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1
Histórias de Gente Que Lê
Galeno Amorim
2
Índice
Prefácio
Maria Antonieta Cunha .............................................................. 6
Prólogo
Missionários da Leitura ................................................................ 8
Introdução
Os livros não mudam o mundo ................................................ 11
Parte I
Os livros mudam as pessoas.
A sacola de Dona Jamila .......................................................... 22
Leitor de florestas e de mundo ............................................... 25
Morador das ruas e leitor ......................................................... 30
Os olhos de Dona Lydia .......................................................... 33
O menino do Desemboque ..................................................... 36
3
Amyr e o mar ............................................................................. 42
O livro dos livros ....................................................................... 46
O livreiro que não sabia ler....................................................... 50
Livro de “um reais” .................................................................... 55
A bola e o livro ............................................................................ 59
Lições de Dona Maria ................................................................ 63
O homem que não vendia os livros ........................................ 68
Do outro lado do muro ............................................................. 72
Ele é o cara! ................................................................................. 75
Marinheiro só .............................................................................. 78
Pequenos leitores do sisal .......................................................... 81
No profundo mar azul ............................................................... 86
A que foi sem nunca ter sido .................................................... 90
Parte II
E as pessoas mudam o mundo.
O livreiro do Alemão ................................................................. 94
4
Esmeralda cansada de guerra .................................................... 99
O zelador de livros ................................................................... 104
A Bibliojegue do sertão ........................................................... 108
Ler para o outro é um ato de amor ......................................... 113
Santo Antônio Casamenteiro ................................................. 117
O pescador de leitores ............................................................. 120
A biblioteca na roça .................................................................. 125
O semeador do Seridó ............................................................. 128
Operário em construção ......................................................... 132
Mães que amam demais ........................................................... 135
Entre livros e pneus ................................................................. 139
A encantadora de leitores ........................................................ 143
O pedreiro e os livros ............................................................... 147
João que virou juiz .................................................................... 153
Histórias que acolhem ............................................................. 155
O tapete mágico da Tia Aninha .............................................. 159
Sobre carnes e livros ................................................................ 163
Bibliotecárias não sabem disfarçar ......................................... 168
5
Epílogo ..................................................................................... 172
6
Prefácio
e todas as pessoas que conhecem Galeno Amorim,
acredito que nenhuma deixaria de identificar sua paixão
maior: a causa da leitura, que, das mais variadas maneiras
e pelos mais diferentes pontos do país, ele procura obstinadamente
defender para todos os brasileiros! Porque, para ele – como para
muita gente boa –, a leitura é mesmo um direito de todos, tão
fundamental quanto a saúde, a habitação, o saneamento básico, a
liberdade de expressão – por exemplo. Um direito, mas também
uma esperança: “Os livros transformam pessoas, e pessoas transformam o
mundo.” E, em muitas frentes, procura fazer chegar essa posição ao
maior número possível de pessoas.
D
7
Pois nessa busca de novas formas de propagá-la, Galeno resolveu
reunir em um livro algumas histórias exemplares: apresenta-nos
figuras brasileiras, que, nas mais diversas regiões do Brasil e nas mais
distintas condições (sempre adversas), tiveram suas vidas
modificadas pela descoberta da leitura (mais precisamente, do livro)
e, a partir daí, conseguiram mudar a vida de alguém, ou de muita
gente - transformados todos, também, em leitores.
Várias das histórias e personagens apresentadas por Galeno são
também do meu conhecimento, e atesto – embora desnecessário –
a sua veracidade. São relatos comoventes, às vezes impressionantes,
a maioria, de pessoas muito simples (à época dos fatos iniciais, pelo
menos), com ações igualmente modestas, e que ganharão de
imediato a admiração dos leitores, assim como têm o
reconhecimento de suas comunidades. Que fiapo de luz, que traço
especial terão em comum todas essas figuras?
Acredito que é isto que espera o Galeno: que essas vitórias,
aparentemente pequenas, se pensarmos nas dimensões e carências
brasileiras, sejam o atestado de possibilidades, que ele quer ver
multiplicadas.
Da minha parte, é isso que também eu desejo que aconteça. Tenho
a convicção de que estas histórias podem inspirar outras tantas, da
mesma forma que a arte em si (e, portanto, a literatura lida pelas
figuras desses relatos) pode ser inspiradora. Prefiro, no entanto,
8
relativizar a força da leitura (mais ainda, a força do livro), sempre
possível, mas nem sempre exercida: a história da humanidade
(inclusive a de artistas extraordinários) e a história do Brasil (a que
se desenrola diante de nossos olhos assustados, por exemplo)
mostram que homens “letrados e cultos” podem não se tornar
melhores, nem mais conscientes, nem mais patriotas, pela leitura e
pela arte.
Imagino, por outro lado, que possa haver vida feliz, produtiva e
sábia mesmo fora da leitura de material impresso, ou mesmo virtual.
Pode ser mais difícil, pode funcionar mais em determinadas
comunidades, pode fazer mais sentido para uns do que para outros,
mas acredito que seja possível. Preciso ter também essa esperança.
O que me parece justo afirmar é que, por si, a leitura não fará mal
algum – a ninguém, e que poderá fazer um enorme bem – a todos,
ou quase. Todas as lutas em favor da leitura são, portanto, muito
importantes.
Por isso, desejo fortemente que, tal como nestas histórias, este livro
caia também em mãos de muitos leitores que tenham - quem sabe?
– aquele mesmo fio de luz das suas personagens e que eles se sintam
motivados a engrossar as fileiras do bom combate do nosso
corajoso autor.
9
Missionários da Leitura
Aos professores, bibliotecários, gestores, técnicos e demais pessoas que se
colocam entre livros e leitores a fim de aproximá-los.
inguém pode ser obrigado a ler, nem a escrever, a
cantar ou a dançar. Tampouco deve ser obrigado a saber
o significado das coisas todas da vida.
Por que ler, acima de tudo, é um ato de liberdade: introspectivo,
espontâneo, libertador.
Por isso, livros nos fazem livres!
Ninguém nasce sabendo ler. Como não se nasce sabendo escrever,
cantar ou dançar. Também não se nasce sabendo pronunciar
palavras ou apreciar um bom filme, teatro ou quadro.
N
10
O certo é que ler – como tantas coisas na vida – não é um ato
natural. Natural, isto sim, é respirar, comer e andar, se proteger do
frio e do calor. É sentir medo e reagir. Natural é esse desejo
intrínseco de, em algum tempo, ser feliz.
Mas ler, não. Ler pede atitude, esforço, aprendizado – habilidade
mesmo. Demanda oportunidade e investimento pessoal. E requer
que se pratique, até que se tome gosto pela coisa – tal como se
aprende a gostar de música boa, de jogar xadrez ou de admirar
dribles geniais numa pelada de rua.
Ler é coisa do espírito, que também pede certo esforço do corpo,
boa vontade e dedicação, até que, um dia, torna-se absolutamente
algo essencial, um alimento mesmo da alma.
Não por outra razão cabe a toda a gente instigar esse namoro – que
vira noivado e, depois, casório – entre livros e leitores, tal qual um
Santo Antônio Casamenteiro dos dias de hoje. Um missionário a
espalhar a boa nova do conhecimento pra tudo quanto é canto.
Mas que isso seja feito com jeito, com delicadeza e com amor. Pois
não há outro jeito de cultivar e cativar o bicho leitor. Esse que cresce
e ganha corpo na medida da sustança das boas histórias, da
sonoridade das palavras, do afeto que elas encerram. Da magia e da
engenhosidade de quem cria e inventa o tempo todo.
Tratemo-lo, pois, o bicho leitor, com carinho. Como a um filho que
nasce, cresce e conquista a autonomia de voar.
11
Façamo-lo, pois, gostar dos livros como a criança gosta da flor, para
que, seduzido e encantado, possa jamais ser curado dessa vontade
irresistível de se deixar levar pela beleza das palavras e, assim,
mergulhar fundo nesse oceano de ideias. Porque, para ele, o leitor,
há um sentido especial em cada palavra impressa: aquilo a que se
chama de a força mesma das coisas.
Daí, a necessidade, danada, e jamais saciada, de se ter, sempre, à
mão, uma página que seja pelo simples prazer de apalpar, de cheirar
e sorver com os olhos tudo o que faz lembrar um livro. Ao aprender
a decifrar os sinais, bebendo dessa fonte, descortinam-se os
horizontes e descobre-se, enfim, o bom prazer de ler.
Agora, um leitor de mundo, ele é capaz de aprender e apreender, de
se reinventar o tempo todo. De compreender e interpretar cada
coisa ao seu redor. E, ao ler pelos olhos do outro, de se tornar um
sujeito melhor, tolerante e amoroso. Ao tomar para si o
conhecimento universal e construir o seu próprio, o leitor, alarga a
inteligência, supera o improvável e descobre a capacidade própria
para o amor – fundamento elementar para se mudar o mundo, o de
dentro e o de fora.
Pois para quem, agora, já tem a sabedoria para ler o mundo, tudo é
absolutamente possível!
12
Os livros não mudam o mundo
“Os livros não mudam o mundo.
Os livros mudam as pessoas.
E as pessoas mudam o mundo.”
a primeira vez em que ouvi alguém pronunciar o
conjunto de frases acima, que me parecem traduzir, com
precisão e uma clareza incrível, o papel que os livros
exercem na vida de homens e mulheres na sociedade, sorri,
discretamente. Afinal, aquela dúzia e meia de palavras sintetizavam,
em boa medida, com objetividade extraordinária, centenas de
páginas de consistentes reflexões a respeito do tema sobre as quais
eu já me debruçara antes.
N
13
Esse contentamento também era movido por ver a quem sua autoria
era, naquele momento, atribuída: José Bento Monteiro Lobato – ele
mesmo, autor que, mais de setenta anos após sua morte, continua a
ser referência, e preferência, nacional. Nada de se estranhar,
portanto, que o pai da boneca Emília, Narizinho, Pedrinho, Tia
Nastácia, Visconde de Sabugosa e Dona Benta, e de uma porção de
invencionices do Brasil da primeira metade do século XX, pudesse
ter trazido à luz uma síntese de pensamento tão definitiva sobre a
função social dos livros para a humanidade.
Já fora ele, Monteiro Lobato, o grande precursor da literatura
infantil brasileira. Antes dele, só se via, por aqui, livros infantis com
textos estrangeiros e, em geral, muito distantes da nossa cultura.
Lobato foi responsável direto pelo surgimento, durante as décadas
seguintes, de brilhantes gerações de escritores do gênero.
Embora haja quem discorde, a ele também se deve o crédito pela
invenção do mercado editorial tal qual se conhece hoje em dia. Isso
graças às suas geniais sacadas como editor para aumentar as tiragens
de suas publicações e para fazer com que os livros chegassem onde
o povo letrado estava. Das prosaicas pharmácias às vendas, os
armazéns de antigamente, predecessores dos megas e
hipermercados da atualidade: qualquer canto deveria, segundo dizia,
abrigar um ponto de venda de livros.
Nada de espantoso, portanto, creditar a Lobato, venerado por seu
papel incansável na defesa dos livros e da literatura do Brasil,
14
tamanho acerto e capacidade de concisão, e justo por algo pelo qual
sempre batalhou. Não fora ele, afinal, que apregoara que “uma
nação só se faz com homens e livros”?
Mas qual não foi a minha surpresa ao, muito tempo depois, tomar
conhecimento de que aquilo era, simplesmente, um erro terrível:
— Isso não é Lobato nem aqui, nem na China... – tratou, de me
explicar (gentilmente, a bem da verdade) um amigo pesquisador,
anos mais da tarde.
Nos anos seguintes, ouviria e leria, em muitas ocasiões, gentes de
universidades, academias, editoras, livrarias e do governo darem,
enfim, o devido crédito a alguém que, sem sombra de dúvida, faz
por merecer todo e qualquer tipo de gratidão do povo brasileiro e
dos amantes, em geral, da boa literatura: Mário Quintana, o genial
poeta gaúcho.
Ao que parecia, seria, mesmo, Quintana quem teria dito – com a
simplicidade, sensibilidade e sabedoria de poeta – esta e uma porção
de outros ditos e frases que, na era internet, têm sido propagados
com espantosa rapidez. Graças às ferramentas modernas que
permitem buscas incríveis em frações de segundo, podemos
recorrer e utilizar, a todo instante, frases belas que costumam causar
efeito imediato.
15
Quando, contudo, obediente e disciplinado, e desta vez também
resignado, já me habituara com o novo – e, ao que tudo indicava,
definitivo esclarecimento do senso comum em torno de tão
importante questão – eis que seria, novamente, surpreendido por
uma nova e, a essa altura, arrasadora errata:
— Estão todos redondamente enganados – foi o que ouvi, aturdido.
A nova e, sim, definitiva corrigenda viria, desta vez, amparada por
alguma base científica. Pesquisadores, leitores e admiradores do
poeta gaúcho chegaram a criar blogs e comunidades virtuais, na
internet, para alertar contra a enxurrada de frases e pensamentos
indevidamente atribuídos a Quintana.
Nada contra ele, faziam questão de explicar. Aliás, muito pelo
contrário:
— O grande problema é que corremos o risco de levar os jovens e
as novas gerações a conhecer, e até a aprender a admirar, um
Quintana que, simplesmente, não existe – argumenta um deles, com
boa dose de razão.
Uma comunidade criada no finado site de relacionamentos Orkut,
precursor do atual Facebook, explicava, já no próprio título, ao que
viera: “O verdadeiro Mário Quintana”. A página se propunha, com
relativo sucesso para a época, “a pesquisar e a desmistificar, com a
ajuda de colaboradores voluntários, o que não consta da obra
conhecida do poeta”, dando “nomes aos verdadeiros bois, no caso,
16
os autores de versos e pensamentos creditados indevidamente ao
gaúcho”.
Quem se debruçou sobre toda a obra de Quintana (que pode ser
encontrada em Poesia Completa, da Nova Aguilar) ou leu as suas
entrevistas ou mesmo o livro Ora Bolas, que Juarez Fonseca escreveu
sobre ele, jamais encontrou a dita cuja.
Uma pesquisadora dá o veredito sobre a citação:
— Até hoje não foi possível identificar a autoria por absoluta
ausência de fonte. Mas uma coisa é certa: do Quintana é que não é...
Há especialistas que atribuem a autoria da frase ao senador romano
Caio Graco, que viveu entre 157 e 121 antes de Cristo. Eles
sustentam que a frase teria sido traduzida inúmeras vezes até ganhar
o seu formato atual, agora com uma referência explícita aos livros.
Desde então, tenho preferido imaginar que qualquer um dos três –
ou, quem sabe, todos eles, cada qual a seu tempo – pode, muito
bem, ter dito isso ou algo parecido, tamanha a força e a capacidade
que essas três pequenas frases têm para expressar tão poderosa ideia
sobre esse objeto conhecido como livro e a sua vocação
transformadora, e, assim, perigosa. Sobretudo se, depois de se
apropriar do seu conteúdo, dá-se dentro desse leitor um rebuliço
interno de inquietações e de novas percepções, formulações e
atitudes.
17
Tenho ido a diversas localidades conversar com gente atrás de boas
histórias de leitores. A primeira impressão que dá é que as práticas
sociais da leitura têm propiciado, de fato, microrrevoluções por toda
parte. Tão íntimas que, por vezes, nem dá para percebê-las.
Mas também outras que se materializam das mais diversas formas e
promovem pequenas, porém vigorosas, modificações no cotidiano
e no próprio entorno social desses leitores. E, cada vez que um só
leitor, que seja, opera em si alguma mudança mínima – e esta se
soma a tantas outras que se dão, simultaneamente, nos mais
diferentes rincões do planeta –, ele move uma força poderosa, capaz
de tornar o mundo um lugar melhor para se viver.
Afinal, desde que Gutemberg inventou a prensa que deu origem ao
livro, tal qual o conhecemos e admiramos hoje, – este que é
considerado a maior invenção do último milênio – não são poucas
as histórias de personalidades que, sendo leitores e tendo lido
qualquer uma das dezenas de milhões de obras já publicadas pela
humanidade, acabariam por protagonizar feitos importantes que
causaram massivas transformações na sociedade.
Se Quintana, Lobato ou Caio Graco disseram, ou não, tais palavras
mágicas sobre o poder dos livros nem é o mais importante. Pode,
muito bem, ter saído da boca de uma pessoa qualquer, às margens
da história, e, mesmo assim, ter chegado ao nosso tempo, de forma
tão imponente, a ponto de ter influenciado tantas gerações.
Prefiro crer que todos possam, sim, ter dito!
18
E, mais do que isso, que outras tantas pessoas, em diferentes épocas
da história humana, tenham se importado e levado adiante a
poderosa força dessa ideia. Assim como eu e você, por exemplo,
podemos estar, agora, fazendo, ou já fizemos, ou ainda haveremos
de fazer no futuro.
O que você vai ler neste livro é uma pequena coleção de pequenas
histórias de pequenos leitores que são, na verdade, enormes. Após
tantas buscas, pesquisas e conversas, a conclusão é que, de fato, os
livros, por si só, não têm qualquer condição de mudar as coisas e o
mundo.
Talvez, ainda, os livros venham a ocupar espaço ligeiramente maior
no tempo livre das pessoas, propiciando, assim, conhecimento,
melhoramento pessoal, lazer e entretenimento cultural de qualidade.
Mas, a julgar pelas histórias colhidas em diferentes locais ao longo
dos últimos anos, vivenciadas por homens e mulheres, negros e
pobres, crianças e velhos, os livros, com suas histórias e personagens
formidáveis, têm sido capazes de provocar pequenas grandes
mudanças em cada um de nós.
E, então, como nos têm ensinado Quintana, ou Lobato, ou Graco
(ou, então, nenhum deles!), serão essas pessoas – que podem atender
por nomes como Evando, Otávio ou Esmeralda, personagens deste
livro – que encontramos em nosso dia a dia, num açougue, numa
19
borracharia ou numa viagem de barco pelo interior da Amazônia,
que seguirão mudando, em tempo real, o mundo em que vivemos.
***
Nas páginas que se seguem, eu vou defender as habilidades de leitura
e de escrita como ferramentas ímpares para o desenvolvimento
individual das pessoas e a transformação da sociedade ao seu redor.
Por vezes, pode ficar a impressão de que parece não existir vida
inteligente e salvação para a humanidade fora do cultura letrada.
Não é assim.
O certo é que a leitura e a escrita são formas fundamentais, ou até
mesmo superiores, para apoiar e estimular nosso crescimento
íntimo, bem como as mudanças no nosso dia a dia do ponto de vista
da vida social. E, ainda, as estruturas que lhe dão forma e ritmo. Isso
tudo, claro, tendo como referência as formas de sociedade que
conformam – mais como regra do que exceção – o mundo como
conhecemos atualmente
Quando se fala da leitura e da escrita, se fala de capacidades de
desvendar códigos e de se manifestar a partir desses sistemas
codificados, e, mais do que isso, de capacidades de análise, de
reflexão e de sentimento, treinadas pelo contato mais profundo com
a literatura.
A dignidade que todo ser humano tem por ser humano – por
respirar, por se mover, por se alimentar, por sentir, por pensar, por
20
se expressar, por trabalhar, por se emocionar, por sofrer, por sonhar
– independe de se saber ler e escrever.
Só que o analfabetismo e a incapacidade de uma leitura mais
aprofundada criam legiões de excluídos, em locais espalhados ao
redor do globo ou áreas específicas de um mesmo país, de uma
mesma região, de uma mesma cidade.
Assim, é inegável que o domínio sobre a palavra escrita é, sim, uma
porta de entrada para um mundo de direitos. A mesma estrutura de
poder que não garante uma educação de qualidade para todos, cria
oportunidades ou dificuldades distintas àqueles que dominam ou
não a palavra escrita e todo o conhecimento formal por ela
delimitado.
A marginalização dessas pessoas devido à falta de familiaridade com
as letras costuma se combinar a outras, tais como classe, raça,
gênero, e, mediante às diferentes combinações desses e outros
traços, são punidos de formas diferentes.
Mas, além da sua dignidade pessoal inerente à experiência humana,
a sensibilidade, o conhecimento e a faculdade de expressão, que
distinguem alguns como brilhantes, não dependem das habilidades
de leitura e escrita. Aquela coisa mágica que torna certos indivíduos
grandes – não exatamente aquelas grandes personalidades da
história, mas os que conseguem brilhar na sua vida, não importa qual
a sua ocupação – nasce em si e independe da leitura e da escrita.
21
O que há de mais mágico, e de mais humano, no ser humano sãos
as suas capacidades de sentir, de pensar e de se comunicar. Não é a
leitura, não é a escrita.
Só que, além de impulsionarem oportunidades e evitarem punições
em um mundo seletivo, injusto e cruel, essas habilidades e,
especialmente, a leitura e escrita de literatura aproximam as pessoas,
por meio da comunicação, de todo o pensar e o sentir que já foram
registrados, preservados e que se encontram disponíveis aos
potenciais leitores. Aproxima as pessoas de pessoas.
A leitura e a escrita trazem em si uma enorme possibilidade de tornar
alguém mais humano, na medida em que o colocam para partilhar
da humanidade dos outros e, com os outros, compartilhar a sua
humanidade.
Somada a essa tarefa de mediação e aproximação exercida pela
palavra escrita, o consumo de arte, de uma forma geral, e, em
especial, da literatura tem a tarefa de promover um tipo de nivelação
da sociedade.
Enquanto, para alguns, o brilho da sensibilidade e do conhecimento
se apresentam de forma natural, para outros, a literatura pode
aproximá-los de toda reflexão que não conseguiriam alcançar sem a
experiência da leitura.
22
Parte I
Os livros mudam as pessoas.
23
A sacola da Dona Jamila
ona Jamila já passou dos oitenta, mas conserva uma
vitalidade, física e intelectual, impressionante. Uma ou
duas vezes por mês, ela sai, cedo, de casa e se dirige ao
centro da cidade. Lá chegando, entra direto no velho e imponente
casarão que, no passado, serviu de moradia para alguns dos mais
poderosos coronéis do café da Velha República.
Ela repete, há anos, esse mesmo ritual. Vasculha, cuidadosamente,
entre as prateleiras envelhecidas pelo tempo em busca de novidades.
Ela só sai de lá quando a sacola estiver cheia. Então, sorrirá aliviada:
seu mês está garantido! Ou, como costuma ela mesma dizer, sua vida
está, por mais algum tempo, salva.
D
24
O que será que a mulher idosa, de cabelos esbranquiçados e de
aparência frágil, uma decorrência da idade, carrega na sacola com
tamanho apego?
— Livros! – ela responde.
São quatro ou cinco deles que, invariavelmente, Dona Jamila toma
emprestado a cada vez que vai à Biblioteca Altino Arantes, em frente
à praça principal da cidade.
Mais tarde, quando chegar em casa, vai abrir, calmamente, cada um
deles e sorver, primeiro, o que vai impresso na capa e na contracapa.
Depois, fará um breve passeio pelas orelhas da brochura e dará uma
espiada no prefácio para, então, e, finalmente, mergulhar de cabeça
numa nova viagem.
Esse ritual é um verdadeiro roteiro de prazer para a mulher.
A vista cansada nunca é desculpa. Professora aposentada, Dona
Jamila lê quatro horas todos os dias. Em média, é um livro novo por
semana. Ou quatro por mês. Ou, ainda, em torno de cinquenta a
cada ano.
Chova ou faça sol, é sempre assim. Dona Jamila adora os livros de
ficção, e, especialmente, as novelas policiais. Nos dias em que vai à
biblioteca, ela mais parece uma adolescente revirando as prateleiras
atrás de novidades literárias.
A mulher trabalhou, boa parte da sua vida, como assistente social,
inicialmente em São Paulo, capital, e, mais tarde, no interior do
25
Estado. Embora nunca tenha viajado para fora do país, descreve
com detalhes algumas das principais cidades do mundo.
— Já estive em Paris, Roma, Londres... – ela anota mentalmente,
enquanto relembra curiosidades sobre ruas e lugares das metrópoles
mais charmosas do planeta que viu a partir das páginas da literatura.
— Minha vida jamais seria a mesma sem os livros – ela assegura,
com convicção.
