajustar/
reinventar modos de ver e modos de se produzir o olhar. Modos que reencon-
tramos no cinema de Juliana Vicente e de Elen Linth e das suas protagonistas
mulheres negras que reivindicam o controle das imagens que olham e a criação de
espelhos que as reflitam.
Os olhares solitários das mulheres negras
“A Boneca e o silêncio” (Carol Rodrigues, 2015) marca justamente o fim da infân-
cia de uma menina negra, Marcela. Essa transição no filme chega carregada já da
necessidade de tomar decisões adultas (no caso a interrupção de uma gravidez
indesejada). Se em “Cores e Botas” e em “Entre Passos” o controle é de alguma
forma retomado pelas protagonistas, o filme de Carol Rodrigues será caracterizado
por essa impossibilidade. E os olhares no filme mais uma vez nos ajudam a traçar
essa trajetória.
	 Assim, desde o início do filme vemos Marcela, a menina, quase mulher,
que olha para baixo. O seu olhar não ousa levantar-se, ele introjetou a proibição do
encarar, mas não conseguiu inventar para si outras formas de ver. Olhos solitários
(ainda que rodeados pela presença do pai e do namorado) que não tem força para
enfrentar. Solidão latente na cena em que Marcela e o namorado conversam na
cama - os olhos dele a encaram, os dela desviam para o teto.
A boneca e o silêncio | Dir. Carol Rodrigues
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	 Os movimentos da câmera no filme de Carol Rodrigues materializam a
solidão e a impotência da protagonista. Assim, é a distância com uma câmera que
mais espia/vigia de longe a personagem que vemos entrar na casa abandonada
onde o seu fim será traçado. Em outro momento, na ida de Marcela ao parque para
comunicar a decisão da interrupção ao namorado, a materialidade vem da ence-
nação, na qual todos os transeuntes e pessoas ao redor a encaram fixamente. E
os olhos de Marcela seguirão abaixados e sozinhos.
	 A solidão acompanhada de Marcela dá lugar ao isolamento efetivo de Je-
rusa, em “O Dia de Jerusa” (Viviane Ferreira, 2014). Idosa e solitária, Jerusa passa
o seu dia preparando-se para celebrar o seu aniversário com parentes que nunca
irão aparecer. Será o encontro com a jovem investigadora de opinião, Sílvia, que irá
mudar o seu dia.
	 Também no filme de Viviane Ferreira podemos nos ater aos olhares das
protagonistas como uma forma de investigar a narrativa. Aqui, o espelho para o
olhar não vem da televisão ou de uma outra imagem da branquitude (o filme é aliás,
todo encenado por atrizes e atores negros). O jogo de opostos se faz entre as duas
mulheres negras protagonistas, Silvia e Jerusa.
	 De início temos os olhos distraídos de Jerusa andando vagarosamente
pelas ruas em contraste ao olhar determinado/apressado de Silvia. Para a mais
velha o que resta é tempo para preencher, para a mais nova este é escasso (ape-
sar dos atropelos, ela chegou atrasada ao trabalho de novo). A oposição se torna
tangível no encontro das duas: Jerusa finalmente conseguiu a presença de uma
convidada para a sua festa e para ouvir as suas histórias; Silvia anseia apenas por
terminar de preencher o seu questionário e sair do local o mais rápido possível. Em
uma o olhar de nostalgia; noutra a impaciência.
	 E, por fim, acontece a abertura para o encontro: as duas mulheres se
olham. Frente a frente, Silvia embala as mãos de Jerusa para cantar o parabéns. A
cumplicidade entre as duas mulheres negras dá-se em uma troca de olhares que
não é mais apenas destinada `a câmera, mas uma `a outra. Temos então em “O
Dia de Jerusa” mulheres negras que se olham e olham de volta para o mundo. E
nesses gestos inventam laços e alianças, onde antes havia solidão e desencontro.
Conhecer o presente e inventar o futuro
Esse cinema feito pelas mulheres negras filmando mulheres negras parece respon-
der a ânsia avassaladora de olhar detectada por Hooks em seu texto. Ânsia que
surge como resposta a histórica e permanente interdição do olhar para as pessoas
negras. Como não nos deixa esquecer a autora, para nós negros, e sobretudo para
nós mulheres negras: olhar é um ato de resistência, olhar é político, e é também
uma possibilidade de intervenção na realidade.
	 Voltemos por fim então aos olhos de Rita, a rainha da bateria. O seu olhar
mais uma vez nos encara, agora na bela cena final do filme de Sabrina Fidalgo. Os
seus sonhos de realeza carnavalesca foram cruelmente esmigalhados. A avenida
do samba ficou para trás e Rita desloca-se para frente (em nossa direção). Drasti-
camente diferente do início do filme, o seu olhar está vazio, é impenetrável. O seu
rosto também é outro, adereços arrancados, cabelos soltos e armados, maquia-
gem destruída. Ainda assim, seus olhos são os pontos fixos em um plano-sequ-
ência em que tudo se desloca, corpo e cenário.
	 Seguimos olhando-a por quase dois minutos. E ela nos olha e não está
ali. Até que os olhos se fecham. E, aos poucos, ao se abrirem, Rita volta a habitar
o próprio corpo. Mãos, braços, olhar e sorriso executam uma dança para si, para
voltar a si. E só depois de retomar o próprio corpo de mulher negra, o seu movi-
mento se insinua para a câmera. Rita nos joga um olhar frontal reempossado de si:
habitado e cortante.
	 E, então, no cinema, uma mulher negra nos olha.
IMAGENS AFRO-BRASILEIRAS
EM MOVIMENTO:
CONSTRUINDO UMA FÁBRICA DE SONHOS
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IMAGENS AFRO-BRASILEIRAS EM MOVIMENTO:
CONSTRUINDO UMA FÁBRICA DE SONHOS
Lilian Solá Santiago1
O cinema talvez seja a forma de arte que mais dá margem a se falar sobre este-
reótipo, representação e racismo. Nascido ao apagar das luzes do século XIX,
essa forma de entretenimento marca definitivamente o século XX e fez dos Esta-
dos Unidos o país mais rico do mundo. Hoje, naquele país, o negócio de cinema
é superado grandemente pela indústria bélica, mas a capacidade do cinema de
propagar o modo de vida estadunidense por todo o mundo, e fazê-lo parecer o
padrão de normalidade, é a base da cultura hegemônica que, pouco a pouco, vai
uniformizando modos de ser e de viver por todo o planeta.
	 Gostava de cinema desde criança, mas sempre achei que as histórias
que ouvia de meus pais eram muito mais interessantes que as contadas nos filmes
1. Lilian Solá Santiago é documentarista, produtora cultural, pesquisadora e professora de audiovisual. É formada em História e
é Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, onde participa do Grupo de Pesquisa LabArteMidia
(Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais), da Escola de Comunicações e Artes. É criadora da Casa da Memória Negra
de Salto - SP (2016).
44 45
de sessão da tarde. Minha primeira infância foi muito rica em narrativas orais
familiares. Via as histórias de minha família como sagas épicas, originadas em
outros continentes, que atravessavam séculos de geografias diversas e desem-
bocavam em mim. De meu pai, um homem do início do século XX, com raízes
africanas fincadas nas montanhas de Minas Gerais, recebi muitas fábulas conta-
das por sua avó, uma ex-escrava que mal sabia falar português. De minha mãe,
que trazia a força dos índios, “negros da terra pegos a laço”, ouvia narrativas de
canoas singrando rios caudalosos de Goiás, atravessados por sua mãe até en-
contrar meu avô, um saudoso catalão cheio de histórias e canções de Barcelona,
que pioneiramente se fixaram na cidade de Goiânia. Assim, muitos antes de mim
cruzaram rios e oceanos, até que meu pai e minha mãe se conheceram em São
Paulo, num momento em que a cidade começava a explodir e atrair imigrantes de
toda a parte. A família (quase) toda se forma no início dos anos 1950 – pai, mãe
e cinco filhos. Só faltava eu, que vim para essa família de filhos adultos somente
nos anos 70.
	 Das histórias narradas, me apaixonei pelas histórias escritas. Livro,
quanto mais grosso melhor! Mas não tinha acesso a tantos livros quanto gostaria
e o passatempo maior mesmo era a televisão – via desenhos pela manhã, “Sítio
do Pica-pau Amarelo”, todas as novelas. A TV era minha atividade principal de
contra-turno escolar. Aos domingos, pastel de feira, frutas da estação, e “Qual
é a Música?”, do Silvio Santos. Lembro também de grandes séries dramáticas,
assistidas enquanto fingia estar dormindo no colo de minha mãe, como a incrível
“Negras Raízes”.
	 Um de meus irmãos trabalhava com produção de cinema. A primeira
vez que participei de um set de filmagem como figurante foi determinante para
minhas escolhas futuras. Era o filme “Ao Sul do Meu Corpo”, de Paulo Cesar
Saraceni, lançado em 1982. Como meu irmão era assistente de produção, uma
semana antes de minha participação, já tive acesso à foto que fazia referência ao
“personagem” que eu faria. Fiquei muito impressionada com a imagem de época,
que apenas mostrava uma menina negra, com uma roupa de colegial, passando
em frente a um lambe-lambe no final dos anos de 1930. Imaginava que, por estar
representando alguém que poderia estar morta, poderia me conectar com ela
de alguma forma e, por um pequeno espaço de tempo, podia sentir como ela se
sentiu naquele momento. Constituir o figurino daquela personagem também foi
uma deliciosa aventura: ver que aquela composição, antiga na tela, podia ser feita,
mesclando roupas da produção com as minhas próprias roupas, foi uma grande
descoberta sobre o fazer cinematográfico.
	 No dia da filmagem, o que mais me impressionou, além de ficar o dia
todo subindo e descendo uma escada para filmar apenas uma cena, foi almoçar
numa grande mesa com a atriz principal, Ana Maria do Nascimento e Silva, vestida
com seu figurino de época, junto com todos os técnicos da “pesada” - eletricistas
e maquinistas. Fiquei fascinada com a atriz naquelas lindas roupas e que, no meio
da conversa, soltava sonoros palavrões, que fazia todos rirem juntos. Eu, que não
podia falar nem um palavrãozinho em casa sem levar um tapa na boca, achei
aquilo o máximo e pensei: “quero trabalhar com isso, que a mulher pode ser linda
e falar palavrão à vontade!”. O fazer cinematográfico no Brasil, nos idos anos de
1980, tinha um certo ar de utopia anarquista. Havia uma hierarquia, evidentemente,
mas era invisível aos meus olhos infantis, e eu me encantei com aquilo. Mas logo
percebi que não seria como atriz que eu poderia fazer parte desse sonho, uma vez
que os lugares reservados às mulheres com minha tonalidade de pele nos filmes e
novelas não era exatamente o das lindas protagonistas...
	 No segundo grau, sai da Escola Adventista onde estudei desde a primei-
ra série e fui para a Escola Pública. Não pude acreditar no que vi - foi um choque
de realidade! Eu, que achava a escola particular onde sempre estudei muito ruim,
defasada e retrógrada, pasmei diante do ensino público estadual paulista caótico,
onde os professores em sua maioria fingem que dão aulas e os alunos fingem
que estudam. Senti que, na verdade, todos não fazem senão esperar a hora de
se libertarem daquele tormento obrigatório, repleto de aulas vagas, sirenes, por-
tões que se fecham para o mundo, paredes mal cuidadas. Não podia acreditar em
tamanho desperdício de coletividade humana! Aí me tornei ativista: entrei para o
movimento estudantil, buscando formas de lutar, segundo minhas possibilidades,
contra aquela situação que considerava (e ainda considero) totalmente injusta. Vi-
rei militante, ia às escolas palestrar sobre a fundação de grêmios, conheci muitas
pessoas, e um novo mundo se abriu para mim.
	 No início dos anos 90, vi-me obrigada a entrar para o tal do “mercado
de trabalho”. Comecei a fazer assistência de produção em comerciais, mas aspi-
rava trabalhar em filmes, em participar da historia do audiovisual brasileiro, contar
46 47
nossas histórias nas telas, reviver aquela experiência tão marcante que tive com
“Ao Sul do Meu Corpo”. Mas eram tempos sombrios para o cinema brasileiro: a
Embrafilme tinha sido extinta em 1990 e o governo Fernando Collor de Mello tinha
acabado com todas as possibilidades de financiamento ao cinema brasileiro. Em
1992, apenas três filmes brasileiros foram lançados.
	 Mas eu queria fazer cinema. Na minha ingenuidade de então, pensei em
estudar administração pública no intuito de ajudar a fomentar incentivos à produ-
ção audiovisual brasileira. Mas no meio do processo percebi o quanto gostava de
História e, assim, ingressei nesse curso na Universidade de São Paulo em 1993. Á
essa época, o centro de São Paulo me fascinava muito: passava muito tempo em
cineclubes onde via de tudo, mas principalmente cinema brasileiro. Também con-
vivi com os últimos suspiros da Boca do Lixo paulistana ligada ao cinema, como o
bar Soberano e sua incrível fauna urbana.
	 Em 1993, o panorama cinematográfico brasileiro começou a se trans-
formar com a promulgação da Lei do Audiovisual e, no ano seguinte, lá estava eu
na equipe do primeiro filme de longa-metragem que trabalhei como técnica - “Os
Matadores”, de Beto Brant. Que alegria: estava fazendo cinema brasileiro! E como
me esforçava... Trabalhava muito, e sentia que o filme era tanto meu quanto do
produtor ou do diretor. Era meu sonho se realizando: de estagiária, passei a as-
sistente de produção na primeira semana de filmagem e, com orgulho, acordava
antes de toda a equipe, providenciava as refeições, organizava planilhas, ajudava
no set, fazia figuração... Um trabalho intenso, mas feito com muito amor!
	 Com o tempo, aprendi a fazer projetos e a operar com as leis de incen-
tivo à cultura. A morte de meu pai me surpreendeu no meio do curso superior de
História, curso este que inviabilizava a história de meus antepassados negros e
indígenas, aí entrei em crise: onde estavam as histórias dos povos que me consti-
tuem? Onde estavam os filmes que contavam essas histórias? As historias épicas
de minha infância começaram a gritar por representação, através daquelas colu-
nas que sustentavam o pé direito modernista de uma universidade eurocêntrica e
machista, que não me representava, e que reproduzia como papagaio uma história
igualmente eurocêntrica e machista. Tinha que fazer alguma coisa! Esses questio-
namentos me levaram a entrar em contato com a dança afro, depois a dar os pri-
meiros passos na religiosidade afro-brasileira e, enfim, a buscar um cinema negro.
Graffiti | Dir. Lilian Solá Santiago
	 Tinha alguns poucos pares negros no audiovisual: meu irmão Daniel, o
colega e contemporâneo Jeferson De, e alguns poucos diretores que em seguida
formaram o Cinema Feijoada. Juntos fizemos o ‘I Encontro de Cineastas Negros
em São Paulo’, mas nunca fui oficialmente do Cinema Feijoada, que era um grupo
de diretores, e eu à época era produtora. Em 1996, uni forças com meu irmão Da-
niel para fazer “Família Alcântara”, lançado apenas em 2006. Comecei o projeto
como produtora executiva, meu irmão era o diretor. Mas, depois das filmagens e
de um primeiro corte de edição, resolvi encarar também o trabalho da codireção e
roteiro. Esse filme foi minha escola como realizadora – produtora, diretora e rotei-
rista: dez anos dedicados à sua produção, entremeados por trabalhos de produ-
48 49
ção executiva com outros diretores e produtores. Fazê-lo era um grande desafio:
queríamos nos comunicar com a população afro-descendente prioritariamente
(53% da população brasileira), mas que pouca representação tinha como público
consumidor de cinema (notadamente pessoas das classes A e B, majoritariamente
brancos), então para alcançar nosso público alvo, tínhamos que fazer um filme
para TV. Fomos à TV Cultura e obtivemos a confirmação de que eles passariam
nosso filme, mas que não o apoiariam financeiramente. Mas como fazê-lo sem
nenhum subsídio? Com a garantia de exibição, entramos numa empreitada maluca
de fazer um filme para TV, mas com a Lei do Audiovisual (que é específica para pro-
duções de cinema). Ao final de dez anos, lançamos o filme de 56 minutos (tempo
de documentário para TV) no cinema, e ele ficou cinco semanas em cartaz, muito
mais do que a maioria dos filmes brasileiros da retomada até hoje conseguem ficar.
Até chegar à TV foram mais dois anos.
	 Mesmo dirigindo “Família Alcântara”, ainda me via apenas como produ-
tora executiva, mas uma nova reviravolta estava por vir. Antes de lançar o filme, co-
mecei a colaborar num projeto audiovisual para uma organização sem fins lucrati-
vos, a Lua Nova, que trabalha com mães adolescentes em situação de risco social.
Neste projeto, conheci a documentarista colombiana Sylvia Mejia e sua técnica de
vídeo-transformação - uma técnica social que usa o vídeo não para produção de
produtos audiovisuais, mas para empoderamento de pessoas e grupos. Durante o
processo, vi a vida daquelas meninas se transformar, assim como a minha. Ao final,
encabecei a realização de dois vídeos na Lua Nova e, a partir de então, tornei-me
definitivamente realizadora: produtora, diretora e roteirista. À essa época eu já tinha
terminado “Família Alcântara”, mas ainda não o tínhamos lançado.
	 No mesmo ano de lançamento de “Família Alcântara”, realizei o projeto
“Balé de Pé no chão” – um curta-metragem subsidiado por um edital afirmativo
que se transformou num documentário para TV em coprodução com a TV Sesc, e
que codirigi com a pesquisadora de dança Marianna Monteiro. É incrível constatar
a diferença entre os projetos: fiz dois filmes consecutivos com o mesmo tempo
de duração - 56 minutos para TV. Mas enquanto o primeiro demorou dez anos
para ser lançado, o segundo foi visto menos de um ano depois da primeira ideia.
Mas não fui só eu que mudei, as condições externas também se alteraram muito:
estávamos num “novo” Brasil, com muito mais possibilidades para inclusão dos
que foram historicamente deixados à margem, inclusive com fomento do Governo
Federal. Depois de “Balé de Pé no Chão”, montei uma sede fixa para a minha
empresa produtora e comecei a fazer projetos de documentários principalmente
sobre personagens e histórias negras, além de mostras de cinema sobre o tema.
