1. CIF nos sistemas de informação em saúde: que diferença isso vai fazer?
Ana Cristhina de Oliveira Brasil
Eduardo Santana de Araujo
A estrutura de mortalidade que vem se conformando ao longo dos anos recentes no
Brasil ocorre dentro do contexto de mudança nos perfis de causas de morte, marcadas por
uma diferenciação na incidência das principais causas entre as distintas faixas etárias. As
causas relacionadas às enfermidades infecciosas, parasitárias, má nutrição e os problemas
relacionados à saúde reprodutiva que, historicamente, afetavam a mortalidade infantil e de
menores de cinco anos de idade, perdeu a sua predominância, sendo substituídas pelas
doenças não transmissíveis e pelas causas externas.
Some-se ainda a carga que têm adquirido, na estrutura da mortalidade, as causas
relacionadas a problemas circulatórios, respiratórios e neoplasias, que vêm incidindo nas
faixas etárias mais avançadas. É exatamente esse grupo etário (60 anos e mais) que, em
consequência do novo padrão demográfico brasileiro está tendo importância cada vez maior
na composição geral da população, tanto em termos absolutos quanto relativos. Os dados de
morbidade têm se direcionado para o mesmo caminho, com aumento relevante da
prevalência de doenças crônicas.
Todas essas informações são de especial importância para que o país determine
suas estratégias de promoção, prevenção e recuperação da saúde. Sem dados oficiais, esse
conhecimento não seria possível. O avanço da tecnologia permitiu a criação de uma base
nacional, o DATASUS, que é alimentado pelo uso constante da versão atualizada da
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID.
No entanto, graças ao novo perfil demográfico e de saúde, há uma grande proporção
da população com o mesmo padrão de morbidade, sem, no entanto, que isso signifique que
cada cidadão encontre-se numa condição igual. A repercussão das doenças na vida diária de
cada brasileiro, em especial das crônicas, atua de diferentes formas, em diferentes
intensidades, causando uma variedade de incapacidades, sendo que o uso exclusivo da CID
não torna possível a visualização dessas repercussões caso a caso. Por outro lado, o
sistema de informação atual tem um grande viés, pois, apenas os casos diagnosticados com
determinado problema de saúde fazem parte da base de dados. Um sistema de informação
ideal deveria poder gerar informações sobre toda uma população. Da forma que trabalhamos
hoje, podemos determinar apenas as causas dos casos e basear os programas de
prevenção nessas informações. Não é possível ainda, determinarmos as causas de
incidência dos casos, conhecer os fatores determinantes. Aí sim, poderíamos ter mais
embasamento para criação de programas de promoção e prevenção em saúde com mais
efetividade.
Essa dificuldade de se gerar informações mais completas sobre saúde foi absorvida
e a necessidade de sistemas complementares de informação foi percebida. Um exemplo
claro disso foi a criação, por exemplo, dos Inquéritos de Saúde no Estado de São Paulo. Com
o intuito de possibilitar a visualização da influência e a relação existente entre as condições
sociais e saúde é que foram desenhados os chamados Inquéritos de Saúde. Essa estratégia
permitiu um melhor conhecimento do estado de saúde da população, visto que vai além do
conhecimento do perfil de morbi-mortalidade.
Os inquéritos de saúde contribuíram com o planejamento e avaliação de serviços, se
alinhando aos esforços atuais de aprimoramento da Epidemiologia, esclarecendo melhor os
perfis de saúde/doença e de uso dos serviços pelos diferentes segmentos sociais da
população. São os estudos de equidade que têm auxiliado a consubstanciar o
desenvolvimento da Epidemiologia para apontar mais acertadamente, no campo de Saúde
Pública, para a construção de uma visão Ecológica e Social (Krieger, 2001).