A história de Dona Jamila é uma história simples. De uma pessoa
comum, “Sem nada demais”, conforme ela própria diz. Mas é a
história de alguém que vive a buscar, todo santo dia, em cada nova
aventura literária em que se mete, na sua sala de estar ou na calmaria
do seu quarto, conhecimento, prazer e novos sentidos para a vida.
Rumo aos noventa, a velha professora continua a ensinar uma lição
diária sobre o amor pelos livros num país que ainda carece de gente
que leia ou que leia mais. A experiência da senhora, é, de fato, algo
alvissareiro, exemplo de um bom rumo para o Brasil trilhar.
Diante da legião de leitoras de idade avançada como Dona Jamila,
que se vê cada vez mais pelos quatro cantos do País, e da força –
para os menos atentos – invisível que elas transmitem, não dá para
permanecer indiferente.
26
Leitor de florestas e de mundo
ilho e neto de ribeirinhos, Tenório passou a infância
entre cipoais e banhos de rio na Costa do Cabaleana,
lugarejo ermo escondido às margens do Rio Solimões,
perto de São Tomé, onde nasceu. Um dos povoados que formam o
município de Manacapuru, no interior da selva amazônica, aquela
era uma localidade abandonada à própria sorte, onde escola era um
luxo que jamais existira.
Quem quisesse aprender o bê-á-bá para ser, como se dizia por lá,
alguém na vida; que se virasse por conta própria. Com sorte, talvez
encontrasse uma boa alma que se dispusesse a ensinar o pouco de
escrita e leitura que sabia. Nesse caso, a sala de aula podia ser
F
27
improvisada num canto qualquer, pois a falta de espaço não era,
propriamente, um problema por ali.
Não por outra razão, a mãe de Tenorinho levou um susto danado
naquele fim de tarde, ao voltar do trabalho no campo de juta. Ela
ficara, justificadamente, surpreendida diante da cena insólita: e não
é que seu menino, que jamais botara os pés numa escola, estava
lendo de verdade?
Devota e temente a Deus que era, a mulher sequer teve tempo para
tentar compreender o milagre, já que Tenorinho desembestara a
falar e a exibir os seus novos prodígios diante da mãe, estupefata.
Parecia ser mais um daqueles mistérios inexplicáveis da floresta,
onde a sobrevivência, por si só, já é uma grande façanha, tamanhas
as adversidades do cotidiano.
O fato é que o moleque agora sabia ler. Aprendera, sabe-se lá como,
a juntar letras e a formar palavras. Os poucos entendidos do lugar
garantiam que aquela mistureba toda de rabiscos, feitos com um
toco de lápis sobre um pedaço de papel puído, fazia, sim, algum
sentido.
— Bê... Ah... BÁ! – Tenorinho soletrou, com pompa e todo cheio
de si.
Era uma sílaba, alguém se apressou a explicar. Enfileiradas umas às
outras, com certa parcimônia, poderiam constituir palavras ou frases
inteiras. Um espanto!
28
Era assim, tratou-se de esclarecer, que as pessoas estudadas da
cidade transpunham para o papel suas ideias, o conhecimento que
recebiam de seus ancestrais e tudo aquilo que era dito com a boca
ou sentido com o coração.
Tenorinho enchia o peito:
— BA – NA – NEI – RA!
À medida que aquele som gutural saía de suas entranhas, parecia
ganhar forma, diante de seus olhinhos, a imagem exuberante da
planta tropical, com seus cachos amarelos dependurados.
O menino Tenório, agora, conseguia ligar nomes e coisas e
ampliava, mais e mais, o seu universo pessoal. Anotava, num
caderninho, as novas palavras que aprendia e cantarolava, repetidas
vezes, para si mesmo até conseguir guardá-las. Cada descoberta era
um novo troféu para a sua coleção.
A bem da verdade, Tenorinho havia tido, sim, um mestre. Fora um
velho tio, que mal conseguia ler e escrever o próprio nome. Mas,
como em terra de cego quem tem um olho é rei, dava bem para o
gasto. No entanto, danado e ligeiro como só ele, Tenorinho havia,
em pouco tempo, aprendido quase todas as palavras disponíveis.
Como seguiria aprendendo?
Foi quando alguém apareceu com uma bíblia, o livro mais lido do
mundo e, por meio do qual, muita gente, como Tenorinho,
aprendera a ler. Assim que se alfabetizou, o menino passou a ler,
todos os dias, os versículos e salmos para a mãe, que era analfabeta.
29
Ele não sabia, mas naquele singelo gesto de amor começava a ser
forjado um eloquente orador.
O menino da selva crescia. Por dentro e por fora.
Mas as dificuldades não tardaram a surgir. A primeira delas: não
havia outros livros no vilarejo. Sem escola, biblioteca, livraria ou
uma banca de jornal que fosse, como ele poderia continuar
aprendendo?
A mãe entendeu que a única maneira de propiciar ao filho a
oportunidade que ela própria não tivera – arrumar um bom emprego
na cidade grande – seria se mudar para a capital. Tomou o filho pela
mão e subiu num barco rumo a Manaus. Era uma mulher de poucas,
porém sábias palavras:
— Pobre só tem chance de ser alguém na vida se sabe ler e escrever
– ela sentenciou, resoluta, antes de partirem.
A mudança para a capital do Amazonas, no entanto, não fora
suficiente para deixar, de vez, os tempos difíceis para trás. As
dificuldades só faziam crescer. O dinheiro mal dava para alimentar
as bocas da casa, quanto mais para comprar livros.
Mas Tenório não se fazia de rogado. Varava noites, em claro, até
decorar trechos inteiros das cartilhas emprestadas dos amigos. Era
esse o único jeito de ter acesso ao mundo dos livros e da cultura
letrada.
O tempo passou e o meninote cresceu. À custa de muita leitura sob
a luz de lamparina, Tenório entrou para o curso de Direito da
30
Universidade Federal do Amazonas. Concluiu o curso e, como
almejava trabalhar com algo de que gostasse muito, acabou indo
fazer também o curso de Letras.
— Eu estava perdidamente apaixonado pelas palavras... – lembra o,
hoje, poeta e professor universitário Tenório Telles, autor de críticas
e ensaios, além de editor de livros.
No coração da Amazônia, ativista cultural dos bons, ele guarda na
ponta da língua trechos inteiros dos livros que decorava. Assim que
sobrou o primeiro dinheiro, ele cuidou de comprar vários deles, para
poder exibir em lugar de destaque da estante.
— São eles a prova viva do poder dos livros de mudar a vida das
pessoas. Porque são essas pessoas, depois, que vão mudar o mundo
– apregoa doutor Tenório, com a autoridade que a vida e os livros
lhe deram.
31
Morador das ruas e leitor
ndereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e
vive nas ruas. Só não admite que o tratem como mendigo.
Mesmo porque, diz, ganha a vida com o suor de seu
trabalho como vendedor de pipoca e biscoito nas esquinas da
grande cidade. No fim da tarde, separa uma parte da féria do dia,
algo em torno de cinco reais, para pagar pelo banho e comida.
Sem um teto e um endereço fixo para morar, Márcio costuma dizer
que é, de certo modo, uma dessas pessoas que passa todo o dia e
dorme no próprio local de trabalho. Pode passar uma noite sob uma
marquise ou um viaduto, ou, mesmo, em uma calçada ou praça,
dependendo da conveniência do dia. A localidade muda, mas a
moradia, em si, é sempre a mesma: o carrinho de mão que ele
E
32
próprio construiu com pedaços de madeira e bugigangas
encontradas nas ruas.
Para quem o vê puxando seu carrinho-dormitório pelas ruas do Rio
de Janeiro, é impossível notar qualquer diferença entre Márcio
Pereira dos Santos, o Gaúcho, e os moradores de rua que são vistos
perambulando pelas cidades brasileiras de Norte a Sul do País.
Como qualquer um deles, o rapaz também enfrenta o frio, a chuva,
a violência e o julgamento público, independentemente dos motivos
que possam ter levado cada um deles a essa situação.
Márcio trocou, há três anos, a vida na casa dos pais no Rio Grande
do Sul pelas ruas do Rio. Diz que foi uma escolha.
Para tentar manter um pouco de sanidade, recorre, diariamente, à
leitura. Lê jornais e revistas usados e livros, de ficção aos ensaios
sobre política e sociologia. Também é leitor assíduo da bíblia, na
qual diz buscar a força necessária para levar sua vida adiante.
Por um bom tempo, Márcio, um rapaz bem apessoado de seus 34
anos, lia tão somente para se entreter e fazer o tempo passar, mas,
desde que resgatou da lata de lixo a obra Biblioteca de Sociologia Geral,
de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar mais pelos temas
sociais. Ele gosta de ler e, então, analisar e refletir sobre o conteúdo
do que leu, fazendo um cruzamento das leituras com situações pelas
quais passou e suas escolhas pessoais. Ultimamente, tem pensado
muito, por exemplo, sobre o funcionamento das políticas públicas
destinadas aos moradores de rua.
33
— É importante confrontar suas opiniões com as do autor do livro,
pois sempre se aprende com isso – ele conclui.
Mas não é só nisso que os livros têm mexido com a vida de Márcio.
Após uma dessas leituras, ele percebeu que também é um cidadão,
com direitos e deveres, como qualquer outro. Ao ler uma notícia
sobre o Bolsa Família, um direito de todo cidadão que vive abaixo
da linha da pobreza, ele foi atrás e obteve o auxílio. Aonde vai,
carrega sempre junto o título de eleitor e sua cédula de identidade.
Também possui conta bancária, cartão de crédito e conta de e-mail,
que acessa de alguma lan house.
Márcio, um admirador confesso de Monteiro Lobato, diz que
também encontra nos livros uma forma de serenidade:
— Ler me faz relaxar a mente.
34
Os olhos de Dona Lydia
ona Lydia sempre teve uma queda pelas palavras.
Como não sabia ler, passava horas ouvindo e tentando
distinguir, pela sonoridade, o sentido e o significado
delas.
Analfabeta até a idade madura, Dona Lydia viveu a maior parte de
sua vida apartada da forma grafada e impressa das palavras. Estas
que se materializam e vêm à luz quando se juntam letras, esses sinais
que, se bem empregados, dão vitalidade e perenidade a frases, ideias
e pensamentos.
Embora nunca tenha se dado conta disso, Dona Lydia sempre foi
uma poetisa de mão cheia. Morando a vida toda num povoado
caiçara no litoral de São Paulo, ela buscava no mar a inspiração para
D
35
expressar, do seu jeito, como enxergava e sentia o mundo e as coisas
ao seu redor. Podia ser de um acontecimento simples do seu
cotidiano a algo subjetivo que a deixava emocionada, como a beleza
diária daquele cenário composto de montanhas, céu e mar.
Para não deixar se perder a magia daqueles instantes, a mulher criava
e armazenava os versos na cabeça.
Como Deus costuma escrever certo por linhas tortas, o destino fez
com que ela sentisse na pele, amargamente, o quanto a falta de
intimidade com a palavra escrita pode afetar, negativamente, a vida
das pessoas. Mas, por outro lado, Dona Lydia foi sacudida para a
percepção do quanto a leitura e a escrita ainda poderiam modificar
a vida dela e de outras pessoas.
Já na entrada da velhice, Dona Lydia se viu na obrigação de
regularizar as terras herdadas do avô, entre Peruíbe e Itanhaém.
Eram o único bem material dela e da sua família nesta vida. Foi onde
toda a parentela nasceu, cresceu e de onde, durante décadas a fio,
tirou o sustento.
Mas o advogado que foi contratado para solucionar o imbróglio se
aproveitou do fato de ela não saber ler para ficar com metade da
propriedade – único ganha-pão da família, que sobrevivia do cultivo
de milho, batata e melancia.
Depois disso, a mulher, resoluta, tomou uma decisão. Iria para a
escola e nunca mais seria enganada por não saber ler. Mas Dona
Lydia, além de aprender a ler e a escrever, encantou-se com os livros
36
e com os estudos. Apaixonou-se pelos versos de Carlos Drummond
de Andrade e Castro Alves e, aos 75 anos, resolveu fazer faculdade.
Dez anos depois, Dona Lydia S. Gonçalves – como passou a grafar
o próprio nome – tornou-se escritora, tendo publicado vários livros
com os seus poemas e os aforismos que colecionou por toda a vida.
Com os vários diplomas numa parede e uma farta coleção de livros
nas outras, é ela agora que ensina, do alto da autoridade do seu
próprio exemplo de vida:
— Aprender é como abrir os olhos. E nunca é tarde para isso!
37
O menino do Desemboque
ascido menino pobre no Desemboque, interior de
Minas Gerais, Ariclenes sonhava, desde pequeno, com
a cidade grande. Queria ser famoso e, um dia, conhecer
as cantoras do rádio, ícones daquele Brasil rural da primeira metade
do século XX. Vivia suspirando pelos cantos só de pensar em
namorar alguma delas.
Acontece que Ariclenes, ou Ari, vivia num lugarejo longínquo, em
meio a um punhado de vivas almas, no coração perdido do Brasil.
Por mais que tentasse pensar numa saída, não lhe ocorria nada tão
genial que pudesse, enfim, fazê-lo, um dia, chegar lá.
N
38
Enquanto sua sorte grande não chegava, Ari ajudava o pai,
boiadeiro, na lida com o gado. Para faturar uns trocos, ele vendia
fotos da mãe, que era artista de circo.
Assim seguia o menino tocando sua vidinha, que dizia, ser sem eira
nem beira.
Mas, um dia, Ari tomou coragem, subiu na carroceria de um
caminhão e seguiu no rumo de São Paulo. Estava firmemente
decidido a cair na estrada em busca do seu Eldorado.
No meio do caminho, contudo, o menino apeou da condução.
Nunca tinha ouvido falar daquele lugar onde estava. Se ainda não
era aquela a metrópole com a qual tanto sonhara, ele, ao menos,
poderia, ali, ir se acostumando, aos poucos, com a vida de cidade
grande.
Ribeirão Preto ficava bem no meio do seu caminho para a capital.
Com os seus cabarés, teatros, radionovelas e uma vida noturna
movimentada até demais para o garoto caipira recém-chegado do
Desemboque, no Triângulo Mineiro, bem que podia servir como
experiência e, ainda, um trampolim para um salto na vida.
Resolveu ficar uns tempos por lá.
Na esteira da derrocada dos barões do café, a cidade vivia novo
surto de prosperidade. A industrialização nascente e os novos ricos,
daqueles tempos de mudança do Brasil rural para o Brasil urbano,
dominavam o cenário político e econômico da cidade.
39
Ari, um frangote de não mais do que dezesseis anos, foi morar numa
pensão e, logo, arrumou ocupação. Empregou-se como carregador
numa loja de materiais de construção. Lá, no embalo do progresso
daqueles anos 30, os canteiros de obras pipocavam por toda parte e,
com isso, punham mais mercadoria na cacunda do rapaz.
Por isso, foi uma benção aquele santo dia em que os livros entraram
na vida dele. Foi tudo por acaso. Ari só queria mesmo dar uma
escapadela do sol fatigante que fazia a carga sobre seus ombros
magricelas parecer pesar toneladas.
Ao passar diante daquele casarão majestoso, de frente para a praça
central da cidade, o rapaz empacou. Pessoas que entravam e saíam
chamaram a sua atenção para aquele lugar que parecia ser um espaço
público. Sem muito pudor, ele ajeitou no chão, calmamente, o vaso
sanitário que trazia sobre as costas. Só deu uma olhadela para os
lados para se certificar de que ninguém o espiava para dedurá-lo ao
patrão e entrou.
Quase diante do Theatro Pedro II, majestosa casa de ópera daquela
terra de coronéis, o velho Solar dos Junqueira já não era o mesmo.
Em vez das romarias de líderes políticos e de apadrinhados atrás dos
favores dos barões do café, no casarão, agora, funcionava uma...
biblioteca.
Ele levou um baita susto. Mas, já que estava lá dentro mesmo, Ari
resolveu permanecer. Afinal, pior do que a carga pesada e do sol
escaldante que o aguardavam do lado de fora é que não podia ser.
40
Aquela seria, anos mais tarde ele diria, a mais sábia decisão de sua
vida.
No início, precisou controlar o pavor que passou a tomar conta de
si. Tentava adivinhar quem seriam aquelas criaturas bem vestidas,
totalmente estranhas a sua vida roceira. Circulavam, com
desenvoltura, entre as estantes, poltronas e as largas mesas em estilo
colonial. Talvez fossem, ele deduziu, poetas, professores ou alunos
do Ginásio do Estado – que era uma espécie de chave do céu para
os rapazes e moças que, na transição de uma monocultura cafeeira
para uma economia mais industrializada, aspiravam por ascensão
social.
Se quisesse, portanto, permanecer mais tempo no local, misturado
aos leitores intelectuais, teria ao menos que disfarçar. Pegou o
primeiro livro à sua frente e folheou algumas páginas, mas, logo,
fechou e o colocou sobre a mesa escura. Voltou o olhar para a capa
do livro e o título impresso em letras garrafais chamou a sua atenção:
Grandes Esperanças. O autor era um certo Charles Dickens, um
famoso desconhecido para o garoto do Desemboque.
Decidido que estava a parecer, ao menos aos olhos dos que ali
estavam, um leitor de verdade, tinha que se esforçar mais. Num
gesto largo e pausado, sentiu-se no meio de um palco no circo,
vivendo a vida de outro personagem, como tantas vezes sua mãe
fizera. Olhou, atentamente, as letras miúdas, franziu a testa e fingiu
concentração. Só conseguiu relaxar minutos mais tarde, quando, ao
41
tatear uma vez mais a brochura e, finalmente, abri-la, deixou-se levar
pela narrativa vibrante.
Ao contrário do que esperava, sorvera com certo gosto as páginas
iniciais. Aventurou-se por mais algumas e, sem que se desse conta,
fora, repentinamente, abduzido por aquela história, e totalmente
absorto pela leitura.
Já não conseguia mais desgrudar os olhos do livro. E tampouco se
preocupava em disfarçar; agora, já devorava uma página após a
outra, e tudo, num fôlego só, vivenciando um terrível conflito
íntimo. Ao mesmo tempo em que desejava, ardentemente, chegar à
última página do livro, já sofria com a possibilidade de fim daquela
história.
Ari, definitivamente, fora fisgado pelos livros.
Daquele dia em diante, a literatura nunca mais sairia de sua vida. O
moço estava sempre com um livro nas mãos – eles seriam, por sinal,
uma companhia constante na vida do caipira recém-chegado à
cidade. Sua sensação era que, finalmente, encontrara a chave para
uma vida melhor que tanto procurara em sua vida.
Em seu primeiro teste para locutor, já em São Paulo, Ariclenes
tropeçou no sotaque caipira. Mas não desistiu, arrumou um
emprego de contínuo na Rádio Difusora e seguiu adiante. Logo
depois, foi promovido a sonoplasta. Na primeira oportunidade,
conseguiu um papel para uma ponta numa radionovela. Nunca mais
parou.
42
Meio século depois, e agora famoso, sob o pseudônimo de Lima
Duarte, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira de todos
os tempos (afinal, como ele dizia, Ariclenes Venâncio não era nome
de artista que se prezasse), o menino do Desemboque está mais
convencido do que nunca que foram os livros a sua tábua da
salvação.
— Antes dos livros entrarem na minha vida – ele se diverte, com o
sotaque ainda inconfundível – eu não passava era de um anarfa...
43
Amyr e o mar
mbora vivesse não muito longe do Atlântico, Amyr
morria de medo do mar. Era um trauma de infância.
Ainda pequeno, estava com o pai e os irmãos na praia
quando foi derrubado por uma onda forte, algo que acontece com,
basicamente, todo mundo que vai à praia quando criança. Porém, o
que em alguns resvalam, em outros fere fundo.
O caso é que, mesmo adulto, ele teve muitas dificuldades para
superar aquilo. Por isso, arriscar-se além da beira-mar não era,
exatamente, sua diversão predileta.
Quando terminou a faculdade de economia, Amyr optou por fincar
mais os pés em terra firme, tomando a decisão de administrar a
E
44
fazenda da família e lidar com gado e leite. Tudo que desejava era
ter um chão seguro e palpável.
Mas os livros fariam esse Amyr, já adulto e recém-saído da
faculdade, a reaprender a gostar do mar, rendendo-se à possibilidade
infindável de aventuras oferecida tanto pela imensidão da literatura
quanto a dos oceanos. As histórias fascinantes sobre marujos,
navios e ilhas perdidas ajudaram a trazer de volta aquele menino que
se assustara com as ondas.
Uma dessas histórias que o encantaram foi A Expedição Kon-Tiki, do
antropólogo norueguês Thor Heyerdahl, que navegou do Peru à
Polinésia, numa jangada construída por nativos, para provar que
civilizações sul-americanas podiam muito bem ter cruzado mares
para povoar as ilhas do Pacífico. Também ficou fascinado pelas
aventuras de O Último Lugar da Terra, de Roland Huntford, sobre a
disputa, no século passado, entre exploradores ingleses e
noruegueses pelo Polo Sul. E se maravilhou com os poemas do
poeta Fernando Pessoa, um de seus prediletos, que vivia a soprar
em seu ouvido que, sim, navegar era preciso.
Mas o que o faria voltar de corpo e alma para o mar, que não
desistira dele, foi O Grande Inverno, escrito por um casal de
aventureiros que ele conhecera em uma de suas férias em Parati.
Sally e Jérôme Poncet viviam uma vida modesta e sem grandes
solavancos num barco velho e enferrujado, no qual haviam
45
compartido uma inédita viagem ao território desconhecido e gelado
da Antártica.
A história nem era tão espetacular assim e, de certo modo, até
desmistificava um pouco a ideia de grandes epopeias vivenciadas
por aventureiros em alto-mar. Era tão somente um singelo, porém
apaixonado e poético relato sobre a experiência do casal francês.
Durante a viagem, Sally engravidou em pleno inverno polar e
decidiu ter o filho lá mesmo, na então desabitada e inóspita Geórgia
do Sul.
Ao chegar à última página, Amyr sabia exatamente o que faria da
vida dali em diante: seria um navegador. Ele começou a se preparar
lendo mais relatos de navegação e manuais, e passou a se dedicar
mais aos treinos da sua equipe de remo do Espéria, clube da elite
paulistana. O passo seguinte foi comprar uma canoa e, em seguida,
um barco a remo. Com o tempo, passou a construir os próprios
barcos.
Não tardou para Amyr Khan Klink, filho de um imigrante libanês e
uma artista plástica sueca, tornar-se um dos grandes heróis nacionais
dos nossos tempos. Sua primeira grande proeza foi atravessar o
litoral brasileiro numa pequena canoa. Em seguida, cruzou, solitário,
desde a África, o Oceano Atlântico a remo. Depois disso,
circunavegou o globo, perfazendo mais de 400 mil quilômetros nos
mares.
46
Bom leitor e excelente contador de histórias, Amyr aproveita, entre
uma e outra aventura, para escrever os próprios livros. Assim nasceu
Cem Dias entre o Céu e o Mar, um deles, que já vendeu meio milhão de
cópias.
Cada vez que ele vai se lançar numa nova aventura, Amyr Klink se
planeja bem e, antes de zarpar, toma todas as providências e
precauções. Como é indicado nesses casos, leva só o essencial para
suas temporadas sozinho em alto mar – sendo que algumas podem
durar mais de ano. Algo que não pode faltar na sua listinha de
prioridades: os livros. Numa das viagens, Amyr carregou nada
menos do que meia tonelada deles.
Afinal, diz Amyr, fazendo troça do trauma que o afastou dos mares,
não fossem os livros ele estaria hoje com cracas nas canelas de tanto
andar à beira-mar. Foram os livros, ele assegura, que deram um
sentido novo para a sua vida.
47
O livro dos livros
ma é Maria das Graças. Outra é Maria Augusta. A
terceira delas atende pelo nome de Joanice. Todas elas
estão com os filhos criados e frequentam a mesma igreja
na periferia de Belo Horizonte, a capital mineira. Tal como as outras
mulheres da mesma faixa etária com quem elas convivem no dia a
dia, as três levam, mesmo em uma grande cidade, uma vida pacata.
Também em comum entre as três há o fato de que, só agora, já na
idade madura, é que estão tendo, pela primeira vez na vida, contato
com as letras e com os livros.
