O documento discute a polêmica em torno da nomeação do deputado Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos no Congresso. Apresenta diferentes perspectivas sobre o assunto, incluindo a visão de que os evangélicos não possuem uma posição unânime e que é importante debater questões como direitos humanos e representação política no contexto da diversidade brasileira.
1. Entre os iguais e os diferentes: cristãos, políticos e polêmicas*
Sydnei Melo**
Nas últimas semanas, fomos tomados por uma avalanche de notícias e manifestações de
protesto e apoio à presença do pastor e deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP) na presidência
da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados em Brasília. Não
é uma surpresa que isto tenha ocorrido. Como é de conhecimento público, o deputado fez, no
decorrer dos últimos anos, declarações bastante polêmicas e questionáveis. Algumas antigas
declarações chegaram ao nosso conhecimento muito recentemente, como as que atribuem a uma
espécie de punição divina as mortes de artistas famosos como John Lennon e os Mamonas
Assassinas. Porém, as polêmicas em relação a Marco Feliciano surgiram, concretamente, a partir de
afirmações sobre “maldições” que afetariam as populações africanas – e que teriam uma explicação
teológica para tal “fato” - e também sobre o comportamento homossexual, que seria o núcleo de
uma política de intolerância promovida por setores do movimento LGBTT e da opinião pública
contra os cristãos, especialmente os de confissão evangélica.
A primeira pergunta, porém, que talvez se faça aqui é “mas o que esta polêmica toda tem a
ver com a ABU? Porque estamos discutindo isto em um Treinamento Local? O que isto vai mudar
na minha vida universitária? Precisamos nos organizar politicamente para defender os evangélicos
da ameaça iminente de uma ditadura gay se instalar no Brasil e fechar todos os canais de livre
expressão religiosa, tolhendo a liberdade de crença dos evangélicos e nos submetendo a uma
perseguição apocalíptica no país?!” Não creio que estamos, neste momento, à beira do fim dos
tempos – na verdade, o fim dos tempos é temido e gera confusões a pelo menos dois milênios, e
seus resultados, francamente, me levaram a uma preocupação maior com o meu testemunho na vida
presente que Deus me concedeu, do que com a futurologia apocalíptica. Mas muitos parecem
acreditar que os caminhos futuros serão sórdidos e perigosos para os cristãos evangélicos nos
próximos anos, uma vez que os valores fundamentais do cristianismo estariam ameaçados pelas
“hordas imorais” que tentam “impor” o aborto e as práticas homossexuais sobre a população cristã e
conservadora do país.
A questão fundamental é que a polêmica que envolve a figura de Marco Feliciano e os
militantes dos direitos humanos atinge, necessariamente, os cristãos, especialmente os evangélicos.
É impossível ficarmos alheios ao debate. E o que constatei, particularmente, é que os cristãos
evangélicos não possuem uma posição hegemônica sobre o assunto, apesar de claramente haver
uma maioria que apoia a presença de Marco Feliciano na presidência da CDHM, atribuindo a esta
*
Texto apresentado em oficina oferecida no Treinamento Local da Aliança Bíblica Universitária de Campinas
(ABUCamp), em 20/04/2013.
*
* Cientista Social e Mestrando em Ciência Política pelo IFCH/UNICAMP.
1
2. polêmica conotações bíblicas que nos remetem a uma espécie de guerra santa que estaria a ser
travada na esfera pública. O propósito desta oficina, portanto, é fomentar um debate sobre o que
significa ser cristão neste contexto polêmico, onde questões tão importantes como o direito à
diferença, os direitos humanos, a representação política, o caráter do Estado, e o papel dos cristãos
na política, colocam-se em cena.
Talvez alguém se questione o que o universitário cristão tem a ver com isto. Eu digo: tem
tudo a ver! Afinal, você está num ambiente plenamente sujeito ao debate político e que agrega um
enorme e variado conjunto de identidades políticas, culturais, religiosas, sexuais, nacionais, etc.
