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O livro narra a jornada de sobreviventes de um naufrágio ao largo da costa africana,
especificamente na região da Cafraria (atualmente parte da África do Sul). A narrativa começa
com a descrição da destruição de suas embarcações, a Náo e o Galeão, e como os
sobreviventes se organizaram após o desastre.
Após o naufrágio, os sobreviventes enfrentaram inúmeros desafios, incluindo a necessidade de
encontrar comida e água, lidar com o clima adverso e navegar por territórios desconhecidos e
muitas vezes hostis. Eles encontraram várias tribos locais ao longo do caminho, algumas das
quais eram amigáveis e outras hostis. A interação com essas tribos foi essencial para a
sobrevivência do grupo, pois muitas vezes dependiam delas para obter alimentos e
orientações.
A jornada foi marcada por perigos constantes, incluindo ataques de tribos locais, animais
selvagens e as dificuldades inerentes à travessia de rios e regiões pantanosas. Apesar dos
desafios, o grupo foi auxiliado por alguns membros das tribos locais, que os guiaram e
forneceram recursos essenciais.
Eventualmente, o grupo chegou a Moçambique, onde foram recebidos por outros portugueses.
A chegada foi marcada por uma mistura de alívio e tristeza, pois, enquanto estavam gratos por
terem sobrevivido à sua provação, também foram confrontados com notícias de outros
desastres marítimos e perdas na região.
A narrativa conclui refletindo sobre os perigos do mar e a resiliência e determinação dos
portugueses em enfrentar tais adversidades. Há uma ênfase particular na habilidade dos
portugueses em navegar e descobrir os "segredos do mar e da terra"
No ano de 1647, a Nau Nossa Senhora da Atalaia enfrentou um dos momentos mais críticos da
sua existência. No dia 19 de Abril, sob as ordens do Almirante, a tripulação saudou o Galeão
Sacramento com uma salva de sete tiros de canhão. O que deveria ser um gesto de cortesia e
camaradagem rapidamente se transformou em calamidade.
Após a salva, a Nau Nossa Senhora da Atalaia começou a fazer água a um ritmo alarmante.
Escravos e grumetes, em uma tentativa desesperada de manter o navio à tona, esgotavam a
água que invadia o navio duas vezes por dia. A situação era agravada pelo fato de que a
embarcação já mostrava sinais de envelhecimento, tornando-a mais vulnerável a tais
adversidades.
Aqueles a bordo que tinham conhecimento marítimo estavam cientes do perigo iminente. O
Cabo da Boa Esperança, conhecido pelas suas águas traiçoeiras e tempestades violentas, estava
no horizonte da rota da nau. E enfrentar esse desafio durante o rigoroso inverno só aumentava
os riscos. As tempestades nesta região são notoriamente desafiadoras, e mesmo as
embarcações mais robustas e novas enfrentam dificuldades para navegar por estas águas.
Infelizmente, a combinação de um navio antigo, danos estruturais após a saudação e as
condições adversas do Cabo da Boa Esperança culminaram no trágico naufrágio da Nau Nossa
Senhora da Atalaia. Este evento serve como um lembrete sombrio dos perigos do mar e das
decisões que, embora tomadas com boas intenções, podem ter consequências devastadoras.
SENHOR,
Sendo costume e sempre verdadeiro propósito dos perigos logo se contar
depois de passados, outro maior mérito fica dos que me custaram tanto, qual
foi o que Vossa Majestade, que Deus guarde, mostrou quando me fez mercê
escutar o largo discurso dos mesmos, mandando-me lhe oferecer depois de tão
larga jornada. Pois Vossa Majestade tem tanto a sua conta honrar e premiar
seus vassalos, como também a rigorosa certeza de passar os olhos pela relação
dos trabalhos de tantos, porque com esse só fato receberemos todos o maior
prêmio que se pode desejar. À muito alta e poderosa pessoa de Vossa
Majestade guarde nosso Senhor, como estes Reinos hão mister, e deseja seus
vassalos. Lisboa, 3 de janeiro de 1650.
Com o devido respeito e na mais humilde posição, Bento Teixeira Feio.
---
Na noite, soltámos as velas com ventos favoráveis até atingir uma latitude de dez graus e um
terço a norte. Numa manhã de sábado, a Capitania içou uma bandeira, que logo avistámos,
assim como uma outra vela. Ao aproximar-se mais, a Capitania disparou duas peças sem bala,
forçando o outro navio a reduzir as velas e a lançar o seu batel ao mar. O Capitão Mor enviou o
seu escudeiro, Manuel Luís, com uma equipa ao batel. Durante quatro dias e noites,
mantivemo-nos na companhia deste navio. Durante este tempo, o Capitão Mor tentou
convencer a tripulação do outro navio, que tinha sido capturado, a juntar-se a nós, apesar de
trazerem cartas do Vice-Rei em nome do Rei para Mucelapatao, um aliado importante da Índia.
No entanto, o capitão, os oficiais e os cavaleiros do navio Asfalaya, ao serem consultados sobre
o assunto, não concordaram com a proposta. Deixámos a área na terça-feira, 5 de março.
Durante os dias em que estivemos parados, os marinheiros experientes acreditavam que
tínhamos perdido tempo valioso, o que mais tarde se confirmou quando enfrentámos
dificuldades para contornar o Cabo da Boa Esperança.
A bordo do navio em que embarquei, os religiosos tomaram a iniciativa de cantar as Ladaínhas
todos os dias, celebrar a Missa e pregar aos domingos e dias santos. João da Cruz, o Guardião
do navio, construiu um sepulcro muito elaborado, onde mantivemos o Senhor exposto durante
vinte e quatro horas, com confissões e comunhões realizadas na Quinta-feira Santa.
A 12 de março, chegámos à foz do rio, com a Capitania a cortar caminho devido ao sinal que
tinha sido dado.
---
Com três peças, descobrimos que o Inquisidor Antonio de Faria Machado havia
falecido. Ele tinha estado na Índia durante dezessete anos e era muito
respeitado e admirado por sua conduta e autoridade. Sentimos a sua perda,
assim como a de outras pessoas que tinham saído de Goa doentes. Ainda assim,
havia muitos fidalgos e pessoas nobres que, com a sua coragem, ajudaram na
salvação daqueles de nós que sobreviveram, muitas vezes arriscando as suas
próprias vidas.
Com chuvas intensas e períodos de calmaria, navegámos depois de cruzar a
linha do Equador. De repente, um grito vindo da gávea anunciou: "Uma vela à
vista!" Era o Galeão S. Pedro, que tinha partido de Goa quinze dias depois de
nós e nos acompanhou durante vinte dias antes de seguir o seu próprio
caminho.
No dia 19 de Abril, o Almirante ordenou uma saudação ao Galeão Sacramento
com sete tiros de canhão. No entanto, o nosso navio começou a fazer água
rapidamente, e escravos e grumetes tinham que esgotá-la duas vezes por dia.
Isso preocupava aqueles que entendiam o perigo que enfrentávamos,
especialmente porque o nosso navio era antigo e estávamos prestes a enfrentar
o Cabo da Boa Esperança durante o rigoroso inverno, quando as tempestades
são frequentes e desafiantes, mesmo para embarcações novas.
Em 10 de Junho, já a uma latitude de 33 graus sul e com bom tempo, o nosso
mastro principal quebrou. Informámos a Capitania sobre o incidente e sobre a
água que entrava no navio, pedindo-lhes que nos acompanhassem. Foi-nos
enviado um semi-mastro para reparar o dano, mas devido ao aumento do
vento, não foi possível realizar o conserto. Em 12 de Junho, ao anoitecer,
estávamos ainda na companhia da Capitania quando o vento acalmou pouco
antes do pôr do sol, seguindo na mesma direção.