As duas Marias mais Joanice se conheceram lá mesmo, na igreja do
bairro. Apesar de trajetórias de vida distintas, as três mulheres
partilham, atualmente, de um mesmo sonho: elas estão ansiosas para
U
48
conseguir ler o seu primeiro livro, o primeiro desde que se
conhecem por gente.
Mas, para elas, não vale um livro qualquer. As três foram fisgadas, a
essa altura da vida, para frequentar a escola de jovens e adultos por
causa do sonho por elas compartilhado de conseguirem, sozinhas,
ler a bíblia.
Até então, só tomavam conhecimento das belas passagens do
Evangelho, que tanto faziam bem para seu estado de espírito,
durante as preleções. A intenção delas, desde o início, era aprender
a ler para, assim, tentar abrir um canal direto com Deus e, com isso,
receber a palavra diretamente, a qualquer hora do dia ou da noite e,
sobretudo, em horas de necessidade.
Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, já se dá por contente se,
um dia, conseguir ler, sozinha, um salmo inteiro. Antes de começar
a ir à escola, ela chegava a decorar trechos inteiros da bíblia, para
poder recorrer nas horas de precisão. Dona Joanice já foi cozinheira,
faxineira, lavadeira e servente, entre outras coisas. Ela criou cinco
filhos, dois dos quais foram adotados, todos os cinco alfabetizados,
e garante que, agora, não desperdiçará a oportunidade de se
alfabetizar e ler, ela própria, os livros que desejar.
A história dela não é muito diferente das histórias de outras
mulheres do Alto Vera Cruz, bairro da periferia de BH. Dona Maria
das Graças da Silva, dois anos mais velha e mãe de dezenove filhos,
dez dos quais, ainda vivos, tem uma história prosaica. Ela não se
49
alfabetizou porque era proibida pelo pai de ir à escola em Jequeri,
na Zona da Mata mineira, para que não ficasse uma moça
“assanhada” e “namoradeira”.
— Nunca tive tempo pros cadernos... – ela diz, lembrando que, ao
constituir a própria família, a prioridade, então, passou a ser botar
comida na boca da filharada.
Só bem mais tarde, Dona Maria das Graças desconfiou que, se não
soubesse ler e escrever, jamais conseguiria ir muito longe.
— Não há nada pior do que não saber ler – ela atesta. — Eu, mesma,
nunca pude ir sozinha aos lugares por não saber o preço das coisas
e nem conseguir tomar um ônibus.
O mundo, ela desconfia, funciona com códigos:
— E eu não conseguia decifrar nada daquilo...
A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, dá o tom:
— Até que analfabeto acha emprego. Mas pode ver que é faxineira,
lavadeira, servente de pedreiro. Passa muita humilhação e ganha
muito pouco. Para quem não sabe ler, está tudo fechado.
Depois da bíblia, as futuras leitoras prometem não parar por aí e já
ficam imaginando o que vão encontrar em outros livros.
Em países de tradição cristã, a leitura da bíblia costuma ser uma
porta de entrada para muitos não leitores ao mundo da palavra
escrita. Ela é o livro mais lido e o mais relido do Brasil, além de ser,
segundo os leitores, o que mais mexeu com as suas vidas. Até entre
50
quem nunca leu um livro inteiro, muita gente tem o costume de ao
menos dar uma espiada nos versículos de vez em quando.
É provável que boa parte dos neoleitores da bíblia nunca irá além
de uns pequenos trechos do livro sagrado na hora de dormir ou ao
acordar. E isso bastará a eles. O que não deixa de ser, uma
experiência concreta com as práticas leitoras. Haverá, entretanto,
outro grupo de leitores que, após algum tempo, já não se contentará
só com esse tipo de leitura e partirá para outros, o segmento mais
ampliado de livros religiosos, e, na sequência, é possível, outros
gêneros. Alguns entre eles talvez se convertam em textos literários.
Uma só ovelha trazida para o seio do rebanho universal dos leitores
já vale muito a pena. Muito porque serão essas mesmas ovelhas –
que podem atender por nomes como Maria das Graças, Maria
Augusta ou Joanice – que vão ajudar, mais tarde, a semear para
outros rebanhos a boa nova dos livros. E, com eles, a vitória da luz,
do conhecimento e da razão sobre o obscurantismo e a ignorância
das trevas.
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O livreiro que não sabia ler
m um ano comum, Seu Leonídio costuma ler, por
baixo, quarenta livros. Ele lê diferentes gêneros literários,
e, praticamente, ao mesmo tempo. Leitor compulsivo
confesso, admite que não sabe direito o que fazer se não há um livro
por perto e ao alcance da sua mão, seja no carro, ao lado da cama
ou no banheiro da casa.
Mas nem sempre foi assim.
A aventura literária de Seu Leonídio só começou em seus 20 anos
de idade. Antes disso, ele era analfabeto de pai e mãe, mas nem por
isso vivia longe dos livros. Muito tempo antes de conseguir decifrar
uma só letra do alfabeto, Seu Leonídio já era, creia, um livreiro.
Como vendedor de livros que batia de porta em porta, atrás dos
E
52
compradores, ele tinha uma freguesia fixa e era o livreiro de
confiança de muita gente.
Portanto, primeiro, ele estabeleceu, ainda que não soubesse ler e
escrever, uma intimidade improvável com os livros e seus autores.
Só muito depois é que conseguiu a habilidade necessária para poder
decifrá-los e compreendê-los.
No Brasil de meados do século XX, quando o analfabetismo ainda
era muito alto no País, se comparado a bons indicadores
internacionais, este homem saía à caça de freguês a freguês,
estivessem onde estivessem. Vendia nas ruas, nas casas, permanecia
plantado nas portas de fábricas e escritórios, e nos mais inesperados
lugares, desde que, ali, pudesse existir algum comprador de livro em
potencial. De livro em livro, ele vendeu, ao longo da vida, milhões
deles.
Mais tarde, já alfabetizado, chefiou pequenas legiões de vendedores
porta a porta e, como editor, publicou perto de dois mil títulos.
Não é pouco, principalmente para esse alagoano de Arapiraca, que,
decidido a mudar de vida, correu atrás de um futuro igualmente
incerto na cidade grande. Ele começou fazendo pequenos bicos em
São Paulo, onde seu primeiro emprego foi de faxineiro. Nos
corredores da pensão onde foi viver, nos arredores da Praça João
Mendes, no centro de São Paulo, o rapaz moreno de porte atlético
conheceu alguns vendedores de livro.
53
O moço, logo, encantou-se com os relatos apaixonados e, em
especial, com os causos hilários que aconteciam no dia a dia dos
vendedores de livros, as suas divertidas e inesperadas situações no
trabalho. Aqueles homens saíam cedo da pensão e batiam de casa
em casa para oferecer livros a quem não tinha tempo, gosto,
dinheiro ou mesmo que não sentia a menor necessidade de ir a uma
livraria.
Embora não conseguisse decifrar uma só palavra estampada nos
livros que deveria vender, o novo e promissor vendedor se animou
com o desafio e, em pouco tempo, sentia-se como um veterano do
ramo. Para que não percebessem que o homem que vendia livros
não tinha a menor ideia do conteúdo do produto que tentava
empurrar aos outros, Leonídio tinha suas próprias artimanhas.
Ele decorava o título, o autor e o resumo da capa e da contracapa,
que algum colega lia para ele, e surpreendia a clientela declamando,
em alto e bom som, as informações principais. Com graça e estilo,
estabelecia de cara uma empatia com o freguês, aproveitando para
fugir de eventuais saias justas. Não tinha erro: tirava um pedido atrás
do outro – que ele pedia para o próprio cliente preencher, como
uma cortesia do seu vendedor.
Os truques de venda e o talento nato para o ofício ele aprendera nos
idos tempos em que vendia galinhas vivas, que carregava
dependuradas em pedaços de pau sobre os ombros. Lidar com
livros, ele racionou com a astúcia de vendedor, certamente, seria
54
muito mais fácil, já que eles sequer faziam barulho e tampouco se
alvoroçavam.
Um dia, contudo, um dos clientes percebeu que o vendedor
inventava sempre uma desculpa diferente na hora de preencher os
pedidos. Ele não deveria saber ler, desconfiou o homem, um
advogado, que acabaria por convencer Leonídio que nunca é tarde
para ir à escola.
Turrão como ele só, Leonídio, que sempre havia sido autodidata,
decidiu que faria do seu jeito. Acabou se alfabetizando sozinho,
enquanto lia placas de rua, reclames na TV e as capas dos livros que
vendia. Quando já casado e pai de seis filhos, fez questão de que
todos eles tirassem o diploma da faculdade. Depois que descobriu a
escrita e a leitura, jamais deixaria de transmitir, à filharada o valor da
escola.
Com o dinheiro que juntou vendendo livros, Leonídio comprou um
prédio de apartamentos inteiro na Aclimação, bairro paulistano de
classe média, e trouxe todos os parentes de Alagoas para morar
perto dele. Foi lá que ele montou sua primeira editora.
Se o assunto é livro, Leonídio Balbino, o livreiro que não sabia ler,
transforma-se. Ele pode falar por horas a fio, sem se cansar, até
convencer seu interlocutor por que ler livros é mesmo tão
imprescindível e pode, realmente, melhorar a vida das pessoas.
Se lhe dão trela, ele repete, à exaustão, sempre com gestos largos,
sua ladainha predileta:
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— Tem que ler, tem que ler, tem que ler...
No livro autobiográfico que escreveu para narrar sua história, O
Operário do Livro, Seu Leonídio, que se tornou cidadão honorário do
Rio e de São Paulo, não deixa de relatar os momentos dramáticos
que passou pela vida. Porém, otimista de plantão que é, Leonídio
Balbino gosta de contar que chegou aonde chegou graças a uma feliz
combinação de três coisas: uma vontade incrível de viver, a
confiança em si próprio e, naturalmente, os livros.
56
Livro de “um reais”
unca soube o nome dela. E as chances de voltar a
encontrá-la, algum dia, são bem remotas. De seu rosto
magro, contudo, não há como esquecer. E menos ainda
de seus olhos negros e redondos que não pediam, mas, com
determinação, praticamente exigiam. Não era para ela, fizera questão
de explicar. Era para o filho, que ainda não estava na escola.
Não queria esmola. Só desejava comprar um livro, com o mísero
dinheiro que dispunha no momento.
Apesar de não tê-la encontrado novamente; durante anos, a imagem
dessa mulher reapareceria para mim outras vezes. Como nas
ocasiões em que eu precisava falar em público, para membros do
governo ou representantes do mercado editorial, como os livros e a
N
57
leitura podem mexer com a vida das pessoas e, portanto, sobre a
necessidade de se garantir o acesso a eles, seja gratuitamente ou
pagando por preços acessíveis.
A mulher desconhecida – que seguirá anônima, para mim, e, talvez,
sempre invisível, aos olhos do Estado e da própria sociedade –
certamente teria muito a dizer sobre isso.
Era uma manhã fria de agosto, primeiro dia da Feira Nacional do
Livro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso se deu lá, mas
poderia ter sido em qualquer outro lugar. Importantes editores,
livreiros e escritores estavam na cidade. Muitos deles haviam
cruzado o país só para isso. Nos dias seguintes, aproveitariam os
holofotes para falar da função social da leitura e o quão importante
é tornar o Brasil um lugar de leitores.
A mulher surgiu do nada, quando ainda restavam boas horas para a
cerimônia de abertura e início da programação farta – com
escritores, venda de livros, cinema, teatro, exposições e outras artes,
com a literatura como um fio a conectá-los. Ela, calmamente,
estacionou o carrinho de mão no meio fio e, mesmo maltrapilha,
não se intimidou diante dos homens de terno e gravata, que
discutiam com entusiasmo sobre livros.
Sem cerimônia, a catadora de papelão enfiou uma das mãos por
dentro o vestido, na altura dos seios, e exibiu a cédula de R$ 1,00,
que parecia ser tudo o que tinha naquela hora do dia. Talvez fosse
mais sensato trocar por pães amanhecidos na padaria da esquina ou
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inteirar para levar um litro de leite para casa no final da jornada. Mas,
não. A mulher caminhou resoluta, na direção dos negociantes de
livros, sabendo o que seria. Sem dirigir a palavra a nenhum deles em
especial, lascou:
— Tem aí livro de “um reais”?! – ela esclareceu, – É pro meu filho,
que tá na idade de ir pra escola. Quero dar um livro a ele para que
seja alguém na vida.
A fala pungente calou fundo naqueles homens dos livros. Embora
o Brasil esteja entre os dez maiores produtores de livros do mundo,
o acesso a eles no País consegue ser ainda pior do que a desigualdade
social. Só uma em cada oito pessoas compra livros.
Mais e mais pessoas, nos dias atuais, reconhecem a função social e
transformadora da leitura na sociedade. E a julgar pela fala simples,
mas poderosa, dessa catadora de papel, é possível supor que a
relevância da leitura também cresce, e, aos poucos, se consolida, no
imaginário popular.
Nesse caso, embora analfabeta, o que ela mesma afirmaria, a mulher
intuiu que poderia estar ali, em meio aos livros, a chave do futuro
para seu menino. Do contrário, a continuar apartado do acesso à
educação e ao conhecimento – materializado diante dela na forma
de livros –, deveria engrossar a lista de candidatos a engordar as
estatísticas oficiais sobre miséria, desemprego, fome e violência.
Mas para a catadora de papelão atrás de um livro com preço
compatível ao seu bolso, um livro tem um significado que vai além
59
do objeto que seus olhos veem. Porque não se resume ao maço de
papéis costurados e manchado com tinta, que, a rigor, ele é. O que
a mãe catadora vê é um sonho, um futuro e oportunidades que ela
e o pai da criança, provavelmente, nunca tiveram. Talvez um
emprego com carteira assinada, duas ou três refeições no dia e
alguma dignidade na vida.
60
A bola e o livro
dward estava, porque estava, convencido de que,
no futuro, ainda ganharia a vida correndo atrás de uma
bola: queria ser jogador de futebol profissional. Após uma
meteórica estreia no seu glorioso Mirassol Futebol Clube, orgulho
da cidade, ele, em seus sonhos infantis, jogaria, em seguida, em um
dos times grandes do Rio ou de São Paulo para, então, partir direto
para a seleção, como um ídolo festejado do escrete nacional.
Naqueles tempos, meados do século passado, jogar no exterior era
algo absolutamente fora de questão.
Era este o sonho de Edward e de milhões de outros garotos, fossem
pobres ou fossem ricos, no futuro País do Futebol. Era difícil
E
61
encontrar algum que não almejasse ganhar fama e glória nos
estádios.
No caso de Edward não seria exatamente por falta de treino ou
dedicação diária que esse sonho deixaria de se realizar. Afinal, todo
santo dia, ele e um punhado de amigos praticavam, em renhidas
peladas de rua nos campinhos de terra de Mirassol, interior de São
Paulo, o esporte bretão que, supunham, deveria alçá-los ao estrelato.
Edward não estava de todo enganado.
Uma bola de futebol estava, de fato, entre ele e seu destino. Não era,
contudo, exatamente como sonhara.
Certo dia, Edward participava de um concorridíssimo racha no pátio
da escola. De repente, um colega de time deu um tremendo chutão
que fez com que a bola fosse parar lá longe. O craque, naquele
instante envergando a gloriosa farda do Grupo Escolar de Mirassol,
na plenitude de seus não mais do que oito anos de idade, foi,
prontamente, escalado para resgatar a pelota, que, desgraçadamente,
enfiara-se por uma maldita janela aberta.
O mundo era mesmo injusto. Era sempre a mesma coisa: os grandes
mandavam e aos menores não cabia outra coisa senão obedecer.
Convertido, momentaneamente, em gandula oficial da peleja, lá foi
o candidato a futuro atleta atrás de localizar o paradeiro da preciosa.
Mas alguma coisa do outro lado da parede chamou a atenção do
menino. Edward se intrigou diante do cenário inesperado: jamais
vira tantos livros juntos!
62
Do outro lado da janela, funcionava a biblioteca da escola que, justo
naquela manhã, recebera um acervo novo de livros. Eram livros de
literatura para crianças.
O pequeno Edward pegou um deles nas mãos – A Banana que Comeu
o Macaco, ele jamais se esqueceria – e se deixou levar pela história,
que leu até o fim. Ele nunca voltou para retomar aquele jogo de
futebol.
Nos trezentos e sessenta e cinco dias seguintes, Edward
contabilizaria nada menos do que duzentos e cinquenta livros lidos
– para se ter uma ideia, basta dizer que só em 2017 a média anual de
livros lidos por brasileiro chegaria a cinco livros por habitante/ano.
O menino parecia mais uma máquina leitora!
Como o Edward manuseava com rara habilidade a arte das palavras,
um professor inscreveu, sem que ele soubesse, sua redação escolar
em um concurso estadual. A notícia fez o menino pular de alegria:
ele fora classificado em primeiro lugar!
Enquanto abiscoitava um prêmio aqui e outro acolá, o agora
rapazote passou a faturar uns trocados com a habilidade
recentemente conquistada.
Sua intimidade com os livros ficaria patente ao prestar concurso
público para o Banco do Brasil, posto cobiçadíssimo por legiões de
jovens atrás de carreira estável e do status conferido pelo cargo. A
primeira notícia não fora nada boa: havia tirado um baita zero em
Contabilidade. Só que, ao ver as outras notas, a surpresa: dez nas
63
demais disciplinas. Na hora H, o costume de ler bons livros o
ajudara a conquistar o emprego.
Noutra ocasião, o jovem corrigiu, durante uma aula, e sem grandes
pretensões, a professora do cursinho preparatório. Sua
argumentação fora tão consistente que a escola resolveu contratá-lo
no lugar dela. Mais uma vez, os livros dariam um empurrão em sua
vida.
Mais tarde, já na faculdade, preocupado que estava com as
dificuldades para acompanhar as aulas de latim, Edward foi a um
sebo atrás de livros usados para aprimorar seus conhecimentos no
idioma. Fez resumos primorosos para cada livro que lia. Ele sequer
desconfiava, mas acabara de escrever o manuscrito do seu primeiro
livro, um dos muitos que publicaria pela vida afora.
Com o tempo, Edward Lopes se tornou um dos mais brilhantes
linguistas do País e, hoje em dia, não há estudante de Letras que não
tenha recorrido a uma de suas obras sobre semiótica e linguística.
Quem sabe o escrete canarinho não perdeu um grande talento com
a bola nos pés. Não sei. Mas, com certeza, o Brasil ganhou um
tremendo talento das letras. Que, longe das quatro linhas do
gramado, tem ajudado a formar várias gerações de mestres que, eles
próprios, igualmente craques das palavras, têm, por sua vez,
despertado o gosto de ler, a cada ano letivo, em milhões de novos
leitores verde-amarelos.
O País da bola carece e agradece.
64
Lições de Dona Maria
or que, afinal de contas, as pessoas leem e escrevem?
E por que é absolutamente essencial a leitura para se viver
na sociedade moderna?
As respostas a estas perguntas costumam variar de acordo com o
interlocutor e suas áreas do saber. Todas, entretanto, remetem a uma
questão central: a necessidade imperiosa que temos de nos
comunicar uns com os outros, de compreender coisas e de nos fazer
entendidos.
Também nos ensinam que saber decifrar os códigos – o que
chamamos de letras e palavras, matéria prima das frases – vai nos
ajudar de várias maneiras pela vida afora. Ainda nos lembram o
quanto a invenção dos alfabetos foi fundamental para a estruturação
P
65
da humanidade tal qual a conhecemos hoje. E, por fim, que assim
podemos nos apropriar do conhecimento universal, que é o grande
legado acumulado através dos tempos pelos homens e mulheres.
A saudável troca de experiências entre leitores, autores e seus
personagens, cada qual com sua visão distinta de mundo, que se dá
no ato de ler, tem o poder de operar em nosso interior reflexões
surpreendentes. Essa é uma forma de gerar, continuamente, novos
modos de ver, sentir e compreender as coisas. O que abre, sem
dúvidas, caminho para atitudes e posicionamentos igualmente
novos. Sem contar que o exercício de enxergar com os olhos do
outro é uma forma extraordinária para se gerar mais tolerância, algo,
evidentemente, indispensável nos processos de paz, mas, na
verdade, necessário para a vida em sociedade de um modo geral
Há, enfim, todo tipo de respostas e, provavelmente, todas com boa
dose de razão.
Vejamos, agora, o que tem a dizer sobre isso uma mulher
camponesa de seus 70 anos, mãos calejadas, que duas ou três vezes
por mês comparece, religiosamente, a uma sala de aula de alvenaria
improvisada no acanhado salão de reuniões do Horto Guarani,
perto de Guariba – no interior de São Paulo, epicentro da revolta
dos boias-frias ocorrida em maio de 1984. Ali, foi instalado o
primeiro assentamento da reforma agrária no coração da mais
importante e poderosa região do agronegócio no Brasil.
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Dona Maria Terezinha – é este o nome dela – tem uma percepção e
uma teoria toda própria sobre o tema, que, por mais que se esforce,
tem certa dificuldade para expressar: a função social da leitura e da
escrita na vida de gente como ela, que trabalha duro na roça durante
o dia e, à noite, espreme-se sobre bancos toscos de madeira,
enquanto o sono permite, para aprender a ler e escrever.
Sem dominar a capacidade de leitura e escrita, Dona Maria se
acostumou a recorrer aos rabiscos rudimentares – como nos
primórdios fazia o homem das cavernas – para registrar os relatos
sobre seu cotidiano e o que vai dentro de sua alma. Em um desses
desenhos, ela aparece jogando milho para as galinhas no quintal do
sítio em um dia ensolarado. Em outro, ela está rodeada pela
parentela, com a natureza exuberante às suas costas em uma ocasião
que parece ter sido muito especial para ela e sua família.
Dona Maria também registrou com entusiasmo o dia em que
participou do mutirão que ergueu a sua primeira casa própria
naquelas terras devolutas, antes tomadas por eucaliptos, no horto
localizado no município de Pradópolis.
Há algumas semanas frequentando a escola noturna do
assentamento, por ora, Dona Maria mal consegue desenhar o nome.
Para ela, entretanto, isso já é muito, e ela comemora com um sorriso
de criança cada nova letra que consegue transpor, na forma de
garranchos quase ilegíveis, do quadro negro da parede para o
67
caderno. E ela o faz com a mesma devoção com que faz a oração
do dia antes de se deitar.
Para esta mulher camponesa, desenhar o próprio nome já foi uma
grande vitória. No dia em que ela foi à agência bancária receber a
aposentadoria, o gerente a convidou para ir até sua mesa. Nessa
hora, ela se emocionou: seria a primeira vez em sua vida que não
teria que passar pelo constrangimento de carimbar as digitais e sair
da agência com os dedos sujos de tinta.
A felicidade que a mulher septuagenária sentiu naquele momento
não tem preço! Dona Maria saiu do banco tão leve e confiante que
encomendou, na mesma hora, uma nova carteira de identidade, na
qual já não apareceria a expressão que calava tão fundo em seu peito:
“analfabeta”.
Mas Dona Maria sabe que é só o começo e que há um longo
caminho pela frente para que possa adentrar, para valer, no
complexo universo das letras. Também está consciente de que,
apesar da idade avançada e da fadiga diária que deixa as vistas mais
cansadas do que antes, terá que dar duro nas aulas. Mas dar duro no
batente é algo que, afinal, ela já faz a vida inteira na roça.
Empurrada por uma força que não sabe dizer de onde vem, essa
mulher faz questão de registrar no caderno cada nova palavra que
vê nos livros. Nessas horas, é tomada por uma alegria incomum.
Ainda assustada diante de tantas sensações desconhecidas, Dona
Maria Terezinha – mais uma candidata a integrar a legião de
68
neoleitores que se forma nos assentamentos da reforma agrária nos
grotões do Brasil – tem um palpite:
— Acho que é isso que as pessoas da cidade chamam de cidadania
– ela arrisca, com simplicidade e com o jeito de quem não quer mais
tirar o pé dessa estrada.
69
O homem que não vendia livros
onde vai, afinal, aquele homem carregando tantos
livros debaixo do braço? Ele mal dobrou a esquina e
aparece, ainda pequenino, lá longe, mas nota-se que ele
leva uns belos duns livrões sob os braços arqueados. Aos poucos,
enquanto caminha celeremente, gesticula e parece conversar
sozinho, sua figura franzina vai tomando corpo na calçada.