	 Mas uma nova porta ainda estava por se abrir. Sempre fui muito ligada
ao magistério – meu pai era motorista e professor de alfabetização para adultos,
minha irmã também é professora, e eu a auxiliava desde muito cedo. Comecei, a
princípio, a dar aulas uma vez por semana, como professora substituta, na Univer-
sidade Federal de São Carlos. Mas fiquei tão entusiasmada com a experiência que
fui fazer Mestrado, justamente sobre as experiências de vídeo-transformação com
Sylvia Mejia.
	 Minha inquietação e vontade de estudar me levaram a lugares nunca
imaginados, quando comecei minha trajetória. Hoje sou documentarista, me dedi-
co ao ensino superior e à pesquisa audiovisual e realizo um festival de cinema em
Salto, no interior de São Paulo.
	 O Brasil tem uma enorme dívida com o imaginário da maior parte da
população brasileira. A televisão, que serviu de unificador dessa nação desigual,
proporcionou um espelho que não reflete nosso rosto, nossas batalhas, nossos
conflitos. Entendo hoje que, para devidamente honrar a história negra e indígena
no Brasil, mais que sermos representados nos filmes e na TV, essa história precisa
estar nas Escolas e nos Museus. Admiro a existência de museus específicos, como
o maravilhoso Afrobrasil, assim como reitero a importância da implantação da Lei
10.639, sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, mas advo-
go firmemente pela presença negra e indígena em todos os museus brasileiros e
transversalmente em todos os conteúdos escolares, uma vez que indígenas são os
donos da terra e afro-brasileira é a maior parcela da população atual.
	 Meu mais recente projeto, justamente, é uma instalação multimídia num
museu – a “Casa da Memória Negra de Salto”, que faz parte da exposição perma-
nente do Museu da Cidade. Trabalhando com documentário expandido, a instala-
ção é feita a partir de uma ampla pesquisa histórica que reúne bibliografia, docu-
mentos, depoimentos e objetos, apresentando essa pesquisa ao público, através
50 51
Balé de Pé no Chão | Dir. Lilian Solá Santiago e Marianna Monteiro
da instalação de uma casa caipira negra, aos moldes das que eram construídas
nessa cidade no início do século XX, segundo os relatos colhidos, equipada com
vários dispositivos tecnológicos audiovisuais que trazem até nós a memória da
população negra que formou essa cidade.
	 Sigo com esperança, acima de tudo. Esperança que dias melhores virão,
de que esse país enfim honrará sua história e seu povo, indígena e negro, à altura
do que seus sangues derramados merecem. Esperança de que a representação
afro-brasileira no cinema vá muito além dos estereótipos racistas reinantes, e que
nossa beleza única, brasileira, permaneça por muitos e muitos séculos. É esse
sentimento que me mobiliza a seguir pesquisando, criando e produzindo obras que
retratem os saberes e fazeres de nossa ancestralidade.
SAIR DO ARMÁRIO
E OUSAR DIZER SEU NOME:
PRAZER, CINEMA LGBT!
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SAIR DO ARMÁRIO E OUSAR DIZER SEU NOME:
PRAZER, CINEMA LGBT!
Labelle Rainbow1
O cinema é um universo majoritariamente de homens brancos, pseudo-heterosse-
xuais e elitistas. Nesse mesmo espaço, quase tudo é negado às mulheres, princi-
palmente se forem negras e/ou lésbicas. Fazer cinema no Brasil é uma luta cheia de
obstáculos para as realizadoras negras. Em um contexto geral poucas produções
buscam denunciar as desigualdades que ainda existem na produção cinematográ-
fica brasileira.
	 Ainda assim, acredito que o cinema pode abordar e fortalecer muitas te-
máticas. Historicamente, é muito comum que o Estado brasileiro não cumpra o seu
papel, ficando para a sociedade e a classe artística atuarem no papel de informar a
população, de passar mensagens, de romper com a lógica das grandes produções
hegemônicas e transmitir algo que possa desconstruir padrões, ideias opressoras e
propor transformações.
1. Labelle Rainbow é Trans, Negra, estudante de Comunicação Social/Publicidade e Propaganda, designer, militante de esquerda
e dos movimentos sociais. Nos últimos anos tem atuado com ênfase na luta pelos direitos humanos da população LGBT, na
construção e controle social de políticas públicas no combate à LGBTfobia, racismo e machismo, em diversos processos de
participação política, em seminários, conferências, debates e atos públicos. Participa da realização do “For Rainbow”, desde o
ano de 2008 de forma ininterrupta. Em 2016 foi estrela do documentário “Labelle”, um filme de Isabel Nobre, produzido pelos
alunos do curso audiovisual da ONG Fábrica de imagens.
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deve se fortalecer no entendimento de que um cinema sem racismo, só será pos-
sível se também for sem machismo, sem classismo e sem LGBTfobia.
	 Atualmente, o cinema com temática LGBT no Brasil permite traçar um
painel cinematográfico brasileiro que ainda passa pela discriminação e preconceito
latentes no país, mas também aponta novos horizontes.
	 O cinema LGBT brasileiro possui uma trajetória de muita força, desde os
anos 1990. Nas últimas décadas, a produção cinematográfica com esse recorte
se reinventou e se pluralizou em uma gama de aspectos que visibilizam e afirmam
identidades de uma população historicamente estigmatizada.
	 É fato que alguns cineastas brasileiros, recorrentemente, têm se dedica-
do a produzir filmes protagonizados por personagens LGBT, que, com suas his-
tórias, sejam ficção ou documental, apresentam um caleidoscópio de representa-
ções desse universo. Essa atuação também fortalece e evidencia a necessidade
de travar o debate da cultura LGBT através da sétima arte.
	 O cinema que sai do armário e que ousa dizer seu nome traz uma impor-
tante contribuição na luta por uma sociedade mais justa e plural, pois ainda não é
fácil adentrar nessa esfera. A tímida iniciativa do poder público em garantir incen-
tivos ainda dificulta muito. Existe também a preocupação de engajamento político
de realizadores e de produtores cinematográficos em criar uma representação me-
nos caricata,  a fim de não reforçar e/ou reproduzir estereótipos. Um contraponto
interessante é que dentro desse mesmo universo do cinema LGBT, é ampla a pro-
dução cinematográfica que se refere às identidades de travestis, de transexuais e
da arte transformista.
	 “Um homem branco cisgênero como personagem central? Parece uma
forma de apagar os gays e trans negros e latinos para deixar a história mais atra-
ente para a telona” - declaração da estudante Pat Cordova-Goff, uma jovem trans-
hispânica, que iniciou um boicote na Internet depois da estreia do trailer do filme
“Stonewall”, do diretor alemão Roland Emmerich, que aborda as revoltas no bar
Stonewall, em Nova York, onde nasceu o movimento LGBT. As revoltas em 28 de
junho de 1969 são o grande levante do movimento gay; cabendo ressaltar que
os gays e as transexuais negros e latinos tiveram um papel muito forte naqueles
acontecimentos e são comumente apagados da história com o ‘branqueamento’ e
‘higienização’ da luta LGBT.
	 Vejamos o caso do filme “Amor Maldito” da cineasta negra Adélia Sam-
paio. Foi o primeiro longa-metragem a ser dirigido por uma mulher negra no Brasil
e realizado em sistema de cooperação coletiva entre os técnicos e os atores. Para
ser lançado, em 1984, o filme teve que se passar por filme pornô; um verdadeiro
absurdo com um filme que apresenta uma importante abordagem da afetividade
lesbiana. Contudo essa foi a estratégia possível na época.
	 Segundo o boletim “Perfil do Cinema Brasileiro (1995 – 2016)”, do Gru-
po de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, dos 219 filmes nacionais de maior bilheteria nas duas
últimas décadas, nenhuma mulher negra atuou como diretora ou roteirista. Esse
levantamento também mostra que as mulheres negras estão nas produções mais
baratas, como documentários e curtas, mas não estão nas grandes produções de
cinema. Essa sub-representação tem raízes históricas e mostra o lugar no qual as
mulheres têm, a todo momento, sua autoridade questionada e/ou o seu conheci-
mento colocado à prova.
	 Nesse mesmo universo de baixa produção representativa, seja por meio
de política de editais, seja em financiamentos coletivos, seja em trabalhos acadê-
micos nas universidades, os filmes com grande expressão e qualidade técnica que
são apresentados nos maiores festivais do país, são os filmes feitos por mulheres
negras. É nesse contexto que novos horizontes se apresentam como possíveis.
	 É necessário formar novas redes para distribuição de filmes, promover
espaços de debates entre realizadorxs, produtorxs, junto de todxs os componen-
tes da cadeia produtiva do mercado de cinema. Sobretudo, debater nossa identi-
dade e representação, nas diversas produções audiovisuais brasileiras. Para além
das sessões de exibição, uma nova estética, novas narrativas precisam chegar a
novos espaços e territórios nesse Brasil continental. Essas distâncias regionais,
culturais, econômicas, ideológicas, corporais precisam ser quebradas. Nossa arte
e nossas vidas são a grande riqueza.
	 Audre Lorde, uma escritora americana de descendência caribenha, fe-
minista lésbica e ativista na luta pelos direitos humanos, afirmou, em um de seus
textos, que não há hierarquia de opressão. A luta social contra qualquer forma de
opressão deve ser de todas e todos e, assim sendo, ninguém deve ser apagadx
nessa luta. Os movimentos sociais, LGBT, feminista e negro, sempre caminharam
bem próximos na luta por justiça social no nosso país. Apesar de alguns recortes
serem necessários para se reconhecer privilégios, essa proximidade ideológica
58 59
	 Mesmo com tais desafios, a produção audiovisual LGBT cresceu muito,
a ponto de movimentar o universo cinematográfico. É onde nascem os festivais
de cinema LGBT também nos anos 1990. Com a intenção  de divertimento e,
sobretudo, na autorrepresentação das lutas contra a LGBTfobia e na crítica ao
modelo de sociedade heteronormativa.
	 É nesse contexto que também nasce o “FOR RAINBOW – Festival de
Cinema e Cultura da Diversidade Sexual”, em 2007, na cidade de Fortaleza (CE),
com a proposta de introduzir no calendário cultural do Estado do Ceará um even-
to com a missão permanente de difundir e valorizar o aporte cultural e a pro-
moção da cidadania das populações LGBT, incentivar a produção audiovisual,
promover o respeito à diversidade sexual e a cultura de paz.
	 Em dez anos, o “For Rainbow” celebra um intenso trabalho de resis-
tência cultural, tendo como protagonistas principais artistas de várias partes do
mundo, principalmente do Ceará, que emprestam sua arte para contribuir com a
construção de uma cultura que garanta dignidade e direitos iguais a mulheres e
homens, sem discriminação de orientação sexual, crença, étnico-racial ou identi-
dade de gênero.
	 Nessa trajetória, o festival exibiu mais de 700 filmes, alcançou mais de
300 espaços culturais de todo o Brasil, capacitou mais de 800 pessoas em ofi-
cinas técnicas e de sensibilização para o respeito à diversidade sexual, produziu
20 filmes e atingiu um público médio de 50 mil pessoas com atrações envolvendo
várias linguagens artísticas (cinema, música, teatro, dança, artes visuais, literatura
e performances diversas), além de proporcionar centenas de oportunidades de
trabalho. O Cinema foi escolhido como a principal linguagem artística devido à
capacidade de aproximar pessoas de diferentes identidades sociais.
	 O Festival cresceu bastante e não se limitou somente às mostras audio-
visuais, pois as mostras de cinema não são o palco principal do “For Rainbow”.
O festival sempre foi construído como um grande espaço de convivência pra
ser um instrumento de transformação social, através da arte em suas múltiplas
linguagens. Apesar do recorte temático, o “For Rainbow” já se consolidou como
um festival de grande porte, que se distancia do espaço secundário do meio au-
diovisual. O “For Rainbow” também atua na formação de cineastas por meio de
oficinas, palestras e atividades de realização audiovisual, para diversas áreas de
produção cinematográfica.
Making of do filme Maria | Dir. Elen Linth e Riane Nascimento
60 61
anos de luta, atuei com importantes contribuições em algumas instituições da so-
ciedade civil de Fortaleza em áreas como cinema, direitos humanos, juventude,
comunicação alternativa, movimento negro e LGBT. Todo esse acúmulo hoje é
fundamental para fazer conexões necessárias nas lutas pelos direitos humanos da
população LGBT, na construção e controle social de políticas públicas no combate
à LGBTfobia, ao racismo e ao machismo, em diversos processos de participação
política, em seminários, conferências, debates e atos públicos.
	 Tenho participado da realização do “For Rainbow”, desde o ano de 2008
de forma ininterrupta, e em toda essa trajetória, sempre considerei importante pro-
mover e garantir as diversas representações populacionais em seus mais diversos
contextos através não só do cinema, mas em outras linguagens artísticas sempre
alinhada com o debate do empoderamento, da valorização cultural.
	 O cinema com foco na diversidade sexual se coloca como uma ferramen-
ta pedagógica e cultural,  que possibilita uma infinidade de intervenções, produzin-
do valores estéticos e socioculturais com amplas condições de consumo. Tendo
em vista esse caráter pedagógico, o debate do respeito às diferentes formas de vi-
ver a sexualidade se coloca como fundamental, agregando valores e fundamentos,
inclusive na luta por direitos humanos, contra a violência e contra a intolerância de
gênero. De certa forma, esse cinema, que também é rotulado, apresenta-se como
produtor de signos de poder.
	 O grande desafio que se apresenta ao audiovisual brasileiro é se trans-
formar, de fato, em um espaço de representação da diversidade das populações
historicamente excluídas e marginalizadas com muito mais cores, mais diversidade
e mais empoderamento revolucionário.
	 Ainda é necessário causar um grande rebuliço na cena cultural do país.
O cinema se coloca como uma das importantes ferramentas para isso e já abre
caminhos que apontam um cinema esteticamente eclético, com linguagens mais
diversas, mas que se unifica e se reconhece pela diversidade sexual, pela luta por
direitos, por reconhecimento e pelo amor.
	 Os critérios de seleção das mostras audiovisuais são a qualidade dos
filmes, levando em consideração direção, fotografia, roteiro e narrativas que ex-
pressem de fato a diversidade da população LGBT e a grande leva de produções
culturais com essa temática. A qualidade dos filmes LGBT melhorou significativa-
mente, seguindo uma tendência do atual cinema nacional.  E esses filmes contri-
buem muito com as lutas dos movimentos LGBT, que, no geral, são documentários
e possuem um tom mais informativo. Apesar de não ser uma prioridade na mostra
competitiva do festival, um dos critérios de seleção para as mostras é o caráter
libertador desses filmes, que fogem às abordagens estereotipadas de muitas pro-
duções convencionais. São filmes que, algumas vezes, mostram realidades extre-
mamente difíceis, mas que mantêm a identidade afirmativa e de resistência cultural
do nosso festival.
	 Dentro desse cenário, uma realidade que sempre esteve presente na
curadoria dos filmes é a preocupação em garantir filmes que representem, de for-
ma significativa, os segmentos da população LGBT e as suas diversidades subjeti-
vas. Tem sido uma tarefa árdua conseguir rechear uma programação de sete dias.
Procuramos muito por filmes com temática lesbiana, feitos por mulheres. Procura-
mos bastante por filmes que tragam a diversidade brasileira, filmes com narrativas
negras e indígenas, filmes feitos e com participação ativa de negras e negros.
Ainda temos dificuldade em conseguir nos aproximar desse tipo de produção, ora
por motivos temáticos, ora por uma baixa produção nesse campo.
	 Essa é mais uma realidade muito comum dentro do mercado audiovisual
brasileiro (”Nós somos muitos e estamos em todos os lugares”) – ideia difundida no
surgimento do ativismo gay, porém toda essa diversidade não se vê representada
nem nas telinhas e muito menos nas telonas. Como enfrentamento e resistência,
buscamos fechar parceria com outros festivais e mostras audiovisuais. Em uma
década de festival tivemos como parceiros: FEMINA - Festival Internacional de
Cinema Feminino”, “Curta Santos”, “RECIFEST - Festival de Cinema da Diversi-
dade Sexual e de Gênero”, “LESGAI Cine Madri”, “Mindelo Pride de Cabo Verde”,
“Mujeres Al Borde de Bogotá”. Toda essa parceria contribui para que o festival
mostre uma vasta diversidade de produções nacionais e internacionais e o coloca
alinhado a um contexto internacional.
	 Minha experiência como militante dos movimentos sociais desde os 14
anos me mostra hoje que viver é um ato político e revolucionário. Durante esses
Adélia Sampaio começou no cinema em 1967, através da Difilm, distribuidora fun-
dada por Rex Endsley, Riva Faria, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá
Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos, Leon
Hirzman, Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias. Ela aprendeu cinema na prática,
como diretora de produção de diversos longas-metragens.
Filha de empregada doméstica, Adélia Sampaio dirigiu quatro curtas-metragens. O
primeiro foi “Denúncia Vazia”, baseado no fato verídico de um casal de idosos que,
sem condições de pagar o aluguel, cometem suicídio. O segundo curta foi “Agora
Um Deus Dança em Mim!” e conta a história de uma jovem que estuda balé clássico
por dez anos e descobre que não existe mercado de dança no Brasil. “Adulto não
Brinca” mostra a intolerância do adulto para com a criança. Por fim, “Na poeira
das Ruas”, sobre pessoas que moram na rua, no centro da cidade, embaixo dos
viadutos. Armazenados na Cinemateca do MAM, os negativos dos quatro curtas-
-metragens desapareceram.
Em 1984, Adélia Sampaio se tornou a primeira diretora afrodescendente a dirigir
um longa-metragem no Brasil: “Amor Maldito”, que também carrega o peso de ser
o primeiro filme com temática inteiramente lésbica no cinema nacional. A ousadia,
considerada absurda pela Embrafilme, que lhe negou financiamento, forçou Adélia
Sampaio e sua equipe a trabalharam em regime de cooperativa. Emiliano Queiroz,
Nildo Parente e Neusa Amaral abriram mão do pró-labore. Nenhuma sala, contudo,
aceitou exibí-lo, até que o Cine Paulista (hoje Olido) propôs que “Amor Maldi-
to” fosse divulgado como filme pornô. Adélia Sampaio foi a pioneira e, embora o
cinema continue marcadamente patriarcal e branco, diretoras afrodescendentes
ocupam cada vez mais espaço atrás das câmeras.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Gostaríamos de saber
mais sobre o seu início no cinema. Como se deu a sua entrada no campo do ci-
entrevista com adélia sampaio
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nema? E como foi esse percurso interno dos primeiros trabalhos até você dirigir
os primeiros filmes? A gente sabe que ao longo da sua trajetória você ocupou
várias funções antes da direção, então gostaríamos de saber quando e por que
você decidiu dirigir e escrever os próprios filmes? E no seu percurso também
você trabalhou com diversos profissionais do cinema: entre esses, quais foram
os mais importantes para você: os que te ensinaram e/ou trocaram mais com
você?