---
Da terra, com o vento vindo do oeste, surgiu um céu muito vermelho com nuvens
negras e carregadas. Houve um relâmpago isolado e avistámos um peixe Orelhão, uma
criatura grande, ambos sinais de uma noite tempestuosa que se aproximava. O vento
começou a soprar com força. Recolhemos as velas e ficámos apenas com os papafigos
ajustados durante uma parte da noite. Com o surgimento da Lua, o mar agitou-se e o
vento intensificou-se de tal forma que o navio inclinou-se violentamente, levando
muita água para o convés e submergindo as antenas e cordas.
Ordenou-se que se recolhessem as velas e cordas para virar a vela principal, mas
devido ao medo do forte temporal e à inexperiência de alguns marinheiros, as velas
foram recolhidas de forma desordenada. Isso fez com que o navio virasse
abruptamente, enfrentando um vendaval tão intenso que destruiu a vela principal e o
traquete. O estrondo foi tão grande que pensámos que o navio iria partir-se. Durante
algum tempo, o navio foi jogado de um lado para o outro pelas ondas, tornando quase
impossível mantermo-nos de pé. Naquele momento, muitos da tripulação já haviam
falecido devido a doenças, restando apenas oito marinheiros, quatro grumetes e alguns
passageiros. Todos se esforçaram para controlar uma vela de emergência que tínhamos
preparado para situações extremas. Com esta vela, conseguimos estabilizar um pouco
o navio, apesar da vela principal estar destruída e o traquete estar danificado, com os
estandartes presos e impossíveis de cortar devido às condições adversas. Neste estado,
passámos o resto da noite com o navio a ser constantemente atingido pelas ondas,
acumulando rapidamente água no convés, enquanto tentávamos manter o curso com o
vento.
---
Um tempestuoso amanhecer nos surpreendeu no dia de Santo António, com as velas rasgadas
e sem a companhia da Capitania. Preparámo-nos para a noite seguinte, que se mostrava tão
ameaçadora quanto a anterior, com chuvas de pedras tão grandes quanto as velas,
acompanhadas de muitos trovões e relâmpagos.
Apesar do mau tempo, e com o navio a navegar a favor do vento, fomos ajustando e retirando
o pano que restava na verga, colocando uma vela menor no traquete, para que, caso o vento
diminuísse, o navio pudesse manobrar e evitar as ondas que pareciam querer nos engolir.
Passámos esse dia e, no seguinte, com o tempo um pouco mais calmo, ajustámos outra vela,
mas sem nunca largar as bombas. Após alguns dias de navegação, avistámos terra a 32 graus e
decidimos rumar para ela, com a esperança de que, à sua sombra, poderíamos fazer reparos e
verificar a condição da água no navio. No entanto, a principal preocupação parecia ser a pesca,
e houve quem criticasse essa falta de atenção ao estado do navio.
O Mestre Jacinto António, considerando a situação em que nos encontrávamos e a escassez de
soluções, achou prudente dirigir-se a Moçambique antes que o tempo nos impedisse
completamente. Lá, poderíamos salvaguardar os bens e a artilharia de Sua Majestade e
procurar ajuda para todos. Esta ideia espalhou-se rapidamente. Dom Duarte Lobo pediu ao
Mestre que, ao verificar o estado do navio, do qual havia relatos variados, levasse consigo os
outros oficiais para decidir o melhor a fazer. No entanto, muitos não ficaram satisfeitos com
esta proposta, devido aos compromissos que tinham e à pouca atenção que lhes foi dada em
Goa. Isso fez com que o Mestre e os outros que consideravam a ideia de dirigir-se a
Moçambique fossem intimidados, de modo que a única decisão tomada foi continuar a
navegar.
---
A caminho de Portugal, navegamos por várias rotas durante alguns dias, aumentando a nossa
distância em relação ao Cabo. As bombas não paravam de trabalhar, e todos nós ajudávamos,
sem exceção, incluindo os próprios religiosos.
Preparámos alguns barris para bombas, fazendo-lhes arcas e abrindo a boca do porão para
uma cisterna. No entanto, o esforço foi em vão devido à forma como a artilharia tinha sido
arrumada em Goa. Na boca da escotilha, deixaram quatro peças, e havia rumores de que o
navio tinha muitas curvas e pés de carneiro fora do seu lugar. Decidiram que, navegando a uma
altitude menor, encontraríamos condições mais calmas e poderíamos recolher alguma água. O
Mestre, outros oficiais e o Almirante foram verificar a situação abaixo do convés, sem levar D.
Duarte Lobo, apesar de ele ter pedido. Quando regressaram, o Mestre, mostrando três pregos
do forro, disse que o navio não estava em condições de ir a Jerusalém. Assim, decidiram
apenas focar-se na viagem de regresso ao Reino e na pesca, voltando para o mar sem tomar
mais medidas, apesar dos riscos e desafios da viagem que tinham pela frente.
Ao virar para terra no dia de São Pedro e São Paulo, o Piloto Gaspar Rodrigues Coelho decidiu
soltar a vela da gávea de proa. O Sotapiloto Balthazar Rodrigues avisou-o de que estavam perto
da terra, mas Gaspar respondeu que tinha navegado por aquela costa durante muito tempo e
que não havia motivo para preocupações, a menos que vissem as duas empulhetas do
quartinho. Bras da Costa, marinheiro e cunhado do Mestre, que estava a comandar a
navegação, gritou em alta voz e com grande urgência: "Virem para cima, irmãos!" Isso causou
um alvoroço no navio, pois viram um banco de areia à superfície do mar.
---
Na Baía da Lagoa, a oito braças de profundidade, lançando o prumo, encontraram essa medida,
causando grande preocupação a todos, como se pode imaginar ao pensar em tal perigo.
Rapidamente ajustámos as velas, içando e ajustando a vela da gávea grande mais de doze
vezes. Os oficiais e os restantes não abandonaram os seus postos. O Sotapiloto Balthazar
Rodrigues, que se manteve firme durante esta provação, gritou da proa, de onde dirigia o navio
com grande precisão, dizendo para não temerem, pois ele levaria o navio pelo mesmo caminho
por onde tinha entrado. As ondas rebentavam por todos os lados, fazendo o navio balançar
intensamente, como se viesse das profundezas. Ao encontrar-se atravessado por três ondas
consecutivas, o impacto foi tão grande que parecia que o mundo estava a acabar.
O Guardião João da Cruz, que ajudava nas bombas com os grumetes, tão aflito, clamou pelo
céu e Deus nosso Senhor enviou um vento que nos empurrou para fora. Como a principal
solução em tal tribulação estava nas mãos de Deus e no nosso esforço, todos trabalharam
arduamente, incluindo os religiosos, que nesta ocasião valiam por muitos. O Padre Fr. António
de São Guilherme da Ordem de Santo Agostinho, que estava a caminho de Portugal como
Procurador Geral da sua Congregação, trabalhou tanto que, quando o Padre Fr. Diogo da
Apresentação da mesma Ordem se aproximou para lhe dar a confissão, ele respondeu que não
era o momento, mas sim de trabalhar. Ao dirigir-se para o convés para nos ajudar, caiu por uma
escada devido a um dos balanços do navio, abrindo uma grande ferida na cabeça. No entanto,
após apertar a ferida com um lenço, não deu mais importância ao assunto até que a situação
se acalmasse.
---
Na tarde anterior, tinha-se feito uma súplica ao Santo Cristo do Carmo de Lisboa.