Talvez nem sejam tantos livros assim. Agora que ele está mais perto,
dá para ver que são enciclopédias, esses livrões danados de pesados,
que condensam nos volumes, de quem se mete a colecioná-los, toda
sorte de conhecimento, curiosidades e informações, úteis ou não.
Parece fazer valer o dito, segundo o qual o conhecimento vale
quanto pesa.
A
70
O homem segue, agitado e solitário, em seu caminho sem rumo. Vai
de casa em casa, bate de porta em porta. Em algumas, toca a
campainha estridente. Em parte delas, vai dar com o nariz na porta,
ele sabe disso. Certas residências estarão mesmo vazias, enquanto,
noutras, os moradores vão fingir que não há ninguém na casa, sua
estratégia eficaz e mal educada para barrar os inconvenientes.
Mesmo entre aqueles que vão abrir a porta, suas estatísticas dizem
que só uma pequena parcela será capaz de fazer ao menos ideia do
quão importante é o conteúdo contido naqueles livrões. Com sorte,
no final da jornada, uma parte ínfima dos seus interlocutores terá
ouvido sua preleção até o fim e, encerrada a ladainha, assinado o
pedido e preenchido os cheques parcelados.
Diariamente, o homem repete, à exaustão, seu discurso sobre
verbetes, personagens, excentricidades e a roda viva da história.
Quer incutir na cabeça das pessoas por que aquilo tudo tem a ver
com a sua vida e, sobretudo, com o seu futuro.
Não é uma tarefa fácil.
Só que Seu Luciano não leva jeito para vender livros. Pode falar por
horas a fio com quem quer que seja e der o azar (ou seria sorte?) de
abrir-lhe a porta. Circunspecto e gestos largos, é de sua natureza
parlar. Mas nunca teve tino comercial para nada. Contudo, é um
brilhante vendedor de ideias, como se verá.
Foi de uma hora para outra que vender livro de porta em porta se
tornou, pelas circunstâncias, seu ganha-pão. Seu Luciano era um
71
homem importante, desses que saem muitas vezes nas páginas dos
jornais, ora escrevendo, ora sendo ele mesmo a própria notícia.
Jornalista dos bons, foi eleito vereador e deputado, e apareceu já na
primeira leva dos cassados às vésperas do golpe militar de 1964.
Tornou-se uma lenda nos movimentos de trabalhadores paulistas
pelo apoio firme em milhares de greves no estado São Paulo.
Suas campanhas eram feitas pelos próprios eleitores, que se
incumbiam até de imprimir seus panfletos e pedir votos por ele, que
também não levava lá muito jeito para a coisa. Até os adversários se
deixavam enfeitiçar pela sua pureza e coerência na defesa das ideias,
com sua invejável eloquência e teimosia calabresas.
Era justamente nos livros, bem como nos jornais e no próprio
cotidiano das pessoas mais pobres, que Seu Luciano aprendera tudo
o que sabia na vida. Filho de calabreses, lia sobre política, lutas do
proletariado e o que aparecesse pela frente.
Lia, confabulava com os próprios botões e devolvia tudo,
devidamente deglutido e processado, em forma de artigos ou
discursos eloquentes sobre caixotes de madeira. Era assim que o
homem dos livros cativava amigos e simpatizantes num tempo em
que não existia cabo eleitoral pago ou campanhas milionárias.
Proibido de escrever e legislar nos anos de chumbo, Seu Luciano
chegou a recusar, por questão de princípios, o emprego fajuto que
lhe arrumaram. Preferia vender livros, que ele considerava um
trabalho mais digno. Mas não durou muito naquele emprego, já que,
72
em vez de vender, dava os livros de presente para quem não podia
pagar.
Só anos mais tarde, com a redemocratização do País, Seu Luciano
Lepera voltaria às redações. Comunista das antigas e tão generoso
quanto teimoso, ele se tornou um mestre, pelo caráter irretocável,
para várias gerações de jornalistas. Era capaz de tirar a comida da
boca para dar a alguém que necessitasse mais do que ele. Antes de
morrer, doou a própria casa, seu único bem material.
Quem quer que cruzasse seu caminho nunca mais era o mesmo. O
vendedor que não vendia os livros tinha o poder inexplicável de
tocar e comover pessoas. Embora ateu, os amigos carolas garantiam
que o homem dos livros era mais cristão do que qualquer um deles.
— Ele nem precisa acreditar em Deus, pois Deus acredita nele.
73
Do outro lado do muro
aíssa é uma guria que acaba de completar três anos. Ela
nunca saiu dali. Mesmo que quisesse, não teria como. No
lugar das janelas, há pesadas grades de ferro chumbadas
na parede, e a porta, que dá acesso ao térreo, permanece o tempo
todo trancada à chave.
Há outras gurias na mesma situação. No meio da noite, uma delas
sempre chora. Se de fome, frio ou medo, não se sabe.
Na cabecinha daquelas crianças inocentes, privadas da sua liberdade
desde que vieram ao mundo, lá fora é, de certo modo, um lugar que
não existe. Parece algo tão incerto quanto pueril, mesmo porque
nenhuma delas guarda na memória a lembrança de algum dia ter
atravessado um daqueles portões gigantes e ir dar na rua.
R
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Jamais puderam contemplar pessoas quaisquer caminhando com
elas numa calçada ou qualquer outra cena corriqueira que faça parte
do cotidiano comum das cidades. Esses guris nem desconfiam que,
do lado de fora dos pavilhões onde vivem, há uma cidade imensa
banhada pelo rio – com parques, praças, zoológicos, pipoqueiros,
guloseimas e toda sorte de coisas simples, inocentes e belas que
tanto fascinam a gurizada.
Mas, se alguém perguntar a Raíssa ou a outro qualquer um dos filhos
das mulheres presas no Madre Pelletier, o presídio feminino de
Porto Alegre, muitos responderão que conhecem tudo isso e muito
mais. Raíssa nasceu de uma das visitas conjugais mensais que são
permitidas às presidiárias da instituição e vive lá desde que veio ao
mundo.
Ela adora ouvir as fábulas. Parece precisar delas para seguir vivendo
e sonhando. Conta, com candura, que já esteve em bonitos lugares
e já conheceu príncipes, dragões e fadas. Descreve, com riqueza de
detalhes, castelos e reinos maravilhosos, e intercala expressões de
medo e alívio ao mencionar os monstros e caçadores de bom
coração que encontrou quando esteve perdida em florestas escuras
e mágicas.
Muitas dessas mulheres foram parar na criminalidade por causas de
seus maridos, que continuaram lá fora. Com suas mães, esses filhos
do cárcere vivem quase o tempo todo atrás das grades. Foi no
75
presídio que deram os primeiros passos e pronunciaram as primeiras
palavras.
Sua ligação com a vida lá fora se dá quase que só pelos livros.
É nas histórias que descobrem o mundo externo e criam suas
fantasias, diz uma das voluntárias do Liberdade pela Escrita, projeto
dos alunos de Letras e Pedagogia da UniRitter, uma faculdade local.
Os estudantes ensinam às mães técnicas da contação de histórias e,
a partir de crônicas, poemas e do noticiário de jornais, as mulheres
aprendem a expressar, no papel, suas angústias, dúvidas e
esperanças. Kelly, que está presa por ter se envolvido com o tráfico
de drogas, para agradar o namorado traficante, acordou no meio da
noite e escreveu para Deus sobre o seu desejo de mudar de vida
quando sair dali, como leu em um livro. Às vezes relatam as
injustiças e os sofrimentos, e fazem reflexões sobre os erros e a
própria vida.
Essas endurecidas mulheres do cárcere estão descobrindo, nos
livros, um sentido novo para as suas vidas e, principalmente, uma
perspectiva inédita para suas crianças.
Elas sabem que não será tão fácil assim, mas contam com a ajuda
dos livros para tornar sua realidade menos dura, ao menos enquanto
mergulham em alguma página da literatura. E, talvez, tirar de
algumas delas força, fé e coragem para seguir adiante.
76
Ele é o cara!
lávio é um bom menino. É gentil e educado quando
fala com as pessoas e, na sala de aula, está sempre atento e
ligado nas explicações da professora. Ele tem aulas pela
manhã e à tarde e, para dar conta de tudo, não tem moleza; sua
rotina diária não é nada fácil.
Ele pula da cama, todo santo dia, às quatro da manhã. Só, lá, pelas
oito da noite é que conseguirá voltar para casa. Só nessa hora é que
vai comer a sua última refeição do dia, descansar um pouco e já
iniciar os preparativos para a maratona do dia seguinte. O menino
cumpre essa mesma jornada há anos, com uma disciplina espartana,
mas bom humor.
F
77
Flávio viaja, diariamente, duzentos quilômetros por dia desde São
Joaquim da Barra, no interior de São Paulo, já quase na divisa com
Minas. De manhã, ele frequenta a escola municipal Raul Machado,
em Ribeirão Preto, onde tem aulas regulares. Depois que almoça,
está matriculado em cursos de canto, informática e atividades
manuais. O que aparece ele faz, e nunca se queixa.
Sua agenda diária é típica da garotada de classe média. Por ora, ainda
não faz ideia do que quer ser quando crescer. Nem é hora disso;
afinal, ele só tem dez anos. Lá no fundo do peito, guarda seu maior
segredo: seu sonho é ser cantor de música gospel.
Duas vezes por mês, Flávio vai com os amigos à biblioteca das duas
escolas em que está matriculado. Está sempre em busca de algum
livro diferente. Andou lendo Reinações de Narizinho, de Monteiro
Lobato, e vários livros do Pedro Bandeira. Ultimamente, anda
interessadíssimo nos livros para garotos mais velhos, curioso que
está em desvendar mistérios, nas aventuras para adolescentes sobre
amizade e, admite ruborizado, em garotas, namoricos e coisa e tal.
Flávio gosta mesmo de ler. Como a maioria dos meninos da sua
idade, adora brincar e curtir os amigos, e também dos livros. Ler,
para ele, é algo muito prazeroso. Diz que aprecia os livros porque
acha que eles podem ser seu único caminho para ser alguém na vida.
Simples assim.
A história de Flávio é, por assim dizer, a história de um menino
comum, desses que pode se encontrar por toda parte. O único
78
detalhe que o diferencia dos outros meninos da sua idade é o jeito
como esse jovem e convicto leitor lê seus livros.
Flávio, como a maioria das crianças, gosta muito quando alguém lê
ou conta uma história para ele. Mas aprecia escolher os próprios
livros que quer ler e, então, faz isso sozinho. Ele faz isso de algumas
formas: às vezes, pega um audiolivro e escuta no seu tocador de CD;
outras vezes, esfrega um dos dedos no papel saliente enquanto vai
decodificando, palavra a palavra, até formar frases inteiras, graças a
um sistema que ficou mundialmente conhecido pelo nome de seu
inventor: Braille.
Quando está lendo, muitas vezes, Flávio, simplesmente, esquece que
é cego. As coisas, então, parecem ficar mais claras e ele pode curtir
a deliciosa sensação de enxergar mais longe.
Apesar do pouco tempo que sobra na agenda, repleta de atividades,
e do acesso restrito em função dos ainda modestíssimos acervos de
livros para pessoas cegas no País, Flávio é o que se chama de bom
leitor. Ele mantém a média de dezenas de livros lidos por ano e nos
dá uma lição diária.
Flávio dos Santos frequenta a escola da Associação dos Deficientes
Visuais de Ribeirão Preto, uma ONG que faz um bonito trabalho
com pessoas de baixa visão ou cegas, e mantém uma ativa biblioteca
para incentivar a leitura entre eles.
Flávio, o menino que lê com a ponta dos dedos, é mesmo o cara!
79
Marinheiro só
mesmo impossível ir a Ilhéus, no litoral da Bahia, e não
ser arrastado para dentro de uma das histórias incríveis de
Jorge Amado, filho mais famoso da terra e um dos nossos
grandes escritores.
O casario porta-e-janela, os barcos no cais. Em cada canto da cidade
histórica tem um quê de Gabriela e certo aroma de cravo e canela,
algum traço firme dos coronéis do cacau ou alguma memória do
punhado de personagens que, muito antes de seu criador, entraram
para a imortalidade através das portas da literatura.
Não distante dali, próximo desse cenário impregnado de histórias
deliciosas e de cultura, que, para bem além do período representado
É
80
pelo autor, remonta à época das capitanias hereditárias e dos tempos
em que a Bahia era o epicentro do Brasil Colônia, vive Joílson, o
marinheiro. Ele mais todos os fantasmas saídos, diretamente, das
páginas e da prosa fácil de Jorge Amado, e que podem atender por
nomes como Quincas, Vadinho, Nacif ou Flor.
Tal como o conterrâneo ilustre, Joílson Maia, o marinheiro, cresceu
entre as fazendas de cacau e as histórias dos coronéis daquelas terras
do sem fim, cenário e fio condutor de tramas que até hoje atraem
legiões de turistas ao lugar. Joílson tinha certeza de que não passava
de um capiau, simplório e ingênuo, quando foi apresentado, pela
primeira vez, à obra do ídolo.
Como ele não tinha dinheiro para comprar os livros de Jorge
Amado, o menino começou a pegar emprestado dos colegas de
escola. Como precisava devolver no dia seguinte, Joílson passava as
noites em claro para decorar as histórias favoritas e contar, no outro
dia, para os irmãos.
Assim, aos poucos, foi que Joílson tomou gosto pela coisa.
Mais tarde, quando nasceu seu filho, de nome também Joílson, o
marinheiro pensou que era chegada a hora de compartilhar com ele
todas aquelas histórias que tanto o encantavam. Foi assim que ele se
descobriu um contador de histórias.
Joílson se arriscou, então, a escrever as próprias histórias. Já
publicou dez livros, entre os infantis e os romances. O Dia da Gota
D’Água e Memórias Sofridas são dois desses, que Joílson gosta de
81
contar aos passageiros da balsa que faz a travessia entre o continente
e a Ilha de Comandatuba.
Personagens e cenário não faltam por ali. E mestres que, no seu
caso, foi, ao vivo e a cores, o próprio autor de Terras do Sem Fim:
— Jorge Amado, um dia, me contou que sempre começava uma
história tendo na cabeça um personagem real de Ilhéus – Joílson
garante que a receita é infalível. — Está cheio de personagens de
livro andando nas ruas por aí.
Leitor formado na lida e, hoje, também um escritor das terras do
sem-fim, Joílson, o marinheiro, sonha ir mais longe: planeja escrever
outros livros sobre a sua Bahia e, quem sabe, um dia, participar de
lançamentos e sessões de autógrafos numa Bienal do Livro, no Rio
ou em São Paulo.
A julgar pelas boas histórias e ricas personagens que têm saído, por
décadas a fio, de Ilhéus, inspiração é que não vai faltar.
82
Pequenos leitores do sisal
oisés, Laudércio, Antônio Jorge. São nomes de
crianças comuns, dessas que habitam desde pequenas
vilas nos grotões do Brasil até as periferias das grandes
cidades. Vivendo em habitações precárias e quase nenhuma
condição sanitária, esses meninos e meninas levam uma vida simples
e sem grandes preocupações quanto ao futuro.
Por toda parte, país afora, crianças nessa idade costumam, seja lá
como for, brincar numa parte do seu dia, enquanto, na outra, vão à
escola, a fim de aprender a ler e a escrever. Mas, nesse caso dos três
acima, como de tantos outros do Nordeste brasileiro, não era
exatamente assim.
M
83
Moisés, Laudércio e Antônio Jorge tiveram que partir cedo para a
labuta diária nas plantações de sisal nos arredores de Retirolândia,
no sertão da Bahia. Ainda pequenos, acostumaram-se com os pais a
ouvir que ler, escrever e brincar era um luxo só para os filhos da
gente rica da cidade.
Isso faria de Antônio Jorge uma criança triste. Os folguedos e os
cadernos nunca fizeram parte da sua infância ou sequer do seu
vocabulário infantil. Ele se punha de pé, ainda escuro, para se
aprontar e passar as horas seguintes, até o entardecer, ao lado do
pai, ceifando a palha do sisal. Tirar os espinhos que costumam
deixar cortes profundos na pele era, por assim dizer, o que mais se
aproximava de uma distração.
Para meninos como eles, havia muito pouco a esperar dessa vida. O
jeito, para ele e os outros, era simplesmente se resignar, aceitando
como absolutamente normal o fato de que, aos sete ou oito anos de
idade, tinham às mãos uma foice, em vez de lápis e caderno.
Mas essa era, afinal, a vida deles. E parecia que estavam condenados
a viver sempre assim.
No dia em que funcionários do governo chegaram avisando que
criança não podia mais trabalhar foi um “Deus nos acuda” por lá. A
revolta tomou conta da cidade. A pergunta que se faziam era uma
só: “Como é que aquela meninada endiabrada e embrutecida poderia
aprender a ser alguém na vida sem o santo remédio do trabalho?”.
84
Para quem empregava, era o fim da mão de obra farta e barata. Mas
pais e mães também estavam horrorizados, sem compreender, a
princípio, que haveria outras alternativas de vida fora daquela rotina
que conheciam desde sempre.
A situação só aliviou um pouco quando as famílias souberam que,
em troca, passariam a receber uma ajuda do governo para
compensar o dinheiro que as crianças deixariam de ganhar na roça.
Só teriam que ser matriculadas e frequentar, comprovadamente, a
escola.
Mas para aquelas crianças a mudança também não seria tranquila.
Após uma infância inteira longe dos cadernos e dos livros, ter que ir
à escola para aprender lições que pareciam muito complicadas de se
entrar na cabeça já seria, apesar da pouca idade, algo difícil e
desafiador
Alguém teve, então, uma feliz ideia: talvez conseguissem
compreender mais facilmente se, antes do próprio bê-á-bá das
cartilhas, começassem ouvindo as histórias contidas nos livros.
Os baús para acomodar os primeiros livros foram construídos com
o mesmo sisal que, até então, era o grande responsável por afastar
aquelas crianças da escola. O plano deu certo, e, aos poucos, aqueles
meninos cuja infância e direito de aprender a ler e a escrever lhes
eram negados; agora, já aprendiam e se divertiam com o novo
conhecimento que chegava cada vez que um livro era aberto.
85
Nos quinze anos vividos no meio do mato, Antônio Jorge Santiago
jamais imaginara que pudesse existir tanta coisa assim como, agora,
ele descobria a cada página virada. Seu depoimento é um tiro
certeiro:
— Descobri um mundo novo dentro desses baús – diz, com
emoção.
Laudércio Carneiro, o amigo, se convenceu de que não é certo
obrigar criança a trabalhar em vez de ir à escola:
— Foram os livros que me tornaram gente – ele diz, com orgulho
incontido.
Moisés, ou Moca para os amigos, era um menino muito tímido.
Envergonhado, não abria a boca para nada. No dia em que Ana
Paula, a professora, o chamou para ler na frente de todos, ele
simplesmente foi tomado pelo pavor. Suava frio. Percebendo sua
dificuldade, ela deu, literalmente, empurrão em suas costas – na
verdade, um toque sutil e carinhoso, que foi a maneira que
encontrou para incentivá-lo.
Moca leu o texto sem gaguejar e descobriu que gostava disso mais
do que supunha. Desde então se soltou e tornou-se mais falante.
Acabou se elegendo presidente do grêmio escolar e virou o líder da
turma.
Aos poucos, os livros vêm operando pequenos milagres na vida dos
meninos trabalhadores do sisal. O Movimento de Organização
Comunitária já contabiliza mais de 700 desses Baús da Leitura
86
espalhados pelas cidades da zona sisaleira da Bahia. Adilson
Baptista, um dos líderes, diz que a literatura aproxima os jovens
locais de outros que vivem em outras partes do mundo. Sem os
livros, afirma ele, uns jamais conheceriam a realidade dos outros.
— Uma pessoa que não lê vive isolada do mundo – Adilson vive
repetindo, – os livros podem servir de elo entre as pessoas,
independente de onde elas estiverem.
87
No profundo mar azul
esde pequena, Ângela acalentou o sonho de ser
professora. Ela sempre se interessou em conhecer
coisas novas e cresceu achando natural compartilhar
aquilo que aprendia com as outras pessoas.
A menina só não suportava uma coisa: a ideia de crescer ali e se ver
obrigada a reproduzir a mesma vida da mãe, da avó e das outras
mulheres da ilha. Mal saíam da puberdade, cumpriam um ritual
idêntico: namoro (às vezes providenciado pela própria família),
noivado e, por fim, casamento e filhos.
Tornavam-se donas de casa e davam à luz ainda jovens, repetindo o
único ciclo de vida para mulheres que aquelas famílias caiçaras
D
88
conheciam de cor e salteado. Muitas delas chegavam à velhice,
prematuramente, sem sequer terem pisado no continente.
Esta parecia ser também a sina de Ângela.
Tal qual as amigas, Ângela, também tinha seus sonhos românticos
de menina-moça, influenciados, claro, pelos costumes locais.
Almejava se apaixonar e constituir família. Só que as coisas, dizia
para si, teriam que acontecer na hora certa e do seu jeito. Porque ela
também gostava de se imaginar no futuro, trabalhando em algo que
a realizasse profissionalmente e, ao mesmo tempo, fazendo algo útil
para sua comunidade.
Entretanto, a menina sabia que suas chances, vivendo no que ela, às
vezes, pensava ser um fim de mundo, eram quase zero. E Ângela
não tinha a menor intenção de abandonar a terra de seus
antepassados, onde, bem ou mal, estavam seus parentes, amigos e a
vida que ela conhecia.
Na praia da Longa, um dos vilarejos que compõem a Ilha Grande,
no litoral do Rio de Janeiro, luz elétrica era um luxo distante, que só
demoraria alguns anos para chegar, a reboque do programa Luz para
Todos.
Adentrar ao universo da informação e do conhecimento formal era,
portanto, para ela, como uma corrida de obstáculos. Se biblioteca,
livraria ou banca de jornal eram inexistentes, o acesso à internet,
naqueles anos, então, nem pensar.
89
Para complicar as coisas, os jovens caiçaras que insistiam em estudar
precisavam se submeter a longas e exaustivas viagens diárias. Dali
até Araçatiba, onde funcionava a única escola dos arredores, era um
tempão de barco. Do cais de Santa Luzia, na Baía de Angra dos Reis,
até Proveta, a última das ilhas, já em mar aberto, consumia-se nada
menos do que seis horas de barco, entre ida e volta.
Porém, decidida que estava a correr atrás do sonho de ter uma
profissão e tomar para si as rédeas de seu destino, Ângela resolveu
ir à luta.
Uma ideia simples, que brotou numa conversa entre professores
incomodados com o desperdício de tempo dos alunos no trajeto até
a escola, acabaria por colocar no caminho de Ângela tudo aquilo de
que ela necessitava para seguir adiante em sua jornada.
Os professores, que vinham de Angra dos Reis para lecionar no
lugar, resolveram pegar emprestados uns livros da escola e
improvisaram no convés do barco Três Irmãos Unidos II uma
pequena biblioteca. Em homenagem a Castro Alves, deram a ela o
nome de Espumas Flutuantes, título da obra na qual estão alguns
dos versos mais famosos do poeta baiano.
Junto à estante de madeira, instalaram o sofá da leitura, para que os
tão aguardados leitores pudessem ler com algum conforto.
Não tardou e o barco-biblioteca virou a sensação do lugar. Era lá
que aconteciam os flertes e namoricos, e onde tinham início relações
que durariam a vida toda. Também era lá onde se tiravam algumas
90
das dúvidas escolares e, naturalmente, onde se podia ler e estudar
tranquilamente e, claro, emprestar livros para levar para casa.
Ângela bebeu, por anos a fio, daquela fonte. Lá, conheceu os
romances e viveu aventuras memoráveis da sua adolescência. Era ali
que fazia amizades e onde se deliciava com os poemas, gênero que
causaria um impacto profundo em sua existência.
Estimulada pelas leituras, reflexões e histórias arrebatadoras saídas
de dentro dos livros, Ângela de Oliveira insistiu até que levou a cabo
o antigo sonho de ser professora. Continuar a viver em Ilha Grande
depois de formada foi, portanto, uma escolha pessoal dela, que
atualmente leciona na mesma escola na qual um dia estudou.