Adélia Sampaio: Meu início no cinema foi em 1967. Na ocasião, fui contratada
como telefonista, para atender o pessoal do Cinema Novo... Mas o meu inte-
resse com cinema, ele começou quando eu tinha 13 anos, e tinha acabado de
chegar à cidade vinda de um asilo de crianças carentes no interior de Minas
Gerais. Na época, eu fui levada por minha irmã, Eliana Cobbett, para entrar pela
primeira vez em um cinema e assistir a estreia do filme “ Ivan, o Terrível” (Sergei
Eisenstein, 1944). Fiquei muito assustada com um cinema cheio e ao pipocar o
filme na tela, eu me encantei como um passe de mágica. Ao terminar o filme,
confidenciei à minha irmã:
- É isso que quero fazer: Colocar a gente na tela do cinema!
Eu me recordo que ela sorriu e disse:
- Não viaja Adélia! Para com isso...
Eu de fato trabalhei com muitos profissionais, como o Marcos Farias, William
Cobbett, Alcino Diniz, Pedro Rovai, Joaquim Pedro, Leon Geraldo, Santos Pe-
reira e Lulu de Barros.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Bom, você realizou
diversos curta-metragens na sua carreira, você pode falar um pouco sobre o
processo de criação e execução deles. Por exemplo, percebemos em alguns dos
seus curtas e no seu longa uma influência direta de casos verídicos (notícias de
jornal, etc). Isso é algo que te move ou te inspira?
Adélia Sampaio: Sim. Inspira-me e revolta-me. Daí eu penso que se escolhi a
ferramenta de cinema para falar, é então através dela que vou me manifestar.
Meu último trabalho foi uma parceria com a TV Câmara, o Paulo Markum e a TV
Cultura. Reconstituí com atores o dia em que foi proclamado o AI-5, o dia que
não existiu. Temos mostrado esse documentário por aí e 50% dos jovens não
tem noção do que significou este ato. Esperei que a tempestade passasse e em
2002 mostramos uma página triste de nossa história.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Sobre os curtas ainda.
Os negativos dos filmes estavam no MAM, mas sumiram. Existe algum trabalho
da Cinemateca pra localizá-los, ou de algum pesquisador? Você sabe se existe
alguma cópia dos filmes em algum outro suporte?
Adélia Sampaio: Meu filho tinha guardado com ele uma cópia de “Denúncia Va-
zia” (1979) e uma cópia de “Adulto não Brinca” (1980), em bitola 16mm. Porém,
as cópias precisam ser restauradas e isso é caro. A preta aqui não conseguiu
sensibilizar o pessoal da Cinemateca do MAM - para eles são mais uns filminhos
de uma preta filha de empregada doméstica pretenciosa. que resolveu ser cine-
asta... Os outros negativos ficam na conta do perdido. E jamais consegui ser
recebida pelo Sr. Hernani Heffner (conservador chefe da Cinemateca do MAM)...
Eu fui muito amiga do Cosme Alves Netto (antigo diretor da instituição) e creio
que se ele fosse vivo, viraria mundos para localizar os meus trabalhos.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E sobre o seu longa,
“Amor Maldito”. Queríamos saber também sobre o seu processo de criação e exe-
cução. Você considera que foi algo muito diferente da realização dos curtas? Uma
questão que nos chama muita atenção é toda a mise en scène do tribunal. As ce-
nas são muito bem coreografadas, ritmadas: entre a atuação e a câmera. Como foi
essa construção entre você, os atores e a direção de fotografia do filme?
66 67
Adélia Sampaio: O processo do longa foi mais sofrido. Porém, contei sempre com
o ajuntamento de pessoas, atores e técnicos, que acreditavam em minhas ideias.
Contei com o José Louzeiro, que abraçou a ideia e se propôs a escrever o roteiro.
Ele era um nome de peso se agregando ao meu ajuntamento. Consegui os autos
do processo e todas as falas do tribunal são fiéis às originais. Em seguida, decidi
o elenco e nos reuníamos na casa do Louzeiro para falar sobre o filme.
Quanto às cenas do tribunal, o ator Vinicius Salvatore, que interpreta o promotor
no filme, foi resistente ao meu comando. Ele argumentava ser teatral e foram horas
de conversa para mostrar a ele o teatro da vida, que por vezes é pior que o teatro
do palco. Quando fomos todos assistir aos primeiros copiões ele me confessou: -
“Nossa!... Você estava certa!”.
Fomos para o tribunal em Niterói: eu (primeira direção de longa), Paulão [Paulo
César Mauro] (primeira direção de fotografia) e Professor [Eduardo] Leone, meu
mestre e montador de todos os meus filmes - e antes de tudo meu amigo irmão!
Ficamos varando a noite inteira para uma decupagem precisa, até porque tínha-
mos o negativo contado para utilizar. No dia seguinte, foi a vez do meu amado Tony
Ferreira (que interpretou o advogado de defesa) e do Salvatore (que fez o promo-
tor). Passei com eles o filme sem câmera, indicando o que seria travelling, o que
seria plano próximo, close, etc. Na direção da fotografia tínhamos nos ajudando o
meu mais que irmão José Medeiros, que nos presenteou com uma terceira câmera.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Ainda sobre o “Amor
Maldito” . O processo de financiamento e de divulgação foram bem difíceis, certo?
Você acredita que a temática da homossexualidade feminina foi o maior motivo
disso? E você acredita que seria mais fácil ou mais difícil realizar esse filme hoje?
Adélia Sampaio: Sim, e foi o que verbalizou o responsável pela Embrafilme que:
jamais nos daria qualquer tostão para divulgar desvios. E, sem dúvida nenhuma,
ele se referia à temática da homossexualidade feminina do filme.
Hoje em dia, pela tecnologia digital, claro que seria mais fácil de realizar. Mas é um
tema bravo a homofobia, continua sendo. Parece que já é adicionado ao leite na
mamadeira. O que é muito triste!
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Você passou um período
sem trabalhar diretamente com cinema, mas atuando na televisão. Como foi esse
processo? Como foi esse período de trabalho na televisão?
Adélia Sampaio: Sim. Fui trabalhar na produtora TVC (do Carlos Tourinho e da
Maria Alice).Lá criamos duas revistas eletrônicas sobre o Rio de Janeiro (“Rio que
te quero Rio” e “Cara do Rio” ) e criamos um programa para TV Educativa, o “
Talento Brasileiro”. Esse processo foi libertário. Tourinho era diretor de fotografia
do programa Amaral Neto, e ficamos amigos até hoje. Na verdade, éramos inde-
pendentes de emissoras, veiculando o nosso produto à TV.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E como você percebe
esse reconhecimento (e mesmo descoberta) do seu cinema pelas gerações mais
jovens? Como está sendo o seu contato com essa nova geração de cineastas? É
verdade que muitos jovens estudantes, diretoras e diretores se aproximaram de
você e pedem ajuda e dicas nos seus projetos? Como está sendo esse processo?
Quais trocas têm acontecido?
Adélia Sampaio: E olha, para mim é surpreendente exibir meu filme “Amor Mal-
dito” (1984) para uma platéia de jovens, que no final aplaudem e estão ávidos de
perguntas. É lindo. Fazer uma palestra para afrodescendentes e, de repente, uma
menininha se levanta no meio da platéia e diz: “Desde que nasci que procuro um
espelho e agora achei. É você o meu espelho!”. Vou as lágrimas, fico feliz. É verda-
de, eu dou pistas aos jovens e eles me ensinam a modernidade do digital, e assim
vamos trocando. É lindo. Tenho lido roteiros contando as histórias e mostrando
que o Cinema Novo deu certo, porque um bando de jovens se juntou a uma ideia
(cinema) e surge assim o Cinema Novo.
68 69
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E gostaríamos de sa-
ber qual a sua avaliação sobre fazer cinema, assumindo a direção, sendo uma
mulher negra. Houve obstáculos, preconceitos explícitos ou implícitos? E como
você percebe essas relações com as diretoras negras atuais?
Adélia Sampaio: CINEMA É UMA ARTE ELITISTA. Então preto não deve, não
pode fazer parte desta elite. É uma aberração quando uma preta, como eu, en-
frenta o preconceito. O obstáculo é cruel, mas quando você crer que vai chegar,
enfrenta sem medo. Minha velha mãe dizia: “Filha pra cima do medo, coragem!”.
Tenho sido muito reverenciada por negras no cinema que me olham com um ar
de fé e alegria. Devagar vamos derrubar os obstáculos que ainda são muitos.
Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Por fim, gostaríamos de
saber sobre os seus projetos de novos filmes. E se você acredita que a Ancine e
o Ministério da Cultura têm projetos verdadeiros pra diversificar o cinema ou os
diretores vão continuar a se virar pelo próprio esforço?
Adélia Sampaio: Tenho um longa-metragem e um curta em produção. O curta
está em fase de capitação e é sobre como as mulheres na era pós governo
Collor reaqueceram o cinema. E o longa-metragem chama-se “A Barca das Vi-
sitantes” e é sobre as visitas aos presos políticos de 1968 a 1970. Vou apostar
que depois de uma estrada longa que percorri a Ancine e o Ministério da Cultura
vão me ajudar a fechar a tampa do meu cinema!
71
entrevista com danddara
janaína oliveira (ficine/apan)
Há um longo caminho a percorrer no processo de reconhecimento histórico da
participação das diretoras negras no cinema nacional. Mesmo na historiografia
que trata do Cinema Negro há uma lacuna a este respeito. Pois, se como disse
em outro lugar, “o cinema negro é um projeto em construção no Brasil”1
, resta
todavia o desafio de equilibrar historicamente a representatividade das mulheres
negras neste caminho. A invisibilização da trajetória de Adélia Sampaio infeliz-
mente não é a única. Há diretoras que começaram a fazer filmes no início dos
anos 1990 e 2000 que também permanecem esquecidas - seja nos textos aca-
dêmicos, na crítica de cinema ou na mídia. Danddara, cineasta que também foi
precursora no Cinema Negro Nacional, está entre elas.
Do teatro e da música, para o cinema. Danddara ingressou no cinema profis-
sional fazendo assistência para Paulo Rufino, em “Canto da Terra” (1991). Mas,
apesar da experiência de quase uma década, o seu primeiro curta “Gurufim na
Mangueira” (2000) foi recusado três vezes pelo Ministério da Cultura antes de
ser aprovado. E, ainda assim, a diretora usou de diversos subterfúgios para dri-
blar o racismo institucional, como assinar o projeto com um pseudônimo francês
e relevar para segundo plano a sua autoria do roteiro. Conversei com Dandda-
ra no intuito de compreender não só seu percurso individual, mas, sobretudo,
como ela mesma percebe essa história que de algum modo a marginalizou.
1. OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In FLAUZINA, Ana;
PIRES, Thula (org.). Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refetindo a Década Internacional dos Afrodescentendes
(ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016, p.175.
72 73
Janaína Oliveira: Como você começou a fazer filmes?
Danddara: A primeira experiência foi na escola! Tive a felicidade de nascer em
uma família negra de classe média com pais (Edna e Eurico Rodrigues) ambos
extremamente cultos, politizados e com dois cursos superiores cada um. Come-
cei a escrever bem cedo e fazia teatro com as crianças da vizinhança. Na 2ª e
3ª séries primárias (1976/77) estudei no Baby Garden um colégio de vanguarda
na Tijuca. A professora de música, Denise Mendonça (hoje à frente do Instituto
TEAR) mudou a minha vida... Ela gravou uma canção minha (“Ei Amigo”) num
LP da escola e me colocou no papel de Helena de Tróia em um filminho super 8
que fizemos na turma. Eu era a única criança negra no turno da tarde (de manhã
era minha irmã Valéria). Isso deixou uma marca super forte no meu coração. Já
amava o cinema e de repente me vi dentro de um filme! Tinha 8 anos de idade.
Na adolescência fiz Tablado em 1983/84, mas não tive coragem de fazer facul-
dade de Cinema, pois não via outras mulheres negras e senti que nunca iam me
deixar fazer aquilo. Comecei a carreira profissional no teatro, como atriz da Bia
Lessa (1985), aos 16 anos. Nesse ano passei pra história na UFRJ, fazia a Oficina
Literária Ivan Proença e canto lírico com Maria H. Bezzi. Em 1987 Alfredo Sirkis
me mostrou um roteiro impresso pela primeira vez. Em 1988 (ou 89) fiz workshop
com Glória Perez, na Atlântida. Tive convites para fazer cinema como atriz. Qua-
se tudo pornô. Declinei.
O cinema profissional veio em 1990. Fui assistente de faz tudo do Paulo Rufino
(“Canto da Terra”, 1991). Ele me deu crédito de Produtora Executiva! Lembro
dele dizendo: “Cinema tem que ter estepe” – nunca se vai para o set sem plano
B! Escrevi meus primeiros roteiros após voltar de NY, em 1996. Tentei aprovar o
GURUFIM no Ministério da Cultura três vezes. Só deu certo quando inscrevi o
projeto sob a identidade de uma mulher branca de sobrenome francês. Também
ocultei minha autoria no roteiro; pus o nome do co-roteirista (branco judeu) à
frente do meu, e me coloquei propositadamente em segundo plano, sem o meu
nome artístico. Fiz tudo aquilo porque queria ser atriz! Assumi a direção por
acaso, depois que o diretor convidado (negro cubano) teve um tumor (benigno!)
há um mês da filmagem. Só aí eu entreguei o personagem da viúva pra Thalma
de Freitas e renunciei ao meu sonho pra me redescobrir diretora. Feliz da vida!
Janaína Oliveira: Quais foram suas influências?
Danddara: Fiz uma lista de filmes que me marcaram muito, e que sempre me
vêm à memória... Dos filmes que vi com minha mãe na infância, lembro de: “Der-
su Uzala”, de Akira Kurosawa (1975), “Pele De Asno”, de Jacques Demy (1970) e
“Contatos Imediatos Do Terceiro Grau”, de Steven Spielberg (1977). Mais tarde
descobri Federico Fellini: “La Nave Va” (1983); Rainer Werner Fassbinder: “O
Desespero De Veronika Voss” (1982) e Pedro Almodovar: “Ata-me!”(1990). No
Brasil, os filmes de diretoras mais importantes pra mim são: “Um Céu De Estre-
las”, de Tata Amaral (1996); de “Terra Para Rose”, de Tetê Moraes (1987) e “Amor
Maldito”, de Adélia Sampaio (1984). Entre os homens, sou fã do Cinema Novo:
“Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos (1957) e os curtas: “Pedreira
São Diogo”, de Leon Hirzman (1962) e “Arraial Do Cabo”, de Paulo César Sara-
ceni (1960). No mundo, as mulheres cineastas que mais me influenciaram foram:
Maria Luisa Bemberg: “Camila” (1984); Catherine Breillat: “Romance X” (1999) e
Sofia Coppola: “Lost In Translation” (2003).
Janaína Oliveira: Na época, você se inspirou ou teve contato com outras reali-
zadoras negras no Brasil e/ou no exterior?
Danddara: A Julie Dash: “Daughters Of The Dust” (1991) e a Kasi Lemmons:
“Eve’s Bayou” (1997). Deixei pra falar delas num capítulo à parte. Porque elas
me deram muito mais que inspiração. O conceito de mulher negra cineasta só
passou a existir na minha mente depois que eu vi os filmes dessas duas afro-
-americanas. Excelentes! Ver a mulher negra como sujeito da narrativa cinema-
tográfica, em uma auto representação autoral de uma negra cineasta... Antes
delas, achei que não existia.
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Diretoras Negras: Um cinema de identidade e afeto

  • 1.