Vendo algumas pessoas o navio em tamanha aflição e desespero, e depositando a sua
esperança apenas em Deus, gritaram em altas vozes: "Alegria, irmãos! Agora vi na
gávea a Nossa Senhora com uma luz, como uma coroa, de grande resplendor." Nesse
momento, o ânimo e a coragem de todos foram tão reforçados que a morte já não era
temida. Assim passámos a noite, com o navio tão danificado por todo este esforço que
não havia parte que não deixasse entrar água. Todos acorreram às bombas e
perceberam que a água entrava ainda mais rapidamente, agravada pelo grande
temporal que se abateu sobre nós no dia seguinte. Navegámos com a vela da proa,
enfrentando o mar agitado e os fortes balanços do navio, esperando a cada momento
que ele se partisse ao meio. O mar lançava tanta água sobre nós que os padres tinham
de se revezar na popa, benzendo os mares. Se alguma vez se distraíam, as ondas
tornavam-se tão fortes que o contramestre, que estava ao leme, sentia-se quase
afogado, gritando por ajuda, já que todos estavam ocupados com as bombas. Os
religiosos e passageiros, que estavam sob nossa responsabilidade devido ao número
reduzido de tripulantes, ajudavam na bomba de estibordo, enquanto os grumetes
trabalhavam de dia e os cafre de noite na bomba de bombordo. D. Duarte Lobo e D.
Sebastião Lobo da Silveira assistiam dia e noite, desde 13 de Junho, quando
começaram os trabalhos, incentivando com doces e mimos aqueles que trabalhavam,
pois como não havia fogo, tudo era necessário e nada faltava.
---
A bomba de água dava-nos imenso trabalho e preocupação porque frequentemente
nos faltavam os fusíveis. Decidiu-se que os cafre deveriam assistir à bomba durante os
turnos da noite, mas isso não foi cumprido, ficando apenas os dois calafates. Estes, ao
perceberem o aumento do nível da água, alertaram várias vezes para o perigo em que
nos encontrávamos, mas foi ordenado que não causassem pânico a bordo. Ao
amanhecer, abrimos a escotilha principal e encontrámos água acima do lastro.
Rapidamente, montámos as bombas e tentámos esvaziar a água, mas em menos de
duas horas, o nível da água aumentou tanto que os barris começaram a encher-se por
si mesmos. As pipas do porão romperam-se e os sacos de pimenta espalharam-se,
obstruindo as bombas. Com este cenário, trabalhámos continuamente com dois barris
de quatro almudes e dois de seis, usando o cabrestante e ao redor do mastro principal,
onde abrimos uma grande escotilha para permitir a saída de mais pimenta do que
água. Com todo este esforço e com o navio já inclinado para a proa, não conseguíamos
controlá-lo, com a água já acima do convés e a proa submersa mais de dois palmos.
Neste perigo evidente, passámos dois dias e duas noites sem avistar terra, até que ao
amanhecer vimos uma ponta de recifes com muitas árvores, parecendo ser a foz de um
rio com uma longa praia de areia e uma grande enseada, que julgámos ser possível
alcançar a pé com o batel. Em conselho, considerando a situação do navio, decidiu-se
procurar a terra avistada, lançando ao mar a artilharia, que sempre esteve pronta,
exceto a da Cuina, que...
---
Durante a viagem, não conseguimos manter o porão devido à incapacidade dos corpos de
suportar o trabalho, e duas peças foram lançadas ao mar. Com um vento suave, embora o mar
estivesse agitado, içámos a vela da gávea grande. No entanto, ao ajustá-la, rasgou-se, assim
como a vela de proa. A cevadeira estava toda rasgada e o traquete com muitos cortes.
Navegámos com a vela grande, que, ao ajustá-la, também se rasgou.
Nesse momento, o Almirante ordenou ao Condestável Francisco Teixeira que guardasse alguma
pólvora e balas em barris, recolhesse as armas disponíveis e todo o cobre e bronze, que
serviriam como moeda naquela região da Cafraria, para comprar o necessário. A noite foi
passada a trabalhar nos gamotes, enquanto os nativos, já em terra, faziam grandes fogueiras.
Na manhã seguinte, 3 de Julho, começámos a preparar o batel para desembarcar, assim que o
mar permitisse. No entanto, o vento mudou e, com o traquete, ancorámos em sete braças de
profundidade. O Mestre ordenou que cortassem as cordas grandes, deixando a verga
atravessada no meio do convés, para que, se cortada, pudesse transportar algumas pessoas.
Lançámos o batel ao mar com instruções para levar apenas algumas pessoas, armas e
mantimentos para estabelecer um acampamento, enquanto os restantes ficavam a bordo. No
entanto, devido à forte corrente e ao avançar da hora, o batel regressou sem desembarcar
nada, informando que o mar não estava propício e havia um grande banco de areia. Ao
anoitecer e com a maré a baixar, o navio começou a encalhar e a lançar água.
---
Durante a meia-noite, perdemos o leme, o que nos levou a cortar a árvore grande e o traquete,
lançando a outra âncora para não sermos arrastados pela corrente. Ao virar com a maré,
ficámos em oito braças de profundidade.
Ao amanhecer, na quarta-feira, 4 de Julho, juntámos todos os cabos finos para fazer uma corda,
que foi fixada dentro do batel. Com as pessoas necessárias, armas e o que puderam levar à
mão, deixando uma ponta da corda no navio, remaram em direção à terra. Ao chegarem à
rebentação, a ondulação era tão forte que o Padre Fr. Diogo da Apresentação, que estava no
batel, absolveu a todos, com cada um confessando-se publicamente devido à situação crítica.
Chegaram à terra sem interferência dos nativos, que não apareceram. Desembarcaram o que
levavam e, regressando ao navio, fizeram uma segunda viagem com D. Bárbara e Joana do
Espírito Santo, duas portuguesas, bem como todas as escravas que levávamos, o Almirante e D.
Sebastião Lobo, entre outros. D. Duarte Lobo e o Padre Fr. António de São Guilherme
permaneceram no navio com os oficiais e eu. Optámos por não deixar este nobre, apesar dos
seus pedidos para que nos embarcássemos. Todos estavam exaustos, pois os que podiam
trabalhar ou estavam no batel ou ficaram em terra para proteger o que estava sendo
desembarcado e ajudar os que estavam no batel. Os restantes a bordo não conseguiram
construir uma jangada nem embarcar quatro fardos de arroz, apesar de haver mais de mil na
embarcação. Não chegaram à terra mais do que trinta fardos, e estes estavam molhados. Nesse
dia, o batel fez quatro viagens à terra, e na última, já quase de noite, D. Duarte embarcou.
---
Juntamente com os oficiais, a pedido de todos, e com ele o Padre Fr. António e o Padre
Francisco Pereira, que foi da Companhia de Jesus, não consentiram que se levasse mais gente
no batel do que o necessário. Com a maré a subir e os escravos a bordo, chamámos pelo Padre
Capelão, que não quis sair, dizendo que ficaria com aqueles irmãos para os acompanhar, pois a
noite prometia ser difícil e não havia ninguém a bordo para trabalhar nos cabos. Nessa viagem,
embarcámos setenta pessoas e, ao chegar à terra com dificuldade, o batel estava alagado até à
borda, levando alguns de nós a nadar.
Aquela noite, o batel ficou encalhado, e os da embarcação passaram por grandes dificuldades.
Pela manhã, no dia 5 de Julho, Bras da Costa e Paulo de Barros embarcaram com o restante
grupo que estava no batel. Estes dois marinheiros sempre se mantiveram no batel,
enfrentando riscos e trabalhos, enquanto os outros se revezavam. Muitos, depois de chegar à
praia, voltavam para o navio em busca de comida, que escasseava em terra. A primeira viagem
foi feita com segurança graças à corda, mas na segunda, com o mar agitado e ao regressar do
navio para a terra, apesar dos esforços daqueles que já estavam no batel, muitas pessoas
lançaram-se a ele, sobrecarregando-o. Quando já estavam a alguma distância do navio, um
chinês, pertencente a D. Sebastião Lobo, cortou com um machado a corda que estava presa ao
navio. Com isso, ao ser atingido pela ondulação, o batel virou-se, inundando-se com as setenta
pessoas a bordo. Cinquenta delas morreram afogadas, e nós, que estávamos em terra, não
pudemos ajudar, puxando o batel para a praia, onde chegou completamente danificado.