Ângela sabe que agora é a sua vez de inocular em seus meninos e
meninas aquele mesmo vírus bom da leitura que abriu para ela uma
imensa janela de oportunidades e novas perspectivas de vida, além
de uma possibilidade concreta de escrever seu próprio destino. Para
esses brasileiros e brasileiras, Ângela não se cansa de falar sobre sua
gratidão para os livros, que deram a ela um novo sentido para a sua
vida.
91
A que foi sem nunca ter sido
s bambambãs da leitura costumam dizer, com
razão, que para formar bons leitores é preciso reunir
certas condições. A primeira delas, evidentemente, é
que o sujeito saiba ler e escrever, e tenha habilidade em manejar as
palavras e entender o sentido do que lê.
Mas não é só.
Ajudará muito se esse indivíduo vive num lugar onde há livros,
jornais, revistas e, de tempos para cá, internet; como também uma
boa biblioteca e livrarias para que ele tenha acesso à informação e
ao conhecimento.
Se o candidato a leitor tiver a sorte de ter nascido numa família
leitora, onde livros podem ser encontrados em qualquer canto, suas
O
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  • 1.
  • 2. 1 Histórias de Gente Que Lê Galeno Amorim
  • 3. 2 Índice Prefácio Maria Antonieta Cunha .............................................................. 6 Prólogo Missionários da Leitura ................................................................ 8 Introdução Os livros não mudam o mundo ................................................ 11 Parte I Os livros mudam as pessoas. A sacola de Dona Jamila .......................................................... 22 Leitor de florestas e de mundo ............................................... 25 Morador das ruas e leitor ......................................................... 30 Os olhos de Dona Lydia .......................................................... 33 O menino do Desemboque ..................................................... 36
  • 4. 3 Amyr e o mar ............................................................................. 42 O livro dos livros ....................................................................... 46 O livreiro que não sabia ler....................................................... 50 Livro de “um reais” .................................................................... 55 A bola e o livro ............................................................................ 59 Lições de Dona Maria ................................................................ 63 O homem que não vendia os livros ........................................ 68 Do outro lado do muro ............................................................. 72 Ele é o cara! ................................................................................. 75 Marinheiro só .............................................................................. 78 Pequenos leitores do sisal .......................................................... 81 No profundo mar azul ............................................................... 86 A que foi sem nunca ter sido .................................................... 90 Parte II E as pessoas mudam o mundo. O livreiro do Alemão ................................................................. 94
  • 5. 4 Esmeralda cansada de guerra .................................................... 99 O zelador de livros ................................................................... 104 A Bibliojegue do sertão ........................................................... 108 Ler para o outro é um ato de amor ......................................... 113 Santo Antônio Casamenteiro ................................................. 117 O pescador de leitores ............................................................. 120 A biblioteca na roça .................................................................. 125 O semeador do Seridó ............................................................. 128 Operário em construção ......................................................... 132 Mães que amam demais ........................................................... 135 Entre livros e pneus ................................................................. 139 A encantadora de leitores ........................................................ 143 O pedreiro e os livros ............................................................... 147 João que virou juiz .................................................................... 153 Histórias que acolhem ............................................................. 155 O tapete mágico da Tia Aninha .............................................. 159 Sobre carnes e livros ................................................................ 163 Bibliotecárias não sabem disfarçar ......................................... 168
  • 7. 6 Prefácio e todas as pessoas que conhecem Galeno Amorim, acredito que nenhuma deixaria de identificar sua paixão maior: a causa da leitura, que, das mais variadas maneiras e pelos mais diferentes pontos do país, ele procura obstinadamente defender para todos os brasileiros! Porque, para ele – como para muita gente boa –, a leitura é mesmo um direito de todos, tão fundamental quanto a saúde, a habitação, o saneamento básico, a liberdade de expressão – por exemplo. Um direito, mas também uma esperança: “Os livros transformam pessoas, e pessoas transformam o mundo.” E, em muitas frentes, procura fazer chegar essa posição ao maior número possível de pessoas. D
  • 8. 7 Pois nessa busca de novas formas de propagá-la, Galeno resolveu reunir em um livro algumas histórias exemplares: apresenta-nos figuras brasileiras, que, nas mais diversas regiões do Brasil e nas mais distintas condições (sempre adversas), tiveram suas vidas modificadas pela descoberta da leitura (mais precisamente, do livro) e, a partir daí, conseguiram mudar a vida de alguém, ou de muita gente - transformados todos, também, em leitores. Várias das histórias e personagens apresentadas por Galeno são também do meu conhecimento, e atesto – embora desnecessário – a sua veracidade. São relatos comoventes, às vezes impressionantes, a maioria, de pessoas muito simples (à época dos fatos iniciais, pelo menos), com ações igualmente modestas, e que ganharão de imediato a admiração dos leitores, assim como têm o reconhecimento de suas comunidades. Que fiapo de luz, que traço especial terão em comum todas essas figuras? Acredito que é isto que espera o Galeno: que essas vitórias, aparentemente pequenas, se pensarmos nas dimensões e carências brasileiras, sejam o atestado de possibilidades, que ele quer ver multiplicadas. Da minha parte, é isso que também eu desejo que aconteça. Tenho a convicção de que estas histórias podem inspirar outras tantas, da mesma forma que a arte em si (e, portanto, a literatura lida pelas figuras desses relatos) pode ser inspiradora. Prefiro, no entanto,
  • 9. 8 relativizar a força da leitura (mais ainda, a força do livro), sempre possível, mas nem sempre exercida: a história da humanidade (inclusive a de artistas extraordinários) e a história do Brasil (a que se desenrola diante de nossos olhos assustados, por exemplo) mostram que homens “letrados e cultos” podem não se tornar melhores, nem mais conscientes, nem mais patriotas, pela leitura e pela arte. Imagino, por outro lado, que possa haver vida feliz, produtiva e sábia mesmo fora da leitura de material impresso, ou mesmo virtual. Pode ser mais difícil, pode funcionar mais em determinadas comunidades, pode fazer mais sentido para uns do que para outros, mas acredito que seja possível. Preciso ter também essa esperança. O que me parece justo afirmar é que, por si, a leitura não fará mal algum – a ninguém, e que poderá fazer um enorme bem – a todos, ou quase. Todas as lutas em favor da leitura são, portanto, muito importantes. Por isso, desejo fortemente que, tal como nestas histórias, este livro caia também em mãos de muitos leitores que tenham - quem sabe? – aquele mesmo fio de luz das suas personagens e que eles se sintam motivados a engrossar as fileiras do bom combate do nosso corajoso autor.
  • 10. 9 Missionários da Leitura Aos professores, bibliotecários, gestores, técnicos e demais pessoas que se colocam entre livros e leitores a fim de aproximá-los. inguém pode ser obrigado a ler, nem a escrever, a cantar ou a dançar. Tampouco deve ser obrigado a saber o significado das coisas todas da vida. Por que ler, acima de tudo, é um ato de liberdade: introspectivo, espontâneo, libertador. Por isso, livros nos fazem livres! Ninguém nasce sabendo ler. Como não se nasce sabendo escrever, cantar ou dançar. Também não se nasce sabendo pronunciar palavras ou apreciar um bom filme, teatro ou quadro. N
  • 11. 10 O certo é que ler – como tantas coisas na vida – não é um ato natural. Natural, isto sim, é respirar, comer e andar, se proteger do frio e do calor. É sentir medo e reagir. Natural é esse desejo intrínseco de, em algum tempo, ser feliz. Mas ler, não. Ler pede atitude, esforço, aprendizado – habilidade mesmo. Demanda oportunidade e investimento pessoal. E requer que se pratique, até que se tome gosto pela coisa – tal como se aprende a gostar de música boa, de jogar xadrez ou de admirar dribles geniais numa pelada de rua. Ler é coisa do espírito, que também pede certo esforço do corpo, boa vontade e dedicação, até que, um dia, torna-se absolutamente algo essencial, um alimento mesmo da alma. Não por outra razão cabe a toda a gente instigar esse namoro – que vira noivado e, depois, casório – entre livros e leitores, tal qual um Santo Antônio Casamenteiro dos dias de hoje. Um missionário a espalhar a boa nova do conhecimento pra tudo quanto é canto. Mas que isso seja feito com jeito, com delicadeza e com amor. Pois não há outro jeito de cultivar e cativar o bicho leitor. Esse que cresce e ganha corpo na medida da sustança das boas histórias, da sonoridade das palavras, do afeto que elas encerram. Da magia e da engenhosidade de quem cria e inventa o tempo todo. Tratemo-lo, pois, o bicho leitor, com carinho. Como a um filho que nasce, cresce e conquista a autonomia de voar.
  • 12. 11 Façamo-lo, pois, gostar dos livros como a criança gosta da flor, para que, seduzido e encantado, possa jamais ser curado dessa vontade irresistível de se deixar levar pela beleza das palavras e, assim, mergulhar fundo nesse oceano de ideias. Porque, para ele, o leitor, há um sentido especial em cada palavra impressa: aquilo a que se chama de a força mesma das coisas. Daí, a necessidade, danada, e jamais saciada, de se ter, sempre, à mão, uma página que seja pelo simples prazer de apalpar, de cheirar e sorver com os olhos tudo o que faz lembrar um livro. Ao aprender a decifrar os sinais, bebendo dessa fonte, descortinam-se os horizontes e descobre-se, enfim, o bom prazer de ler. Agora, um leitor de mundo, ele é capaz de aprender e apreender, de se reinventar o tempo todo. De compreender e interpretar cada coisa ao seu redor. E, ao ler pelos olhos do outro, de se tornar um sujeito melhor, tolerante e amoroso. Ao tomar para si o conhecimento universal e construir o seu próprio, o leitor, alarga a inteligência, supera o improvável e descobre a capacidade própria para o amor – fundamento elementar para se mudar o mundo, o de dentro e o de fora. Pois para quem, agora, já tem a sabedoria para ler o mundo, tudo é absolutamente possível!
  • 13. 12 Os livros não mudam o mundo “Os livros não mudam o mundo. Os livros mudam as pessoas. E as pessoas mudam o mundo.” a primeira vez em que ouvi alguém pronunciar o conjunto de frases acima, que me parecem traduzir, com precisão e uma clareza incrível, o papel que os livros exercem na vida de homens e mulheres na sociedade, sorri, discretamente. Afinal, aquela dúzia e meia de palavras sintetizavam, em boa medida, com objetividade extraordinária, centenas de páginas de consistentes reflexões a respeito do tema sobre as quais eu já me debruçara antes. N
  • 14. 13 Esse contentamento também era movido por ver a quem sua autoria era, naquele momento, atribuída: José Bento Monteiro Lobato – ele mesmo, autor que, mais de setenta anos após sua morte, continua a ser referência, e preferência, nacional. Nada de se estranhar, portanto, que o pai da boneca Emília, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia, Visconde de Sabugosa e Dona Benta, e de uma porção de invencionices do Brasil da primeira metade do século XX, pudesse ter trazido à luz uma síntese de pensamento tão definitiva sobre a função social dos livros para a humanidade. Já fora ele, Monteiro Lobato, o grande precursor da literatura infantil brasileira. Antes dele, só se via, por aqui, livros infantis com textos estrangeiros e, em geral, muito distantes da nossa cultura. Lobato foi responsável direto pelo surgimento, durante as décadas seguintes, de brilhantes gerações de escritores do gênero. Embora haja quem discorde, a ele também se deve o crédito pela invenção do mercado editorial tal qual se conhece hoje em dia. Isso graças às suas geniais sacadas como editor para aumentar as tiragens de suas publicações e para fazer com que os livros chegassem onde o povo letrado estava. Das prosaicas pharmácias às vendas, os armazéns de antigamente, predecessores dos megas e hipermercados da atualidade: qualquer canto deveria, segundo dizia, abrigar um ponto de venda de livros. Nada de espantoso, portanto, creditar a Lobato, venerado por seu papel incansável na defesa dos livros e da literatura do Brasil,
  • 15. 14 tamanho acerto e capacidade de concisão, e justo por algo pelo qual sempre batalhou. Não fora ele, afinal, que apregoara que “uma nação só se faz com homens e livros”? Mas qual não foi a minha surpresa ao, muito tempo depois, tomar conhecimento de que aquilo era, simplesmente, um erro terrível: — Isso não é Lobato nem aqui, nem na China... – tratou, de me explicar (gentilmente, a bem da verdade) um amigo pesquisador, anos mais da tarde. Nos anos seguintes, ouviria e leria, em muitas ocasiões, gentes de universidades, academias, editoras, livrarias e do governo darem, enfim, o devido crédito a alguém que, sem sombra de dúvida, faz por merecer todo e qualquer tipo de gratidão do povo brasileiro e dos amantes, em geral, da boa literatura: Mário Quintana, o genial poeta gaúcho. Ao que parecia, seria, mesmo, Quintana quem teria dito – com a simplicidade, sensibilidade e sabedoria de poeta – esta e uma porção de outros ditos e frases que, na era internet, têm sido propagados com espantosa rapidez. Graças às ferramentas modernas que permitem buscas incríveis em frações de segundo, podemos recorrer e utilizar, a todo instante, frases belas que costumam causar efeito imediato.
  • 16. 15 Quando, contudo, obediente e disciplinado, e desta vez também resignado, já me habituara com o novo – e, ao que tudo indicava, definitivo esclarecimento do senso comum em torno de tão importante questão – eis que seria, novamente, surpreendido por uma nova e, a essa altura, arrasadora errata: — Estão todos redondamente enganados – foi o que ouvi, aturdido. A nova e, sim, definitiva corrigenda viria, desta vez, amparada por alguma base científica. Pesquisadores, leitores e admiradores do poeta gaúcho chegaram a criar blogs e comunidades virtuais, na internet, para alertar contra a enxurrada de frases e pensamentos indevidamente atribuídos a Quintana. Nada contra ele, faziam questão de explicar. Aliás, muito pelo contrário: — O grande problema é que corremos o risco de levar os jovens e as novas gerações a conhecer, e até a aprender a admirar, um Quintana que, simplesmente, não existe – argumenta um deles, com boa dose de razão. Uma comunidade criada no finado site de relacionamentos Orkut, precursor do atual Facebook, explicava, já no próprio título, ao que viera: “O verdadeiro Mário Quintana”. A página se propunha, com relativo sucesso para a época, “a pesquisar e a desmistificar, com a ajuda de colaboradores voluntários, o que não consta da obra conhecida do poeta”, dando “nomes aos verdadeiros bois, no caso,
  • 17. 16 os autores de versos e pensamentos creditados indevidamente ao gaúcho”. Quem se debruçou sobre toda a obra de Quintana (que pode ser encontrada em Poesia Completa, da Nova Aguilar) ou leu as suas entrevistas ou mesmo o livro Ora Bolas, que Juarez Fonseca escreveu sobre ele, jamais encontrou a dita cuja. Uma pesquisadora dá o veredito sobre a citação: — Até hoje não foi possível identificar a autoria por absoluta ausência de fonte. Mas uma coisa é certa: do Quintana é que não é... Há especialistas que atribuem a autoria da frase ao senador romano Caio Graco, que viveu entre 157 e 121 antes de Cristo. Eles sustentam que a frase teria sido traduzida inúmeras vezes até ganhar o seu formato atual, agora com uma referência explícita aos livros. Desde então, tenho preferido imaginar que qualquer um dos três – ou, quem sabe, todos eles, cada qual a seu tempo – pode, muito bem, ter dito isso ou algo parecido, tamanha a força e a capacidade que essas três pequenas frases têm para expressar tão poderosa ideia sobre esse objeto conhecido como livro e a sua vocação transformadora, e, assim, perigosa. Sobretudo se, depois de se apropriar do seu conteúdo, dá-se dentro desse leitor um rebuliço interno de inquietações e de novas percepções, formulações e atitudes.
  • 18. 17 Tenho ido a diversas localidades conversar com gente atrás de boas histórias de leitores. A primeira impressão que dá é que as práticas sociais da leitura têm propiciado, de fato, microrrevoluções por toda parte. Tão íntimas que, por vezes, nem dá para percebê-las. Mas também outras que se materializam das mais diversas formas e promovem pequenas, porém vigorosas, modificações no cotidiano e no próprio entorno social desses leitores. E, cada vez que um só leitor, que seja, opera em si alguma mudança mínima – e esta se soma a tantas outras que se dão, simultaneamente, nos mais diferentes rincões do planeta –, ele move uma força poderosa, capaz de tornar o mundo um lugar melhor para se viver. Afinal, desde que Gutemberg inventou a prensa que deu origem ao livro, tal qual o conhecemos e admiramos hoje, – este que é considerado a maior invenção do último milênio – não são poucas as histórias de personalidades que, sendo leitores e tendo lido qualquer uma das dezenas de milhões de obras já publicadas pela humanidade, acabariam por protagonizar feitos importantes que causaram massivas transformações na sociedade. Se Quintana, Lobato ou Caio Graco disseram, ou não, tais palavras mágicas sobre o poder dos livros nem é o mais importante. Pode, muito bem, ter saído da boca de uma pessoa qualquer, às margens da história, e, mesmo assim, ter chegado ao nosso tempo, de forma tão imponente, a ponto de ter influenciado tantas gerações. Prefiro crer que todos possam, sim, ter dito!
  • 19. 18 E, mais do que isso, que outras tantas pessoas, em diferentes épocas da história humana, tenham se importado e levado adiante a poderosa força dessa ideia. Assim como eu e você, por exemplo, podemos estar, agora, fazendo, ou já fizemos, ou ainda haveremos de fazer no futuro. O que você vai ler neste livro é uma pequena coleção de pequenas histórias de pequenos leitores que são, na verdade, enormes. Após tantas buscas, pesquisas e conversas, a conclusão é que, de fato, os livros, por si só, não têm qualquer condição de mudar as coisas e o mundo. Talvez, ainda, os livros venham a ocupar espaço ligeiramente maior no tempo livre das pessoas, propiciando, assim, conhecimento, melhoramento pessoal, lazer e entretenimento cultural de qualidade. Mas, a julgar pelas histórias colhidas em diferentes locais ao longo dos últimos anos, vivenciadas por homens e mulheres, negros e pobres, crianças e velhos, os livros, com suas histórias e personagens formidáveis, têm sido capazes de provocar pequenas grandes mudanças em cada um de nós. E, então, como nos têm ensinado Quintana, ou Lobato, ou Graco (ou, então, nenhum deles!), serão essas pessoas – que podem atender por nomes como Evando, Otávio ou Esmeralda, personagens deste livro – que encontramos em nosso dia a dia, num açougue, numa
  • 20. 19 borracharia ou numa viagem de barco pelo interior da Amazônia, que seguirão mudando, em tempo real, o mundo em que vivemos. *** Nas páginas que se seguem, eu vou defender as habilidades de leitura e de escrita como ferramentas ímpares para o desenvolvimento individual das pessoas e a transformação da sociedade ao seu redor. Por vezes, pode ficar a impressão de que parece não existir vida inteligente e salvação para a humanidade fora do cultura letrada. Não é assim. O certo é que a leitura e a escrita são formas fundamentais, ou até mesmo superiores, para apoiar e estimular nosso crescimento íntimo, bem como as mudanças no nosso dia a dia do ponto de vista da vida social. E, ainda, as estruturas que lhe dão forma e ritmo. Isso tudo, claro, tendo como referência as formas de sociedade que conformam – mais como regra do que exceção – o mundo como conhecemos atualmente Quando se fala da leitura e da escrita, se fala de capacidades de desvendar códigos e de se manifestar a partir desses sistemas codificados, e, mais do que isso, de capacidades de análise, de reflexão e de sentimento, treinadas pelo contato mais profundo com a literatura. A dignidade que todo ser humano tem por ser humano – por respirar, por se mover, por se alimentar, por sentir, por pensar, por
  • 21. 20 se expressar, por trabalhar, por se emocionar, por sofrer, por sonhar – independe de se saber ler e escrever. Só que o analfabetismo e a incapacidade de uma leitura mais aprofundada criam legiões de excluídos, em locais espalhados ao redor do globo ou áreas específicas de um mesmo país, de uma mesma região, de uma mesma cidade. Assim, é inegável que o domínio sobre a palavra escrita é, sim, uma porta de entrada para um mundo de direitos. A mesma estrutura de poder que não garante uma educação de qualidade para todos, cria oportunidades ou dificuldades distintas àqueles que dominam ou não a palavra escrita e todo o conhecimento formal por ela delimitado. A marginalização dessas pessoas devido à falta de familiaridade com as letras costuma se combinar a outras, tais como classe, raça, gênero, e, mediante às diferentes combinações desses e outros traços, são punidos de formas diferentes. Mas, além da sua dignidade pessoal inerente à experiência humana, a sensibilidade, o conhecimento e a faculdade de expressão, que distinguem alguns como brilhantes, não dependem das habilidades de leitura e escrita. Aquela coisa mágica que torna certos indivíduos grandes – não exatamente aquelas grandes personalidades da história, mas os que conseguem brilhar na sua vida, não importa qual a sua ocupação – nasce em si e independe da leitura e da escrita.
  • 22. 21 O que há de mais mágico, e de mais humano, no ser humano sãos as suas capacidades de sentir, de pensar e de se comunicar. Não é a leitura, não é a escrita. Só que, além de impulsionarem oportunidades e evitarem punições em um mundo seletivo, injusto e cruel, essas habilidades e, especialmente, a leitura e escrita de literatura aproximam as pessoas, por meio da comunicação, de todo o pensar e o sentir que já foram registrados, preservados e que se encontram disponíveis aos potenciais leitores. Aproxima as pessoas de pessoas. A leitura e a escrita trazem em si uma enorme possibilidade de tornar alguém mais humano, na medida em que o colocam para partilhar da humanidade dos outros e, com os outros, compartilhar a sua humanidade. Somada a essa tarefa de mediação e aproximação exercida pela palavra escrita, o consumo de arte, de uma forma geral, e, em especial, da literatura tem a tarefa de promover um tipo de nivelação da sociedade. Enquanto, para alguns, o brilho da sensibilidade e do conhecimento se apresentam de forma natural, para outros, a literatura pode aproximá-los de toda reflexão que não conseguiriam alcançar sem a experiência da leitura.
  • 23. 22 Parte I Os livros mudam as pessoas.
  • 24. 23 A sacola da Dona Jamila ona Jamila já passou dos oitenta, mas conserva uma vitalidade, física e intelectual, impressionante. Uma ou duas vezes por mês, ela sai, cedo, de casa e se dirige ao centro da cidade. Lá chegando, entra direto no velho e imponente casarão que, no passado, serviu de moradia para alguns dos mais poderosos coronéis do café da Velha República. Ela repete, há anos, esse mesmo ritual. Vasculha, cuidadosamente, entre as prateleiras envelhecidas pelo tempo em busca de novidades. Ela só sai de lá quando a sacola estiver cheia. Então, sorrirá aliviada: seu mês está garantido! Ou, como costuma ela mesma dizer, sua vida está, por mais algum tempo, salva. D
  • 25. 24 O que será que a mulher idosa, de cabelos esbranquiçados e de aparência frágil, uma decorrência da idade, carrega na sacola com tamanho apego? — Livros! – ela responde. São quatro ou cinco deles que, invariavelmente, Dona Jamila toma emprestado a cada vez que vai à Biblioteca Altino Arantes, em frente à praça principal da cidade. Mais tarde, quando chegar em casa, vai abrir, calmamente, cada um deles e sorver, primeiro, o que vai impresso na capa e na contracapa. Depois, fará um breve passeio pelas orelhas da brochura e dará uma espiada no prefácio para, então, e, finalmente, mergulhar de cabeça numa nova viagem. Esse ritual é um verdadeiro roteiro de prazer para a mulher. A vista cansada nunca é desculpa. Professora aposentada, Dona Jamila lê quatro horas todos os dias. Em média, é um livro novo por semana. Ou quatro por mês. Ou, ainda, em torno de cinquenta a cada ano. Chova ou faça sol, é sempre assim. Dona Jamila adora os livros de ficção, e, especialmente, as novelas policiais. Nos dias em que vai à biblioteca, ela mais parece uma adolescente revirando as prateleiras atrás de novidades literárias. A mulher trabalhou, boa parte da sua vida, como assistente social, inicialmente em São Paulo, capital, e, mais tarde, no interior do
  • 26. 25 Estado. Embora nunca tenha viajado para fora do país, descreve com detalhes algumas das principais cidades do mundo. — Já estive em Paris, Roma, Londres... – ela anota mentalmente, enquanto relembra curiosidades sobre ruas e lugares das metrópoles mais charmosas do planeta que viu a partir das páginas da literatura. — Minha vida jamais seria a mesma sem os livros – ela assegura, com convicção. A história de Dona Jamila é uma história simples. De uma pessoa comum, “Sem nada demais”, conforme ela própria diz. Mas é a história de alguém que vive a buscar, todo santo dia, em cada nova aventura literária em que se mete, na sua sala de estar ou na calmaria do seu quarto, conhecimento, prazer e novos sentidos para a vida. Rumo aos noventa, a velha professora continua a ensinar uma lição diária sobre o amor pelos livros num país que ainda carece de gente que leia ou que leia mais. A experiência da senhora, é, de fato, algo alvissareiro, exemplo de um bom rumo para o Brasil trilhar. Diante da legião de leitoras de idade avançada como Dona Jamila, que se vê cada vez mais pelos quatro cantos do País, e da força – para os menos atentos – invisível que elas transmitem, não dá para permanecer indiferente.