Este ambiente é a universidade, que não apenas exerce um papel na sociedade, mas é também
impactada pelos dilemas que a sociedade produz. A política, o mercado, as desigualdades sociais, a
violência, o preconceito, entre outros aspectos vividos na cidade, afetam diretamente a vida dos
universitários e a própria organização da universidade. Portanto, não estamos alheios ao que
acontece lá fora: pelo contrário, somos atingidos por isto, e temos a responsabilidade de dar
respostas a estes dilemas – de preferência, as boas respostas, afinal, pessoas para oferecerem o que é
pior não faltam.
O que significa, hoje, ser “evangélico” na política?
Muito tem se falado sobre a presença dos cristãos evangélicos na política. Há talvez três
décadas atrás, ter isto como objeto de discussão poderia parecer bastante irreal ou heterodoxo, uma
vez que o sentimento mais convencional era o de que “evangélico não devia se meter com política”.
Não é verdade, porém, que isto não ocorresse no Brasil. Na história do cristianismo protestante
brasileiro, por exemplo, temos figuras de relevada importância que promoveram debates e atuaram
ativamente na política – não necessariamente como representantes parlamentares, mas como
referências intelectuais e militantes. Podemos falar, por exemplo, de Richard Shaull, teólogo
americano radicado no Brasil; Waldo César, sociólogo protestante e um dos fundadores da
Confederação Evangélica do Brasil, com uma história marcada pelo diálogo ecumênico; Anivaldo
Padilha, metodista, que foi preso e torturado por fazer oposição à ditadura militar brasileira;
Robinson Cavalcanti, que foi bispo anglicano em Pernambuco e referência para o debate sobre
justiça social entre grupos evangélicos; Marina Silva, ex-senadora e que se tornou conhecida por
sua militância pela causa ambiental. Citei aqui, obviamente, os exemplos que admiro (ou já admirei
mais) e cuja importância reconheço. E me restringi apenas aos cristãos protestantes (se eu fosse
falar do católicos, também poderia desfiar mais alguns nomes, principalmente se considerarmos a
importância da militância popular católica contra a ditadura brasileira). Mas, obviamente, não quero
2
3. passar a impressão de que toda atuação política “evangélica” é benéfica para o país. Muitas igrejas
protestantes no país se calaram durante os anos de chumbo da ditadura, e muitos políticos
evangélicos também vinham à cena pública para defender medidas contrárias à liberdade e ao
reconhecimento de direitos para populações carentes, mulheres, etc. O temor do comunismo e do
crescimento de uma perseguição contra as Igrejas evangélicas sempre foi uma válvula de escape
especial para estes setores. A reivindicação dos “valores da família” e da “sociedade cristã”
brasileira sempre foram uma constante.
Como afirmei, é verdade que existia um senso comum de que evangélico não se metia com
política. Mas ao final da década de 1980, especialmente no período da constituinte, esta tendência
ganhou outro rumo. De lá pra cá, aumentou bastante o número de parlamentares evangélicos. Ela
cresceu numa constante durante a década de 1990. Para se ter ideia, 33 deputados evangélicos
foram eleitos para a Assembleia Constituinte de 1987, sendo 18 deles pertencentes a ramos
pentecostais e, destes, 14 sendo da Assembleia de Deus1
; dez anos depois, no pleito de 1998, os
deputados federais evangélicos ocupavam 44 cadeiras no Congresso – sendo 14 deles membros da
Igreja Universal do Reino de Deus2
. Nos anos seguintes, este número tendeu à estabilidade: foram
51 deputados federais e dois senadores na legislatura 1999-2003; 58 deputados e três senadores no
período 2004-2007; 40 deputados e dois senadores para a legislatura 2008-2011. Nota-se que há
uma redução no período 2008-2011 que pode ser considerada efeito do escândalo das
“sanguessugas”, que envolveu diversos parlamentares vinculados à IURD3
.
