Apresentação | Símbolos e Valores da União Europeia
Os três avisos do mar
1. Os três avisos do mar
Um velho pescador fizera fortuna a retirar do
mar todo o peixe e todo o marisco que ele tinha
para lhe dar. Com o dinheiro ganho, construiu
casas e comprou terras. Quanto mais ganhava,
mais queria ganhar, quanto mais tinha, mais
queria ter.
Num ano em que o peixe começou a escassear, o velho pescador ficou
preocupado e tomou uma decisão: levou comida suficiente para vários dias e subiu a
uma rocha junto do mar para pedir ao Grande Deus das Águas que voltasse a dar‐lhe a
abundância perdida. Só dali sairia quando a divindade das águas atendesse o seu
pedido.
O velho pescador era um homem experiente e obstinado e sabia que o Grande
Deus das Águas acabaria por atender os seus pedidos. Ele sempre fora devoto e
dedicado, e quando se fazia ao mar, prometia à divindade oferendas várias, e cumpria
o que prometia.
Dá‐me uma faina farta – disse, erguendo as mãos para o céu, e eu acenderei
velas e farei muitos sacrifícios em teu nome.
Enquanto o velho pescador se desfazia em promessas, o mar ia subindo e cercando
o rochedo onde ele se encontrava.
Primeiro passou por ele um pequeno barco de pesca e aquele que o conduzia
gritou‐lhe no meio do fragor das ondas:
Tem cuidado, que a maré está a subir. Se não saíres agora, terás dificuldade em
fazê‐lo.
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2. O velho pescador não lhe deu ouvidos e continuou, de olhos postos no céu de
chumbo, a fazer as suas promessas e as suas rezas.
Depois voou‐lhe em círculos, rente à cabeça, uma gaivota, que lhe murmurou:
O rochedo em que estás ficou cercado pelas águas. É melhor que partas
enquanto é tempo.
Mas também à gaivota o velho pescador não quis dar ouvidos, continuando a falar
para o alto, para o Grande Deus das Águas, pedindo‐lhe a abundância de peixe e a
riqueza que ela traz consigo.
Por fim, saltou das águas um grande peixe‐voador, com escamas prateadas, e
disse‐lhe:
As águas do mar cercaram‐te. Se não saíres agora, estás perdido. Ainda posso
ajudar‐te, se tu quiseres. Podes montar‐te no meu dorso, e deixar‐te‐ei em terra, são e
salvo.
Mas também desta vez o velho pescador não deu ouvidos a quem, esforçando‐se,
tentava avisá‐lo e pô‐lo a salvo.
Quando caiu a noite, o velho pescador, já cansado de tanta reza, tentou partir.
Tinha os braços e as pernas entorpecidos pela humidade e os lábios ressequidos pelo
sal. Olhou à volta e viu que estava condenado. O nível das águas subira muito, e ele
não tinha forma de voltar à terra. Aí, levou as mãos à cabeça e dirigiu‐se de novo ao
Grande Deus das Águas, desta vez em tom de protesto:
Senhor, não só não atendeste os meus pedidos como me deixaste aqui cercado
sem nada fazeres para eu ser salvo.
Isso é falso – disse uma voz grave e sincopada lá no alto, no meio das nuvens de
tempestade – , mandei um pescador, uma gaivota e um peixe‐voador avisarem‐te, mas
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3. a nenhum quiseste dar ouvidos. E assim tem sido toda a tua vida. Só deste ouvidos ao
tilintar das moedas que a abundância de peixe te punha nos cofres. Mas quem dá o
peixe, também o tira.
O velho pescador cobriu o rosto com as mãos e ficou à espera, desolado, que o mar
o levasse, e estava tão cansado que adormeceu. Quando acordou, descobriu, com
surpresa e alívio, que afinal estava vivo. Levantou os braços para o céu, agradecendo
ao Grande Deus das Águas e, desse dia em diante, passou a contentar‐se com o peixe
que o mar tinha para lhe dar. Diz‐se mesmo que repartiu a sua frota de pesca pelos
pescadores mais pobres e que nunca mais voltou àquele rochedo, nem mesmo para
agradecer ao Grande Deus das Águas os anos que ainda lhe deu de vida. Sempre que
um peixe‐voador lhe vinha parar às redes, apressava‐se a libertá‐lo, murmurando:
Não sei se foste tu que me avisaste do perigo que eu corria, mas se não foste
tu, és pelo menos muito parecido.
José Jorge Letria, Lendas do mar
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