  • 2. 2 A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à diversidade, mantendo comitês internos para realização de campanhas, programas e ações voltados para disseminar idéias, conhecimentos e atitudes de respeito à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam uma sociedade plural. Os projetos patrocinados são escolhidos via seleção pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todo o país como também dar mais transparência à utilização dos recursos da empresa. Com a mostra de filmes Diretoras Negras no Cinema Brasileiro, a CAIXA Cultural apresenta uma retrospectiva da produção cinematográfica empreendida por cineastas negras brasileiras. Em comum nos filmes exibidos, temas relevantes entre as mulheres afrodescendentes, como o racismo, o empoderamento feminino e a herança cultural africana. Desta maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 156 anos de atuação no país. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação no presente, compromisso com o futuro do país e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
  • 3. A mostra Diretoras Negras no Cinema Brasileiro conta uma história de resistência. Desde que Adélia Sampaio, a primeira diretora negra a realizar um longa-metragem no Brasil, teve o financiamento para “Amor Maldito” negado pela então Embrafilme, devido ao teor lésbico da narrativa (ou seria também por que ela era mulher e negra?), cineastas negras enfrentam o machismo e o racismo de uma sociedade e de uma indústria cinematográ- fica que as excluem e que as enxergam a partir de estereótipos ligados ou à pobreza, ou à marginalidade, ou ao sexo. De acordo com a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional: o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros”, realizada pelo GEEMA – Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa – da UERJ, dos 218 objetos analisados no período de 2002 a 2012, nenhum foi dirigido ou roteirizado por mulheres negras. Realizada pelas pesquisadoras Gabriela Moratelli e Márcia Cândido, sob coordenação de Verônica Toste e João Feres Júnior, “A Cara do Cinema Nacional: o perfil de gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros” analisou as vinte maiores bilheterias (e, por conseguinte, os vinte filmes mais vistos) do cinema brasileiro em cada ano, de 2002 a 2012, segundo os dados disponíveis no site da Ancine – Agência Nacional de Cinema. Os resultados são alarmantes, e mostram a ausência de diversidade de cor e de identidade de gênero no cinema comercial brasileiro. Os filmes produzidos e distribuídos por nossa incipiente indústria cinematográfica, que recebem massivos recursos públicos via Fundo Setorial do Audiovisu- al, administrado pela Ancine, que chegam às salas do circuito para serem vistos pelo grande público, apresentam uma visão de mundo hegemonica- mente masculina e branca, e praticamente excluem do processo de criação as mulheres e, sobretudo, o negro, rebaixado a estereótipos associados à pobreza e ao crime. Embora, segundo o último censo do IBGE, de 2010, 27% da população brasileira se identifique como mulher e negra – nosso grupo mais predomi- nante –, as mulheres negras, como já dito, são as mais sub-representadas dentro do cinema hegemônico nacional: exatamente 0 (ZERO) diretoras e 0 (ZERO) roteiristas (há 13% de diretoras brancas, e 26% de roteiristas bran- cas, para comparação), e 4% de atrizes (contra 36% de atrizes brancas). Mas não se trata de opor mulheres brancas contra mulheres negras, já que 84% dos filmes do período analisado foram dirigidos por homens brancos. Embora a pesquisa abarque os anos entre 2002 e 2012, e não se estenda até 2017, ela já registra o começo da explosão das comédias, produzidas ou distribuídas principalmente pela Globo Filmes, que invadiram as salas de cinema brasileiras: “Se Eu Fosse Você (2006), “Se Eu Fosse Você 2” (2009), “De Pernas para o Ar” (2010), “De Pernas para o Ar 2 (2012), “Até que a Sorte nos Separe” (2012), aos que se seguiram “Minha Mãe É Uma Peça: O Filme” (2013), “Minha Mãe É Uma Peça 2” (2016), “Loucas para Casar” (2015), “TOC: Transtornada Obsessiva Compulsiva” (2017). São comédias baseadas em estereótipos do gênero feminino, e todas com direção de homens brancos. E nenhum tem personagens negros principais. Reconhecendo o quadro machista e racista do cinema nacional, a ANCINE, em seu Planejamento Estratégico para o quadriênio 2017-2020, tem como uma das metas “promover a diversidade de gênero e raça na produção das obras audiovisuais brasileiras”. Em 2016, ela lançou o Edital de Longa Afir- mativo, através do qual serão realizados três filmes de ficção de diretores negros. O Edital segue a linha do Curta-Afirmativo que, em 2012 e 2014, financiou mais de 60 obras audiovisuais, entre curtas e médias-metragens, de diretores e produtores negros. Nesse contexto, nas franjas de um cinema hegemonicamente masculino e branco, diretoras negras encontraram espaço, com apoio de mecanismos
  • 4. federais ou estaduais de fomento, através da televisão ou por iniciativa pró- pria, para expressar suas demandas e experiências de vida, antes negli- genciadas: identidade étnica e de gênero, machismo, racismo, feminismo, cultura afro-brasileira, ancestralidade. São diretoras que vêm de todas as partes do país, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Reunimos 46 filmes, e agradecemos às diretoras Adélia Sampaio, Carmen Luz, Carol Rodrigues, Ceci Alves, Danddara, Edileuza Penha de Souza, Elen Linth, Eliciana Nascimento, Everlane Moraes, Flora Egécia, Janaína Oliveira, Juliana Vicente, Keila Serruya, Larissa Fulana de Tal, Lilian Solá Santiago, Sabrina Fidalgo, Renata Martins, Tainá Rei, Tatyana dos Praze- res, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Coletivo Nós, Madalenas e Coletivo Revisitando Zózimo Bulbul + Mulheres de Pedra por compartilharem co- nosco seus filmes e nos darem a oportunidade de conhecer e aprender com suas lutas. No contexto atual, em que observamos no curta-metragem independente o surgimento de uma nova e potente geração de diretoras negras no Brasil, acreditamos que uma mostra que exiba e celebre o cinema das diretoras negras se faz urgente. Kênia Freitas e Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida [Curadores] ÍNDICE Diretoras Negras - Construindo um cinema de identidades e afeto Edileuza Penha de Souza Cinema Negro contemporâneo e protagonismo feminino Janaína Oliveira O olhar das mulheres negras em filmes Kênia Freitas Imagens afro-brasileiras em movimento: construindo uma fábrica de sonhos Lilian Solá Santiago Sair do armário e ousar dizer seu nome: prazer, cinema LGBT! Labelle Rainbow Entrevista com Adélia Sampaio Kênia Freitas e Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida Entrevista com Danddara Janaína Oliveira Filmografia Sobre as Diretoras 9 19 31 41 51 61 69 80 88
  • 5. DIRETORAS NEGRAS CONSTRUINDO UM CINEMA DE IDENTIDADES E AFETO
  • 6. 10 11 DIRETORAS NEGRAS CONSTRUINDO UM CINEMA DE IDENTIDADES E AFETO Edileuza Penha de Souza1 (...) tem fragmentos no feminismo procurando meu próprio olhar, mas vou seguindo com a certeza de sempre ser mulher Olhar Negro - Esmeralda Ribeiro 1. Edileuza Penha de Souza é Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), onde leciona as disciplinas “Pensamento negro Contemporâneo” e “Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema. Historiadora (UFES), mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB), pesquisadora e documentarista, foi estudante Especial da Cátedra de Documentários na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Banõs – República de Cuba.
  • 7. 13 O machismo e o racismo são deformações que historicamente têm excluído mu- lheres e negros do fazer cinema. A invisibilidade de diretoras como a francesa Alice Guy Blaché2 e a brasileira Adélia Sampaio3 , e tantas outras que, ao longo de suas carreiras, infundiram em seus filmes particularidades do universo feminino, como a senegalesa Safi Faye4 (1943), a sueca Anna Hofman-Uddgren (1868-1947), a in- diana Shobhna Samarth (1915-2000), a estadunidense Lois Weber (1879-1939), a ucraniana Maya Deren (1917-1961), a angolana Sarah Maldoror5 (1938), a brasileira Jacira Martins da Silveira6 (1909-1972), a russa Yuliya Solntseva (1901-1989), o que demonstra o quanto o masculino e a branquitude ocultam da história do cinema o pioneirismo e o talento de mulheres e negras. Somente para se deter em Alice Blaché e Adélia Sampaio – a primeira mulher cineasta do mundo e a primeira negra cineasta do Brasil –, cada uma em seu tempo e no seu território desenvolveu roteiros polêmicos com debates sobre questões sociais e culturais. Ambas denunciaram as múltiplas violências contra as mulheres e a LGBTfobia, perfilhando estratégias de abrir caminhos à geração vindoura de mulheres e negras. Nossa escolha por discutir um Cinema Negro Feminino enraíza-se em estratégias de pertencimento e afeto. A produção de diretoras negras possibilita descortinar um cinema que rompe com os estereótipos e o racismo de uma “so- ciedade esteticamente regida por um paradigma branco” (SODRÉ, 2001, p. 235). Seus filmes fazem incursões em experiências de ancestralidade, herança, memó- ria, identidade e amor. Nessa perspectiva, a atuação da mulher no cinema – em 2. Edileuza Penha de Souza é Doutora em Educação e Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), onde leciona as disciplinas “Pensamento negro Contemporâneo” e “Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema. Historiadora (UFES), mestre em Educação e Contemporaneidade (UNEB), pesquisadora e documentarista, foi estudante Especial da Cátedra de Documentários na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Banõs – República de Cuba. 3. Sampaio trabalhou em diversos segmentos do teatro e do cinema, foi a primeira mulher negra a dirigir um filme. Adélia iniciou sua vida profissional muito cedo, como comerciária. Em 1969, conseguiu um trabalho como telefonista na DIFILM – distribuidora criada por expoentes do Cinema Novo, como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Luiz Carlos Barreto –, e já em 1972, consegue frequentar um set de filmagens exercendo várias atividades até assinar produção, roteiro e direção de seus próprios filmes. Hoje, aos 74 anos, Adélia continua produzindo. 4. Primeira mulher africana a dirigir um longa-metragem dirigido comercialmente, ela se dedicou a dirigir filmes de ficção e documentários enfocando a vida rural no Senegal. 5. Nascida Sarah Ducados, é uma das primeiras mulheres a dirigir um longa-metragem no continente africano. Sua produção fílmica é habitualmente incluída em estudos sobre as mulheres diretoras no cinema africano. 6. Conhecida como Cleo de Verberena, escreveu, produziu, financiou e atuou no primeiro filme dirigido por uma mulher no Brasil, “O Mistério do Dominó Preto”. Esse drama, que tem como tema o carnaval e o crime, fez sucesso em muitas salas de cinema. O segundo filme de Verberena, “Canção do destino”, nunca foi concluído e, juntamente com ele, a própria cineasta desapareceu do cenário cinematográfico. particular, de diretoras negras no cinema nacional brasileiro – concatena-se com a obra da cineasta Adélia Sampaio, coroando a produção de diretoras negras, como possibilidade de se pensar e construir um cinema de territorialidade e comunalida- de como patrimônio negro feminino. Historicamente, mulheres cineastas têm construído estratégias de luta por visibilidade, produzem narrativas que são verdadeiros manifestos políticos e sociais; seus trabalhos apresentam responsabilidade histórica de combate a todo e qualquer tipo de violência, preconceito e discriminação, e nos possibilitam edificar um imaginário positivo do papel que as mulheres representam na história da humanidade. (SOUZA, 2017). A definição de um cinema negro feminino floresce da territorialidade, possibilita re- criar os espaços-território do racismo e da heteronormatividade. Na territorialidade estão firmados os princípios de coletividade e de comunalidade. É a territorialidade que redimensiona o fazer cinema. No reduto do cinema negro feminino, as direto- ras negras trazem para seus filmes os ensinamentos ancestrais, demonstram que a territorialidade do fazer cinema é demarcada pelo respeito às experiências de vida da comunidade onde estão inseridas. Seus filmes irradiam o reconhecimento de domínio das técnicas; representam cultura e mundo dos valores ancestrais em que a comunicação, em diferentes circunstâncias, legitima e edifica um conjunto de informações e emoções trazidas pela diversidade; um território onde cada ci- neasta se constitui como ícone de empoderamento. Desse modo, a territorialidade pode ser percebida como espaço de práticas culturais e sociais. Mais que isso, apesar de todas as tentativas de silenciamento, diretoras negras produzem um cinema de arte com temas plurais que compõem a diversidade humana, colhidos nas experiências individuais ou coletivas. Afinal, “o cinema é uma das artes que pode transformar a realidade em interpretações, de modo que essa representação do real possa estar em todas as palavras, em todas as coisas” (SOUZA, 2013, p. 5). Ao produzir e dirigir seus filmes, diretoras negras brasileiras têm edifi- cado um modo de fazer cinema cuja referência é a história e a cultura dos povos negros. Seus trabalhos e suas práticas fílmicas constroem uma cinematografia fora da estereotipia, revelam visões de mundo, incentivando, assim, leituras afetivas, políticas e geográficas sedimentadas no desenvolvimento humano, na corporeida- de como possibilidade de ressignificar conceitos de amor, afetos e identidade.
  • 8. 14 A exemplo da cineasta Adélia Sampaio que, antes de produzir e diri- gir filmes, foi telefonista, exerceu cargos de continuísta, claquetista, assistente de produção e maquiadora, muitas mulheres negras chegaram à direção do cinema trabalhando como fotógrafa, figurinista, argumentista, dialoguista, pesquisadora, eletricista, contrarregra, cabeleireira, trilheira, laboratorista, marcadora de luz, e muitas outras funções que o cinema emprega. Urge pensar uma catalogação das produções fílmicas de cineastas negras brasileiras. Apenas para citar alguns nomes, Alexandra G. Dumas, Aline Lourena, Amanda Faustino, Amanda Prado, Ana Beatriz Sacramento, Ana Claudia Okuti, Ana Paula Alves Ribeiro, Anahí Borges, Barbara Marques, Beatriz Vieirah, Calila das Mercês, Camila de Moraes, Carmem Luz, Carol Rodrigues, Cida Reis, Cíntia Maria, Cirlla Machado, Clarissa Brandão, Charlene Bicalho, Dayane Gomes, Elaine Ramos, Elcimar Pereira, Eliciana Nascimento, Everlane Moraes, Fabíola Ale- crim, Flora Egécia, Gabriela Barreto, Ingrid Mabelle, Isa Oliveira, Izabel Neiva, Ísis Higino, Jamile Coelho, Janaina Oliveira Re.Fem, Jessica Queiroz, Juliana Lima, Juliana Vicente, Katiusca Demetino, Keila Serruya, Larissa Fulana de Tal, Laura Guerreira, Letícia Bispo, Lilian Solá Santiago, Luana Dias, Luciana Oliveira, Lua- na Paschoa, Madara Luiza, Maria Dealves (falecida em 2008), Mariana Campos, Mariani Ferreira, Marta Nunes, Nadir Nóbrega Oliveira, Naymare Azevedo, Neide Rafael, Paola Botelho, Priscila Oliveira, Raysa Oliveira, Renata Martins, Sabrina Rosa, Thaina Farias, Thayná Torella, Thamires Vieira, Urânia Munzanzu, Vilma Ne- res, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Yane Mendes, Ziza Fagundes. Muitas delas foram discípulas de Mestre Zózimo Bulbul7 , participaram dos Encontros de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, onde aprenderam que fazer Cinema Negro é dominar as linguagens, técnicas e estéticas do audiovisual, tanto quanto criar referência sobre a história e a cultura do povo negro na diáspora. Essas mulheres negras diretoras configuram um marco do cinema brasileiro da contemporaneidade, complementam lacunas e omissões da cinematografia brasi- leira e criam um cinema negro no feminino. Elas são responsáveis por construir-se um cinema de identidade entendido como espaço de pertencimento, e como tal, são agentes recriadoras de mundos e de possibilidades de amor e afetos. Elas criam um processo de identidade étnica, fazendo de seus filmes um verdadeiro manifesto de gênero e raça (SOUZA, 2016). 7. O cineasta e ator Zózimo Bulbul produziu e dirigiu filmes e vídeos documentários de curta, média e longa-metragem... (CARVALHO, 2005). Atualmente é considerado o pai do Cinema Negro Brasileiro. Mulheres de Barro | Dir. Edileuza Penha de Souza
  • 9. 16 17 das águas, da natureza, do corpo e do orí; usar as mãos, esculpir, filosofar, apren- der, ensinar (FREIRE, 1998), pois de outro modo não há cinema. Nossa identidade de diretoras negras se define dentro da magnitude interna do desde dentro e nos possibilita arquitetar, por meio do cinema, a integridade negra, a força vital, o axé e a arkhé de nossa ancestralidade. REFERÊNCIAS CARVALHO, Noel dos S. Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul. 2005. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1998. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, jul./dez. 1990. SHOHAT, Ella. STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac & Naif, 2006. SILVA, Conceição de Maria Ferreira. Mulheres negras e (in)visibilidade: imaginários sobre a intersecção de raça e gênero no cinema brasileiro (1999-2009). 2016. 297f. Tese (Doutorado em Comunicação). Universidade de Brasília, Brasília, 2016. SODRÉ, Muniz. Reinventando a cultura: a comunicação e seus produtos. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na Panela de Barro: Mulheres Negras, narrativas de amor, afeto e identidade, 2013. Tese (Doutorado em Educação), Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2013. ______. Contando nossas próprias histórias: Mulheres negras arquitetando o cinema brasileiro. In: AVANCA: Edições Cine-Clube de Avanca, 2016. p. 485-502. ______. Ancestralidade e memória na animação Órun Áiyé: o cinema negro feminino e as tessituras da identidade. In: AVANCA: Edições Cine-Clube de Avanca, 2017 (no prelo). STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. São Paulo: Edusp, 2008. Ainda que seja induvidoso que a imagem da mulher negra no cinema e na sociedade historicamente esteve presa a preconceitos e estereótipos, nota-se que ao assumirem o comando da direção, as mulheres exercitam a possibilidade de novos olhares e concepções, desde a estética e a linguagem até outros elementos, de maior subjetividade, como identidades e representações. A territorialidade do Cinema Negro Feminino tem sido pautada, nos úl- timos anos, por trabalhos acadêmicos que surgem com o intuito de historicizar a presença de mulheres negras nas produções cinematográficas. Essas produções interagem com a literatura específica sobre o cinema e ensejam discussões de gênero e raça, incidindo alusões à negritude e a todos os demais elementos que a temática do cinema produzido por mulheres negras tem alcançado. O Cinema Negro Feminino pode ser percebido também como espaço de práticas culturais nas quais se criam mecanismos identitários de representação a partir da memória coletiva e ancestral. É oportuno salientar que, ao propor ao campo do cinema estudos es- pecíficos sobre a produção de diretoras negras, não se objetiva centralizar uma abordagem sobre minorias, mas compreender que, além de as mulheres negras representarem pelo menos um quarto da população brasileira, seus filmes tendem a possibilitar rompimentos com as representações e, ainda, transformam os para- digmas do conhecimento tradicional, impõem “um reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico existente” (SCOTT, 1990, p. 5). Com esse entendimento, para além de pesquisadora, me coloco aqui como uma diretora negra e ressalto que o processo de construir um cinema negro no feminino nos torna também responsáveis por erguer um cinema de identidade. A responsabilidade social com que nos envolvemos torna nossos trabalhos, mes- mo na produção mais imperfeita, um elemento de arte e existência, onde se con- figura a nossa territorialidade negra, como bem se pode observar nas produções das diretoras negras brasileiras. Ao nos conduzir ao mundo da educação formal, e a partir dela, o acesso do fazer cinema, nossas ancestrais negras fizeram de nós, diretoras negras, her- deiras de um legado que nos impele a dar continuidade aos sonhos. Desse modo, para nós mulheres negras cineastas o fazer cinema negro no feminino significa estar no mundo, fazer história, fazer cultura, sonhar, cantar, pintar, cuidar da terra,
  • 10. CINEMA NEGRO CONTEMPORÂNEO E PROTAGONISMO FEMININO
  • 11. 20 21 CINEMA NEGRO CONTEMPORÂNEO E PROTAGONISMO FEMININO Por Janaína Oliveira1 Das margens para o centro, é esse o movimento contemporâneo das mulheres no contexto do Cinema Negro Nacional. Se durante as três primeiras décadas da história do cinema negro as mulheres diretoras tiveram suas presença e represen- tatividade invisibilizadas, nos últimos sete anos (aproximadamente) a centralidade do cenário é ocupada por uma nova geração de cineastas que ganha destaque não só pela qualidade, mas pelas formas de produção, distribuição e divulgação dos filmes. O que se pode perceber é que além das carreiras individuais, proces- sos coletivos de produção entram em cena, das temáticas à plateia, passando pelo mapeamento desta própria presença no setor. As mulheres negras no cinema hoje estabelecem em suas produções diálogos com o mundo, mas sobretudo, entre si e para si mesmas, criando os “espaços de agenciamento” de que nos fala Bell Hooks em “O olhar opositivo”: 1. Janaína Oliveira é pesquisadora e curadora, é doutora em História e professora desta disciplina no Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus São Gonçalo, onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI). É membro da APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) e idealizadora e coordenadora do FICINE, Fórum Itinerante de Cinema Negro (www.ficine.org).