Mas falar de cristãos evangélicos na política não significa falar apenas daqueles que
exercem mandato parlamentar. Os cristãos de confissão evangélica cresceram muito no país nos
últimos vinte anos. Em 2000, os evangélicos representavam 15,4% da população brasileira, e isto já
representava o dobro da porcentagem registrada no início da década de 1990. Hoje, esta fatia
alcança 22%4
. Em termos eleitorais, os números são semelhantes. De acordo com o ESEB – Estudo
Eleitoral Brasileiro – de 2010, os evangélicos representam 21,6% do eleitorado brasileiro. É
evidente, portanto, que os evangélicos não são mais uma mera minoria no país: eles tem o poder de
desequilibrar as eleições, e os grandes partidos perceberam isto. Daí ter se tornado rotina nos
últimos pleitos a quantidade de candidatos que se comprometem, ou pelo menos dialogam, com as
1
PIERUCCI, Antônio Flávio e PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e
política. São Paulo, Hucitec, 1996, p. 169-171
2
MACHADO, Maria das Dores Campos. Política e religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de
Janeiro, Editora FGV, 2006, p. 27.
3
BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura política, Estado e
atores coletivos religiosos no Brasil. São Paulo, Annablume; São Bernardo do Campo, Instituto Metodista Izabela
Hedrix, 2009, p. 365.
4
“A fé dos brasileiros”, em O Estado de São Paulo, disponível em <http://estadaodados.com/html/religiao/>, acesso
em 19/04/2013.
3
4. bandeiras tradicionalmente reivindicadas pelo que podemos chamar de “setores evangélicos”.
Ledo engano, porém achar que os evangélicos são os simples alvo dos políticos de plantão.
Pelo contrário, as igrejas desejam profundamente ser procuradas. E não apenas isto. As igrejas,
através de seus líderes, atuam na cena política de modo bastante interessado e articulado. Não é por
caridade, nem por altruísmo: os evangélicos querem espaço na política brasileira. Querem o direito
de barganhar com o Estado. E querem refletir seu moralismo nas leis e na constituição que rege o
Brasil. Eu costumo dizer que os evangélicos pensam o Estado através de uma "mentalidade
bipolar": ao mesmo tempo que os famosos pastores, bispos e apóstolos midiáticos rechaçam
qualquer interferência do Estado nos espaços eclesiásticos, agem no sentido de estabelecer suas
convicções religiosas, sem as depurações necessárias e provenientes do debate público, como
instrumentos de orientação e prática do Estado.
Creio que a partir deste ponto podemos compreender as orientações que normalmente guiam
os discursos e práticas políticas dos evangélicos no parlamento e em outros espaços públicos.
Nenhum destes ousa questionar a laicidade do Estado, mas fazem questão de lembrar que ninguém
pode abandonar suas crenças religiosas. Até aí, acredito que ninguém discorda. Mas o que significa
ser religioso frente as instituições laicas? E principalmente, o que significa a existência e o
funcionamento de um Estado e instituições laicas? O que é permitido e o que não é? O que o
religioso poder ser ou não? Que valores são flexíveis ou não? São estes dilemas que se colocam
para os cristãos: pensar o que é defender valores cristãos numa sociedade em que nem todos são
cristãos, e na qual, inclusive, há muitos cristãos que divergem entre si sobre que valores devem ser
defendidos.
A questão da diferença
É impossível encontrar um grupo qualquer onde diferenças e divergências não se coloquem.
Quanto mais numa sociedade, especialmente a que vivemos, urbana, industrial, consumista, plural,
repleta de diferentes identidades. Às vezes, inclusive, estamos tão imersos na sociedade que não nos
damos conta da existência de diferentes sociedades dentro do nosso próprio país. E muitas vezes, o
não reconhecimento destas diferentes expressões culturais, identitárias e sociais nos levam ao
desprezo delas, e ao não reconhecimento de seus direitos. Um termo muito caro à antropologia é a
alteridade: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, reconhecendo suas posições, seus limites,
seus fundamentos, e estabelecendo a partir destes elementos um diálogo para o reconhecimento do
diferente, e do seu direito à existência. Não significa, obviamente, que tudo é aceitável e relativo.
Determinadas ideologias são criminalizadas no Brasil como, por exemplo, o racismo e o
4
5. nazifascismo. Creio que não é difícil entender porque. Mas cabe lembrar que, se estamos falando de
reconhecimento das diferenças, podemos inferir que a principal coisa que estas ideologias não
fazem é reconhecer o direito à diferença.