---
E aqueles que escaparam, sem que o mar devolvesse nada do que foi embarcado a bordo.
Na terça-feira, o Almirante ordenou que se reparasse o batel e, oferecendo quinhentos xerafins
a quem se aventurasse nele até ao navio para buscar as pessoas que lá permaneciam, ninguém
se atreveu devido ao mar agitado e ao terror do acontecimento do dia anterior. Os que
estavam a bordo causavam um espetáculo lamentável com os seus gritos e clamores dirigidos
ao céu. Mesmo à distância, os gritos eram tão intensos que percebíamos o desespero daqueles
que estávamos na praia. E como já não havia mais refúgio no navio, exceto o mastro grande à
ré, e o resto estava coberto pelo mar, e perdendo a esperança no batel, muitos se lançaram à
água em pares, dos quais alguns chegaram à terra e os restantes pereceram. Na noite anterior,
tinham disparado um canhão pedindo ajuda.
Na noite seguinte, de sexta-feira para sábado, alguns negros chegaram à nossa terra, dizendo
que ainda havia pessoas brancas no navio, sem mais proteção do que um painel na popa, onde
estava a imagem de Nossa Senhora da Atalaya. No entanto, ao amanhecer, o navio
despedaçou-se completamente, com apenas um pequeno quartel intacto chegando à terra, e o
restante em pedaços. E assim, testemunhámos o fim trágico de um navio tão poderoso, e aqui
vimos muitos nus e pobres, que há pouco tempo eram ricos e bem vestidos.
O Almirante fez uma chamada aos sobreviventes, dividindo-os em três esquadrões. Ele ficou
responsável pelo dos passageiros, e os marinheiros e grumetes foram distribuídos pelos
oficiais. Ordenou que tudo o que fosse encontrado para comer fosse levado ao acampamento
principal.
---
Para isso, nomeei alguns homens que percorressem a praia, proibindo aos restantes sair do
acampamento. Mudámos o acampamento para o interior da floresta, pois na praia onde
desembarcámos, estávamos cobertos de areia. Construímos barracas, que são o mesmo que
tendas de panos brancos, onde nos alojávamos, preparando-nos para a jornada que
esperávamos fazer pela Cafraria até ao Cabo das Correntes. Os mantimentos encontrados
foram colocados no acampamento sob vigilância. Durante os onze dias que estivemos ali,
enfrentámos grandes dificuldades de fome e sede, devido à falta de mantimentos. A água tinha
de ser buscada no Rio do Infante, a quase uma légua de distância, e era de tão má qualidade
que muitos adoeceram e morreram, incluindo Vicente Lobo de Sequeira, membro da Ordem de
Cristo e natural de Macau, que já se tinha perdido nesta região no navio S. João, e um artilheiro
chamado Marcos Coelho.
Para os casos que surgissem, foram nomeados como adjuntos ao Almirante, D. Sebastião e D.
Duarte Lobo da Silveira, irmãos, Domingos Borges de Sousa, senhor da Vila e membro do
Conselho de Alva, que veio do Reino no mesmo navio, os Padres Fr. António de S. Guilherme e
Fr. João da Encarnação, e os oficiais do navio e o escrivão João Barbosa, uma vez que Francisco
Cabrita Freyre estava à beira da morte. Neste naufrágio, encontraram-se três marinheiros que,
quatro anos antes, se tinham perdido nesta região no navio, do qual D. Luís de Castelbranco
era capitão. Eles tinham viajado pela Cafraria até ao Cabo das Correntes e chamavam-se
António Carvalho da Costa, Paulo de Barros e Mattheus Martins. Os dois primeiros foram
nomeados como negociadores do acampamento, juntamente com Alexio da Silva, um
passageiro nomeado como feitor. Nesta praia onde desembarcámos, encontrámos, durante a
maré baixa, uma grande quantidade de amêijoas muito saborosas, que ajudaram a aliviar a
fome que enfrentámos.
---
O piloto Balthazar Rodrigues, juntamente com Urbano Fialho Ferreira, membro da Ordem de
Cristo e filho de António Fialho Ferreira, e outros, chegaram ao Rio do Infante e encontraram
trinta e três grãos e um terço. Observaram um recife que se estendia para o noroeste, repleto
de árvores, e uma praia com mais de duas léguas de extensão. A costa tinha bancos de areia
branca com árvores espalhadas e o terreno era rochoso. Ao tomar o sol, foi dado o alerta da
presença de Cafres na praia. Tentaram comunicar com eles através de gestos, mas não
conseguiram entender a sua linguagem, pois falavam por sinais. Os Cafres andavam nus e
apenas usavam algumas peles como vestimenta. Não praticavam agricultura e sobreviviam
comendo algumas raízes, caça e mariscos que encontravam na praia. As suas armas eram paus
afiados e algumas lanças de ferro.
Quando D. Duarte Lobo e os outros regressaram ao acampamento, distribuíram as armas, balas
e pólvora, bem como alguns recipientes para guardar o cobre necessário para o resgate, linhas
e arpões para atravessar os rios. Tudo foi registado nos livros do Rei. O arroz que tinham estava
todo estragado e podre, o que acelerou a sua partida, deixando enterrados o cobre e a pólvora
excedentes.
Durante os dias que estiveram ali, o Almirante tratou com o piloto Gaspar Rodrigues Coelho, o
escrivão Francisco Cabrita Freyre e outros que estavam doentes ou incapacitados de marchar.
Propôs-lhes que, se desejassem, prepararia o batel e forneceria tudo o que fosse necessário
para a viagem. No entanto, o piloto não aceitou a oferta, e assim, o assunto não foi mais
discutido. Esta decisão foi tomada principalmente para que estas pessoas, juntamente com as
mulheres e outros doentes, não se tornassem um fardo, como se verá mais tarde.
---
D. Sebastião Lobo da Silveira era tão incapaz de marchar devido ao seu excesso de peso e
outros problemas de saúde que o impediam de andar sequer alguns passos por si mesmo.
Assim, pediu aos grumetes e oficiais que o persuadissem, e através do seu irmão, D. Duarte
Lobo, que era bem visto por todos, chegaram a um acordo para o transportar numa rede feita
de linhas de pesca. Cada grumete receberia oitocentos xerafins, e D. Duarte Lobo deu
penhores de ouro como garantia. Este fidalgo também estava doente, e durante a nossa
estadia no acampamento, tememos pela sua vida. Uma vez organizada a rede com os seus
servos e mais dois que comprou, preparou-se para a jornada. Domingos Borges de Sousa fez
um andor de uma alcatifa, e Francisco Cabrita fez outro de um pano, usando remos do batel
como canas, adaptados pelo carpinteiro. O Piloto, apoiando-se em duas muletas, e os outros,
conforme as suas condições de saúde permitiam, seguiram com as suas armas e cada um com
os seus alforjes, onde carregavam o seu resgate em cobre e roupa para a sua higiene pessoal.
Teria sido necessário mais tempo para descansar do esforço anterior e ganhar forças para os
desafios que nos esperavam, mas a falta de alimentos e as condições adversas do local
apressaram a nossa partida na segunda-feira, 15 de julho, pela manhã, depois de todos
rezarem uma ladainha à Nossa Senhora. É difícil expressar a emoção e as lágrimas que
marcaram o início desta trágica e lamentável jornada. Ficaram para trás, devido a ferimentos,
um Cafre do Contramestre Manoel de Sousa e um jovem cabrito meu.