  • 12. 22 23 Espaços de agenciamento existem para as pessoas negras, dentro dos qual podemos tanto interrogar o olhar do Outro, mas também olhar para trás, e para nós mesmos, nomeando o que vemos. O “olhar” foi e é um lugar de resistência para o povo negro colonizado ao redor do globo. Os subordinados em relações de poder aprendem com a experiência que existe um olhar crítico, que “olha” para documentar, que é opositivo. Na luta pela resistência, o poder do dominado para garantir o agenciamento ao reivindicar e cultivar a “consciência” politiza as relações “do olhar” – aprende-se a olhar de um certo modo para resistir. (...) Foi o olhar opositivo que respondeu a essas relações do olhar ao desenvolver o cinema negro independente. (Hooks, 1992, p.116)2 2. Estou usando aqui a tradução para o português do capítulo 8, “The opositional gaze”, feita por Maria Carolina de Moraes que se encontra no blog “Fora de Quadro” da crítica de cinema Carol Almeida. Disponível em https://foradequadro.com/2017/05/26/ o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/ . Assim, portanto, pensando especificamente no cinema negro feito com mulheres3 na atualidade, trata-se de olhar e produzir filmes opositivamente. A gama de his- tórias diversas que trazem protagonistas mulheres pode ser indício disto. Seja no documentário ou na ficção filmes como “Balé de Pé no Chão” (2005) e “Mulheres Bordadas” (2015), de Lilian Solá Santiago, “ Cores e Botas” (2010) e “As minas do Rap” (2015) de Juliana Vicente, “Dia de Jerusa” (2014) de Viviane Ferreira, “O tem- po dos Orixás” (2014) de Eliciana Nascimento, “Elekô” (2015) Coletivo Mulheres de Pedra, “Kbela” (2015) de Yasmin Thayná, “A boneca e o silêncio” (2015) de Carol Rodrigues, “Das raízes às Pontas” (2016) de Flora Egécia, “Quijauá” (2016) Coleti- vo Revisitando Zózimo Bulbul / Mulheres de Pedra, “Rainha” (2016) de Sabrina Fi- dalgo, “Maria” (2017) de Elen Linth e Riane Nascimento, só para mencionar alguns, apontam como este espaço de agenciamento e diálogos vem se consolidando. Mas o que tornou possível esse momento em que vemos florescer o pro- tagonismo feminino negro? Uma das hipóteses da pesquisa que venho desenvol- vendo nos últimos anos sobre a participação das mulheres no cinema africano e afrodiásporico, articula essa presença à dimensão formativa. Ou seja, o que se percebe é que a entrada das mulheres negras na produção cinematográfica acon- tece, de um modo geral, posteriormente `a de mulheres brancas e após o acesso a algum tipo de formação direta ou indireta (strito sensu ou não), com cinema. Assim que para entender o protagonismo feminino no cinema negro no cenário brasileiro é preciso abrir o escopo da interpretação para englobar alguns acontecimentos da história recente do país, como por exemplo, a ampliação do acesso à universi- dade e a cursos de formação/capacitação ocorrida (como, por exemplo, ações em Pontos e Pontões de Cultura4 ), nos últimos 15 anos em decorrência de políticas globais de educação. Nesta mesma linha, estão as políticas de ações afirmativas no audiovisu- al, sobretudo os editais ‘Curta e Longa BO Afirmativos’, lançados respectivamente em 2012, 2014 e 2015 pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Nos editais de Curtas Afirmativos, foram contemplados 53 projetos, dos quais 29 fo- ram propostos por mulheres. Já no Edital de longa-metragem, três projetos foram 3. Aqui para o uso da preposição com, partilho da formulação da pesquisadora e ensaísta mineira Carla Maia em sua tese de doutorado “Sob o risco do gênero: Clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres”, quando ela afirma: “alterar a preposição, passando do cinema “de mulher” para um cinema “com mulheres”, é ir além de uma discussão focada em elementos autorais ou identitários, para investir em abordagens necessariamente. relacionais, marcando predileção por uma perspectiva animada pelo encontro contingente entre mulheres que filmam e que são filmadas.” (MAIA, 2015, p. 28). 4. Sobre Pontos e Pontões de Cultura ver: http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1 Cores e Botas | Dir. Juliana Vicente
  • 13. 24 25 contemplados, dentre os quais “O Dia de Jerusa”, da diretora baiana Viviane Fer- reira5 . Com o lançamento previsto para 2018, o filme de Ferreira colocará fim a um intervalo de 34 anos entre os únicos longas-metragens de ficção dirigidos exclu- sivamente por mulheres negras no Brasil, antes dele há somente “Amor Maldito”, realizado em 1984 pela pioneira do cinema negro Adélia Sampaio. Nota-se assim que, ainda que do ponto de vista quantitativo seja consideravelmente pequena a quantidade de mulheres negras atingidas, do ponto de vista simbólico, as ações afirmativas se mostram não só fundamentais, como urgentes. Pois, como se per- cebe, é no universo dos curtas-metragens que a produção de filmes de diretoras (e diretores) negras tem se desenvolvido. Historicamente, outro momento importante para o florescimento desta geração reside nos desdobramentos das iniciativas de Zózimo Bulbul, que, no final dos anos 2000, volta a promover mais uma grande transformação na história do Cinema Negro no Brasil. Aos 70, Bulbul criou o Centro Afrocarioca de Cinema, para realização dos Encontros de Cinema Negro. A proposta de criar uma ponte entre as diásporas da América Latina, Caribe e América do Norte e o continen- te africano gerou um espaço físico e simbólico de reunião dessa nova geração. Essas trocas entre indivíduos, grupos e coletivos deram novo fôlego ao Cinema Negro Brasileiro, que agora pode ser considerado um movimento, retomando em certo sentido iniciativas dos anos 1999 e 2001, respectivamente dos Manifestos Dogma Feijoada e do Recife, que embora fundamentais, permaneceram isolados. Foi neste celeiro do Cinema Negro, ou Quilombo, como Bulbul gostava de dizer, que esta nova geração vai emergir. A exemplo da já citada Viviane Ferreira, que além da produção de filmes, é uma das principais continuadoras da missão de Bulbul na construção dessa rede do cinema negro, atuando como uma das figu- ras centrais na articulação das/os profissionais negras/os do audiovisual. Ferreira, juntamente com Joyce Prado e Renato Cândido, integra a diretoria da primeira gestão da APAN – Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro -, fundada em dezembro de 2016 e que atualmente conta com 125 membros, entre pessoas físicas e jurídicas, dos quais cerca de 70% são mulheres. Além dela, Larissa Fula- na de Tal (BA), Everlane Morais (BA), Sabrina Fidalgo (RJ), Mariana Campos (RJ), Kênia Freitas (ES), Ceci Alves (BA), Eliciana Nascimento (BA), Renata Martins (SP), dentre outras diretoras, não só tiveram seus filmes exibidos nos Encontros, como 5. Filme homônimo do curta metragem de 2014. também participaram de mostras menores, mesas redondas e oficinas, promovi- dos pelo Centro Afrocarioca de Cinema6 . Em uma perspectiva mais ampliada, o debate sobre a participação das mulheres negras no audiovisual tem seu ponto de virada em 2014, quando da publicação da pesquisa “‘A Cara do Cinema Nacional’: gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012)”, realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do IESP/UERJ. Esta inau- gura uma série de pesquisas do GEMAA, com base no conceito da “intersecciona- lidade relacional”, cunhado por Kimberlé Crenshaw (1991), que buscam “mapear as representações mais recorrentes nessa mídia que dizem respeito a eixos funda- mentais de construção da identidade nacional brasileira: cor, gênero, sexualidade e classe” e que tiveram grande impacto e repercussão nas mídias e redes sociais. Um desdobramento positivo de tal repercussão foi, por exemplo, o início de um diálogo com a Ancine (Agência Nacional de Cinema) ainda que a contra- pelo. Isto porque logo quando a pesquisa foi divulgada, Isabela Vieira, repórter da EBC, perguntou qual era o posicionamento da Agência a respeito. A Ancine então informou que “não opina sobre conteúdo dos filmes, elenco ou qualquer coisa do tipo”7 . Depois deste momento, um grupo de servidoras que estava à frente da Associação de Servidores da Ancine, começou uma série de encontros no audi- tório da instituição, localizado no centro do Rio de Janeiro. Instaurou-se ali, ainda que de forma inicial, um canal de diálogo no qual realizadoras, diretoras e demais profissionais negras do cinema tiveram oportunidade de explicitar demandas e a necessidade de buscar estratégias que incluam nas políticas públicas de cinema a perspectiva interseccional8 . Pois ainda que a questão de gênero venha ganhando cada vez mais espaço, como por exemplo, com a paridade nas comissões de ava- liação de fundos e editais, é preciso abrir a discussão de forma real para ausência das mulheres negras quando se fala de cinema. 6. Ao longo das 8 edições dos ‘Encontros de Cinema Negro Zózimo Bulbul – África, Brasil, América Latina e Caribe (de 2007 a 2015)’, cerca de 40 diretoras negras brasileiras de diferentes gerações e regiões do país tiveram seus filmes exibidos. 7. Reportagem disponível para leitura em http://www.ebc.com.br/cultura/2014/07/pesquisa-revela-que-mulheres-negras-estao- fora-do-cinema-nacional 8. No segundo encontro da série que ocorreu em dezembro de 2015, foi a primeira vez na história da instituição que o auditório realizou a exibição de um filme aberta ao público. Na ocasião, foi exibido “Kbela” (2015) de Yasmin Thayná, com a presença da diretora e também da jornalista Sil Bahia, responsável pelo projeto de comunicação do filme para uma plateia lotada de servidores e servidoras de diferentes níveis da ANCINE.
  • 14. 26 27 Tal como atestam todas as pesquisas do GEMAA, em especial o último boletim publicado em junho de 2017, uma atualização dos dados das pesquisas anteriores que ampliou o recorte temporal, passando a analisar o período de 1970 a 2016, no qual foram analisados além da direção, elenco e roteiristas dos filmes com público acima de meio milhão de espectadores, com base nos dados disponi- bilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA-ANCINE). No resultado, a ausência completa de mulheres negras na função criativa mais prestigiosa do cinema, como se pode ler a seguir: “Entre os anos de 1970 e 2016 os filmes com grande público (acima de 500.000 espectadores) foram predominantemente dirigidos por homens (98%). Sequer um diretor não branco foi identificado, ainda que pese o fato de não termos podido identificar 13% dos casos por falta de dados. No que se refere ao gênero, chama atenção o baixíssimo índice de mulheres na direção dessas produções, apenas 2%. Além disso, nenhuma delas é negra. [Grifos meus] “(Candido et al., Boletim GEMAA, n.2, 2017). Essa ausência histórica “fricciona os limites da visibilidade”, como afirmou Ama- ranta César. num debate sobre curadoria ao comentar sobre a trajetória singular de “Kbela”, curta-metragem dirigido por Yasmin Thayná9 . O filme foi lançado em setembro de 2015 no Cinema Odeon (uma das salas de cinema mais tradicionais da cidade do Rio de Janeiro e que comporta 400 pessoas), em quatro sessões que transcorreram durante dois fins de semana, com venda prévia de ingressos que se esgotaram com antecedência10 . Até o fim de junho de 2017, o filme já tinha alcan- çado mais de 85 exibições em todo o país e em mostras e festivais no exterior (em países da África, Europa e também nos Estados Unidos)11 . E ainda assim, o filme ficou de fora das seleções dos grandes festivais de cinema nacionais, como nos lembra o crítico Heitor Augusto em uma reflexão fundamental sobre os filmes que elegemos para ver e falar sobre. Diz Augusto: “Kbela tornou-se um filme invisibiliza- do desse circuito prestigioso. Isso não deveria ter acontecido” (Augusto, 2017, p.4). 9. IV Colóquio Cinema, Estética e Política – As insurreições do presente. Disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=PAFYNMcZks 10. O sucesso do evento fez com que os responsáveis pelo cinema oferecessem à equipe do filme mais um fim de semana para projeção, que lotou igualmente nos dois dias. 11. Um dos exemplos mais emblemáticos disto foi o fato de Yasmin Thayná ter sido a primeira diretora brasileira a participar do Festival Internacional de Rotterdam em fevereiro de 2017, onde não só exibiu “Kbela”, mas também “Alma no Olho”, de Zózimo Bulbul num painel chamado Black Rebels que contava com a presença dos diretores Barry Jenkins, Charles Burnett, dentre outros nomes importantes do Cinema Negro mundial, e absolutamente nenhum meio de comunicação ou mesmo a Ancine, noticiaram o fato. Contudo, apesar dos números denunciarem uma realidade dura e com um longo caminho pela frente a se transformar, penso que podemos ficar com a presença e os avanços. Cultivando, por exemplo, uma expectativa positiva sobre as políticas públicas considerando que a Ancine pela primeira vez incluiu “gênero e raça” em seu planejamento estratégico para o quadriênio 2017-202012 . O que proponho é que de algum modo nos inspiremos em “Kbela”, filme que aborda o processo de construção e afirmação da identidade das mulheres negras, juntas, reunidas, coletivamente, trabalhando para um processo de fortalecimento mútuo, na superação das dificuldades estruturais da sociedade em que vivemos. “Kbela”, disse em outro lugar, é um filme de celebração (Oliveira, 2016, p.197). Nesse sen- tido, celebremos o florescimento de uma geração de diretoras que tem grandes chances de alterar a médio prazo o status atual da representatividade das mul- heres negras no cinema brasileiro. 12. https://www.ancine.gov.br/pt-br/sala-imprensa/noticias/ancine-divulga-planejamento-estrat-gico-para-o-quadri- nio-2017-2020 O Dia de Jerusa | Dir. Viviane Ferreira
  • 15. 28 29 REFERÊNCIAS AUGUSTO, Heitor “Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?”. In https:// ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-ou-o-problema-tambem-somos-nos- mostra-de-tiradentes/. Acessado em 20/02/2017. CANDIDO, Marcia Rangel; MARTINS, Cleissa, RODRIGUES, Raissa FERES Júnior, João. Raça e Gênero no Cinema Brasileiro (1995-2016). Boletim GEMAA, n.2, 2017. CANDIDO, Marcia Rangel; MORATELLI, Gabriela; DAFLON, Verônica Toste; FERES Júnior, João. “A Cara do Cinema Nacional”: gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012). Textos para discussão GEMAA (IESP-UERJ), n.6, 2014, p. 1-2. CARVALHO, Noel dos Santos. “Esboço para uma História do Negro no Cinema Brasileiro” In Carvalho, Noel e Jéferson De. Dogma Feijoada, o cinema negro brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005. HOOKS, Bell, Black Looks: Race and Representation. Boston: South and Press, 1992. IVANOV, Debora. Presença feminina no audiovisual brasileiro. I Seminário Internacional Mulheres no Audiovisual, Ancine, 30 mar 2017. MAIA, Carla. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. Tese de doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2015. OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refetindo a Década Internacional dos Afrodescentendes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016, p.175-198. SILVA, Conceição de Maria Ferreira. Mulheres negras e (in)visibilidade: imaginários sobre a intersecção de raça e gênero no cinema brasileiro (1999-2009). Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2016. SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade. Tese (doutorado). Tese de doutorado. Brasília: UnB, 2013. Das raízes às Pontas | Dir. Flora Egécia | Foto Janine Moraes
  • 16. O OLHAR DAS MULHERES NEGRAS EM FILMES
  • 17. 33 O OLHAR DAS MULHERES NEGRAS EM FILMES Kênia Freitas1 Ao olharem e olharem de volta, as mulheres negras se envolvem em um processo por meio do qual vemos nossa história como uma contramemória, usando-a como uma forma de conhecer o presente e inventar o futuro. Bell Hooks Rita olha. O seu rosto de olhar fixo ocupa o plano inteiro. Rosto fortemente ma- quiado e adornado de rainha da bateria. Ela transpira purpurina. Na voz off, ouvi- mos as bênçãos e proteções da ancestralidade africana para os caminhos de Rita: a mulher negra de olhos escuros que encara a câmera por quase 15 segundos. En- tão, as pálpebras fecham acompanhando o beijo nas mãos que consagram o ritual de proteção. É essa a primeira imagem de “Rainha” (Sabrina Fidalgo, 2016). São pelos olhos da protagonista que entraremos na narrativa dos sonhos de reinado de Rita frente à escola de samba. E também será pelo seu olhar fixo que sairemos. 1. Pós-doutoranda do programa de Mestrado da Universidade Católica de Brasília.Possui pesquisas em andamento no campo do documentário, das novas tecnologias e do movimento afrofuturista. Realizou a curadoria das mostras “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” (2015/ Caixa Belas Artes/SP) e “A Magia da Mulher Negra” (2017/Sesc Belenzinho/ SP). Integra o Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.