  • 27. 26 Leitor de florestas e de mundo ilho e neto de ribeirinhos, Tenório passou a infância entre cipoais e banhos de rio na Costa do Cabaleana, lugarejo ermo escondido às margens do Rio Solimões, perto de São Tomé, onde nasceu. Um dos povoados que formam o município de Manacapuru, no interior da selva amazônica, aquela era uma localidade abandonada à própria sorte, onde escola era um luxo que jamais existira. Quem quisesse aprender o bê-á-bá para ser, como se dizia por lá, alguém na vida; que se virasse por conta própria. Com sorte, talvez encontrasse uma boa alma que se dispusesse a ensinar o pouco de escrita e leitura que sabia. Nesse caso, a sala de aula podia ser F
  • 28. 27 improvisada num canto qualquer, pois a falta de espaço não era, propriamente, um problema por ali. Não por outra razão, a mãe de Tenorinho levou um susto danado naquele fim de tarde, ao voltar do trabalho no campo de juta. Ela ficara, justificadamente, surpreendida diante da cena insólita: e não é que seu menino, que jamais botara os pés numa escola, estava lendo de verdade? Devota e temente a Deus que era, a mulher sequer teve tempo para tentar compreender o milagre, já que Tenorinho desembestara a falar e a exibir os seus novos prodígios diante da mãe, estupefata. Parecia ser mais um daqueles mistérios inexplicáveis da floresta, onde a sobrevivência, por si só, já é uma grande façanha, tamanhas as adversidades do cotidiano. O fato é que o moleque agora sabia ler. Aprendera, sabe-se lá como, a juntar letras e a formar palavras. Os poucos entendidos do lugar garantiam que aquela mistureba toda de rabiscos, feitos com um toco de lápis sobre um pedaço de papel puído, fazia, sim, algum sentido. — Bê... Ah... BÁ! – Tenorinho soletrou, com pompa e todo cheio de si. Era uma sílaba, alguém se apressou a explicar. Enfileiradas umas às outras, com certa parcimônia, poderiam constituir palavras ou frases inteiras. Um espanto!
  • 29. 28 Era assim, tratou-se de esclarecer, que as pessoas estudadas da cidade transpunham para o papel suas ideias, o conhecimento que recebiam de seus ancestrais e tudo aquilo que era dito com a boca ou sentido com o coração. Tenorinho enchia o peito: — BA – NA – NEI – RA! À medida que aquele som gutural saía de suas entranhas, parecia ganhar forma, diante de seus olhinhos, a imagem exuberante da planta tropical, com seus cachos amarelos dependurados. O menino Tenório, agora, conseguia ligar nomes e coisas e ampliava, mais e mais, o seu universo pessoal. Anotava, num caderninho, as novas palavras que aprendia e cantarolava, repetidas vezes, para si mesmo até conseguir guardá-las. Cada descoberta era um novo troféu para a sua coleção. A bem da verdade, Tenorinho havia tido, sim, um mestre. Fora um velho tio, que mal conseguia ler e escrever o próprio nome. Mas, como em terra de cego quem tem um olho é rei, dava bem para o gasto. No entanto, danado e ligeiro como só ele, Tenorinho havia, em pouco tempo, aprendido quase todas as palavras disponíveis. Como seguiria aprendendo? Foi quando alguém apareceu com uma bíblia, o livro mais lido do mundo e, por meio do qual, muita gente, como Tenorinho, aprendera a ler. Assim que se alfabetizou, o menino passou a ler, todos os dias, os versículos e salmos para a mãe, que era analfabeta.
  • 30. 29 Ele não sabia, mas naquele singelo gesto de amor começava a ser forjado um eloquente orador. O menino da selva crescia. Por dentro e por fora. Mas as dificuldades não tardaram a surgir. A primeira delas: não havia outros livros no vilarejo. Sem escola, biblioteca, livraria ou uma banca de jornal que fosse, como ele poderia continuar aprendendo? A mãe entendeu que a única maneira de propiciar ao filho a oportunidade que ela própria não tivera – arrumar um bom emprego na cidade grande – seria se mudar para a capital. Tomou o filho pela mão e subiu num barco rumo a Manaus. Era uma mulher de poucas, porém sábias palavras: — Pobre só tem chance de ser alguém na vida se sabe ler e escrever – ela sentenciou, resoluta, antes de partirem. A mudança para a capital do Amazonas, no entanto, não fora suficiente para deixar, de vez, os tempos difíceis para trás. As dificuldades só faziam crescer. O dinheiro mal dava para alimentar as bocas da casa, quanto mais para comprar livros. Mas Tenório não se fazia de rogado. Varava noites, em claro, até decorar trechos inteiros das cartilhas emprestadas dos amigos. Era esse o único jeito de ter acesso ao mundo dos livros e da cultura letrada. O tempo passou e o meninote cresceu. À custa de muita leitura sob a luz de lamparina, Tenório entrou para o curso de Direito da
  • 31. 30 Universidade Federal do Amazonas. Concluiu o curso e, como almejava trabalhar com algo de que gostasse muito, acabou indo fazer também o curso de Letras. — Eu estava perdidamente apaixonado pelas palavras... – lembra o, hoje, poeta e professor universitário Tenório Telles, autor de críticas e ensaios, além de editor de livros. No coração da Amazônia, ativista cultural dos bons, ele guarda na ponta da língua trechos inteiros dos livros que decorava. Assim que sobrou o primeiro dinheiro, ele cuidou de comprar vários deles, para poder exibir em lugar de destaque da estante. — São eles a prova viva do poder dos livros de mudar a vida das pessoas. Porque são essas pessoas, depois, que vão mudar o mundo – apregoa doutor Tenório, com a autoridade que a vida e os livros lhe deram.
  • 32. 31 Morador das ruas e leitor ndereço fixo ele não tem. Trabalha, come, dorme e vive nas ruas. Só não admite que o tratem como mendigo. Mesmo porque, diz, ganha a vida com o suor de seu trabalho como vendedor de pipoca e biscoito nas esquinas da grande cidade. No fim da tarde, separa uma parte da féria do dia, algo em torno de cinco reais, para pagar pelo banho e comida. Sem um teto e um endereço fixo para morar, Márcio costuma dizer que é, de certo modo, uma dessas pessoas que passa todo o dia e dorme no próprio local de trabalho. Pode passar uma noite sob uma marquise ou um viaduto, ou, mesmo, em uma calçada ou praça, dependendo da conveniência do dia. A localidade muda, mas a moradia, em si, é sempre a mesma: o carrinho de mão que ele E
  • 33. 32 próprio construiu com pedaços de madeira e bugigangas encontradas nas ruas. Para quem o vê puxando seu carrinho-dormitório pelas ruas do Rio de Janeiro, é impossível notar qualquer diferença entre Márcio Pereira dos Santos, o Gaúcho, e os moradores de rua que são vistos perambulando pelas cidades brasileiras de Norte a Sul do País. Como qualquer um deles, o rapaz também enfrenta o frio, a chuva, a violência e o julgamento público, independentemente dos motivos que possam ter levado cada um deles a essa situação. Márcio trocou, há três anos, a vida na casa dos pais no Rio Grande do Sul pelas ruas do Rio. Diz que foi uma escolha. Para tentar manter um pouco de sanidade, recorre, diariamente, à leitura. Lê jornais e revistas usados e livros, de ficção aos ensaios sobre política e sociologia. Também é leitor assíduo da bíblia, na qual diz buscar a força necessária para levar sua vida adiante. Por um bom tempo, Márcio, um rapaz bem apessoado de seus 34 anos, lia tão somente para se entreter e fazer o tempo passar, mas, desde que resgatou da lata de lixo a obra Biblioteca de Sociologia Geral, de Nello Andreoti Neto, passou a se interessar mais pelos temas sociais. Ele gosta de ler e, então, analisar e refletir sobre o conteúdo do que leu, fazendo um cruzamento das leituras com situações pelas quais passou e suas escolhas pessoais. Ultimamente, tem pensado muito, por exemplo, sobre o funcionamento das políticas públicas destinadas aos moradores de rua.
  • 34. 33 — É importante confrontar suas opiniões com as do autor do livro, pois sempre se aprende com isso – ele conclui. Mas não é só nisso que os livros têm mexido com a vida de Márcio. Após uma dessas leituras, ele percebeu que também é um cidadão, com direitos e deveres, como qualquer outro. Ao ler uma notícia sobre o Bolsa Família, um direito de todo cidadão que vive abaixo da linha da pobreza, ele foi atrás e obteve o auxílio. Aonde vai, carrega sempre junto o título de eleitor e sua cédula de identidade. Também possui conta bancária, cartão de crédito e conta de e-mail, que acessa de alguma lan house. Márcio, um admirador confesso de Monteiro Lobato, diz que também encontra nos livros uma forma de serenidade: — Ler me faz relaxar a mente.
  • 35. 34 Os olhos de Dona Lydia ona Lydia sempre teve uma queda pelas palavras. Como não sabia ler, passava horas ouvindo e tentando distinguir, pela sonoridade, o sentido e o significado delas. Analfabeta até a idade madura, Dona Lydia viveu a maior parte de sua vida apartada da forma grafada e impressa das palavras. Estas que se materializam e vêm à luz quando se juntam letras, esses sinais que, se bem empregados, dão vitalidade e perenidade a frases, ideias e pensamentos. Embora nunca tenha se dado conta disso, Dona Lydia sempre foi uma poetisa de mão cheia. Morando a vida toda num povoado caiçara no litoral de São Paulo, ela buscava no mar a inspiração para D
  • 36. 35 expressar, do seu jeito, como enxergava e sentia o mundo e as coisas ao seu redor. Podia ser de um acontecimento simples do seu cotidiano a algo subjetivo que a deixava emocionada, como a beleza diária daquele cenário composto de montanhas, céu e mar. Para não deixar se perder a magia daqueles instantes, a mulher criava e armazenava os versos na cabeça. Como Deus costuma escrever certo por linhas tortas, o destino fez com que ela sentisse na pele, amargamente, o quanto a falta de intimidade com a palavra escrita pode afetar, negativamente, a vida das pessoas. Mas, por outro lado, Dona Lydia foi sacudida para a percepção do quanto a leitura e a escrita ainda poderiam modificar a vida dela e de outras pessoas. Já na entrada da velhice, Dona Lydia se viu na obrigação de regularizar as terras herdadas do avô, entre Peruíbe e Itanhaém. Eram o único bem material dela e da sua família nesta vida. Foi onde toda a parentela nasceu, cresceu e de onde, durante décadas a fio, tirou o sustento. Mas o advogado que foi contratado para solucionar o imbróglio se aproveitou do fato de ela não saber ler para ficar com metade da propriedade – único ganha-pão da família, que sobrevivia do cultivo de milho, batata e melancia. Depois disso, a mulher, resoluta, tomou uma decisão. Iria para a escola e nunca mais seria enganada por não saber ler. Mas Dona Lydia, além de aprender a ler e a escrever, encantou-se com os livros
  • 37. 36 e com os estudos. Apaixonou-se pelos versos de Carlos Drummond de Andrade e Castro Alves e, aos 75 anos, resolveu fazer faculdade. Dez anos depois, Dona Lydia S. Gonçalves – como passou a grafar o próprio nome – tornou-se escritora, tendo publicado vários livros com os seus poemas e os aforismos que colecionou por toda a vida. Com os vários diplomas numa parede e uma farta coleção de livros nas outras, é ela agora que ensina, do alto da autoridade do seu próprio exemplo de vida: — Aprender é como abrir os olhos. E nunca é tarde para isso!
  • 38. 37 O menino do Desemboque ascido menino pobre no Desemboque, interior de Minas Gerais, Ariclenes sonhava, desde pequeno, com a cidade grande. Queria ser famoso e, um dia, conhecer as cantoras do rádio, ícones daquele Brasil rural da primeira metade do século XX. Vivia suspirando pelos cantos só de pensar em namorar alguma delas. Acontece que Ariclenes, ou Ari, vivia num lugarejo longínquo, em meio a um punhado de vivas almas, no coração perdido do Brasil. Por mais que tentasse pensar numa saída, não lhe ocorria nada tão genial que pudesse, enfim, fazê-lo, um dia, chegar lá. N
  • 39. 38 Enquanto sua sorte grande não chegava, Ari ajudava o pai, boiadeiro, na lida com o gado. Para faturar uns trocos, ele vendia fotos da mãe, que era artista de circo. Assim seguia o menino tocando sua vidinha, que dizia, ser sem eira nem beira. Mas, um dia, Ari tomou coragem, subiu na carroceria de um caminhão e seguiu no rumo de São Paulo. Estava firmemente decidido a cair na estrada em busca do seu Eldorado. No meio do caminho, contudo, o menino apeou da condução. Nunca tinha ouvido falar daquele lugar onde estava. Se ainda não era aquela a metrópole com a qual tanto sonhara, ele, ao menos, poderia, ali, ir se acostumando, aos poucos, com a vida de cidade grande. Ribeirão Preto ficava bem no meio do seu caminho para a capital. Com os seus cabarés, teatros, radionovelas e uma vida noturna movimentada até demais para o garoto caipira recém-chegado do Desemboque, no Triângulo Mineiro, bem que podia servir como experiência e, ainda, um trampolim para um salto na vida. Resolveu ficar uns tempos por lá. Na esteira da derrocada dos barões do café, a cidade vivia novo surto de prosperidade. A industrialização nascente e os novos ricos, daqueles tempos de mudança do Brasil rural para o Brasil urbano, dominavam o cenário político e econômico da cidade.
  • 40. 39 Ari, um frangote de não mais do que dezesseis anos, foi morar numa pensão e, logo, arrumou ocupação. Empregou-se como carregador numa loja de materiais de construção. Lá, no embalo do progresso daqueles anos 30, os canteiros de obras pipocavam por toda parte e, com isso, punham mais mercadoria na cacunda do rapaz. Por isso, foi uma benção aquele santo dia em que os livros entraram na vida dele. Foi tudo por acaso. Ari só queria mesmo dar uma escapadela do sol fatigante que fazia a carga sobre seus ombros magricelas parecer pesar toneladas. Ao passar diante daquele casarão majestoso, de frente para a praça central da cidade, o rapaz empacou. Pessoas que entravam e saíam chamaram a sua atenção para aquele lugar que parecia ser um espaço público. Sem muito pudor, ele ajeitou no chão, calmamente, o vaso sanitário que trazia sobre as costas. Só deu uma olhadela para os lados para se certificar de que ninguém o espiava para dedurá-lo ao patrão e entrou. Quase diante do Theatro Pedro II, majestosa casa de ópera daquela terra de coronéis, o velho Solar dos Junqueira já não era o mesmo. Em vez das romarias de líderes políticos e de apadrinhados atrás dos favores dos barões do café, no casarão, agora, funcionava uma... biblioteca. Ele levou um baita susto. Mas, já que estava lá dentro mesmo, Ari resolveu permanecer. Afinal, pior do que a carga pesada e do sol escaldante que o aguardavam do lado de fora é que não podia ser.
  • 41. 40 Aquela seria, anos mais tarde ele diria, a mais sábia decisão de sua vida. No início, precisou controlar o pavor que passou a tomar conta de si. Tentava adivinhar quem seriam aquelas criaturas bem vestidas, totalmente estranhas a sua vida roceira. Circulavam, com desenvoltura, entre as estantes, poltronas e as largas mesas em estilo colonial. Talvez fossem, ele deduziu, poetas, professores ou alunos do Ginásio do Estado – que era uma espécie de chave do céu para os rapazes e moças que, na transição de uma monocultura cafeeira para uma economia mais industrializada, aspiravam por ascensão social. Se quisesse, portanto, permanecer mais tempo no local, misturado aos leitores intelectuais, teria ao menos que disfarçar. Pegou o primeiro livro à sua frente e folheou algumas páginas, mas, logo, fechou e o colocou sobre a mesa escura. Voltou o olhar para a capa do livro e o título impresso em letras garrafais chamou a sua atenção: Grandes Esperanças. O autor era um certo Charles Dickens, um famoso desconhecido para o garoto do Desemboque. Decidido que estava a parecer, ao menos aos olhos dos que ali estavam, um leitor de verdade, tinha que se esforçar mais. Num gesto largo e pausado, sentiu-se no meio de um palco no circo, vivendo a vida de outro personagem, como tantas vezes sua mãe fizera. Olhou, atentamente, as letras miúdas, franziu a testa e fingiu concentração. Só conseguiu relaxar minutos mais tarde, quando, ao
  • 42. 41 tatear uma vez mais a brochura e, finalmente, abri-la, deixou-se levar pela narrativa vibrante. Ao contrário do que esperava, sorvera com certo gosto as páginas iniciais. Aventurou-se por mais algumas e, sem que se desse conta, fora, repentinamente, abduzido por aquela história, e totalmente absorto pela leitura. Já não conseguia mais desgrudar os olhos do livro. E tampouco se preocupava em disfarçar; agora, já devorava uma página após a outra, e tudo, num fôlego só, vivenciando um terrível conflito íntimo. Ao mesmo tempo em que desejava, ardentemente, chegar à última página do livro, já sofria com a possibilidade de fim daquela história. Ari, definitivamente, fora fisgado pelos livros. Daquele dia em diante, a literatura nunca mais sairia de sua vida. O moço estava sempre com um livro nas mãos – eles seriam, por sinal, uma companhia constante na vida do caipira recém-chegado à cidade. Sua sensação era que, finalmente, encontrara a chave para uma vida melhor que tanto procurara em sua vida. Em seu primeiro teste para locutor, já em São Paulo, Ariclenes tropeçou no sotaque caipira. Mas não desistiu, arrumou um emprego de contínuo na Rádio Difusora e seguiu adiante. Logo depois, foi promovido a sonoplasta. Na primeira oportunidade, conseguiu um papel para uma ponta numa radionovela. Nunca mais parou.
  • 43. 42 Meio século depois, e agora famoso, sob o pseudônimo de Lima Duarte, um dos maiores nomes da dramaturgia brasileira de todos os tempos (afinal, como ele dizia, Ariclenes Venâncio não era nome de artista que se prezasse), o menino do Desemboque está mais convencido do que nunca que foram os livros a sua tábua da salvação. — Antes dos livros entrarem na minha vida – ele se diverte, com o sotaque ainda inconfundível – eu não passava era de um anarfa...
  • 44. 43 Amyr e o mar mbora vivesse não muito longe do Atlântico, Amyr morria de medo do mar. Era um trauma de infância. Ainda pequeno, estava com o pai e os irmãos na praia quando foi derrubado por uma onda forte, algo que acontece com, basicamente, todo mundo que vai à praia quando criança. Porém, o que em alguns resvalam, em outros fere fundo. O caso é que, mesmo adulto, ele teve muitas dificuldades para superar aquilo. Por isso, arriscar-se além da beira-mar não era, exatamente, sua diversão predileta. Quando terminou a faculdade de economia, Amyr optou por fincar mais os pés em terra firme, tomando a decisão de administrar a E
  • 45. 44 fazenda da família e lidar com gado e leite. Tudo que desejava era ter um chão seguro e palpável. Mas os livros fariam esse Amyr, já adulto e recém-saído da faculdade, a reaprender a gostar do mar, rendendo-se à possibilidade infindável de aventuras oferecida tanto pela imensidão da literatura quanto a dos oceanos. As histórias fascinantes sobre marujos, navios e ilhas perdidas ajudaram a trazer de volta aquele menino que se assustara com as ondas. Uma dessas histórias que o encantaram foi A Expedição Kon-Tiki, do antropólogo norueguês Thor Heyerdahl, que navegou do Peru à Polinésia, numa jangada construída por nativos, para provar que civilizações sul-americanas podiam muito bem ter cruzado mares para povoar as ilhas do Pacífico. Também ficou fascinado pelas aventuras de O Último Lugar da Terra, de Roland Huntford, sobre a disputa, no século passado, entre exploradores ingleses e noruegueses pelo Polo Sul. E se maravilhou com os poemas do poeta Fernando Pessoa, um de seus prediletos, que vivia a soprar em seu ouvido que, sim, navegar era preciso. Mas o que o faria voltar de corpo e alma para o mar, que não desistira dele, foi O Grande Inverno, escrito por um casal de aventureiros que ele conhecera em uma de suas férias em Parati. Sally e Jérôme Poncet viviam uma vida modesta e sem grandes solavancos num barco velho e enferrujado, no qual haviam
  • 46. 45 compartido uma inédita viagem ao território desconhecido e gelado da Antártica. A história nem era tão espetacular assim e, de certo modo, até desmistificava um pouco a ideia de grandes epopeias vivenciadas por aventureiros em alto-mar. Era tão somente um singelo, porém apaixonado e poético relato sobre a experiência do casal francês. Durante a viagem, Sally engravidou em pleno inverno polar e decidiu ter o filho lá mesmo, na então desabitada e inóspita Geórgia do Sul. Ao chegar à última página, Amyr sabia exatamente o que faria da vida dali em diante: seria um navegador. Ele começou a se preparar lendo mais relatos de navegação e manuais, e passou a se dedicar mais aos treinos da sua equipe de remo do Espéria, clube da elite paulistana. O passo seguinte foi comprar uma canoa e, em seguida, um barco a remo. Com o tempo, passou a construir os próprios barcos. Não tardou para Amyr Khan Klink, filho de um imigrante libanês e uma artista plástica sueca, tornar-se um dos grandes heróis nacionais dos nossos tempos. Sua primeira grande proeza foi atravessar o litoral brasileiro numa pequena canoa. Em seguida, cruzou, solitário, desde a África, o Oceano Atlântico a remo. Depois disso, circunavegou o globo, perfazendo mais de 400 mil quilômetros nos mares.
  • 47. 46 Bom leitor e excelente contador de histórias, Amyr aproveita, entre uma e outra aventura, para escrever os próprios livros. Assim nasceu Cem Dias entre o Céu e o Mar, um deles, que já vendeu meio milhão de cópias. Cada vez que ele vai se lançar numa nova aventura, Amyr Klink se planeja bem e, antes de zarpar, toma todas as providências e precauções. Como é indicado nesses casos, leva só o essencial para suas temporadas sozinho em alto mar – sendo que algumas podem durar mais de ano. Algo que não pode faltar na sua listinha de prioridades: os livros. Numa das viagens, Amyr carregou nada menos do que meia tonelada deles. Afinal, diz Amyr, fazendo troça do trauma que o afastou dos mares, não fossem os livros ele estaria hoje com cracas nas canelas de tanto andar à beira-mar. Foram os livros, ele assegura, que deram um sentido novo para a sua vida.