---
Uma jovem negra pertencente ao Condestável Francisco Teixeira, que morreu afogado ao vir
para terra no batel.
Começámos a marchar, com o Almirante levando a dianteira, o Mestre Jacinto António a
vanguarda e o Contramestre a retaguarda. Desde o início, sentimos pena e compaixão pelos
doentes e aqueles incapazes de acompanhar o grupo, prevendo o que viria a acontecer mais
tarde. Depois de termos marchado menos de uma légua pela praia, Bertholameu Pereyra
Loreto, um marinheiro, ficou para trás devido ao cansaço. Os Cafres, que já nos seguiam,
rapidamente o mataram, e nada pudemos fazer para ajudá-lo. Mais à frente, os mesmos Cafres
roubaram a D. Barbora os alforjes que continham os seus bens, incluindo o seu resgate em
cobre, mantimentos e uma muda de diamantes que escapou. Se a retaguarda não tivesse
intervindo rapidamente, teriam-na matado, tal como fizeram ao Loreto. Antonio Carvalho da
Costa, um marinheiro, ajudou-a, carregando as suas coisas até ao anoitecer. A portuguesa
Beata Joana do Espírito Santo também nos causou muitos problemas, assim como os outros
doentes. Mesmo assim, conseguimos acampar num recife junto ao mar, onde encontrámos
uma fonte de água muito boa. O Piloto, incapaz de chegar à fonte, ficou um pouco atrás, e ao
pedir confissão, os Padres acorreram com grande caridade. O Escrivão chegou à noite, muito
tarde, e ali passámos a noite.
Na terça-feira, 16 de julho, o Almirante convocou um conselho para decidir o que fazer com as
mulheres e as pessoas incapacitadas que nos impediam de avançar rapidamente em direção à
terra de resgate, pois os grãos de arroz que tínhamos quando nos perdemos...
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Eram tão poucos que não passavam de duas medidas por pessoa. Segundo afirmavam aqueles
que já tinham passado por aquele caminho, não se poderia encontrar resgate em menos de um
mês. Após uma discussão intensa, decidiu-se que, dada a nossa situação e considerando que o
Piloto, o Escrivão, D. Barbora e João do Espírito Santo não podiam nos acompanhar, e esperar
por eles nos exporia a morrer de fome, deveríamos avisar as mulheres para marcharem à
frente. Já não se tratava do Piloto e do Escrivão, pois um deles já estava sem fala e o outro não
estava em condições de ajudar. Ao serem avisadas, as portuguesas responderam que Deus nos
acompanhasse, pois elas não se atreviam nem podiam seguir. Assim, deixámo-las após se
confessarem, juntamente com uma menina negra que quis ficar com elas, sem qualquer
alimento.
Nesta ocasião, D. Sebastião esteve em risco de ficar para trás, pois os grumetes que o
carregavam, incapazes de suportar o trabalho, queriam abandoná-lo. D. Duarte Lobo interveio,
e com bons argumentos e algum incentivo, conseguiu que o levassem aos poucos. Naquele dia,
marchámos ao longo do mar por recifes, de onde surgiam muitos ribeiros de água doce, e
atravessámos alguns rios que, se não estivessem secos, nos causariam problemas. Nas praias,
encontrava-se algum marisco, mas pouco, e viam-se alguns pássaros grandes, semelhantes a
pavões. Aqui, devido ao caminho ser difícil e à escassez de comida, os grumetes decidiram
abandonar D. Sebastião Lobo. A solução foi escolher, entre todos, os doze mais robustos, e os
restantes carregariam as bagagens destes. Continuámos a marchar por um dia por caminhos
ásperos e estreitos junto ao mar.
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Por onde só cabia uma pessoa atrás da outra, devido a um declive e ravinas junto à praia,
chegámos a uma passagem muito arriscada. Depois, atravessámos um rio muito caudaloso e
agitado, com água acima do joelho. Após atravessá-lo, descansámos, mas os grumetes, ao
retomar a marcha, deixaram para trás D. Sebastião Lobo, que não se atreveu a caminhar pelos
seus próprios pés.
No dia seguinte, chegámos a outro rio com uma densa floresta na sua foz, onde encontrámos
um baleato (parte de uma baleia) na praia. Cada um de nós cortou um pedaço para comer.
Naquela tarde, passámos por muitos pântanos e terrenos difíceis, e ao final, montámos o
acampamento junto a um ribeiro de água fresca.
Ao percebermos a ausência de D. Sebastião, porque o Almirante e Dom Duarte, que iam à
frente, não tinham notado que os grumetes o haviam deixado para trás, combinaram com os
marinheiros para o ir buscar. Já de noite, voltaram duas léguas atrás e encontraram-no onde o
tinham deixado, trazendo-o de volta ao acampamento. Ele chegou muito tarde, proclamando
em voz alta que D. Sebastião Lobo da Silveira não temia a morte, mas sim os maus tratos que
recebia. No dia seguinte, discutiu-se com este fidalgo sobre o seu embarque de regresso ao
Reino, chamado por Sua Majestade.
No dia seguinte, marchámos pouco e, quase a uma légua de distância, encontrámos o rio de
São Cristóvão. Para o atravessar, organizámos duas jangadas, pois o rio era caudaloso, muito
profundo, com uma corrente forte e agitada.
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Dedicámos uma [jangada] à Nossa Senhora da Ajuda e outra à do Bom Sucesso. Convencido de
que não nos poderia acompanhar, [D. Sebaastião] mostrou-nos muitas joias e objetos valiosos
dos quais não tínhamos conhecimento, oferecendo-os a quem pudesse levá-lo às costas.
Vendo isso e após persuasões do Mestre Jacinto António, a quem, para este propósito, deu seis
voltas de uma corrente de ouro, negociou-se com dezasseis marinheiros, os mais robustos, a
quem D. Sebastião entregou imediatamente tudo o que possuía.
Depois de atravessar o rio, que devido à sua forte corrente e à impossibilidade de embarcar as
jangadas a não ser na maré baixa, não pudemos fazê-lo naquele dia. No dia seguinte, 19 de
Julho, concluímos a travessia, mas perdemos um Cafre nosso, que foi levado pela corrente, e
um marinheiro, Antonio da Silva, que estava doente e não se atreveu a continuar a marcha. E
no dia 20 de Julho, os marinheiros concluíram o transporte dos dezasseis, incluindo D.
Sebastião Lobo.
Depois de passar o rio, continuámos a marchar pela praia, por caminhos estreitos, e ao chegar
a uma fonte, Filipe Romão, um passageiro que tinha vindo do Reino no mesmo navio e que era
casado em Lisboa e tinha sido escudeiro da Princesa Margarida, ficou para trás, incapaz de nos
seguir devido à doença. Lourenço Rodrigues, escudeiro de Dom Duarte Lobo e casado em
Alfama, também ficou para trás, incapaz de caminhar mais, mesmo tendo feito isso até então
com a ajuda de duas muletas. Quando o seu senhor, passando por ele, lhe disse para se animar,
ele respondeu que Deus o ajudasse e que levasse perante os olhos da senhora Dona Leonor,
sua mulher, pois ele não se sentia com forças nem ânimo para os seguir. O Padre Fr. António de
São Guilherme também tentou animá-lo.
---
No entanto, ele preferiu persistir na sua decisão. Quando o Padre já estava um pouco afastado,
ele chamou-o de volta. O Padre, pensando que seria para alguma reconciliação, voltou para
ouvir o que ele queria. Ele disse: "Padre Fr. António, já que vais embora, faz-me o favor de me
dar um pouco de tabaco. Que Deus esteja contigo." E com uma expressão muito serena, pediu
que lhe fizessem uma pequena cova para se deitar.