  • 18. 34 35 Após o final do filme, esse olhar nos persegue ainda: da mulher negra que encara de forma frontal a quem assiste. Um olhar firme de mulher negra tão rara- mente visto no cinema. Penetrante em sua imagem do rosto em close que domina a quem assiste; mas penetrante também nas lacunas de genealogias que sustenta. Afinal, como podem olhar as mulheres negras nos filmes? Quem constrói esses olhares? E quem os encara e os sustenta? Quantos olhares como os de Rita vimos antes em tela grande? E quantos desses foram construções de uma outra mulher negra? Como agora os olhos de Rita são a construção de Sabrina Fidalgo... Acreditamos, assim como defende Bell Hooks em seu texto seminal “O olhar opositivo da espectadora negra”2 que olhar é uma questão de poder e tam- bém (e por isso) de resistência. Poder de quem pode olhar livremente e quem não o pode. Resistência de quem inventa outras formas de ver (o “olhar opositivo” da espectadora negra como batiza Hooks), para manter-se crítico, para documentar 2. HOOKS, bell. “The Oppositional Gaze: Black Female Spectators”. Black Looks: Race and Representation. Boston: South End Press, 1992. [Versão traduzida por Maria Carolina Morais, para o blog Fora de quadro. Disponivel em: https://foradequadro.com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/].https://foradequadro. com/2017/05/26/o-olhar-opositivo-a-espectadora-negra-por-bell-hooks/]. o dominante, para não ser totalmente vencido pelas imagens. Com o cinema, pas- samos do olhar para a sua transposição em imagens. Ainda trata-se de poder e de resistência, nesse caso tanto de quem comanda o olhar atrás das câmeras, tanto de quem pode sustentá-lo livremente na frente dessas. Nesse sentido, seguindo os olhares de Rita e de Sabrina Fidalgo, aposta- mos que uma das entradas para se conhecer o cinema Feminino Negro Brasileiro é o de se fazer um inventário dos olhares em seus filmes. E sobretudo dos olhares criados sobre outras mulheres negras. A tarefa é ampla e complexa e nesse texto deixamos apenas fragmentos desse inventário de olhares possíveis a partir de al- guns curta-metragens dessa produção. As meninas negras que olham e espelhos que não refletem Em “Cores e Botas” (Juliana Vicente, 2010), seguimos os olhares de Joana, uma menina negra de classe média alta que sonha em ser Paquita. A programação da onipresente televisão na casa da família não nos deixa dúvida de que estamos nos anos 1980: Xuxa comanda o seu Xou e Collor e Lula disputam a primeira eleição presidencial direta pós ditadura militar. Mas, mais do que objeto cenográfico de marcação histórica, a TV é também o que capta e não devolve os olhares de Jo- ana. Assim, uma parte da coreografia da música das Paquitas é aprendida pelo olhar fixo na tela, pela observação dos corpos brancos de cabelos loiros da apre- sentadora e das suas assistentes. Outra parte, Joana apreende voltando-se para o espelho e observando os movimentos do seu pequeno corpo negro. As duas imagens, a do espelho e a da TV, divergem e jamais poderão coincidir. Além de olhar, Joana é também olhada atentamente ao colocar o seu corpo em performance para a seleção de mini Paquitas, na apresentação escolar. Os olhos das colegas e das avaliadoras, todas brancas, a perseguem, a julgam e denunciam a estranheza do seu corpo de menina negra simulando a imagem loira da TV. E, nesse momento, Juliana Vicente reparte o seu olhar no filme: preserva a visão eufórica de Joana que imagina apenas olhares de aprovação e celebração diante do seu número; mas mostra ainda os mesmos olhares brancos que aprisio- nam e recriminam o corpo negro fora do lugar. Esse jogo de olhares se inverte em outro momento fundamental já próxi- mo ao final do filme, quando Joana e sua família jantam em um restaurante de elite. Rainha | Dir. Sabrina Fidalgo
  • 19. 36 37 Diante da decepção da menina (preterida para ser Paquita) e dos comentários do filho adolescente apontando o racismo da situação, é a família quem olha para as mesas ao lado e se percebe deslocada entre todas as outras mesas com apenas pessoas brancas. Os olhares permanecem perdidos na volta para a casa - a im- possibilidade do espelho não está apenas na televisão, mas também no cotidiano. Joana é quem resolve o impasse, ao descobrir a possibilidade de construção das próprias imagens pela fotografia. A menina que queria ser Paquita agora treina para ser fotógrafa. O controle do olhar e da imagem é assumido enfim pela criança negra. Em “Entre Passos” (Elen Linth, 2012) a imagem que não corresponde às aspirações da infância negra é a da bailarina. Porém, no curta de Elen Linth, longe do lar confortável da família de classe média, a infância da menina negra é marcada pelo medo e pela violência. Violência essa que se mostra nos olhares das mulheres negras no filme: os olhos espantados da menina e os aterrorizados da mulher (distanciadas pelo passar dos anos, mas conectadas pela memória de dor). Esses olhares denunciam o que a diretora não precisa nos mostrar para que enxerguemos - o abuso e a agressão doméstica. No filme de Elen Linth, a menina permanecerá impotente e será apenas a mulher quem conseguirá, anos depois, recuperar algum controle. Se a memória violenta resta como ferida, as marcas físicas agora sao as pintadas pela própria protagonista com batons e sombras da maquiagem diante da câmera (que simu- la um espelho). O controle é reivindicado pelos movimentos de dança que enfim podem ser performatizados (a bailarina mulher negra) e também pelo olhar frontal para a câmera enquanto esse rosto marcado pinta-se obsessivamente. Em ambos os filmes o olhar infantil anseia por imagens que não o refletem (a Pa- quita, a bailarina inocente). Em ambos, esse olhar aprenderá a se reajustar desde a infância. E voltamos outra vez a Hooks e `as suas observações sobre a construção de olhar da mulher negra. A autora percebe um vínculo direto entre as experiên- cias infantis nas famílias negras dos adultos que punem o olhar fixo da criança, o encarar, e uma espécie de medo e fascínio que o controle desse olhar passam a exercer no imaginário infantil. Para Hooks possivelmente existe uma relação dessa proibição infantil com a interdição histórica de enc arar ou olhar fixamente que os donos de escravos brancos impunham aos escravizados negros. Nos dois casos, a repressão produziu um desejo de ver ainda maior e criou formas de reajustar/ reinventar modos de ver e modos de se produzir o olhar. Modos que reencon- tramos no cinema de Juliana Vicente e de Elen Linth e das suas protagonistas mulheres negras que reivindicam o controle das imagens que olham e a criação de espelhos que as reflitam. Os olhares solitários das mulheres negras “A Boneca e o silêncio” (Carol Rodrigues, 2015) marca justamente o fim da infân- cia de uma menina negra, Marcela. Essa transição no filme chega carregada já da necessidade de tomar decisões adultas (no caso a interrupção de uma gravidez indesejada). Se em “Cores e Botas” e em “Entre Passos” o controle é de alguma forma retomado pelas protagonistas, o filme de Carol Rodrigues será caracterizado por essa impossibilidade. E os olhares no filme mais uma vez nos ajudam a traçar essa trajetória. Assim, desde o início do filme vemos Marcela, a menina, quase mulher, que olha para baixo. O seu olhar não ousa levantar-se, ele introjetou a proibição do encarar, mas não conseguiu inventar para si outras formas de ver. Olhos solitários (ainda que rodeados pela presença do pai e do namorado) que não tem força para enfrentar. Solidão latente na cena em que Marcela e o namorado conversam na cama - os olhos dele a encaram, os dela desviam para o teto. A boneca e o silêncio | Dir. Carol Rodrigues
  • 20. 38 39 Os movimentos da câmera no filme de Carol Rodrigues materializam a solidão e a impotência da protagonista. Assim, é a distância com uma câmera que mais espia/vigia de longe a personagem que vemos entrar na casa abandonada onde o seu fim será traçado. Em outro momento, na ida de Marcela ao parque para comunicar a decisão da interrupção ao namorado, a materialidade vem da ence- nação, na qual todos os transeuntes e pessoas ao redor a encaram fixamente. E os olhos de Marcela seguirão abaixados e sozinhos. A solidão acompanhada de Marcela dá lugar ao isolamento efetivo de Je- rusa, em “O Dia de Jerusa” (Viviane Ferreira, 2014). Idosa e solitária, Jerusa passa o seu dia preparando-se para celebrar o seu aniversário com parentes que nunca irão aparecer. Será o encontro com a jovem investigadora de opinião, Sílvia, que irá mudar o seu dia. Também no filme de Viviane Ferreira podemos nos ater aos olhares das protagonistas como uma forma de investigar a narrativa. Aqui, o espelho para o olhar não vem da televisão ou de uma outra imagem da branquitude (o filme é aliás, todo encenado por atrizes e atores negros). O jogo de opostos se faz entre as duas mulheres negras protagonistas, Silvia e Jerusa. De início temos os olhos distraídos de Jerusa andando vagarosamente pelas ruas em contraste ao olhar determinado/apressado de Silvia. Para a mais velha o que resta é tempo para preencher, para a mais nova este é escasso (ape- sar dos atropelos, ela chegou atrasada ao trabalho de novo). A oposição se torna tangível no encontro das duas: Jerusa finalmente conseguiu a presença de uma convidada para a sua festa e para ouvir as suas histórias; Silvia anseia apenas por terminar de preencher o seu questionário e sair do local o mais rápido possível. Em uma o olhar de nostalgia; noutra a impaciência. E, por fim, acontece a abertura para o encontro: as duas mulheres se olham. Frente a frente, Silvia embala as mãos de Jerusa para cantar o parabéns. A cumplicidade entre as duas mulheres negras dá-se em uma troca de olhares que não é mais apenas destinada `a câmera, mas uma `a outra. Temos então em “O Dia de Jerusa” mulheres negras que se olham e olham de volta para o mundo. E nesses gestos inventam laços e alianças, onde antes havia solidão e desencontro. Conhecer o presente e inventar o futuro Esse cinema feito pelas mulheres negras filmando mulheres negras parece respon- der a ânsia avassaladora de olhar detectada por Hooks em seu texto. Ânsia que surge como resposta a histórica e permanente interdição do olhar para as pessoas negras. Como não nos deixa esquecer a autora, para nós negros, e sobretudo para nós mulheres negras: olhar é um ato de resistência, olhar é político, e é também uma possibilidade de intervenção na realidade. Voltemos por fim então aos olhos de Rita, a rainha da bateria. O seu olhar mais uma vez nos encara, agora na bela cena final do filme de Sabrina Fidalgo. Os seus sonhos de realeza carnavalesca foram cruelmente esmigalhados. A avenida do samba ficou para trás e Rita desloca-se para frente (em nossa direção). Drasti- camente diferente do início do filme, o seu olhar está vazio, é impenetrável. O seu rosto também é outro, adereços arrancados, cabelos soltos e armados, maquia- gem destruída. Ainda assim, seus olhos são os pontos fixos em um plano-sequ- ência em que tudo se desloca, corpo e cenário. Seguimos olhando-a por quase dois minutos. E ela nos olha e não está ali. Até que os olhos se fecham. E, aos poucos, ao se abrirem, Rita volta a habitar o próprio corpo. Mãos, braços, olhar e sorriso executam uma dança para si, para voltar a si. E só depois de retomar o próprio corpo de mulher negra, o seu movi- mento se insinua para a câmera. Rita nos joga um olhar frontal reempossado de si: habitado e cortante. E, então, no cinema, uma mulher negra nos olha.
  • 22. 43 IMAGENS AFRO-BRASILEIRAS EM MOVIMENTO: CONSTRUINDO UMA FÁBRICA DE SONHOS Lilian Solá Santiago1 O cinema talvez seja a forma de arte que mais dá margem a se falar sobre este- reótipo, representação e racismo. Nascido ao apagar das luzes do século XIX, essa forma de entretenimento marca definitivamente o século XX e fez dos Esta- dos Unidos o país mais rico do mundo. Hoje, naquele país, o negócio de cinema é superado grandemente pela indústria bélica, mas a capacidade do cinema de propagar o modo de vida estadunidense por todo o mundo, e fazê-lo parecer o padrão de normalidade, é a base da cultura hegemônica que, pouco a pouco, vai uniformizando modos de ser e de viver por todo o planeta. Gostava de cinema desde criança, mas sempre achei que as histórias que ouvia de meus pais eram muito mais interessantes que as contadas nos filmes 1. Lilian Solá Santiago é documentarista, produtora cultural, pesquisadora e professora de audiovisual. É formada em História e é Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, onde participa do Grupo de Pesquisa LabArteMidia (Laboratório de Arte, Mídia e Tecnologias Digitais), da Escola de Comunicações e Artes. É criadora da Casa da Memória Negra de Salto - SP (2016).
  • 23. 44 45 de sessão da tarde. Minha primeira infância foi muito rica em narrativas orais familiares. Via as histórias de minha família como sagas épicas, originadas em outros continentes, que atravessavam séculos de geografias diversas e desem- bocavam em mim. De meu pai, um homem do início do século XX, com raízes africanas fincadas nas montanhas de Minas Gerais, recebi muitas fábulas conta- das por sua avó, uma ex-escrava que mal sabia falar português. De minha mãe, que trazia a força dos índios, “negros da terra pegos a laço”, ouvia narrativas de canoas singrando rios caudalosos de Goiás, atravessados por sua mãe até en- contrar meu avô, um saudoso catalão cheio de histórias e canções de Barcelona, que pioneiramente se fixaram na cidade de Goiânia. Assim, muitos antes de mim cruzaram rios e oceanos, até que meu pai e minha mãe se conheceram em São Paulo, num momento em que a cidade começava a explodir e atrair imigrantes de toda a parte. A família (quase) toda se forma no início dos anos 1950 – pai, mãe e cinco filhos. Só faltava eu, que vim para essa família de filhos adultos somente nos anos 70. Das histórias narradas, me apaixonei pelas histórias escritas. Livro, quanto mais grosso melhor! Mas não tinha acesso a tantos livros quanto gostaria e o passatempo maior mesmo era a televisão – via desenhos pela manhã, “Sítio do Pica-pau Amarelo”, todas as novelas. A TV era minha atividade principal de contra-turno escolar. Aos domingos, pastel de feira, frutas da estação, e “Qual é a Música?”, do Silvio Santos. Lembro também de grandes séries dramáticas, assistidas enquanto fingia estar dormindo no colo de minha mãe, como a incrível “Negras Raízes”. Um de meus irmãos trabalhava com produção de cinema. A primeira vez que participei de um set de filmagem como figurante foi determinante para minhas escolhas futuras. Era o filme “Ao Sul do Meu Corpo”, de Paulo Cesar Saraceni, lançado em 1982. Como meu irmão era assistente de produção, uma semana antes de minha participação, já tive acesso à foto que fazia referência ao “personagem” que eu faria. Fiquei muito impressionada com a imagem de época, que apenas mostrava uma menina negra, com uma roupa de colegial, passando em frente a um lambe-lambe no final dos anos de 1930. Imaginava que, por estar representando alguém que poderia estar morta, poderia me conectar com ela de alguma forma e, por um pequeno espaço de tempo, podia sentir como ela se sentiu naquele momento. Constituir o figurino daquela personagem também foi uma deliciosa aventura: ver que aquela composição, antiga na tela, podia ser feita, mesclando roupas da produção com as minhas próprias roupas, foi uma grande descoberta sobre o fazer cinematográfico. No dia da filmagem, o que mais me impressionou, além de ficar o dia todo subindo e descendo uma escada para filmar apenas uma cena, foi almoçar numa grande mesa com a atriz principal, Ana Maria do Nascimento e Silva, vestida com seu figurino de época, junto com todos os técnicos da “pesada” - eletricistas e maquinistas. Fiquei fascinada com a atriz naquelas lindas roupas e que, no meio da conversa, soltava sonoros palavrões, que fazia todos rirem juntos. Eu, que não podia falar nem um palavrãozinho em casa sem levar um tapa na boca, achei aquilo o máximo e pensei: “quero trabalhar com isso, que a mulher pode ser linda e falar palavrão à vontade!”. O fazer cinematográfico no Brasil, nos idos anos de 1980, tinha um certo ar de utopia anarquista. Havia uma hierarquia, evidentemente, mas era invisível aos meus olhos infantis, e eu me encantei com aquilo. Mas logo percebi que não seria como atriz que eu poderia fazer parte desse sonho, uma vez que os lugares reservados às mulheres com minha tonalidade de pele nos filmes e novelas não era exatamente o das lindas protagonistas... No segundo grau, sai da Escola Adventista onde estudei desde a primei- ra série e fui para a Escola Pública. Não pude acreditar no que vi - foi um choque de realidade! Eu, que achava a escola particular onde sempre estudei muito ruim, defasada e retrógrada, pasmei diante do ensino público estadual paulista caótico, onde os professores em sua maioria fingem que dão aulas e os alunos fingem que estudam. Senti que, na verdade, todos não fazem senão esperar a hora de se libertarem daquele tormento obrigatório, repleto de aulas vagas, sirenes, por- tões que se fecham para o mundo, paredes mal cuidadas. Não podia acreditar em tamanho desperdício de coletividade humana! Aí me tornei ativista: entrei para o movimento estudantil, buscando formas de lutar, segundo minhas possibilidades, contra aquela situação que considerava (e ainda considero) totalmente injusta. Vi- rei militante, ia às escolas palestrar sobre a fundação de grêmios, conheci muitas pessoas, e um novo mundo se abriu para mim. No início dos anos 90, vi-me obrigada a entrar para o tal do “mercado de trabalho”. Comecei a fazer assistência de produção em comerciais, mas aspi- rava trabalhar em filmes, em participar da historia do audiovisual brasileiro, contar