  • 48. 47 O livro dos livros ma é Maria das Graças. Outra é Maria Augusta. A terceira delas atende pelo nome de Joanice. Todas elas estão com os filhos criados e frequentam a mesma igreja na periferia de Belo Horizonte, a capital mineira. Tal como as outras mulheres da mesma faixa etária com quem elas convivem no dia a dia, as três levam, mesmo em uma grande cidade, uma vida pacata. Também em comum entre as três há o fato de que, só agora, já na idade madura, é que estão tendo, pela primeira vez na vida, contato com as letras e com os livros. As duas Marias mais Joanice se conheceram lá mesmo, na igreja do bairro. Apesar de trajetórias de vida distintas, as três mulheres partilham, atualmente, de um mesmo sonho: elas estão ansiosas para U
  • 49. 48 conseguir ler o seu primeiro livro, o primeiro desde que se conhecem por gente. Mas, para elas, não vale um livro qualquer. As três foram fisgadas, a essa altura da vida, para frequentar a escola de jovens e adultos por causa do sonho por elas compartilhado de conseguirem, sozinhas, ler a bíblia. Até então, só tomavam conhecimento das belas passagens do Evangelho, que tanto faziam bem para seu estado de espírito, durante as preleções. A intenção delas, desde o início, era aprender a ler para, assim, tentar abrir um canal direto com Deus e, com isso, receber a palavra diretamente, a qualquer hora do dia ou da noite e, sobretudo, em horas de necessidade. Dona Joanice Gomes de Oliveira, 62 anos, já se dá por contente se, um dia, conseguir ler, sozinha, um salmo inteiro. Antes de começar a ir à escola, ela chegava a decorar trechos inteiros da bíblia, para poder recorrer nas horas de precisão. Dona Joanice já foi cozinheira, faxineira, lavadeira e servente, entre outras coisas. Ela criou cinco filhos, dois dos quais foram adotados, todos os cinco alfabetizados, e garante que, agora, não desperdiçará a oportunidade de se alfabetizar e ler, ela própria, os livros que desejar. A história dela não é muito diferente das histórias de outras mulheres do Alto Vera Cruz, bairro da periferia de BH. Dona Maria das Graças da Silva, dois anos mais velha e mãe de dezenove filhos, dez dos quais, ainda vivos, tem uma história prosaica. Ela não se
  • 50. 49 alfabetizou porque era proibida pelo pai de ir à escola em Jequeri, na Zona da Mata mineira, para que não ficasse uma moça “assanhada” e “namoradeira”. — Nunca tive tempo pros cadernos... – ela diz, lembrando que, ao constituir a própria família, a prioridade, então, passou a ser botar comida na boca da filharada. Só bem mais tarde, Dona Maria das Graças desconfiou que, se não soubesse ler e escrever, jamais conseguiria ir muito longe. — Não há nada pior do que não saber ler – ela atesta. — Eu, mesma, nunca pude ir sozinha aos lugares por não saber o preço das coisas e nem conseguir tomar um ônibus. O mundo, ela desconfia, funciona com códigos: — E eu não conseguia decifrar nada daquilo... A vizinha, Dona Maria Augusta Souza, 79 anos, dá o tom: — Até que analfabeto acha emprego. Mas pode ver que é faxineira, lavadeira, servente de pedreiro. Passa muita humilhação e ganha muito pouco. Para quem não sabe ler, está tudo fechado. Depois da bíblia, as futuras leitoras prometem não parar por aí e já ficam imaginando o que vão encontrar em outros livros. Em países de tradição cristã, a leitura da bíblia costuma ser uma porta de entrada para muitos não leitores ao mundo da palavra escrita. Ela é o livro mais lido e o mais relido do Brasil, além de ser, segundo os leitores, o que mais mexeu com as suas vidas. Até entre
  • 51. 50 quem nunca leu um livro inteiro, muita gente tem o costume de ao menos dar uma espiada nos versículos de vez em quando. É provável que boa parte dos neoleitores da bíblia nunca irá além de uns pequenos trechos do livro sagrado na hora de dormir ou ao acordar. E isso bastará a eles. O que não deixa de ser, uma experiência concreta com as práticas leitoras. Haverá, entretanto, outro grupo de leitores que, após algum tempo, já não se contentará só com esse tipo de leitura e partirá para outros, o segmento mais ampliado de livros religiosos, e, na sequência, é possível, outros gêneros. Alguns entre eles talvez se convertam em textos literários. Uma só ovelha trazida para o seio do rebanho universal dos leitores já vale muito a pena. Muito porque serão essas mesmas ovelhas – que podem atender por nomes como Maria das Graças, Maria Augusta ou Joanice – que vão ajudar, mais tarde, a semear para outros rebanhos a boa nova dos livros. E, com eles, a vitória da luz, do conhecimento e da razão sobre o obscurantismo e a ignorância das trevas.
  • 52. 51 O livreiro que não sabia ler m um ano comum, Seu Leonídio costuma ler, por baixo, quarenta livros. Ele lê diferentes gêneros literários, e, praticamente, ao mesmo tempo. Leitor compulsivo confesso, admite que não sabe direito o que fazer se não há um livro por perto e ao alcance da sua mão, seja no carro, ao lado da cama ou no banheiro da casa. Mas nem sempre foi assim. A aventura literária de Seu Leonídio só começou em seus 20 anos de idade. Antes disso, ele era analfabeto de pai e mãe, mas nem por isso vivia longe dos livros. Muito tempo antes de conseguir decifrar uma só letra do alfabeto, Seu Leonídio já era, creia, um livreiro. Como vendedor de livros que batia de porta em porta, atrás dos E
  • 53. 52 compradores, ele tinha uma freguesia fixa e era o livreiro de confiança de muita gente. Portanto, primeiro, ele estabeleceu, ainda que não soubesse ler e escrever, uma intimidade improvável com os livros e seus autores. Só muito depois é que conseguiu a habilidade necessária para poder decifrá-los e compreendê-los. No Brasil de meados do século XX, quando o analfabetismo ainda era muito alto no País, se comparado a bons indicadores internacionais, este homem saía à caça de freguês a freguês, estivessem onde estivessem. Vendia nas ruas, nas casas, permanecia plantado nas portas de fábricas e escritórios, e nos mais inesperados lugares, desde que, ali, pudesse existir algum comprador de livro em potencial. De livro em livro, ele vendeu, ao longo da vida, milhões deles. Mais tarde, já alfabetizado, chefiou pequenas legiões de vendedores porta a porta e, como editor, publicou perto de dois mil títulos. Não é pouco, principalmente para esse alagoano de Arapiraca, que, decidido a mudar de vida, correu atrás de um futuro igualmente incerto na cidade grande. Ele começou fazendo pequenos bicos em São Paulo, onde seu primeiro emprego foi de faxineiro. Nos corredores da pensão onde foi viver, nos arredores da Praça João Mendes, no centro de São Paulo, o rapaz moreno de porte atlético conheceu alguns vendedores de livro.
  • 54. 53 O moço, logo, encantou-se com os relatos apaixonados e, em especial, com os causos hilários que aconteciam no dia a dia dos vendedores de livros, as suas divertidas e inesperadas situações no trabalho. Aqueles homens saíam cedo da pensão e batiam de casa em casa para oferecer livros a quem não tinha tempo, gosto, dinheiro ou mesmo que não sentia a menor necessidade de ir a uma livraria. Embora não conseguisse decifrar uma só palavra estampada nos livros que deveria vender, o novo e promissor vendedor se animou com o desafio e, em pouco tempo, sentia-se como um veterano do ramo. Para que não percebessem que o homem que vendia livros não tinha a menor ideia do conteúdo do produto que tentava empurrar aos outros, Leonídio tinha suas próprias artimanhas. Ele decorava o título, o autor e o resumo da capa e da contracapa, que algum colega lia para ele, e surpreendia a clientela declamando, em alto e bom som, as informações principais. Com graça e estilo, estabelecia de cara uma empatia com o freguês, aproveitando para fugir de eventuais saias justas. Não tinha erro: tirava um pedido atrás do outro – que ele pedia para o próprio cliente preencher, como uma cortesia do seu vendedor. Os truques de venda e o talento nato para o ofício ele aprendera nos idos tempos em que vendia galinhas vivas, que carregava dependuradas em pedaços de pau sobre os ombros. Lidar com livros, ele racionou com a astúcia de vendedor, certamente, seria
  • 55. 54 muito mais fácil, já que eles sequer faziam barulho e tampouco se alvoroçavam. Um dia, contudo, um dos clientes percebeu que o vendedor inventava sempre uma desculpa diferente na hora de preencher os pedidos. Ele não deveria saber ler, desconfiou o homem, um advogado, que acabaria por convencer Leonídio que nunca é tarde para ir à escola. Turrão como ele só, Leonídio, que sempre havia sido autodidata, decidiu que faria do seu jeito. Acabou se alfabetizando sozinho, enquanto lia placas de rua, reclames na TV e as capas dos livros que vendia. Quando já casado e pai de seis filhos, fez questão de que todos eles tirassem o diploma da faculdade. Depois que descobriu a escrita e a leitura, jamais deixaria de transmitir, à filharada o valor da escola. Com o dinheiro que juntou vendendo livros, Leonídio comprou um prédio de apartamentos inteiro na Aclimação, bairro paulistano de classe média, e trouxe todos os parentes de Alagoas para morar perto dele. Foi lá que ele montou sua primeira editora. Se o assunto é livro, Leonídio Balbino, o livreiro que não sabia ler, transforma-se. Ele pode falar por horas a fio, sem se cansar, até convencer seu interlocutor por que ler livros é mesmo tão imprescindível e pode, realmente, melhorar a vida das pessoas. Se lhe dão trela, ele repete, à exaustão, sempre com gestos largos, sua ladainha predileta:
  • 56. 55 — Tem que ler, tem que ler, tem que ler... No livro autobiográfico que escreveu para narrar sua história, O Operário do Livro, Seu Leonídio, que se tornou cidadão honorário do Rio e de São Paulo, não deixa de relatar os momentos dramáticos que passou pela vida. Porém, otimista de plantão que é, Leonídio Balbino gosta de contar que chegou aonde chegou graças a uma feliz combinação de três coisas: uma vontade incrível de viver, a confiança em si próprio e, naturalmente, os livros.
  • 57. 56 Livro de “um reais” unca soube o nome dela. E as chances de voltar a encontrá-la, algum dia, são bem remotas. De seu rosto magro, contudo, não há como esquecer. E menos ainda de seus olhos negros e redondos que não pediam, mas, com determinação, praticamente exigiam. Não era para ela, fizera questão de explicar. Era para o filho, que ainda não estava na escola. Não queria esmola. Só desejava comprar um livro, com o mísero dinheiro que dispunha no momento. Apesar de não tê-la encontrado novamente; durante anos, a imagem dessa mulher reapareceria para mim outras vezes. Como nas ocasiões em que eu precisava falar em público, para membros do governo ou representantes do mercado editorial, como os livros e a N
  • 58. 57 leitura podem mexer com a vida das pessoas e, portanto, sobre a necessidade de se garantir o acesso a eles, seja gratuitamente ou pagando por preços acessíveis. A mulher desconhecida – que seguirá anônima, para mim, e, talvez, sempre invisível, aos olhos do Estado e da própria sociedade – certamente teria muito a dizer sobre isso. Era uma manhã fria de agosto, primeiro dia da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. O caso se deu lá, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Importantes editores, livreiros e escritores estavam na cidade. Muitos deles haviam cruzado o país só para isso. Nos dias seguintes, aproveitariam os holofotes para falar da função social da leitura e o quão importante é tornar o Brasil um lugar de leitores. A mulher surgiu do nada, quando ainda restavam boas horas para a cerimônia de abertura e início da programação farta – com escritores, venda de livros, cinema, teatro, exposições e outras artes, com a literatura como um fio a conectá-los. Ela, calmamente, estacionou o carrinho de mão no meio fio e, mesmo maltrapilha, não se intimidou diante dos homens de terno e gravata, que discutiam com entusiasmo sobre livros. Sem cerimônia, a catadora de papelão enfiou uma das mãos por dentro o vestido, na altura dos seios, e exibiu a cédula de R$ 1,00, que parecia ser tudo o que tinha naquela hora do dia. Talvez fosse mais sensato trocar por pães amanhecidos na padaria da esquina ou
  • 59. 58 inteirar para levar um litro de leite para casa no final da jornada. Mas, não. A mulher caminhou resoluta, na direção dos negociantes de livros, sabendo o que seria. Sem dirigir a palavra a nenhum deles em especial, lascou: — Tem aí livro de “um reais”?! – ela esclareceu, – É pro meu filho, que tá na idade de ir pra escola. Quero dar um livro a ele para que seja alguém na vida. A fala pungente calou fundo naqueles homens dos livros. Embora o Brasil esteja entre os dez maiores produtores de livros do mundo, o acesso a eles no País consegue ser ainda pior do que a desigualdade social. Só uma em cada oito pessoas compra livros. Mais e mais pessoas, nos dias atuais, reconhecem a função social e transformadora da leitura na sociedade. E a julgar pela fala simples, mas poderosa, dessa catadora de papel, é possível supor que a relevância da leitura também cresce, e, aos poucos, se consolida, no imaginário popular. Nesse caso, embora analfabeta, o que ela mesma afirmaria, a mulher intuiu que poderia estar ali, em meio aos livros, a chave do futuro para seu menino. Do contrário, a continuar apartado do acesso à educação e ao conhecimento – materializado diante dela na forma de livros –, deveria engrossar a lista de candidatos a engordar as estatísticas oficiais sobre miséria, desemprego, fome e violência. Mas para a catadora de papelão atrás de um livro com preço compatível ao seu bolso, um livro tem um significado que vai além
  • 60. 59 do objeto que seus olhos veem. Porque não se resume ao maço de papéis costurados e manchado com tinta, que, a rigor, ele é. O que a mãe catadora vê é um sonho, um futuro e oportunidades que ela e o pai da criança, provavelmente, nunca tiveram. Talvez um emprego com carteira assinada, duas ou três refeições no dia e alguma dignidade na vida.
  • 61. 60 A bola e o livro dward estava, porque estava, convencido de que, no futuro, ainda ganharia a vida correndo atrás de uma bola: queria ser jogador de futebol profissional. Após uma meteórica estreia no seu glorioso Mirassol Futebol Clube, orgulho da cidade, ele, em seus sonhos infantis, jogaria, em seguida, em um dos times grandes do Rio ou de São Paulo para, então, partir direto para a seleção, como um ídolo festejado do escrete nacional. Naqueles tempos, meados do século passado, jogar no exterior era algo absolutamente fora de questão. Era este o sonho de Edward e de milhões de outros garotos, fossem pobres ou fossem ricos, no futuro País do Futebol. Era difícil E
  • 62. 61 encontrar algum que não almejasse ganhar fama e glória nos estádios. No caso de Edward não seria exatamente por falta de treino ou dedicação diária que esse sonho deixaria de se realizar. Afinal, todo santo dia, ele e um punhado de amigos praticavam, em renhidas peladas de rua nos campinhos de terra de Mirassol, interior de São Paulo, o esporte bretão que, supunham, deveria alçá-los ao estrelato. Edward não estava de todo enganado. Uma bola de futebol estava, de fato, entre ele e seu destino. Não era, contudo, exatamente como sonhara. Certo dia, Edward participava de um concorridíssimo racha no pátio da escola. De repente, um colega de time deu um tremendo chutão que fez com que a bola fosse parar lá longe. O craque, naquele instante envergando a gloriosa farda do Grupo Escolar de Mirassol, na plenitude de seus não mais do que oito anos de idade, foi, prontamente, escalado para resgatar a pelota, que, desgraçadamente, enfiara-se por uma maldita janela aberta. O mundo era mesmo injusto. Era sempre a mesma coisa: os grandes mandavam e aos menores não cabia outra coisa senão obedecer. Convertido, momentaneamente, em gandula oficial da peleja, lá foi o candidato a futuro atleta atrás de localizar o paradeiro da preciosa. Mas alguma coisa do outro lado da parede chamou a atenção do menino. Edward se intrigou diante do cenário inesperado: jamais vira tantos livros juntos!
  • 63. 62 Do outro lado da janela, funcionava a biblioteca da escola que, justo naquela manhã, recebera um acervo novo de livros. Eram livros de literatura para crianças. O pequeno Edward pegou um deles nas mãos – A Banana que Comeu o Macaco, ele jamais se esqueceria – e se deixou levar pela história, que leu até o fim. Ele nunca voltou para retomar aquele jogo de futebol. Nos trezentos e sessenta e cinco dias seguintes, Edward contabilizaria nada menos do que duzentos e cinquenta livros lidos – para se ter uma ideia, basta dizer que só em 2017 a média anual de livros lidos por brasileiro chegaria a cinco livros por habitante/ano. O menino parecia mais uma máquina leitora! Como o Edward manuseava com rara habilidade a arte das palavras, um professor inscreveu, sem que ele soubesse, sua redação escolar em um concurso estadual. A notícia fez o menino pular de alegria: ele fora classificado em primeiro lugar! Enquanto abiscoitava um prêmio aqui e outro acolá, o agora rapazote passou a faturar uns trocados com a habilidade recentemente conquistada. Sua intimidade com os livros ficaria patente ao prestar concurso público para o Banco do Brasil, posto cobiçadíssimo por legiões de jovens atrás de carreira estável e do status conferido pelo cargo. A primeira notícia não fora nada boa: havia tirado um baita zero em Contabilidade. Só que, ao ver as outras notas, a surpresa: dez nas
  • 64. 63 demais disciplinas. Na hora H, o costume de ler bons livros o ajudara a conquistar o emprego. Noutra ocasião, o jovem corrigiu, durante uma aula, e sem grandes pretensões, a professora do cursinho preparatório. Sua argumentação fora tão consistente que a escola resolveu contratá-lo no lugar dela. Mais uma vez, os livros dariam um empurrão em sua vida. Mais tarde, já na faculdade, preocupado que estava com as dificuldades para acompanhar as aulas de latim, Edward foi a um sebo atrás de livros usados para aprimorar seus conhecimentos no idioma. Fez resumos primorosos para cada livro que lia. Ele sequer desconfiava, mas acabara de escrever o manuscrito do seu primeiro livro, um dos muitos que publicaria pela vida afora. Com o tempo, Edward Lopes se tornou um dos mais brilhantes linguistas do País e, hoje em dia, não há estudante de Letras que não tenha recorrido a uma de suas obras sobre semiótica e linguística. Quem sabe o escrete canarinho não perdeu um grande talento com a bola nos pés. Não sei. Mas, com certeza, o Brasil ganhou um tremendo talento das letras. Que, longe das quatro linhas do gramado, tem ajudado a formar várias gerações de mestres que, eles próprios, igualmente craques das palavras, têm, por sua vez, despertado o gosto de ler, a cada ano letivo, em milhões de novos leitores verde-amarelos. O País da bola carece e agradece.
  • 65. 64 Lições de Dona Maria or que, afinal de contas, as pessoas leem e escrevem? E por que é absolutamente essencial a leitura para se viver na sociedade moderna? As respostas a estas perguntas costumam variar de acordo com o interlocutor e suas áreas do saber. Todas, entretanto, remetem a uma questão central: a necessidade imperiosa que temos de nos comunicar uns com os outros, de compreender coisas e de nos fazer entendidos. Também nos ensinam que saber decifrar os códigos – o que chamamos de letras e palavras, matéria prima das frases – vai nos ajudar de várias maneiras pela vida afora. Ainda nos lembram o quanto a invenção dos alfabetos foi fundamental para a estruturação P
  • 66. 65 da humanidade tal qual a conhecemos hoje. E, por fim, que assim podemos nos apropriar do conhecimento universal, que é o grande legado acumulado através dos tempos pelos homens e mulheres. A saudável troca de experiências entre leitores, autores e seus personagens, cada qual com sua visão distinta de mundo, que se dá no ato de ler, tem o poder de operar em nosso interior reflexões surpreendentes. Essa é uma forma de gerar, continuamente, novos modos de ver, sentir e compreender as coisas. O que abre, sem dúvidas, caminho para atitudes e posicionamentos igualmente novos. Sem contar que o exercício de enxergar com os olhos do outro é uma forma extraordinária para se gerar mais tolerância, algo, evidentemente, indispensável nos processos de paz, mas, na verdade, necessário para a vida em sociedade de um modo geral Há, enfim, todo tipo de respostas e, provavelmente, todas com boa dose de razão. Vejamos, agora, o que tem a dizer sobre isso uma mulher camponesa de seus 70 anos, mãos calejadas, que duas ou três vezes por mês comparece, religiosamente, a uma sala de aula de alvenaria improvisada no acanhado salão de reuniões do Horto Guarani, perto de Guariba – no interior de São Paulo, epicentro da revolta dos boias-frias ocorrida em maio de 1984. Ali, foi instalado o primeiro assentamento da reforma agrária no coração da mais importante e poderosa região do agronegócio no Brasil.
  • 67. 66 Dona Maria Terezinha – é este o nome dela – tem uma percepção e uma teoria toda própria sobre o tema, que, por mais que se esforce, tem certa dificuldade para expressar: a função social da leitura e da escrita na vida de gente como ela, que trabalha duro na roça durante o dia e, à noite, espreme-se sobre bancos toscos de madeira, enquanto o sono permite, para aprender a ler e escrever. Sem dominar a capacidade de leitura e escrita, Dona Maria se acostumou a recorrer aos rabiscos rudimentares – como nos primórdios fazia o homem das cavernas – para registrar os relatos sobre seu cotidiano e o que vai dentro de sua alma. Em um desses desenhos, ela aparece jogando milho para as galinhas no quintal do sítio em um dia ensolarado. Em outro, ela está rodeada pela parentela, com a natureza exuberante às suas costas em uma ocasião que parece ter sido muito especial para ela e sua família. Dona Maria também registrou com entusiasmo o dia em que participou do mutirão que ergueu a sua primeira casa própria naquelas terras devolutas, antes tomadas por eucaliptos, no horto localizado no município de Pradópolis. Há algumas semanas frequentando a escola noturna do assentamento, por ora, Dona Maria mal consegue desenhar o nome. Para ela, entretanto, isso já é muito, e ela comemora com um sorriso de criança cada nova letra que consegue transpor, na forma de garranchos quase ilegíveis, do quadro negro da parede para o
  • 68. 67 caderno. E ela o faz com a mesma devoção com que faz a oração do dia antes de se deitar. Para esta mulher camponesa, desenhar o próprio nome já foi uma grande vitória. No dia em que ela foi à agência bancária receber a aposentadoria, o gerente a convidou para ir até sua mesa. Nessa hora, ela se emocionou: seria a primeira vez em sua vida que não teria que passar pelo constrangimento de carimbar as digitais e sair da agência com os dedos sujos de tinta. A felicidade que a mulher septuagenária sentiu naquele momento não tem preço! Dona Maria saiu do banco tão leve e confiante que encomendou, na mesma hora, uma nova carteira de identidade, na qual já não apareceria a expressão que calava tão fundo em seu peito: “analfabeta”. Mas Dona Maria sabe que é só o começo e que há um longo caminho pela frente para que possa adentrar, para valer, no complexo universo das letras. Também está consciente de que, apesar da idade avançada e da fadiga diária que deixa as vistas mais cansadas do que antes, terá que dar duro nas aulas. Mas dar duro no batente é algo que, afinal, ela já faz a vida inteira na roça. Empurrada por uma força que não sabe dizer de onde vem, essa mulher faz questão de registrar no caderno cada nova palavra que vê nos livros. Nessas horas, é tomada por uma alegria incomum. Ainda assustada diante de tantas sensações desconhecidas, Dona Maria Terezinha – mais uma candidata a integrar a legião de
  • 69. 68 neoleitores que se forma nos assentamentos da reforma agrária nos grotões do Brasil – tem um palpite: — Acho que é isso que as pessoas da cidade chamam de cidadania – ela arrisca, com simplicidade e com o jeito de quem não quer mais tirar o pé dessa estrada.
