O documento resume o episódio do velho do Restelo no poema de Camões "Os Lusíadas". O velho critica a vaidade e ambição dos navegantes portugueses que partiram em busca da Índia, citando mitos como Prometeu. Há também uma discussão sobre se o velho representa uma contradição na epopéia ou se foi usado por Camões para incorporar juízos morais.
3. Restelo é o nome da praia de onde, no dia 8 de julho de
1497, partiram as caravelas de Vasco da Gama em busca
do perigoso e desconhecido caminho marítimo para a
Índia.
4. Na época da expansão mercantilista, entre os séculos
XV e XVI, havia duas correntes de opinião em
Portugal: uma voltada para os valores medievais, mais
preocupada com a agricultura e com os princípios da
velha nobreza fundiária ; outra voltada para a
renovação do perfil econômico do país, mais
preocupada com o comércio e com os princípios
flutuantes da burguesia em ascensão.
5. O episódio do velho do restelo é um fragmento da
sequência conhecida como a partida das Naus, em que
se narra o embarque oficial dos navegantes, antecedido
de procissão solene e despedidas espontâneas. A
partida das Naus inicia – se na estrofe 84 e termina na
estrofe 93 do canto quarto. Na despedida dos
navegantes havia
mães, esposas, filhas, crianças, meninos e velhos, entre
eles o velho do restelo
6. Quando as Naus já se encontram no Atlântico, surge
um grito vindo da praia: é o velho do restelo, homem
austero do povo, que não consegue se calar diante da
imprudência da viagem. Aventura não encontrava
justificativa senão no desejo de mando e na ambição
de glória
7. A fala do velho do restelo possui pontos de contato
com a ode clássica. Entre os gregos antigos, ode é uma
espécie de hino ou canção em louvor das
divindades, dos heróis e dos atletas.
8. Em termos extremamente simplificados este é o
conteúdo do velho do restelo:
‘’ A vaidade do rei confundia - se com a vaidade
comum de todos os mortais, sempre enganados pela
ilusão de progresso e de inteligência. Teria sido melhor
o homem jamais ter inventado a caravela do que expor
todo um povo a tão arriscada viagem
9. 94
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
10. 95
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
11. 96
"Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
12. 97
"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
13. 98
"Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:
14. 99
"Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
15. 100
"Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
16. 101
"Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
17. 102
"Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
18. 103
"Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
19. 104
"Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!"
20. A queda do homem associa-se ao mito de
Prometeu, aludido como filho de Jápeto na estrofe 103 do
episódio.
Sua fábula é essencial ao entendimento do ideário do velho
do restelo: Prometeu era um dos Titãs que se revoltaram
contra o domínio de júpiter.Tendo feito uma estátua de
barro, Prometeu roubou o fogo dos deuses para animar sua
criação.Como castigo pela ousadia, júpiter ordenou que
vulcano, o ferreiro dos deuses, o amarrasse no
cáucario, onde os abutres lhe comiam o fígado, que
renascia e era de novo comido, prometeu é o símbolo da
civilização, da indústria , da sabedoria e do desejo humano
21. O ensaísta Antônio José saraiva, um dos mais interessantes
estudiosos de Camões, não aceita essa interpretação.
Segundo ele, as idéias do velho do restelo não se
harmonizam com o todo da epopéia camoniana.
Representariam uma flagrante contradição entre o louvor
da expansão para o Oriente . Pela perspectiva do ensaísta
português, longe de representar aspecto negativo no
poema, essa incongruência dinamiza a poesia do
texto, atribuindo-lhe mais vivacidade estética.Quem fala
através do velho do restelo é o próprio Camões,que
inventou a personagem para incorporar ao poema alguns
juízos morais da cultura humanística,que crítica os
acontecimentos por uma perspectiva metafísica.julgando a
história de fora dos acontecimentos.