  • 24. 46 47 nossas histórias nas telas, reviver aquela experiência tão marcante que tive com “Ao Sul do Meu Corpo”. Mas eram tempos sombrios para o cinema brasileiro: a Embrafilme tinha sido extinta em 1990 e o governo Fernando Collor de Mello tinha acabado com todas as possibilidades de financiamento ao cinema brasileiro. Em 1992, apenas três filmes brasileiros foram lançados. Mas eu queria fazer cinema. Na minha ingenuidade de então, pensei em estudar administração pública no intuito de ajudar a fomentar incentivos à produ- ção audiovisual brasileira. Mas no meio do processo percebi o quanto gostava de História e, assim, ingressei nesse curso na Universidade de São Paulo em 1993. Á essa época, o centro de São Paulo me fascinava muito: passava muito tempo em cineclubes onde via de tudo, mas principalmente cinema brasileiro. Também con- vivi com os últimos suspiros da Boca do Lixo paulistana ligada ao cinema, como o bar Soberano e sua incrível fauna urbana. Em 1993, o panorama cinematográfico brasileiro começou a se trans- formar com a promulgação da Lei do Audiovisual e, no ano seguinte, lá estava eu na equipe do primeiro filme de longa-metragem que trabalhei como técnica - “Os Matadores”, de Beto Brant. Que alegria: estava fazendo cinema brasileiro! E como me esforçava... Trabalhava muito, e sentia que o filme era tanto meu quanto do produtor ou do diretor. Era meu sonho se realizando: de estagiária, passei a as- sistente de produção na primeira semana de filmagem e, com orgulho, acordava antes de toda a equipe, providenciava as refeições, organizava planilhas, ajudava no set, fazia figuração... Um trabalho intenso, mas feito com muito amor! Com o tempo, aprendi a fazer projetos e a operar com as leis de incen- tivo à cultura. A morte de meu pai me surpreendeu no meio do curso superior de História, curso este que inviabilizava a história de meus antepassados negros e indígenas, aí entrei em crise: onde estavam as histórias dos povos que me consti- tuem? Onde estavam os filmes que contavam essas histórias? As historias épicas de minha infância começaram a gritar por representação, através daquelas colu- nas que sustentavam o pé direito modernista de uma universidade eurocêntrica e machista, que não me representava, e que reproduzia como papagaio uma história igualmente eurocêntrica e machista. Tinha que fazer alguma coisa! Esses questio- namentos me levaram a entrar em contato com a dança afro, depois a dar os pri- meiros passos na religiosidade afro-brasileira e, enfim, a buscar um cinema negro. Graffiti | Dir. Lilian Solá Santiago Tinha alguns poucos pares negros no audiovisual: meu irmão Daniel, o colega e contemporâneo Jeferson De, e alguns poucos diretores que em seguida formaram o Cinema Feijoada. Juntos fizemos o ‘I Encontro de Cineastas Negros em São Paulo’, mas nunca fui oficialmente do Cinema Feijoada, que era um grupo de diretores, e eu à época era produtora. Em 1996, uni forças com meu irmão Da- niel para fazer “Família Alcântara”, lançado apenas em 2006. Comecei o projeto como produtora executiva, meu irmão era o diretor. Mas, depois das filmagens e de um primeiro corte de edição, resolvi encarar também o trabalho da codireção e roteiro. Esse filme foi minha escola como realizadora – produtora, diretora e rotei- rista: dez anos dedicados à sua produção, entremeados por trabalhos de produ-
  • 25. 48 49 ção executiva com outros diretores e produtores. Fazê-lo era um grande desafio: queríamos nos comunicar com a população afro-descendente prioritariamente (53% da população brasileira), mas que pouca representação tinha como público consumidor de cinema (notadamente pessoas das classes A e B, majoritariamente brancos), então para alcançar nosso público alvo, tínhamos que fazer um filme para TV. Fomos à TV Cultura e obtivemos a confirmação de que eles passariam nosso filme, mas que não o apoiariam financeiramente. Mas como fazê-lo sem nenhum subsídio? Com a garantia de exibição, entramos numa empreitada maluca de fazer um filme para TV, mas com a Lei do Audiovisual (que é específica para pro- duções de cinema). Ao final de dez anos, lançamos o filme de 56 minutos (tempo de documentário para TV) no cinema, e ele ficou cinco semanas em cartaz, muito mais do que a maioria dos filmes brasileiros da retomada até hoje conseguem ficar. Até chegar à TV foram mais dois anos. Mesmo dirigindo “Família Alcântara”, ainda me via apenas como produ- tora executiva, mas uma nova reviravolta estava por vir. Antes de lançar o filme, co- mecei a colaborar num projeto audiovisual para uma organização sem fins lucrati- vos, a Lua Nova, que trabalha com mães adolescentes em situação de risco social. Neste projeto, conheci a documentarista colombiana Sylvia Mejia e sua técnica de vídeo-transformação - uma técnica social que usa o vídeo não para produção de produtos audiovisuais, mas para empoderamento de pessoas e grupos. Durante o processo, vi a vida daquelas meninas se transformar, assim como a minha. Ao final, encabecei a realização de dois vídeos na Lua Nova e, a partir de então, tornei-me definitivamente realizadora: produtora, diretora e roteirista. À essa época eu já tinha terminado “Família Alcântara”, mas ainda não o tínhamos lançado. No mesmo ano de lançamento de “Família Alcântara”, realizei o projeto “Balé de Pé no chão” – um curta-metragem subsidiado por um edital afirmativo que se transformou num documentário para TV em coprodução com a TV Sesc, e que codirigi com a pesquisadora de dança Marianna Monteiro. É incrível constatar a diferença entre os projetos: fiz dois filmes consecutivos com o mesmo tempo de duração - 56 minutos para TV. Mas enquanto o primeiro demorou dez anos para ser lançado, o segundo foi visto menos de um ano depois da primeira ideia. Mas não fui só eu que mudei, as condições externas também se alteraram muito: estávamos num “novo” Brasil, com muito mais possibilidades para inclusão dos que foram historicamente deixados à margem, inclusive com fomento do Governo Federal. Depois de “Balé de Pé no Chão”, montei uma sede fixa para a minha empresa produtora e comecei a fazer projetos de documentários principalmente sobre personagens e histórias negras, além de mostras de cinema sobre o tema. Mas uma nova porta ainda estava por se abrir. Sempre fui muito ligada ao magistério – meu pai era motorista e professor de alfabetização para adultos, minha irmã também é professora, e eu a auxiliava desde muito cedo. Comecei, a princípio, a dar aulas uma vez por semana, como professora substituta, na Univer- sidade Federal de São Carlos. Mas fiquei tão entusiasmada com a experiência que fui fazer Mestrado, justamente sobre as experiências de vídeo-transformação com Sylvia Mejia. Minha inquietação e vontade de estudar me levaram a lugares nunca imaginados, quando comecei minha trajetória. Hoje sou documentarista, me dedi- co ao ensino superior e à pesquisa audiovisual e realizo um festival de cinema em Salto, no interior de São Paulo. O Brasil tem uma enorme dívida com o imaginário da maior parte da população brasileira. A televisão, que serviu de unificador dessa nação desigual, proporcionou um espelho que não reflete nosso rosto, nossas batalhas, nossos conflitos. Entendo hoje que, para devidamente honrar a história negra e indígena no Brasil, mais que sermos representados nos filmes e na TV, essa história precisa estar nas Escolas e nos Museus. Admiro a existência de museus específicos, como o maravilhoso Afrobrasil, assim como reitero a importância da implantação da Lei 10.639, sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, mas advo- go firmemente pela presença negra e indígena em todos os museus brasileiros e transversalmente em todos os conteúdos escolares, uma vez que indígenas são os donos da terra e afro-brasileira é a maior parcela da população atual. Meu mais recente projeto, justamente, é uma instalação multimídia num museu – a “Casa da Memória Negra de Salto”, que faz parte da exposição perma- nente do Museu da Cidade. Trabalhando com documentário expandido, a instala- ção é feita a partir de uma ampla pesquisa histórica que reúne bibliografia, docu- mentos, depoimentos e objetos, apresentando essa pesquisa ao público, através
  • 26. 50 51 Balé de Pé no Chão | Dir. Lilian Solá Santiago e Marianna Monteiro da instalação de uma casa caipira negra, aos moldes das que eram construídas nessa cidade no início do século XX, segundo os relatos colhidos, equipada com vários dispositivos tecnológicos audiovisuais que trazem até nós a memória da população negra que formou essa cidade. Sigo com esperança, acima de tudo. Esperança que dias melhores virão, de que esse país enfim honrará sua história e seu povo, indígena e negro, à altura do que seus sangues derramados merecem. Esperança de que a representação afro-brasileira no cinema vá muito além dos estereótipos racistas reinantes, e que nossa beleza única, brasileira, permaneça por muitos e muitos séculos. É esse sentimento que me mobiliza a seguir pesquisando, criando e produzindo obras que retratem os saberes e fazeres de nossa ancestralidade.
  • 27. SAIR DO ARMÁRIO E OUSAR DIZER SEU NOME: PRAZER, CINEMA LGBT!
  • 28. 55 SAIR DO ARMÁRIO E OUSAR DIZER SEU NOME: PRAZER, CINEMA LGBT! Labelle Rainbow1 O cinema é um universo majoritariamente de homens brancos, pseudo-heterosse- xuais e elitistas. Nesse mesmo espaço, quase tudo é negado às mulheres, princi- palmente se forem negras e/ou lésbicas. Fazer cinema no Brasil é uma luta cheia de obstáculos para as realizadoras negras. Em um contexto geral poucas produções buscam denunciar as desigualdades que ainda existem na produção cinematográ- fica brasileira. Ainda assim, acredito que o cinema pode abordar e fortalecer muitas te- máticas. Historicamente, é muito comum que o Estado brasileiro não cumpra o seu papel, ficando para a sociedade e a classe artística atuarem no papel de informar a população, de passar mensagens, de romper com a lógica das grandes produções hegemônicas e transmitir algo que possa desconstruir padrões, ideias opressoras e propor transformações. 1. Labelle Rainbow é Trans, Negra, estudante de Comunicação Social/Publicidade e Propaganda, designer, militante de esquerda e dos movimentos sociais. Nos últimos anos tem atuado com ênfase na luta pelos direitos humanos da população LGBT, na construção e controle social de políticas públicas no combate à LGBTfobia, racismo e machismo, em diversos processos de participação política, em seminários, conferências, debates e atos públicos. Participa da realização do “For Rainbow”, desde o ano de 2008 de forma ininterrupta. Em 2016 foi estrela do documentário “Labelle”, um filme de Isabel Nobre, produzido pelos alunos do curso audiovisual da ONG Fábrica de imagens.
  • 29. 56 57 deve se fortalecer no entendimento de que um cinema sem racismo, só será pos- sível se também for sem machismo, sem classismo e sem LGBTfobia. Atualmente, o cinema com temática LGBT no Brasil permite traçar um painel cinematográfico brasileiro que ainda passa pela discriminação e preconceito latentes no país, mas também aponta novos horizontes. O cinema LGBT brasileiro possui uma trajetória de muita força, desde os anos 1990. Nas últimas décadas, a produção cinematográfica com esse recorte se reinventou e se pluralizou em uma gama de aspectos que visibilizam e afirmam identidades de uma população historicamente estigmatizada. É fato que alguns cineastas brasileiros, recorrentemente, têm se dedica- do a produzir filmes protagonizados por personagens LGBT, que, com suas his- tórias, sejam ficção ou documental, apresentam um caleidoscópio de representa- ções desse universo. Essa atuação também fortalece e evidencia a necessidade de travar o debate da cultura LGBT através da sétima arte. O cinema que sai do armário e que ousa dizer seu nome traz uma impor- tante contribuição na luta por uma sociedade mais justa e plural, pois ainda não é fácil adentrar nessa esfera. A tímida iniciativa do poder público em garantir incen- tivos ainda dificulta muito. Existe também a preocupação de engajamento político de realizadores e de produtores cinematográficos em criar uma representação me- nos caricata,  a fim de não reforçar e/ou reproduzir estereótipos. Um contraponto interessante é que dentro desse mesmo universo do cinema LGBT, é ampla a pro- dução cinematográfica que se refere às identidades de travestis, de transexuais e da arte transformista. “Um homem branco cisgênero como personagem central? Parece uma forma de apagar os gays e trans negros e latinos para deixar a história mais atra- ente para a telona” - declaração da estudante Pat Cordova-Goff, uma jovem trans- hispânica, que iniciou um boicote na Internet depois da estreia do trailer do filme “Stonewall”, do diretor alemão Roland Emmerich, que aborda as revoltas no bar Stonewall, em Nova York, onde nasceu o movimento LGBT. As revoltas em 28 de junho de 1969 são o grande levante do movimento gay; cabendo ressaltar que os gays e as transexuais negros e latinos tiveram um papel muito forte naqueles acontecimentos e são comumente apagados da história com o ‘branqueamento’ e ‘higienização’ da luta LGBT. Vejamos o caso do filme “Amor Maldito” da cineasta negra Adélia Sam- paio. Foi o primeiro longa-metragem a ser dirigido por uma mulher negra no Brasil e realizado em sistema de cooperação coletiva entre os técnicos e os atores. Para ser lançado, em 1984, o filme teve que se passar por filme pornô; um verdadeiro absurdo com um filme que apresenta uma importante abordagem da afetividade lesbiana. Contudo essa foi a estratégia possível na época. Segundo o boletim “Perfil do Cinema Brasileiro (1995 – 2016)”, do Gru- po de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, dos 219 filmes nacionais de maior bilheteria nas duas últimas décadas, nenhuma mulher negra atuou como diretora ou roteirista. Esse levantamento também mostra que as mulheres negras estão nas produções mais baratas, como documentários e curtas, mas não estão nas grandes produções de cinema. Essa sub-representação tem raízes históricas e mostra o lugar no qual as mulheres têm, a todo momento, sua autoridade questionada e/ou o seu conheci- mento colocado à prova. Nesse mesmo universo de baixa produção representativa, seja por meio de política de editais, seja em financiamentos coletivos, seja em trabalhos acadê- micos nas universidades, os filmes com grande expressão e qualidade técnica que são apresentados nos maiores festivais do país, são os filmes feitos por mulheres negras. É nesse contexto que novos horizontes se apresentam como possíveis. É necessário formar novas redes para distribuição de filmes, promover espaços de debates entre realizadorxs, produtorxs, junto de todxs os componen- tes da cadeia produtiva do mercado de cinema. Sobretudo, debater nossa identi- dade e representação, nas diversas produções audiovisuais brasileiras. Para além das sessões de exibição, uma nova estética, novas narrativas precisam chegar a novos espaços e territórios nesse Brasil continental. Essas distâncias regionais, culturais, econômicas, ideológicas, corporais precisam ser quebradas. Nossa arte e nossas vidas são a grande riqueza. Audre Lorde, uma escritora americana de descendência caribenha, fe- minista lésbica e ativista na luta pelos direitos humanos, afirmou, em um de seus textos, que não há hierarquia de opressão. A luta social contra qualquer forma de opressão deve ser de todas e todos e, assim sendo, ninguém deve ser apagadx nessa luta. Os movimentos sociais, LGBT, feminista e negro, sempre caminharam bem próximos na luta por justiça social no nosso país. Apesar de alguns recortes serem necessários para se reconhecer privilégios, essa proximidade ideológica
  • 30. 58 59 Mesmo com tais desafios, a produção audiovisual LGBT cresceu muito, a ponto de movimentar o universo cinematográfico. É onde nascem os festivais de cinema LGBT também nos anos 1990. Com a intenção  de divertimento e, sobretudo, na autorrepresentação das lutas contra a LGBTfobia e na crítica ao modelo de sociedade heteronormativa. É nesse contexto que também nasce o “FOR RAINBOW – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual”, em 2007, na cidade de Fortaleza (CE), com a proposta de introduzir no calendário cultural do Estado do Ceará um even- to com a missão permanente de difundir e valorizar o aporte cultural e a pro- moção da cidadania das populações LGBT, incentivar a produção audiovisual, promover o respeito à diversidade sexual e a cultura de paz. Em dez anos, o “For Rainbow” celebra um intenso trabalho de resis- tência cultural, tendo como protagonistas principais artistas de várias partes do mundo, principalmente do Ceará, que emprestam sua arte para contribuir com a construção de uma cultura que garanta dignidade e direitos iguais a mulheres e homens, sem discriminação de orientação sexual, crença, étnico-racial ou identi- dade de gênero. Nessa trajetória, o festival exibiu mais de 700 filmes, alcançou mais de 300 espaços culturais de todo o Brasil, capacitou mais de 800 pessoas em ofi- cinas técnicas e de sensibilização para o respeito à diversidade sexual, produziu 20 filmes e atingiu um público médio de 50 mil pessoas com atrações envolvendo várias linguagens artísticas (cinema, música, teatro, dança, artes visuais, literatura e performances diversas), além de proporcionar centenas de oportunidades de trabalho. O Cinema foi escolhido como a principal linguagem artística devido à capacidade de aproximar pessoas de diferentes identidades sociais. O Festival cresceu bastante e não se limitou somente às mostras audio- visuais, pois as mostras de cinema não são o palco principal do “For Rainbow”. O festival sempre foi construído como um grande espaço de convivência pra ser um instrumento de transformação social, através da arte em suas múltiplas linguagens. Apesar do recorte temático, o “For Rainbow” já se consolidou como um festival de grande porte, que se distancia do espaço secundário do meio au- diovisual. O “For Rainbow” também atua na formação de cineastas por meio de oficinas, palestras e atividades de realização audiovisual, para diversas áreas de produção cinematográfica. Making of do filme Maria | Dir. Elen Linth e Riane Nascimento
  • 31. 60 61 anos de luta, atuei com importantes contribuições em algumas instituições da so- ciedade civil de Fortaleza em áreas como cinema, direitos humanos, juventude, comunicação alternativa, movimento negro e LGBT. Todo esse acúmulo hoje é fundamental para fazer conexões necessárias nas lutas pelos direitos humanos da população LGBT, na construção e controle social de políticas públicas no combate à LGBTfobia, ao racismo e ao machismo, em diversos processos de participação política, em seminários, conferências, debates e atos públicos. Tenho participado da realização do “For Rainbow”, desde o ano de 2008 de forma ininterrupta, e em toda essa trajetória, sempre considerei importante pro- mover e garantir as diversas representações populacionais em seus mais diversos contextos através não só do cinema, mas em outras linguagens artísticas sempre alinhada com o debate do empoderamento, da valorização cultural. O cinema com foco na diversidade sexual se coloca como uma ferramen- ta pedagógica e cultural,  que possibilita uma infinidade de intervenções, produzin- do valores estéticos e socioculturais com amplas condições de consumo. Tendo em vista esse caráter pedagógico, o debate do respeito às diferentes formas de vi- ver a sexualidade se coloca como fundamental, agregando valores e fundamentos, inclusive na luta por direitos humanos, contra a violência e contra a intolerância de gênero. De certa forma, esse cinema, que também é rotulado, apresenta-se como produtor de signos de poder. O grande desafio que se apresenta ao audiovisual brasileiro é se trans- formar, de fato, em um espaço de representação da diversidade das populações historicamente excluídas e marginalizadas com muito mais cores, mais diversidade e mais empoderamento revolucionário. Ainda é necessário causar um grande rebuliço na cena cultural do país. O cinema se coloca como uma das importantes ferramentas para isso e já abre caminhos que apontam um cinema esteticamente eclético, com linguagens mais diversas, mas que se unifica e se reconhece pela diversidade sexual, pela luta por direitos, por reconhecimento e pelo amor. Os critérios de seleção das mostras audiovisuais são a qualidade dos filmes, levando em consideração direção, fotografia, roteiro e narrativas que ex- pressem de fato a diversidade da população LGBT e a grande leva de produções culturais com essa temática. A qualidade dos filmes LGBT melhorou significativa- mente, seguindo uma tendência do atual cinema nacional.  E esses filmes contri- buem muito com as lutas dos movimentos LGBT, que, no geral, são documentários e possuem um tom mais informativo. Apesar de não ser uma prioridade na mostra competitiva do festival, um dos critérios de seleção para as mostras é o caráter libertador desses filmes, que fogem às abordagens estereotipadas de muitas pro- duções convencionais. São filmes que, algumas vezes, mostram realidades extre- mamente difíceis, mas que mantêm a identidade afirmativa e de resistência cultural do nosso festival. Dentro desse cenário, uma realidade que sempre esteve presente na curadoria dos filmes é a preocupação em garantir filmes que representem, de for- ma significativa, os segmentos da população LGBT e as suas diversidades subjeti- vas. Tem sido uma tarefa árdua conseguir rechear uma programação de sete dias. Procuramos muito por filmes com temática lesbiana, feitos por mulheres. Procura- mos bastante por filmes que tragam a diversidade brasileira, filmes com narrativas negras e indígenas, filmes feitos e com participação ativa de negras e negros. Ainda temos dificuldade em conseguir nos aproximar desse tipo de produção, ora por motivos temáticos, ora por uma baixa produção nesse campo. Essa é mais uma realidade muito comum dentro do mercado audiovisual brasileiro (”Nós somos muitos e estamos em todos os lugares”) – ideia difundida no surgimento do ativismo gay, porém toda essa diversidade não se vê representada nem nas telinhas e muito menos nas telonas. Como enfrentamento e resistência, buscamos fechar parceria com outros festivais e mostras audiovisuais. Em uma década de festival tivemos como parceiros: FEMINA - Festival Internacional de Cinema Feminino”, “Curta Santos”, “RECIFEST - Festival de Cinema da Diversi- dade Sexual e de Gênero”, “LESGAI Cine Madri”, “Mindelo Pride de Cabo Verde”, “Mujeres Al Borde de Bogotá”. Toda essa parceria contribui para que o festival mostre uma vasta diversidade de produções nacionais e internacionais e o coloca alinhado a um contexto internacional. Minha experiência como militante dos movimentos sociais desde os 14 anos me mostra hoje que viver é um ato político e revolucionário. Durante esses