Continuando a nossa marcha, atravessámos um rio com água até à cintura. No dia seguinte,
depois de termos caminhado cerca de uma légua, chegámos a outro rio, que atravessámos
durante a maré baixa com água até aos ombros. Depois deste rio, encontrámos um caminho
melhor, mas deserto, vendo apenas alguns Cafres caçadores que não quiseram falar connosco.
Neste percurso, encontrámos boas fontes de água, algumas palmeiras selvagens e pequenas,
cujos palmitos, embora difíceis de extrair, serviam como alimento, dada a fome generalizada.
Nesse dia, avistámos algumas cabanas com Cafres, que ao nos verem, fugiram. Ao entrarmos
nas cabanas, encontrámos dois polvos e alguns grãos de milho. Mais à frente, encontrámos
dois Cafres, a quem demos duas fechaduras de escritório como presente, que são as joias que
os nativos desta região mais valorizam. Ao perguntarmos sobre a possibilidade de troca,
responderam com gestos, indicando que haveria alguma troca nas proximidades.
À vista de um monte chamado "da pressa", devido à nossa urgência causada pela fome e pela
falta de organização na marcha, pois estávamos muito fracos, dois nativos saíram do mato.
Encontrando Felício Gomes, um marinheiro, isolado dos demais, roubaram-lhe a mochila e um
jarro de latão que ele tinha na mão. Tentaram fugir rapidamente, mas sem sucesso, pois ao
atacarem, ninguém conseguia alcançá-los.
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Ao chegarmos a um ponto elevado onde vimos algumas cabanas, não encontrámos nada além
de algumas panelas de barro vazias. Depois disso, montámos o nosso acampamento perto de
um rio, e todos estavam muito tristes pela decisão daqueles que acompanhavam D. Sebastião
de o deixar, pois sentiam-se sem forças. Ele, resignado e decidido a ficar, primeiro tratou de se
confessar novamente e deu a cada um dos que o tinham acompanhado até ali um anel com um
rubi. Depois, despojou-se até da sua cruz de tambaca com relíquias que trazia ao pescoço e de
uma pequena panela de cobre, pois não havia comida. Todos se despediram dele com a devida
tristeza, deixando-o sob uma pequena tenda de pano, robusto e bem-disposto, pois não se
sentia capaz de marchar a pé. Com ele ficou um pequeno Chines e um Cafre, que era servo de
Domingos Borges de Sousa. D. Duarte Lobo, seu irmão, ficou com ele por um longo tempo. D.
Sebastião mostrou, neste momento difícil, tanta paciência e coragem que se pode acreditar
piamente na sua salvação.
Depois de sairmos desse local, atravessámos outro rio com água até ao peito durante a maré
baixa. A partir daí, a terra parecia mais fresca, com algumas boninas, orquídeas e outras
plantas, das quais muitos, impulsionados pela fome, comeram com vontade. Depois de
atravessar dois rios secos, chegámos a um que vadeámos com água pela cintura, seguindo por
terras arenosas e depois por uma floresta onde encontrámos um ribeiro. Acampámos ali
durante a noite e, pela manhã, continuámos pela praia. Atravessámos três rios secos e outro
que, para atravessar, foi necessário construir uma jangada, que dedicámos a Nossa Senhora do
Socorro.
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No local onde passámos, no dia seguinte, vieram até nós alguns com quatro peixes, que
trocámos com eles, dando a entender que perto dali havia mais para trocar. No dia seguinte,
dia de Santiago, enquanto caminhávamos pela praia, desviamo-nos para um bosque devido a
muitos recifes que não conseguíamos ultrapassar. No bosque, encontrámos armadilhas e
buracos para elefantes. Mais à frente, num ponto elevado, encontrámos cinco cabanas
redondas, semelhantes a fornos, mas estavam vazias. Continuando a marcha e depois de
atravessar quatro rios secos, fizemos uma paragem junto a um rio caudaloso e agitado, onde
planeámos construir uma jangada para o atravessar no dia seguinte, dia de Santa Ana. Ali,
encontrámos alguns pequenos montes verdes e alguns de nós tiveram a sorte de encontrar
favas, que ao serem comidas na praia, quase levaram alguns à morte.
No sábado, 1º de julho, depois de atravessar o rio, caminhámos por um bosque e, ao sair para
a praia, vimos sinais de fogo num ponto elevado. Três dos nossos foram investigar e
regressaram com a notícia de que havia vacas nas proximidades. Esta notícia encheu-nos de
alegria e, em agradecimento, rezámos uma ladainha em honra de Nossa Senhora. Logo depois,
apareceram muitos Cafres, incluindo um que falava português chamado João, que tinha ficado
na região desde o naufrágio da Nau Belém. Ele reconheceu-nos imediatamente. Os outros
comunicavam através de gestos. Vestiam-se com peles que usavam para cobrir as coxas, e o
resto do corpo nu, tanto homens como mulheres. As mulheres diferenciavam-se por usarem
chapéus do mesmo couro. Nesse local, trocámos e, no dia seguinte, conseguimos dez vacas,
que foram abatidas e comidas. Foi-nos oferecido um preço fixo para todas as vacas que
quiséssemos comprar, mas os nossos negociadores não concordaram, argumentando que...
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O Almirante pediu ao Cafre João que considerasse juntar-se à nossa companhia, prometendo-
lhe grandes recompensas. No entanto, ele recusou, alegando ter compromissos de caça, e ficou
para trás. Continuámos a nossa marcha pela praia. Na segunda-feira, o Cafre João e os seus
companheiros atacaram-nos com flechas, tentando matar-nos e roubar-nos. Não se atreveram
a atacar diretamente o nosso acampamento, pois estávamos sempre bem vigiados. Nesta
praia, deixámos um marinheiro, que trabalhava como gajeiro e morava perto de Duarte Bello
em Lisboa. Ele confessou-se, pois não se sentia capaz de continuar a marcha. Os Cafres
arrastaram-no pela praia à nossa vista, e ele, de joelhos e com as mãos levantadas, não teve
ajuda de nós. Enquanto continuávamos a marchar pela praia, os Cafres continuaram a atacar-
nos com flechas. No entanto, Urbano Fialho e Salvador Pereira, com os seus arcabuzes,
fizeram-nos recuar, permitindo-nos caminhar com mais liberdade por um caminho difícil e
árduo. Saímos deste caminho e encontrámos um rio grande, onde passámos uma noite muito
fria devido à falta de água. Na manhã seguinte, esperámos pela maré baixa para atravessar o
rio, que tinha água até à cintura. Foi difícil vencer a corrente. Depois, seguimos por recifes tão
agudos que magoavam muito os que usavam calçado e rasgavam os pés dos descalços. Depois
deste desafio, enfrentámos outro: montanhas íngremes que pareciam tocar o céu. Descemos
até um ribeiro onde descansámos e vimos Cafres que se aproximaram para falar connosco. Eles
trocaram cinco peixes connosco, dando a entender...
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Havia rumores de que haveria possibilidade de troca mais à frente. Aqui, encontrámos alguns
figos, que na Índia são chamados de "gralha", mas eram poucos. Ao subir uma colina, fizemos
uma pausa na sua descida para passar a noite junto a um ribeiro de água doce. No dia
seguinte, o Almirante mandou explorar a terra para ver se havia algum povoado ou gado. Os
exploradores regressaram ao acampamento cansados, famintos e sem qualquer informação. A
partir daí, seguimos pela praia, passando por recifes onde colhemos ostras para comer, cruas
tal como as encontrámos, pois já não comíamos nada há cinco dias. Chegámos a um rio muito
largo e com uma corrente forte. Demorámos três dias a atravessá-lo, esperando pela maré
baixa. Depois, fomos descansar numa praia onde foi difícil encontrar água potável.