Sabemos que hoje a bola da vez está com os homossexuais. O movimento LGBTT é
bastante organizado e reivindica o reconhecimento da sua diferença, e os direitos devidos a esse
reconhecimento. Não acredito que aqui seja o espaço para discutirmos se os cristãos correm riscos
de serem “calados” por criticarem a prática homossexual. Na verdade, penso que este é um falso
dilema. Mas questiono: não é injusto ignorar que os homossexuais que constroem um patrimônio
conjunto estavam em situação de insegurança jurídica pelo fato de não terem sua união afetiva
reconhecida pelo Estado? Ou que os homossexuais estão cabalmente expostos à violência por
motivação homofóbica? Neste último caso, a situação é tão grave que até mesmo heterossexuais
sofrem violência motivada por homofobia, por mais absurdo que pareça.
A violência e a desigualdade de direitos, porém, não incide apenas sobre homossexuais.
Estes dois aspectos apresentam recortes étnicos, de gênero, e sociais também. Entre as vítimas de
homicídios, morrem mais negros do que brancos, especialmente na periferia. E, ainda por cima, a
tendência constatada no Brasil é a de aumento do número de negros mortos, e redução do de
brancos5
. No caso da questão de gênero, houve um aumento considerável no número de denuncias
de agressão e estupro contra mulheres6
, e a questão da liberdade de ir e vir das mulheres, do repudio
à violação de seus corpos, e da garantia do respeito ao seu corpo, também estavam na ordem do dia
(todos lembramos da famosa “Marcha das Vadias”, não?). E a respeito dos casos de violência e
desigualdade de fundo social, acredito que isto está fora de dúvida. Basta andarmos um pouco além
dos limites universitários de Barão Geraldo para percebermos que existem populações carentes de
infraestrutura, saúde, educação, segurança, transportes adequados, saneamento básico, etc.
Entre estes problemas existem aqueles que são maiores ou menores do que outros? Penso
que não. E isto é um problema recorrente, e que precisamos problematizar. Pude dialogar com
muitos colegas, inclusive evangélicos, a respeito destes problemas, e também sobre corrupção,
outro tema de notória comoção pública. E todos vimos que se criou uma disputa nos debates
públicos e nas redes sociais a respeito do que era mais preocupante: a presença de Marco Feliciano
na presidência da CDHM, ou a presença de José Genoíno e João Paulo Cunha na Comissão de
Constituição e Justiça do Congresso, apesar dos mesmos terem sido condenados no famoso
julgamento do “mensalão” no segundo semestre de 2012. Muitos defenderam que o PT havia agido
5
“A cor dos homicídios”, em Le Monde Diplomatique, disponível em <http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?
id=1349>, acesso em 19/04/2013.
6
“A rotina da violência contra as mulheres”, em O Globo, disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/a-rotina-da-
violencia-contra-as-mulheres-7778967>, acesso em 19/04/2013.
5
6. de caso pensado, abandonando a presidência da CDHM e deixando a cadeira aberta para os partidos
do governo – restando ao PSC assumi-la e, consequentemente, Marco Feliciano. A ação seria
proposital para que os réus do “mensalão” não fossem execrados na opinião pública, cabendo a
Marco Feliciano a tarefa de encarar a revolta social por conta de sua já conhecida e polêmica
personalidade. Não acredito na viabilidade deste argumento. Pelo contrário, penso que o maior
beneficiado nesta história não é o PT, mas o PSC – ou vocês acreditam que Marco Feliciano não vai
capitalizar politicamente toda esta situação? Porém, acredito que a discussão principal não deve
girar em torno do que é pior: se é ter dois deputados condenados por corrupção na CCJ, ou um
deputado que faz declarações racistas e homofóbicas na presidência da CDHM. Na verdade, o que
precisamos reconhecer é que ambas as situações representam um problema, e há uma necessidade
de questionamento e protesto contras todas elas. Seria muito delongado entrar no mérito das
correlações de força políticas que levam os movimentos sociais e a opinião pública a se dedicarem a
um único problema. Mas é necessário enfatizar que não há uma situação melhor que a outra.