  • 32. Adélia Sampaio começou no cinema em 1967, através da Difilm, distribuidora fun- dada por Rex Endsley, Riva Faria, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Santos, Leon Hirzman, Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias. Ela aprendeu cinema na prática, como diretora de produção de diversos longas-metragens. Filha de empregada doméstica, Adélia Sampaio dirigiu quatro curtas-metragens. O primeiro foi “Denúncia Vazia”, baseado no fato verídico de um casal de idosos que, sem condições de pagar o aluguel, cometem suicídio. O segundo curta foi “Agora Um Deus Dança em Mim!” e conta a história de uma jovem que estuda balé clássico por dez anos e descobre que não existe mercado de dança no Brasil. “Adulto não Brinca” mostra a intolerância do adulto para com a criança. Por fim, “Na poeira das Ruas”, sobre pessoas que moram na rua, no centro da cidade, embaixo dos viadutos. Armazenados na Cinemateca do MAM, os negativos dos quatro curtas- -metragens desapareceram. Em 1984, Adélia Sampaio se tornou a primeira diretora afrodescendente a dirigir um longa-metragem no Brasil: “Amor Maldito”, que também carrega o peso de ser o primeiro filme com temática inteiramente lésbica no cinema nacional. A ousadia, considerada absurda pela Embrafilme, que lhe negou financiamento, forçou Adélia Sampaio e sua equipe a trabalharam em regime de cooperativa. Emiliano Queiroz, Nildo Parente e Neusa Amaral abriram mão do pró-labore. Nenhuma sala, contudo, aceitou exibí-lo, até que o Cine Paulista (hoje Olido) propôs que “Amor Maldi- to” fosse divulgado como filme pornô. Adélia Sampaio foi a pioneira e, embora o cinema continue marcadamente patriarcal e branco, diretoras afrodescendentes ocupam cada vez mais espaço atrás das câmeras. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Gostaríamos de saber mais sobre o seu início no cinema. Como se deu a sua entrada no campo do ci- entrevista com adélia sampaio
  • 33. 64 65 nema? E como foi esse percurso interno dos primeiros trabalhos até você dirigir os primeiros filmes? A gente sabe que ao longo da sua trajetória você ocupou várias funções antes da direção, então gostaríamos de saber quando e por que você decidiu dirigir e escrever os próprios filmes? E no seu percurso também você trabalhou com diversos profissionais do cinema: entre esses, quais foram os mais importantes para você: os que te ensinaram e/ou trocaram mais com você? Adélia Sampaio: Meu início no cinema foi em 1967. Na ocasião, fui contratada como telefonista, para atender o pessoal do Cinema Novo... Mas o meu inte- resse com cinema, ele começou quando eu tinha 13 anos, e tinha acabado de chegar à cidade vinda de um asilo de crianças carentes no interior de Minas Gerais. Na época, eu fui levada por minha irmã, Eliana Cobbett, para entrar pela primeira vez em um cinema e assistir a estreia do filme “ Ivan, o Terrível” (Sergei Eisenstein, 1944). Fiquei muito assustada com um cinema cheio e ao pipocar o filme na tela, eu me encantei como um passe de mágica. Ao terminar o filme, confidenciei à minha irmã: - É isso que quero fazer: Colocar a gente na tela do cinema! Eu me recordo que ela sorriu e disse: - Não viaja Adélia! Para com isso... Eu de fato trabalhei com muitos profissionais, como o Marcos Farias, William Cobbett, Alcino Diniz, Pedro Rovai, Joaquim Pedro, Leon Geraldo, Santos Pe- reira e Lulu de Barros. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Bom, você realizou diversos curta-metragens na sua carreira, você pode falar um pouco sobre o processo de criação e execução deles. Por exemplo, percebemos em alguns dos seus curtas e no seu longa uma influência direta de casos verídicos (notícias de jornal, etc). Isso é algo que te move ou te inspira? Adélia Sampaio: Sim. Inspira-me e revolta-me. Daí eu penso que se escolhi a ferramenta de cinema para falar, é então através dela que vou me manifestar. Meu último trabalho foi uma parceria com a TV Câmara, o Paulo Markum e a TV Cultura. Reconstituí com atores o dia em que foi proclamado o AI-5, o dia que não existiu. Temos mostrado esse documentário por aí e 50% dos jovens não tem noção do que significou este ato. Esperei que a tempestade passasse e em 2002 mostramos uma página triste de nossa história. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Sobre os curtas ainda. Os negativos dos filmes estavam no MAM, mas sumiram. Existe algum trabalho da Cinemateca pra localizá-los, ou de algum pesquisador? Você sabe se existe alguma cópia dos filmes em algum outro suporte? Adélia Sampaio: Meu filho tinha guardado com ele uma cópia de “Denúncia Va- zia” (1979) e uma cópia de “Adulto não Brinca” (1980), em bitola 16mm. Porém, as cópias precisam ser restauradas e isso é caro. A preta aqui não conseguiu sensibilizar o pessoal da Cinemateca do MAM - para eles são mais uns filminhos de uma preta filha de empregada doméstica pretenciosa. que resolveu ser cine- asta... Os outros negativos ficam na conta do perdido. E jamais consegui ser recebida pelo Sr. Hernani Heffner (conservador chefe da Cinemateca do MAM)... Eu fui muito amiga do Cosme Alves Netto (antigo diretor da instituição) e creio que se ele fosse vivo, viraria mundos para localizar os meus trabalhos. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E sobre o seu longa, “Amor Maldito”. Queríamos saber também sobre o seu processo de criação e exe- cução. Você considera que foi algo muito diferente da realização dos curtas? Uma questão que nos chama muita atenção é toda a mise en scène do tribunal. As ce- nas são muito bem coreografadas, ritmadas: entre a atuação e a câmera. Como foi essa construção entre você, os atores e a direção de fotografia do filme?
  • 34. 66 67 Adélia Sampaio: O processo do longa foi mais sofrido. Porém, contei sempre com o ajuntamento de pessoas, atores e técnicos, que acreditavam em minhas ideias. Contei com o José Louzeiro, que abraçou a ideia e se propôs a escrever o roteiro. Ele era um nome de peso se agregando ao meu ajuntamento. Consegui os autos do processo e todas as falas do tribunal são fiéis às originais. Em seguida, decidi o elenco e nos reuníamos na casa do Louzeiro para falar sobre o filme. Quanto às cenas do tribunal, o ator Vinicius Salvatore, que interpreta o promotor no filme, foi resistente ao meu comando. Ele argumentava ser teatral e foram horas de conversa para mostrar a ele o teatro da vida, que por vezes é pior que o teatro do palco. Quando fomos todos assistir aos primeiros copiões ele me confessou: - “Nossa!... Você estava certa!”. Fomos para o tribunal em Niterói: eu (primeira direção de longa), Paulão [Paulo César Mauro] (primeira direção de fotografia) e Professor [Eduardo] Leone, meu mestre e montador de todos os meus filmes - e antes de tudo meu amigo irmão! Ficamos varando a noite inteira para uma decupagem precisa, até porque tínha- mos o negativo contado para utilizar. No dia seguinte, foi a vez do meu amado Tony Ferreira (que interpretou o advogado de defesa) e do Salvatore (que fez o promo- tor). Passei com eles o filme sem câmera, indicando o que seria travelling, o que seria plano próximo, close, etc. Na direção da fotografia tínhamos nos ajudando o meu mais que irmão José Medeiros, que nos presenteou com uma terceira câmera. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Ainda sobre o “Amor Maldito” . O processo de financiamento e de divulgação foram bem difíceis, certo? Você acredita que a temática da homossexualidade feminina foi o maior motivo disso? E você acredita que seria mais fácil ou mais difícil realizar esse filme hoje? Adélia Sampaio: Sim, e foi o que verbalizou o responsável pela Embrafilme que: jamais nos daria qualquer tostão para divulgar desvios. E, sem dúvida nenhuma, ele se referia à temática da homossexualidade feminina do filme. Hoje em dia, pela tecnologia digital, claro que seria mais fácil de realizar. Mas é um tema bravo a homofobia, continua sendo. Parece que já é adicionado ao leite na mamadeira. O que é muito triste! Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Você passou um período sem trabalhar diretamente com cinema, mas atuando na televisão. Como foi esse processo? Como foi esse período de trabalho na televisão? Adélia Sampaio: Sim. Fui trabalhar na produtora TVC (do Carlos Tourinho e da Maria Alice).Lá criamos duas revistas eletrônicas sobre o Rio de Janeiro (“Rio que te quero Rio” e “Cara do Rio” ) e criamos um programa para TV Educativa, o “ Talento Brasileiro”. Esse processo foi libertário. Tourinho era diretor de fotografia do programa Amaral Neto, e ficamos amigos até hoje. Na verdade, éramos inde- pendentes de emissoras, veiculando o nosso produto à TV. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E como você percebe esse reconhecimento (e mesmo descoberta) do seu cinema pelas gerações mais jovens? Como está sendo o seu contato com essa nova geração de cineastas? É verdade que muitos jovens estudantes, diretoras e diretores se aproximaram de você e pedem ajuda e dicas nos seus projetos? Como está sendo esse processo? Quais trocas têm acontecido? Adélia Sampaio: E olha, para mim é surpreendente exibir meu filme “Amor Mal- dito” (1984) para uma platéia de jovens, que no final aplaudem e estão ávidos de perguntas. É lindo. Fazer uma palestra para afrodescendentes e, de repente, uma menininha se levanta no meio da platéia e diz: “Desde que nasci que procuro um espelho e agora achei. É você o meu espelho!”. Vou as lágrimas, fico feliz. É verda- de, eu dou pistas aos jovens e eles me ensinam a modernidade do digital, e assim vamos trocando. É lindo. Tenho lido roteiros contando as histórias e mostrando que o Cinema Novo deu certo, porque um bando de jovens se juntou a uma ideia (cinema) e surge assim o Cinema Novo.
  • 35. 68 69 Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: E gostaríamos de sa- ber qual a sua avaliação sobre fazer cinema, assumindo a direção, sendo uma mulher negra. Houve obstáculos, preconceitos explícitos ou implícitos? E como você percebe essas relações com as diretoras negras atuais? Adélia Sampaio: CINEMA É UMA ARTE ELITISTA. Então preto não deve, não pode fazer parte desta elite. É uma aberração quando uma preta, como eu, en- frenta o preconceito. O obstáculo é cruel, mas quando você crer que vai chegar, enfrenta sem medo. Minha velha mãe dizia: “Filha pra cima do medo, coragem!”. Tenho sido muito reverenciada por negras no cinema que me olham com um ar de fé e alegria. Devagar vamos derrubar os obstáculos que ainda são muitos. Kênia Freitas & Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida: Por fim, gostaríamos de saber sobre os seus projetos de novos filmes. E se você acredita que a Ancine e o Ministério da Cultura têm projetos verdadeiros pra diversificar o cinema ou os diretores vão continuar a se virar pelo próprio esforço? Adélia Sampaio: Tenho um longa-metragem e um curta em produção. O curta está em fase de capitação e é sobre como as mulheres na era pós governo Collor reaqueceram o cinema. E o longa-metragem chama-se “A Barca das Vi- sitantes” e é sobre as visitas aos presos políticos de 1968 a 1970. Vou apostar que depois de uma estrada longa que percorri a Ancine e o Ministério da Cultura vão me ajudar a fechar a tampa do meu cinema!
  • 36. 71 entrevista com danddara janaína oliveira (ficine/apan) Há um longo caminho a percorrer no processo de reconhecimento histórico da participação das diretoras negras no cinema nacional. Mesmo na historiografia que trata do Cinema Negro há uma lacuna a este respeito. Pois, se como disse em outro lugar, “o cinema negro é um projeto em construção no Brasil”1 , resta todavia o desafio de equilibrar historicamente a representatividade das mulheres negras neste caminho. A invisibilização da trajetória de Adélia Sampaio infeliz- mente não é a única. Há diretoras que começaram a fazer filmes no início dos anos 1990 e 2000 que também permanecem esquecidas - seja nos textos aca- dêmicos, na crítica de cinema ou na mídia. Danddara, cineasta que também foi precursora no Cinema Negro Nacional, está entre elas. Do teatro e da música, para o cinema. Danddara ingressou no cinema profis- sional fazendo assistência para Paulo Rufino, em “Canto da Terra” (1991). Mas, apesar da experiência de quase uma década, o seu primeiro curta “Gurufim na Mangueira” (2000) foi recusado três vezes pelo Ministério da Cultura antes de ser aprovado. E, ainda assim, a diretora usou de diversos subterfúgios para dri- blar o racismo institucional, como assinar o projeto com um pseudônimo francês e relevar para segundo plano a sua autoria do roteiro. Conversei com Dandda- ra no intuito de compreender não só seu percurso individual, mas, sobretudo, como ela mesma percebe essa história que de algum modo a marginalizou. 1. OLIVEIRA, Janaína. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma Feijoada” aos dias de hoje. In FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refetindo a Década Internacional dos Afrodescentendes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, 2016, p.175.
  • 37. 72 73 Janaína Oliveira: Como você começou a fazer filmes? Danddara: A primeira experiência foi na escola! Tive a felicidade de nascer em uma família negra de classe média com pais (Edna e Eurico Rodrigues) ambos extremamente cultos, politizados e com dois cursos superiores cada um. Come- cei a escrever bem cedo e fazia teatro com as crianças da vizinhança. Na 2ª e 3ª séries primárias (1976/77) estudei no Baby Garden um colégio de vanguarda na Tijuca. A professora de música, Denise Mendonça (hoje à frente do Instituto TEAR) mudou a minha vida... Ela gravou uma canção minha (“Ei Amigo”) num LP da escola e me colocou no papel de Helena de Tróia em um filminho super 8 que fizemos na turma. Eu era a única criança negra no turno da tarde (de manhã era minha irmã Valéria). Isso deixou uma marca super forte no meu coração. Já amava o cinema e de repente me vi dentro de um filme! Tinha 8 anos de idade. Na adolescência fiz Tablado em 1983/84, mas não tive coragem de fazer facul- dade de Cinema, pois não via outras mulheres negras e senti que nunca iam me deixar fazer aquilo. Comecei a carreira profissional no teatro, como atriz da Bia Lessa (1985), aos 16 anos. Nesse ano passei pra história na UFRJ, fazia a Oficina Literária Ivan Proença e canto lírico com Maria H. Bezzi. Em 1987 Alfredo Sirkis me mostrou um roteiro impresso pela primeira vez. Em 1988 (ou 89) fiz workshop com Glória Perez, na Atlântida. Tive convites para fazer cinema como atriz. Qua- se tudo pornô. Declinei. O cinema profissional veio em 1990. Fui assistente de faz tudo do Paulo Rufino (“Canto da Terra”, 1991). Ele me deu crédito de Produtora Executiva! Lembro dele dizendo: “Cinema tem que ter estepe” – nunca se vai para o set sem plano B! Escrevi meus primeiros roteiros após voltar de NY, em 1996. Tentei aprovar o GURUFIM no Ministério da Cultura três vezes. Só deu certo quando inscrevi o projeto sob a identidade de uma mulher branca de sobrenome francês. Também ocultei minha autoria no roteiro; pus o nome do co-roteirista (branco judeu) à frente do meu, e me coloquei propositadamente em segundo plano, sem o meu nome artístico. Fiz tudo aquilo porque queria ser atriz! Assumi a direção por acaso, depois que o diretor convidado (negro cubano) teve um tumor (benigno!) há um mês da filmagem. Só aí eu entreguei o personagem da viúva pra Thalma de Freitas e renunciei ao meu sonho pra me redescobrir diretora. Feliz da vida! Janaína Oliveira: Quais foram suas influências? Danddara: Fiz uma lista de filmes que me marcaram muito, e que sempre me vêm à memória... Dos filmes que vi com minha mãe na infância, lembro de: “Der- su Uzala”, de Akira Kurosawa (1975), “Pele De Asno”, de Jacques Demy (1970) e “Contatos Imediatos Do Terceiro Grau”, de Steven Spielberg (1977). Mais tarde descobri Federico Fellini: “La Nave Va” (1983); Rainer Werner Fassbinder: “O Desespero De Veronika Voss” (1982) e Pedro Almodovar: “Ata-me!”(1990). No Brasil, os filmes de diretoras mais importantes pra mim são: “Um Céu De Estre- las”, de Tata Amaral (1996); de “Terra Para Rose”, de Tetê Moraes (1987) e “Amor Maldito”, de Adélia Sampaio (1984). Entre os homens, sou fã do Cinema Novo: “Rio Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos (1957) e os curtas: “Pedreira São Diogo”, de Leon Hirzman (1962) e “Arraial Do Cabo”, de Paulo César Sara- ceni (1960). No mundo, as mulheres cineastas que mais me influenciaram foram: Maria Luisa Bemberg: “Camila” (1984); Catherine Breillat: “Romance X” (1999) e Sofia Coppola: “Lost In Translation” (2003). Janaína Oliveira: Na época, você se inspirou ou teve contato com outras reali- zadoras negras no Brasil e/ou no exterior? Danddara: A Julie Dash: “Daughters Of The Dust” (1991) e a Kasi Lemmons: “Eve’s Bayou” (1997). Deixei pra falar delas num capítulo à parte. Porque elas me deram muito mais que inspiração. O conceito de mulher negra cineasta só passou a existir na minha mente depois que eu vi os filmes dessas duas afro- -americanas. Excelentes! Ver a mulher negra como sujeito da narrativa cinema- tográfica, em uma auto representação autoral de uma negra cineasta... Antes delas, achei que não existia.