A abrangência diversificada dos Inquéritos de Saúde, seja quanto aos temas, seja
quanto aos grupos estudados, têm permitido uma avaliação local, por meio de uma amostra
populacional. A execução do mesmo tem um grau muito maior de dificuldade do que o
controle de morbi-mortalidade, já que esse segundo é feito por meio de alimentação um
sistema operacional eletrônico nacional, graças ao uso contínuo e obrigatório (mesmo que
parcial) da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problamas relacionados à
Saúde – CID-10. Mesmo assim, os Inquéritos de Saúde vêm sendo realizados com
freqüência crescente e têm passado a constituir parte essencial dos sistemas de informação
utilizados para a formulação e avaliação das políticas públicas (Viacava, 2002).
Vê-se, claramente, que o sistema baseado apenas na CID não traz todas as
informações que são necessárias. A Organização Mundial da Saúde, percebendo a
necessidade, lançou em 2001, após quase 30 anos de desenvolvimento, a Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF. Essa classificação tem por
2. principal objetivo preencher essas lacunas. De um lado, ela dá a visualização completa das
consequências das doenças, em especial das crônicas, no que se refere ao aparecimento de
disfunções/deficiências, limitação de atividades de vida diária e restrição de participação
social. De outro lado, ela ajuda a identificar o fatores determinantes, a causa da incidência
dos casos, por meio de uma lista complementar de categorias chamada de Fatores
Ambientais.
A lógica do instrumento permite uma inter-relação entre todos os seus componentes,
observando um modelo biopsicossocial, baseado na funcionalidade humana como
componente de saúde, retirando o foco inicial da doença. De cara, já há um grande benefício:
o objeto de classificação é a situação de toda população, não apenas dos indivíduos que se
encontram doentes.
Esse instrumento aponta para uma forma mais acertiva de se gerar informações de
saúde num banco de dados nacional, como o DATASUS: o uso complementar da CID e da
CIF. As duas classificações se completam perfeitamente. Estão em sintonia. As informações
geradas pelo uso conjunto serão mais completas e mais confiáveis para determinção de
políticas, sistemas e ações em saúde.
Na realidade, o Brasil enquanto País Membro da Organização Mundial da Saúde já
tem o uso da CIF indicado desde 2001. Veja abaixo a transcrição da Resolução OMS
54.21/2001:
"A quinquagésima quarta Assembleia Mundial da Saúde,
1. ENDOSSA a segunda edição da Classificação Internacional das
Deficiências, Incapacidades e Desvantagens com o título Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, doravante
designada como CIF;
2. URGE os Países Membros a utilizar a CIF na sua pesquisa, vigilância e
relatórios como apropriado, levando em consideração situações específicas
nos Países Membros e, em particular, em vista de possíveis revisões futuras;
3. SOLICITA que o Diretor Geral dê suporte aos Países Membros, quando
solicitado, para utilização da CIF."
Fonte: CIF.
Por incrivel que pareça, a primeira adoção oficial no Brasil não foi do Ministério da
Saúde e sim do Instituto Nacional de Seguro Social e do Ministério do Desenvolvimento
Social, por meio da Portaria Conjunta n° 01, de maio de 2009. Veja abaixo, um trecho do
Anexo 03 da referida Portaria:
"A avaliação da deficiência e do grau de incapacidade da
pessoa com deficiência requerente ao BPC deve se pautar nos princípios da
Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF,
estabelecida pela Resolução da Organização Mundial da Saúde nº 54.21 e
aprovada pela 54ª Assembléia Mundial da Saúde, em 22 de maio de 2001,
que define:
I – funções do corpo: são as funções fisiológicas dos sistemas
orgânicos, incluindo as funções psicológicas;
II – estruturas do corpo: são as partes estruturais ou anatômicas
do corpo, tais como, órgãos, membros e seus componentes, classificados de
acordo com os sistemas orgânicos;
III – deficiências: são problemas nas funções ou nas estruturas
do corpo, tais como, um desvio importante ou uma perda;
IV – atividade: é a execução de uma tarefa ou ação por um
indivíduo, representando a perspectiva individual da funcionalidade;
V – limitações de atividades: são dificuldades que um indivíduo
pode ter na execução de atividades;
VI – participação: é o envolvimento de um indivíduo numa
situação de vida real e corresponde à perspectiva social da funcionalidade;
3. VII – restrições da participação: são problemas que um
indivíduo pode enfrentar quando está envolvido em situações da vida real,
sendo determinadas pela comparação entre sua participação e a esperada
de um indivíduo sem deficiência, na mesma cultura ou sociedade;
VIII – capacidade: refere-se à aptidão de um indivíduo para
executar uma tarefa ou ação em um ambiente considerado uniforme ou
padrão, de modo a neutralizar impactos externos sobre a avaliação;
IX – desempenho: refere-se ao que o indivíduo faz em seu
ambiente de vida habitual, incluídos neste conceito os aspectos do mundo
físico, social e atitudinal, descritos na CIF como fatores ambientais.