  • 70. 69 O homem que não vendia livros onde vai, afinal, aquele homem carregando tantos livros debaixo do braço? Ele mal dobrou a esquina e aparece, ainda pequenino, lá longe, mas nota-se que ele leva uns belos duns livrões sob os braços arqueados. Aos poucos, enquanto caminha celeremente, gesticula e parece conversar sozinho, sua figura franzina vai tomando corpo na calçada. Talvez nem sejam tantos livros assim. Agora que ele está mais perto, dá para ver que são enciclopédias, esses livrões danados de pesados, que condensam nos volumes, de quem se mete a colecioná-los, toda sorte de conhecimento, curiosidades e informações, úteis ou não. Parece fazer valer o dito, segundo o qual o conhecimento vale quanto pesa. A
  • 71. 70 O homem segue, agitado e solitário, em seu caminho sem rumo. Vai de casa em casa, bate de porta em porta. Em algumas, toca a campainha estridente. Em parte delas, vai dar com o nariz na porta, ele sabe disso. Certas residências estarão mesmo vazias, enquanto, noutras, os moradores vão fingir que não há ninguém na casa, sua estratégia eficaz e mal educada para barrar os inconvenientes. Mesmo entre aqueles que vão abrir a porta, suas estatísticas dizem que só uma pequena parcela será capaz de fazer ao menos ideia do quão importante é o conteúdo contido naqueles livrões. Com sorte, no final da jornada, uma parte ínfima dos seus interlocutores terá ouvido sua preleção até o fim e, encerrada a ladainha, assinado o pedido e preenchido os cheques parcelados. Diariamente, o homem repete, à exaustão, seu discurso sobre verbetes, personagens, excentricidades e a roda viva da história. Quer incutir na cabeça das pessoas por que aquilo tudo tem a ver com a sua vida e, sobretudo, com o seu futuro. Não é uma tarefa fácil. Só que Seu Luciano não leva jeito para vender livros. Pode falar por horas a fio com quem quer que seja e der o azar (ou seria sorte?) de abrir-lhe a porta. Circunspecto e gestos largos, é de sua natureza parlar. Mas nunca teve tino comercial para nada. Contudo, é um brilhante vendedor de ideias, como se verá. Foi de uma hora para outra que vender livro de porta em porta se tornou, pelas circunstâncias, seu ganha-pão. Seu Luciano era um
  • 72. 71 homem importante, desses que saem muitas vezes nas páginas dos jornais, ora escrevendo, ora sendo ele mesmo a própria notícia. Jornalista dos bons, foi eleito vereador e deputado, e apareceu já na primeira leva dos cassados às vésperas do golpe militar de 1964. Tornou-se uma lenda nos movimentos de trabalhadores paulistas pelo apoio firme em milhares de greves no estado São Paulo. Suas campanhas eram feitas pelos próprios eleitores, que se incumbiam até de imprimir seus panfletos e pedir votos por ele, que também não levava lá muito jeito para a coisa. Até os adversários se deixavam enfeitiçar pela sua pureza e coerência na defesa das ideias, com sua invejável eloquência e teimosia calabresas. Era justamente nos livros, bem como nos jornais e no próprio cotidiano das pessoas mais pobres, que Seu Luciano aprendera tudo o que sabia na vida. Filho de calabreses, lia sobre política, lutas do proletariado e o que aparecesse pela frente. Lia, confabulava com os próprios botões e devolvia tudo, devidamente deglutido e processado, em forma de artigos ou discursos eloquentes sobre caixotes de madeira. Era assim que o homem dos livros cativava amigos e simpatizantes num tempo em que não existia cabo eleitoral pago ou campanhas milionárias. Proibido de escrever e legislar nos anos de chumbo, Seu Luciano chegou a recusar, por questão de princípios, o emprego fajuto que lhe arrumaram. Preferia vender livros, que ele considerava um trabalho mais digno. Mas não durou muito naquele emprego, já que,
  • 73. 72 em vez de vender, dava os livros de presente para quem não podia pagar. Só anos mais tarde, com a redemocratização do País, Seu Luciano Lepera voltaria às redações. Comunista das antigas e tão generoso quanto teimoso, ele se tornou um mestre, pelo caráter irretocável, para várias gerações de jornalistas. Era capaz de tirar a comida da boca para dar a alguém que necessitasse mais do que ele. Antes de morrer, doou a própria casa, seu único bem material. Quem quer que cruzasse seu caminho nunca mais era o mesmo. O vendedor que não vendia os livros tinha o poder inexplicável de tocar e comover pessoas. Embora ateu, os amigos carolas garantiam que o homem dos livros era mais cristão do que qualquer um deles. — Ele nem precisa acreditar em Deus, pois Deus acredita nele.
  • 74. 73 Do outro lado do muro aíssa é uma guria que acaba de completar três anos. Ela nunca saiu dali. Mesmo que quisesse, não teria como. No lugar das janelas, há pesadas grades de ferro chumbadas na parede, e a porta, que dá acesso ao térreo, permanece o tempo todo trancada à chave. Há outras gurias na mesma situação. No meio da noite, uma delas sempre chora. Se de fome, frio ou medo, não se sabe. Na cabecinha daquelas crianças inocentes, privadas da sua liberdade desde que vieram ao mundo, lá fora é, de certo modo, um lugar que não existe. Parece algo tão incerto quanto pueril, mesmo porque nenhuma delas guarda na memória a lembrança de algum dia ter atravessado um daqueles portões gigantes e ir dar na rua. R
  • 75. 74 Jamais puderam contemplar pessoas quaisquer caminhando com elas numa calçada ou qualquer outra cena corriqueira que faça parte do cotidiano comum das cidades. Esses guris nem desconfiam que, do lado de fora dos pavilhões onde vivem, há uma cidade imensa banhada pelo rio – com parques, praças, zoológicos, pipoqueiros, guloseimas e toda sorte de coisas simples, inocentes e belas que tanto fascinam a gurizada. Mas, se alguém perguntar a Raíssa ou a outro qualquer um dos filhos das mulheres presas no Madre Pelletier, o presídio feminino de Porto Alegre, muitos responderão que conhecem tudo isso e muito mais. Raíssa nasceu de uma das visitas conjugais mensais que são permitidas às presidiárias da instituição e vive lá desde que veio ao mundo. Ela adora ouvir as fábulas. Parece precisar delas para seguir vivendo e sonhando. Conta, com candura, que já esteve em bonitos lugares e já conheceu príncipes, dragões e fadas. Descreve, com riqueza de detalhes, castelos e reinos maravilhosos, e intercala expressões de medo e alívio ao mencionar os monstros e caçadores de bom coração que encontrou quando esteve perdida em florestas escuras e mágicas. Muitas dessas mulheres foram parar na criminalidade por causas de seus maridos, que continuaram lá fora. Com suas mães, esses filhos do cárcere vivem quase o tempo todo atrás das grades. Foi no
  • 76. 75 presídio que deram os primeiros passos e pronunciaram as primeiras palavras. Sua ligação com a vida lá fora se dá quase que só pelos livros. É nas histórias que descobrem o mundo externo e criam suas fantasias, diz uma das voluntárias do Liberdade pela Escrita, projeto dos alunos de Letras e Pedagogia da UniRitter, uma faculdade local. Os estudantes ensinam às mães técnicas da contação de histórias e, a partir de crônicas, poemas e do noticiário de jornais, as mulheres aprendem a expressar, no papel, suas angústias, dúvidas e esperanças. Kelly, que está presa por ter se envolvido com o tráfico de drogas, para agradar o namorado traficante, acordou no meio da noite e escreveu para Deus sobre o seu desejo de mudar de vida quando sair dali, como leu em um livro. Às vezes relatam as injustiças e os sofrimentos, e fazem reflexões sobre os erros e a própria vida. Essas endurecidas mulheres do cárcere estão descobrindo, nos livros, um sentido novo para as suas vidas e, principalmente, uma perspectiva inédita para suas crianças. Elas sabem que não será tão fácil assim, mas contam com a ajuda dos livros para tornar sua realidade menos dura, ao menos enquanto mergulham em alguma página da literatura. E, talvez, tirar de algumas delas força, fé e coragem para seguir adiante.
  • 77. 76 Ele é o cara! lávio é um bom menino. É gentil e educado quando fala com as pessoas e, na sala de aula, está sempre atento e ligado nas explicações da professora. Ele tem aulas pela manhã e à tarde e, para dar conta de tudo, não tem moleza; sua rotina diária não é nada fácil. Ele pula da cama, todo santo dia, às quatro da manhã. Só, lá, pelas oito da noite é que conseguirá voltar para casa. Só nessa hora é que vai comer a sua última refeição do dia, descansar um pouco e já iniciar os preparativos para a maratona do dia seguinte. O menino cumpre essa mesma jornada há anos, com uma disciplina espartana, mas bom humor. F
  • 78. 77 Flávio viaja, diariamente, duzentos quilômetros por dia desde São Joaquim da Barra, no interior de São Paulo, já quase na divisa com Minas. De manhã, ele frequenta a escola municipal Raul Machado, em Ribeirão Preto, onde tem aulas regulares. Depois que almoça, está matriculado em cursos de canto, informática e atividades manuais. O que aparece ele faz, e nunca se queixa. Sua agenda diária é típica da garotada de classe média. Por ora, ainda não faz ideia do que quer ser quando crescer. Nem é hora disso; afinal, ele só tem dez anos. Lá no fundo do peito, guarda seu maior segredo: seu sonho é ser cantor de música gospel. Duas vezes por mês, Flávio vai com os amigos à biblioteca das duas escolas em que está matriculado. Está sempre em busca de algum livro diferente. Andou lendo Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, e vários livros do Pedro Bandeira. Ultimamente, anda interessadíssimo nos livros para garotos mais velhos, curioso que está em desvendar mistérios, nas aventuras para adolescentes sobre amizade e, admite ruborizado, em garotas, namoricos e coisa e tal. Flávio gosta mesmo de ler. Como a maioria dos meninos da sua idade, adora brincar e curtir os amigos, e também dos livros. Ler, para ele, é algo muito prazeroso. Diz que aprecia os livros porque acha que eles podem ser seu único caminho para ser alguém na vida. Simples assim. A história de Flávio é, por assim dizer, a história de um menino comum, desses que pode se encontrar por toda parte. O único
  • 79. 78 detalhe que o diferencia dos outros meninos da sua idade é o jeito como esse jovem e convicto leitor lê seus livros. Flávio, como a maioria das crianças, gosta muito quando alguém lê ou conta uma história para ele. Mas aprecia escolher os próprios livros que quer ler e, então, faz isso sozinho. Ele faz isso de algumas formas: às vezes, pega um audiolivro e escuta no seu tocador de CD; outras vezes, esfrega um dos dedos no papel saliente enquanto vai decodificando, palavra a palavra, até formar frases inteiras, graças a um sistema que ficou mundialmente conhecido pelo nome de seu inventor: Braille. Quando está lendo, muitas vezes, Flávio, simplesmente, esquece que é cego. As coisas, então, parecem ficar mais claras e ele pode curtir a deliciosa sensação de enxergar mais longe. Apesar do pouco tempo que sobra na agenda, repleta de atividades, e do acesso restrito em função dos ainda modestíssimos acervos de livros para pessoas cegas no País, Flávio é o que se chama de bom leitor. Ele mantém a média de dezenas de livros lidos por ano e nos dá uma lição diária. Flávio dos Santos frequenta a escola da Associação dos Deficientes Visuais de Ribeirão Preto, uma ONG que faz um bonito trabalho com pessoas de baixa visão ou cegas, e mantém uma ativa biblioteca para incentivar a leitura entre eles. Flávio, o menino que lê com a ponta dos dedos, é mesmo o cara!
  • 80. 79 Marinheiro só mesmo impossível ir a Ilhéus, no litoral da Bahia, e não ser arrastado para dentro de uma das histórias incríveis de Jorge Amado, filho mais famoso da terra e um dos nossos grandes escritores. O casario porta-e-janela, os barcos no cais. Em cada canto da cidade histórica tem um quê de Gabriela e certo aroma de cravo e canela, algum traço firme dos coronéis do cacau ou alguma memória do punhado de personagens que, muito antes de seu criador, entraram para a imortalidade através das portas da literatura. Não distante dali, próximo desse cenário impregnado de histórias deliciosas e de cultura, que, para bem além do período representado É
  • 81. 80 pelo autor, remonta à época das capitanias hereditárias e dos tempos em que a Bahia era o epicentro do Brasil Colônia, vive Joílson, o marinheiro. Ele mais todos os fantasmas saídos, diretamente, das páginas e da prosa fácil de Jorge Amado, e que podem atender por nomes como Quincas, Vadinho, Nacif ou Flor. Tal como o conterrâneo ilustre, Joílson Maia, o marinheiro, cresceu entre as fazendas de cacau e as histórias dos coronéis daquelas terras do sem fim, cenário e fio condutor de tramas que até hoje atraem legiões de turistas ao lugar. Joílson tinha certeza de que não passava de um capiau, simplório e ingênuo, quando foi apresentado, pela primeira vez, à obra do ídolo. Como ele não tinha dinheiro para comprar os livros de Jorge Amado, o menino começou a pegar emprestado dos colegas de escola. Como precisava devolver no dia seguinte, Joílson passava as noites em claro para decorar as histórias favoritas e contar, no outro dia, para os irmãos. Assim, aos poucos, foi que Joílson tomou gosto pela coisa. Mais tarde, quando nasceu seu filho, de nome também Joílson, o marinheiro pensou que era chegada a hora de compartilhar com ele todas aquelas histórias que tanto o encantavam. Foi assim que ele se descobriu um contador de histórias. Joílson se arriscou, então, a escrever as próprias histórias. Já publicou dez livros, entre os infantis e os romances. O Dia da Gota D’Água e Memórias Sofridas são dois desses, que Joílson gosta de
  • 82. 81 contar aos passageiros da balsa que faz a travessia entre o continente e a Ilha de Comandatuba. Personagens e cenário não faltam por ali. E mestres que, no seu caso, foi, ao vivo e a cores, o próprio autor de Terras do Sem Fim: — Jorge Amado, um dia, me contou que sempre começava uma história tendo na cabeça um personagem real de Ilhéus – Joílson garante que a receita é infalível. — Está cheio de personagens de livro andando nas ruas por aí. Leitor formado na lida e, hoje, também um escritor das terras do sem-fim, Joílson, o marinheiro, sonha ir mais longe: planeja escrever outros livros sobre a sua Bahia e, quem sabe, um dia, participar de lançamentos e sessões de autógrafos numa Bienal do Livro, no Rio ou em São Paulo. A julgar pelas boas histórias e ricas personagens que têm saído, por décadas a fio, de Ilhéus, inspiração é que não vai faltar.
  • 83. 82 Pequenos leitores do sisal oisés, Laudércio, Antônio Jorge. São nomes de crianças comuns, dessas que habitam desde pequenas vilas nos grotões do Brasil até as periferias das grandes cidades. Vivendo em habitações precárias e quase nenhuma condição sanitária, esses meninos e meninas levam uma vida simples e sem grandes preocupações quanto ao futuro. Por toda parte, país afora, crianças nessa idade costumam, seja lá como for, brincar numa parte do seu dia, enquanto, na outra, vão à escola, a fim de aprender a ler e a escrever. Mas, nesse caso dos três acima, como de tantos outros do Nordeste brasileiro, não era exatamente assim. M
  • 84. 83 Moisés, Laudércio e Antônio Jorge tiveram que partir cedo para a labuta diária nas plantações de sisal nos arredores de Retirolândia, no sertão da Bahia. Ainda pequenos, acostumaram-se com os pais a ouvir que ler, escrever e brincar era um luxo só para os filhos da gente rica da cidade. Isso faria de Antônio Jorge uma criança triste. Os folguedos e os cadernos nunca fizeram parte da sua infância ou sequer do seu vocabulário infantil. Ele se punha de pé, ainda escuro, para se aprontar e passar as horas seguintes, até o entardecer, ao lado do pai, ceifando a palha do sisal. Tirar os espinhos que costumam deixar cortes profundos na pele era, por assim dizer, o que mais se aproximava de uma distração. Para meninos como eles, havia muito pouco a esperar dessa vida. O jeito, para ele e os outros, era simplesmente se resignar, aceitando como absolutamente normal o fato de que, aos sete ou oito anos de idade, tinham às mãos uma foice, em vez de lápis e caderno. Mas essa era, afinal, a vida deles. E parecia que estavam condenados a viver sempre assim. No dia em que funcionários do governo chegaram avisando que criança não podia mais trabalhar foi um “Deus nos acuda” por lá. A revolta tomou conta da cidade. A pergunta que se faziam era uma só: “Como é que aquela meninada endiabrada e embrutecida poderia aprender a ser alguém na vida sem o santo remédio do trabalho?”.
  • 85. 84 Para quem empregava, era o fim da mão de obra farta e barata. Mas pais e mães também estavam horrorizados, sem compreender, a princípio, que haveria outras alternativas de vida fora daquela rotina que conheciam desde sempre. A situação só aliviou um pouco quando as famílias souberam que, em troca, passariam a receber uma ajuda do governo para compensar o dinheiro que as crianças deixariam de ganhar na roça. Só teriam que ser matriculadas e frequentar, comprovadamente, a escola. Mas para aquelas crianças a mudança também não seria tranquila. Após uma infância inteira longe dos cadernos e dos livros, ter que ir à escola para aprender lições que pareciam muito complicadas de se entrar na cabeça já seria, apesar da pouca idade, algo difícil e desafiador Alguém teve, então, uma feliz ideia: talvez conseguissem compreender mais facilmente se, antes do próprio bê-á-bá das cartilhas, começassem ouvindo as histórias contidas nos livros. Os baús para acomodar os primeiros livros foram construídos com o mesmo sisal que, até então, era o grande responsável por afastar aquelas crianças da escola. O plano deu certo, e, aos poucos, aqueles meninos cuja infância e direito de aprender a ler e a escrever lhes eram negados; agora, já aprendiam e se divertiam com o novo conhecimento que chegava cada vez que um livro era aberto.
  • 86. 85 Nos quinze anos vividos no meio do mato, Antônio Jorge Santiago jamais imaginara que pudesse existir tanta coisa assim como, agora, ele descobria a cada página virada. Seu depoimento é um tiro certeiro: — Descobri um mundo novo dentro desses baús – diz, com emoção. Laudércio Carneiro, o amigo, se convenceu de que não é certo obrigar criança a trabalhar em vez de ir à escola: — Foram os livros que me tornaram gente – ele diz, com orgulho incontido. Moisés, ou Moca para os amigos, era um menino muito tímido. Envergonhado, não abria a boca para nada. No dia em que Ana Paula, a professora, o chamou para ler na frente de todos, ele simplesmente foi tomado pelo pavor. Suava frio. Percebendo sua dificuldade, ela deu, literalmente, empurrão em suas costas – na verdade, um toque sutil e carinhoso, que foi a maneira que encontrou para incentivá-lo. Moca leu o texto sem gaguejar e descobriu que gostava disso mais do que supunha. Desde então se soltou e tornou-se mais falante. Acabou se elegendo presidente do grêmio escolar e virou o líder da turma. Aos poucos, os livros vêm operando pequenos milagres na vida dos meninos trabalhadores do sisal. O Movimento de Organização Comunitária já contabiliza mais de 700 desses Baús da Leitura
  • 87. 86 espalhados pelas cidades da zona sisaleira da Bahia. Adilson Baptista, um dos líderes, diz que a literatura aproxima os jovens locais de outros que vivem em outras partes do mundo. Sem os livros, afirma ele, uns jamais conheceriam a realidade dos outros. — Uma pessoa que não lê vive isolada do mundo – Adilson vive repetindo, – os livros podem servir de elo entre as pessoas, independente de onde elas estiverem.
  • 88. 87 No profundo mar azul esde pequena, Ângela acalentou o sonho de ser professora. Ela sempre se interessou em conhecer coisas novas e cresceu achando natural compartilhar aquilo que aprendia com as outras pessoas. A menina só não suportava uma coisa: a ideia de crescer ali e se ver obrigada a reproduzir a mesma vida da mãe, da avó e das outras mulheres da ilha. Mal saíam da puberdade, cumpriam um ritual idêntico: namoro (às vezes providenciado pela própria família), noivado e, por fim, casamento e filhos. Tornavam-se donas de casa e davam à luz ainda jovens, repetindo o único ciclo de vida para mulheres que aquelas famílias caiçaras D
  • 89. 88 conheciam de cor e salteado. Muitas delas chegavam à velhice, prematuramente, sem sequer terem pisado no continente. Esta parecia ser também a sina de Ângela. Tal qual as amigas, Ângela, também tinha seus sonhos românticos de menina-moça, influenciados, claro, pelos costumes locais. Almejava se apaixonar e constituir família. Só que as coisas, dizia para si, teriam que acontecer na hora certa e do seu jeito. Porque ela também gostava de se imaginar no futuro, trabalhando em algo que a realizasse profissionalmente e, ao mesmo tempo, fazendo algo útil para sua comunidade. Entretanto, a menina sabia que suas chances, vivendo no que ela, às vezes, pensava ser um fim de mundo, eram quase zero. E Ângela não tinha a menor intenção de abandonar a terra de seus antepassados, onde, bem ou mal, estavam seus parentes, amigos e a vida que ela conhecia. Na praia da Longa, um dos vilarejos que compõem a Ilha Grande, no litoral do Rio de Janeiro, luz elétrica era um luxo distante, que só demoraria alguns anos para chegar, a reboque do programa Luz para Todos. Adentrar ao universo da informação e do conhecimento formal era, portanto, para ela, como uma corrida de obstáculos. Se biblioteca, livraria ou banca de jornal eram inexistentes, o acesso à internet, naqueles anos, então, nem pensar.
  • 90. 89 Para complicar as coisas, os jovens caiçaras que insistiam em estudar precisavam se submeter a longas e exaustivas viagens diárias. Dali até Araçatiba, onde funcionava a única escola dos arredores, era um tempão de barco. Do cais de Santa Luzia, na Baía de Angra dos Reis, até Proveta, a última das ilhas, já em mar aberto, consumia-se nada menos do que seis horas de barco, entre ida e volta. Porém, decidida que estava a correr atrás do sonho de ter uma profissão e tomar para si as rédeas de seu destino, Ângela resolveu ir à luta. Uma ideia simples, que brotou numa conversa entre professores incomodados com o desperdício de tempo dos alunos no trajeto até a escola, acabaria por colocar no caminho de Ângela tudo aquilo de que ela necessitava para seguir adiante em sua jornada. Os professores, que vinham de Angra dos Reis para lecionar no lugar, resolveram pegar emprestados uns livros da escola e improvisaram no convés do barco Três Irmãos Unidos II uma pequena biblioteca. Em homenagem a Castro Alves, deram a ela o nome de Espumas Flutuantes, título da obra na qual estão alguns dos versos mais famosos do poeta baiano. Junto à estante de madeira, instalaram o sofá da leitura, para que os tão aguardados leitores pudessem ler com algum conforto. Não tardou e o barco-biblioteca virou a sensação do lugar. Era lá que aconteciam os flertes e namoricos, e onde tinham início relações que durariam a vida toda. Também era lá onde se tiravam algumas
  • 91. 90 das dúvidas escolares e, naturalmente, onde se podia ler e estudar tranquilamente e, claro, emprestar livros para levar para casa. Ângela bebeu, por anos a fio, daquela fonte. Lá, conheceu os romances e viveu aventuras memoráveis da sua adolescência. Era ali que fazia amizades e onde se deliciava com os poemas, gênero que causaria um impacto profundo em sua existência. Estimulada pelas leituras, reflexões e histórias arrebatadoras saídas de dentro dos livros, Ângela de Oliveira insistiu até que levou a cabo o antigo sonho de ser professora. Continuar a viver em Ilha Grande depois de formada foi, portanto, uma escolha pessoal dela, que atualmente leciona na mesma escola na qual um dia estudou. Ângela sabe que agora é a sua vez de inocular em seus meninos e meninas aquele mesmo vírus bom da leitura que abriu para ela uma imensa janela de oportunidades e novas perspectivas de vida, além de uma possibilidade concreta de escrever seu próprio destino. Para esses brasileiros e brasileiras, Ângela não se cansa de falar sobre sua gratidão para os livros, que deram a ela um novo sentido para a sua vida.
  • 92. 91 A que foi sem nunca ter sido s bambambãs da leitura costumam dizer, com razão, que para formar bons leitores é preciso reunir certas condições. A primeira delas, evidentemente, é que o sujeito saiba ler e escrever, e tenha habilidade em manejar as palavras e entender o sentido do que lê. Mas não é só. Ajudará muito se esse indivíduo vive num lugar onde há livros, jornais, revistas e, de tempos para cá, internet; como também uma boa biblioteca e livrarias para que ele tenha acesso à informação e ao conhecimento. Se o candidato a leitor tiver a sorte de ter nascido numa família leitora, onde livros podem ser encontrados em qualquer canto, suas O