Temos, portanto, uma situação sobre a qual precisamos refletir. Existem grupos que
reivindicam o reconhecimento de suas diferenças, e o direito a elas. E o não reconhecimento destes
direitos os coloca em uma insegurança jurídica e social, uma vez que são violentados por conta de
sua condição (étnica, de gênero, de orientação sexual, religiosa, social, cultural, identitária, etc). Isto
implica o reconhecimento de suas vozes e de sua dignidade. Como lidar com isto a partir da
reflexão cristã?
Uma reflexão bíblica
Tanto no Velho Testamento, quanto no Novo Testamento, sempre encontramos referências
ao cuidados com os oprimidos. Um versículo que admiro profundamente encontra-se no livro dos
Salmos. E trata-se de um clamor por justiça e por ação: “Tens ouvido, SENHOR, o desejo dos
humildes; tu lhes fortalecerás o coração e lhes acudirás, para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido,
a fim de que o homem, que é da terra, já não infunda terror” (Sl. 10: 17-18). O salmista deixa
bastante claro quem é aquele para os quais Deus volta seus ouvidos e inspira para que lute por
justiça. Não é mera retórica. Devemos lembrar do quão importante significa o processo de
libertação que o povo hebreu vivenciou, e que se encontra relatado no livro do Êxodo. Deus estava
com aquele povo, e deu a eles um líder, Moisés, para que os guiasse no caminho que os levaria a
terra prometida. Era este um caminho de liberdade. Amarras servis não mais prenderiam aquele
povo.
Alguém talvez questione em quê este episódio se relaciona com a nossa realidade. Eu digo
6
7. que em muitas coisas. Toda referência histórica é fundamental para pensarmos o agir na nossa
realidade. Esta, por exemplo, é mais do que especial, porque nela vemos Deus libertando seu povo
da escravidão, levando-o a busca de uma trilha de liberdade política e espiritual. Aqueles eram os
oprimidos daquele tempo.
Esta figura, do oprimido, é recorrente no Velho Testamento, e vinculada a outra figura
fundamental: a da justiça. Sem estas referências, seria bastante complicado compreender, por
exemplo, a exortação de Isaías: “Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor;
defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Is. 1: 17). Tampouco compreenderíamos o
reclamo de Amós, este profeta que, ao anunciar o desprezo de Deus pelos sacrifícios, afirma: “antes,
corra o juízo como as águas, e a justiça como ribeiro perene” (Am. 5: 24).
Também podemos nos remeter ao Novo Testamento e, mais especificamente, às palavras de
nosso Mestre e Salvador, Jesus Cristo. Em especial, faço referências a algumas das bem-
aventuranças, presentes no Sermão do Monte registrado no Evangelho de Mateus: “Bem-
aventurados os que tem fome e sede de justiça, porque serão fartos (…); Bem-aventurados os
pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus; Bem-aventurados os perseguidos por causa
da justiça, porque deles é o reino dos céus” (Mt. 5: 6, 9-10). Jesus Cristo nos convoca a proclamar
fundamentalmente a justiça e a paz, e também nos exorta, em outros versículos, à mansidão, à
humildade e à misericórdia. A recompensa de todas estas atitudes as quais Deus nos chama a
exercer é a certeza de que combatemos o bom combate, e que o Reino será visível e vivido por
todos nós. Reino pleno de amor, um amor que precisamos viver agora, o fundamento dos principais
mandamentos ensinados por Jesus: amar ao Senhor de todo coração; e amar ao teu próximo como a
ti mesmo (ver Mt. 22: 37-40). Ora, os Evangelhos relatam Jesus como um mestre amoroso e
sedento de justiça. As curas e milagres de Jesus são exercidas, especialmente, para com aqueles que
carregavam sobre si o estigma social, o abandono de seus pares: crianças, viúvas, cegos, mudos,
leprosos. Isto nos ensina: Jesus não os curava, não os consolava, não os amava porque “achava
bonitinho cuidar de gente pobre e abandonada”. Jesus sabia quanto sofrimento pesava nas costas
destes desgraçados. Por eles, e através deles, Jesus mostrava o caminho: caminho da igualdade, da
justiça, do direito, do respeito. Caminho da paz, e paz com direito a voz.