Comparando-se as avaliações de capacidade e de
desempenho, pode-se perceber o que pode ser modificado no ambiente para
melhorar o desempenho de um indivíduo.
X – funcionalidade: é um termo genérico envolvendo as funções
do corpo, estruturas do corpo, assim como as atividades e participação,
indicando os aspectos positivos da interação entre um indivíduo e os fatores
ambientais e pessoais;
XI – incapacidade: é um termo genérico envolvendo deficiências
nas funções ou nas estruturas do corpo, limitação de atividades e restrição
da participação, indicando os aspectos negativos da interação entre um
indivíduo e seus fatores ambientais e pessoais;
XII – fatores pessoais: representam o histórico particular da vida
e estilo de vida de um indivíduo e englobam características próprias que não
são parte de uma condição de saúde ou de um estado de saúde, os quais
não são classificados na CIF, mas podem influenciar os resultados das várias
intervenções;
XIII – fatores ambientais: constituem o ambiente físico, social e
atitudinal no qual as pessoas vivem e conduzem sua vida, são externos ao
indivíduo e podem atuar como facilitadores ou barreiras sobre a função e/ou
estrutura de seu corpo e sobre seu desempenho e/ou capacidade para
executar ações ou tarefas.
Os princípios enumerados acima estão contemplados no
conceito de incapacidade previsto no decreto 6.214 /2007 e de pessoa com
deficiência previsto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30
de março de 2007, aprovados pelo Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de
2008, orientadores do novo modelo de avaliação e grau de incapacidade das
pessoas com deficiência requerentes ao BPC.
3
A caracterização das pessoas com deficiência requerentes ao
BPC e da existência de incapacidade para a vida independente e para o
trabalho, nos termos da CIF, deve ser efetuada com base nas diferentes
dimensões de saúde sob a perspectiva biológica, individual e social e na
relação entre estado ou condição de saúde do indivíduo e fatores pessoais e
externos que representam circunstancias em que vive.
A realização da caracterização de incapacidade para o trabalho
e para a vida independente deve ser feita a partir de instrumento específico
instituído pela presente Portaria.
A adoção deste novo modelo de avaliação da deficiência e do
grau de incapacidade supera a análise centrada no autocuidado, que
considera vida independente como a capacidade de se vestir, higienizar,
4. alimentar, locomover e outros atos da vida cotidiana.
A avaliação da deficiência e do grau de incapacidade é
composta de avaliação médica e social, obedecendo à codificação dos
componentes e domínios da CIF.
A CIF é dividida em duas seções ou partes:
A parte 1 se refere à Funcionalidade e à Incapacidade; e
A parte 2 abrange os Fatores Contextuais.
São componentes da Funcionalidade e Incapacidade: “Corpo” e
“Atividades e Participação”.
São componentes dos Fatores Contextuais: “Fatores
Ambientais” e “Fatores Pessoais”.
Cada componente acima referido é composto de vários domínios, que são
conjuntos práticos e significativos de funções relacionadas à fisiologia,
estruturas anatômicas, ações, tarefas ou áreas da vida. Cada domínio, por
sua vez, é composto por categorias denominadas unidades de
classificação."
Assim, espera-se que o Ministério da Saúde dê seus primeiros passos em relação ao
uso da CIF, pois, sua introdução no sistema nacional de informações de saúde ajudará a
garantir mais equidade e justiça para cada brasileiro e para cada brasileira.