Conseguimos aliviar a fome com algumas ostras e lapas. Chamámos a este rio de São
Domingos, pois encontrámo-lo na véspera do dia de São Domingos.
A fome tornava a nossa jornada ainda mais difícil. Continuámos até chegarmos a uma
montanha de terra movediça, tão íngreme que tivemos de nos agarrar às raízes das figueiras
bravas que cresciam ali. Para atravessar um barranco grande e íngreme em direção ao mar,
todos nós fizemos o Ato de Contrição, pois se caíssemos, iríamos parar a recifes e lagoas muito
agudas. O Mestre Jacinto António teve ainda mais dificuldade, pois era sua vez de liderar a
expedição. Enquanto nos preparávamos, ele, armado com uma espingarda e uma adaga, ouviu
um grito indicando que ele e alguns dos seus seguidores se estavam a desviar. Havia rumores
no acampamento há dias sobre isso.
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Por causa disso, a maior parte do nosso grupo seguiu em frente, deixando D. Duarte Lobo e
seus companheiros para trás. Não sabíamos deste desvio e, por isso, retomámos o caminho
por dentro de um mato, subindo uma colina com menos dificuldade e chegando ao local onde
os aflitos que seguiam o Mestre estavam mais mortos do que vivos. Ao perguntar-lhes sobre
ele, disseram-nos que ele tinha tomado outro caminho mais perigoso, pois não encontrou
saída pela praia.
Reunimo-nos todos novamente e, após um breve descanso, continuámos a marchar até
montar acampamento junto a um ribeiro. A fome era tão intensa que nem sequer as ervas
verdes eram poupadas, e muitas vezes, ao atravessar o ribeiro, comíamo-las cruas. Na manhã
seguinte, começámos a marchar, instruindo os exploradores para irem sempre à frente,
procurando sinais de possíveis trocas. Paulo de Barros encontrou uma aldeia de Cafres, mas
não conseguimos obter informações claras deles. Estávamos tão exaustos que, sempre que
parávamos para descansar, rastejávamos à procura de ervas e favas, sabendo que ao comê-las
arriscávamos a vida, pois eram venenosas.
Mudámos o nosso caminho da praia, que era muito estéril, sem lapas ou caranguejos, e cheia
de recifes. Ao entrar no interior, fizemos uma paragem junto a um ribeiro de água fresca, onde
encontrámos cabanas de Cafres. Ao ver-nos, esconderam-se no mato, evitando qualquer
comunicação connosco. Continuámos até uma pedra coberta de árvores frescas, com uma
poça de água doce tão clara que nos convidou a descansar. Ali, procurámos algumas ervas e
quem encontrava um caranguejo considerava-se afortunado. Durante dois dias, marchámos
pelo interior, sofrendo as maiores fomes que alguma vez tínhamos suportado.
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Durante uma destas noites, um grumete aproximou-se de uma fogueira que estava acesa perto
da barraca de D. Duarte. Ele descalçou-se para secar um sapato e, com grande avidez, começou
a aquecê-lo, provavelmente para que ninguém mais o fizesse.
No terceiro dia, marchámos sete léguas por terrenos e caminhos ásperos até avistarmos um
rio. Descemos uma encosta íngreme com dificuldade. Devido ao cansaço da marcha e à falta de
ordem na forma como caminhávamos, corremos o risco de o grupo se dividir devido aos
diversos caminhos que encontrávamos. Só percebemos que estávamos no caminho certo
quando avistámos o rio de uma colina, tendo que retroceder bastante para não nos
perdermos. Chegámos ao rio já de noite, onde encontrámos muitas beringelas bravas e
amargas, que foram consumidas. Alguns cozinhavam-nas até que ficassem quase sem sabor,
enquanto outros, que não tinham essa paciência, ferviam-nas com pimenta e bebiam a água.
Aqueles que conseguiam algum amido, misturavam-no, pois perderam o gosto pela comida.
Nessa noite, todos os Cafres que carregavam para D. Duarte fugiram, roubando todo o cobre,
caldeirões e tudo o mais que puderam levar do acampamento. D. Duarte ficou desprotegido
devido à ausência deles e, por estar muito debilitado, não conseguia seguir a marcha conosco.
No dia seguinte, 9 de Agosto, dirigimo-nos para a costa junto ao rio, em busca de um vau.
Encontrámo-lo ao final da tarde e, por sorte, também encontrámos muitas figueiras bravas da
Índia. Os talos destas figueiras, quando cozidos, ajudavam a aliviar a fome. Chegámos a este
local tão fracos que alguns decidiram ficar para trás, incapazes de continuar a marcha. No dia
seguinte, dia de São Lourenço, enquanto marchávamos pelas montanhas altas (já que a praia
não permitia passagem), João Delgado decidiu ficar para trás.
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Que já tinha feito o mesmo no dia anterior, e o Almirante e eu o trouxemos na retaguarda, a
um ritmo lento. Ele fez o seu testamento e, após confessar-se novamente com o Padre
Francisco Pereira, pediu-me para o deixar à vista do mar, onde ficou. Quando o acampamento
já tinha atravessado uns montes e nós já estávamos a alguma distância e nos tínhamos
despedido dele, ele começou a gritar e a correr atrás de nós. Tentando esperar por ele, ele caiu
de bruços e não se levantou mais, deixando-nos seguir o acampamento, que também nos
estava a deixar para trás, acreditando que ele não nos poderia acompanhar. Esse jovem era
casado em Estremoz e estava a caminho como remédio, tendo servido na Índia desde 1635,
quando viajou para lá com Pedro da Silva, a quem serviu. Nesse dia, subindo e descendo
montanhas, marchámos pouco, tanto devido ao terreno áspero como por causa da
incapacidade de D. Duarte Lobo, e não queríamos deixá-lo para trás, nem a outros que estavam
a desmaiar. Diminuímos o ritmo e avançámos lentamente, deitando-nos no chão para
recuperar o fôlego. Ao final da tarde, ao descer uma montanha íngreme, chegámos a uma
pequena praia com um ilhéu que, na maré alta, ficava rodeado de água. Havia muitos seixos
numa enseada pequena com um ribeiro de água. Pensámos que não faltariam mariscos para
aliviar a fome que nos tinha reduzido a um estado em que parecíamos apenas sombras de
homens. No entanto, após vasculhar toda a praia, não encontrámos nada, percebendo por
experiência que em recifes de pedra semelhante não há marisco. Nessa ocasião e local, os
Cafres do Sotapiloto Balthazar Rodrigues, ao vasculhar um barranco, encontraram a cabeça de
um tigre muito podre, cheia de insetos.
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E com um mau cheiro, começaram imediatamente a comer a língua e o resto. Muitos, felizes
com a descoberta, trouxeram-na ao seu senhor, que começou a cozê-la com os seus camaradas
e com Dom Duarte Lobo. Beberam primeiro o caldo, com tanta avidez que, para proteger esta
sua descoberta dos outros, enquanto cozinhava, ele ficou com uma espingarda preparada para
se defender caso tentassem roubá-lo. Um religioso pediu um pequeno pedaço, mas ele não lhe
deu.