Mas, então, o que temos para hoje? Quem são os oprimidos, aqueles que precisam ser
reconhecidos, que precisam ter direitos, que precisam ser alvos da justiça? É sempre difícil chegar a
uma conclusão consensual a respeito de quem é este “oprimido”. Mas, em grande medida, ninguém
aqui nega que a maior parte da população brasileira e mundial vive nas mais precárias condições de
existência. Então, de certo modo, aqueles que padecem com parcos salários, condições degradantes
de trabalho, ausência de creches e escolas, baixos investimentos governamentais em saúde,
7
8. educação, saneamento básico, todos estes homens e mulheres situados nestas condições merecem
nossa profunda atenção. Como cristãos, não podemos admitir que estas coisas perdurem sem que
levantemos nossa voz contra elas.
Porém, coloco a vocês a possibilidade de considerarmos aqueles que não são oprimidos
apenas por suas condições materiais, mas também por suas condições étnicas, de gênero, por suas
orientações sexuais, suas expressões religiosas. Devemos trabalhar com a perspectiva de sempre
garantir que todos tenham seus direitos reconhecidos, e que ninguém sofra discriminação ou
violência por conta de sua condição. Os parlamentares evangélicos, e muitas comunidades cristãs,
infelizmente não aceitam isto, especialmente quando falamos de homossexuais. Penso, porém, que
pelo fato de estarmos situados em uma democracia que se reivindica laica, os atores sociais
religiosos devem propor um diálogo, que pode ser intransigente na defesa de direitos básicos e
reconhecidos como direitos humanos em caráter universal, mas que não procura negar a diferentes
atores o acesso a estes mesmos direitos. A Igreja deve, necessariamente, colocar suas disposições
políticas em favor da defesa da dignidade humana, e respeitar direitos que, à primeira vista,
respaldem práticas que pareçam moralmente negativas ao cristianismo, mas que não são
necessariamente criminalizáveis. Retomo as palavras do pastor Ed René Kivitz, publicadas no
Twitter em 2011, e que resumem com clareza o que deveria ser algo óbvio para nós: "Nem todo
crime é pecado, nem todo pecado é crime". E também registro aqui as palavras do deputado
estadual Carlos Bezerra Jr, publicadas em seu site, recentemente: “Há mais de dois mil versículos
na Bíblia falando sobre o cuidado com os pobres e aproximadamente seis tratando sobre
homossexualidade, por exemplo. No entanto, não se vê nenhum projeto para atender a quem sofre.
Pergunto: Quantas vezes Jesus falou sobre homossexualidade? Respondo: Nenhuma… No topo da
lista dos confrontados pelo Mestre estavam os homossexuais? Ou eram os hipócritas religiosos de
Sua época? Por que, então, super explorar alguns temas de forte apelo eleitoral e desvalorizar
outros, claramente enfatizados pela Bíblia e por Jesus? A quem interessa reduzir a essência amorosa
e transformadora da mensagem de Jesus à agenda moralista? Será que esses que fecham os olhinhos
diante das câmeras da imprensa, parecendo muito espirituais, não os mantêm bem abertos, fixos nos
votos que podem tirar de todo esse teatro?”7
.
Temos uma grande missão: proclamar a Verdade que nos salva, que nos perdoa, que nos
orienta à justiça, apesar de tudo o que somos. Façamos esta Verdade que nos constrange correr o
mundo, aplicando-a no nosso dia a dia, e utilizando-a como fundamento do amor para com todos
aqueles que estão à nossa volta, com suas diferenças e especificidades. Reconheçamos seus direitos
e sua dignidade. Um primeiro passo de amor para um caminho de justiça, pela Graça de Cristo.
7
“Fé cega, faca amolada”, disponível em <http://www.carlosbezerrajr.com.br/blog/?p=704>, acesso em 19/04/2013.
8