No dia seguinte, enquanto marchavam, alguns encontraram no mato dois ratos mortos e
malcheirosos, o que causou discussões sobre como dividir a descoberta. Paulo de Barros,
avançando, encontrou na praia um Cafre, o que indicava que estavam perto do rio da Nau
Belem. Este Cafre sugeriu que não faltaria milho e vacas para trocar. Deram-lhe uma joia de
cobre, que ele retribuiu com um pequeno montante de milho. Ao dividir o milho por todos,
cada pessoa recebeu doze grãos. Esta notícia renovou as nossas energias e, prostrados no
chão, agradecemos a Deus. Rezámos uma ladainha em honra de Nossa Senhora com grande
devoção. Depois de subir uma colina íngreme, voltámos à praia e marchámos até um rio que
não desaguava no mar. Montámos acampamento à beira do rio, perto de duas cabanas onde o
Cafre e os seus companheiros se refugiaram. Ele indicou que a sua aldeia estava distante, mas
que nos acompanharia no dia seguinte. Deu ao Almirante um lenço feito de mexilhões, que ele
partilhou com D. Duarte.
Ao montar o acampamento, cada um saiu para o mato para colher figos e comer os talos.
Seguindo a indicação de que algumas flores vermelhas eram comestíveis quando cozidas,
fizeram delas uma sopa. No entanto, eram ervas viscosas e venenosas, e aqueles que as
comeram sofreram agonia. Se não tivessem aliviado os sintomas vomitando, teriam morrido
devido ao veneno.
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A 12 de Agosto, seguimos viagem na companhia do Cafre chamado Benamufa. Subimos um
pequeno outeiro, fazendo várias pausas pelo caminho. Depois de superar essa dificuldade,
descansámos no topo, perto de algumas cabanas. O Almirante deu uma manilha de cobre ao
Cafre como pagamento pela sua orientação. O Cafre indicou que queria avançar e sugeriu
enviar algumas pessoas com ele para trazer mercadorias da sua aldeia. Inicialmente, houve
hesitação, mas o comportamento amigável e animado do Cafre, juntamente com a nossa
extrema fome, superou as dúvidas. Decidiu-se que Paulo de Barros, acompanhado por seis
marinheiros, e Aleyxo da Silva, com dois passageiros, avançassem com o Cafre. Ao dar-lhe
algumas joias de cobre, ele ficou muito satisfeito. Outros três Cafres juntaram-se a ele no mato
e seguimos por cerca de uma légua. Ao chegarmos ao topo de uma colina, gritaram de alegria
ao avistar o Rio da Nau Belem, o nosso destino tão esperado. Descansámos a uma légua de
distância. O Cafre e os seus companheiros seguiram o seu caminho, enquanto nós nos
dirigimos ao rio. Chegando à sua praia já tarde, montámos acampamento e encontrámos
alguns vestígios da Nau Belem e alguns corpos.
Durante esta viagem, o Padre Fr. Antonio de S. Guilherme esteve à beira da morte várias vezes
devido ao veneno de algumas favas que comeu. Foi induzido a comê-las por Domingos Borges
de Soufa, que lhe garantiu que eram seguras para consumo. No entanto, ele recuperou graças a
alguns antídotos, incluindo pedra-pomes moída.
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E à noite, na tenda de Dom Duarte Lobo, jantou-se um pedaço de couro de um fardo de canela
que tinha sido cozido, e noutro grupo, uma alparca de couro, que alguém tinha usado nos pés
por mais de vinte dias. Na tenda de Jacinto António, o Mestre comeu um cão dos Cafres, que
foi abatido com uma espingarda. Ele não partilhou nem com D. Duarte, o que deixou este
último chateado.
Como não encontrámos água deste lado, cavámos um poço na areia e encontrámos água de
boa qualidade. Passámos três dias confiando em Deus e nas pessoas que tinham ido com o
Benamusa. Durante esse tempo, construímos uma jangada para atravessar o rio. Negociámos
com alguns Cafres que trouxeram tão pouco milho que cada pessoa só recebeu uma pequena
porção. Na quarta-feira, véspera de Nossa Senhora da Assunção, os que esperávamos da aldeia
do Cafre chegaram do outro lado do rio, livres da fome, com as mochilas cheias e Cafres na sua
companhia com seis vacas vivas para negociação. Depois de terminar a jangada, que
dedicámos a S. Domingos Soriano, Vicente da Silva, criado de D. Duarte, foi o primeiro a
atravessar o rio para informar sobre o que tinha encontrado, a localização das aldeias e os
costumes das pessoas. Este jovem trouxe consigo um pouco de milho, dois "mocates" e um
pedaço de carne de vaca cozida, que o fidalgo partilhou com o Almirante e outras pessoas,
usando o resto como um mimo para ele e os seus amigos.
No dia seguinte, Dia de Nossa Senhora, houve grande esforço para atravessar a rede de pesca,
de modo a poder usar a jangada para atravessar o rio, que era largo e com uma corrente forte.
Não sendo possível que todos atravessassem nesse dia, o Almirante e os restantes ficaram para
o dia seguinte. Um grumete tentou atravessar à tarde, mas a corrente da maré baixa arrastou-
o. Todos pensaram que ele não iria sobreviver. O Padre Fr. João da Encarnação deu-lhe a
extrema-unção à distância e, ao invocar S. Domingos Soriano, o grumete conseguiu salvar-se.
---
Ele apanhou uma refeição e levou-a para terra sem causar dano a ninguém. Os Cafres, que
vinham com as seis vacas para negociação, ao verem-nos ainda do outro lado, voltaram à noite
para as suas aldeias, prometendo regressar com elas. Isso contrariava a crença daqueles que
tinham atravessado o rio primeiro, que não acreditavam nas histórias dos que tinham vindo
com eles sobre a abundância encontrada e a boa hospitalidade que o Cafre lhes proporcionara.
Pediram a Dom Duarte, um dos primeiros a atravessar, que enviasse pessoas às aldeias para
acelerar a negociação. Assim, foram enviados Urbano Fialho Ferreyra, o Contramestre António
Carvalho da Costa e outros, armados e com cobre para negociar.
No dia seguinte, 16 de Agosto, todo o acampamento terminou de atravessar, estabelecendo-se
entre duas colinas com vista para o mar. Os Cafres chegaram com vacas, que foram negociadas
e distribuídas entre os grupos. Algumas foram abatidas, outras preparadas e cozinhadas, e
todos comeram com tanto apetite que só sobraram as pontas e as unhas das vacas; tudo o
resto foi consumido. Mais Cafres chegaram rapidamente com mais gado, milho e "mocates".
No entanto, houve desordem da nossa parte, com os negociadores aproveitando-se da
situação, espalhando-se pela floresta e esperando pelos Cafres, negociando milho e "mocates"
a preços inflacionados, prejudicando todos. Por um "mocate", davam cobre que poderia
negociar três ou quatro no acampamento. Como resultado, foi estabelecida uma regra, sob
pena de morte, de que ninguém deveria sair do acampamento para negociar, mas a fome era
tão grande que, mesmo com tanta carne disponível, não era suficiente. Foi ordenado ao
Mestre Jacinto António e a outros que patrulhassem a floresta e os caminhos.
---
Não permitindo que se negociasse e determinando que se prendessem os que fossem
encontrados, encontraram três portugueses e três negros nossos, que foram detidos e trazidos
para o acampamento. Após uma reunião, os representantes decidiram que dois dos três
portugueses seriam chicoteados e exibidos pelo acampamento, com as mãos atadas. Para o
terceiro, não havia provas suficientes. Dos negros, foi decidido que um deveria ser executado, e
a sorte recaiu sobre um mestiço de Urbano Fialho, que foi imediatamente executado. Os outros
dois foram severamente chicoteados pelo acampamento, com tanto os portugueses como os
negros a supervisionar a punição.
Numa dessas noites, tendo faltado negociações por dois dias, foi feito um curral onde as vacas
eram guardadas e domesticadas. Decidiu-se trazer as vacas vivas, pois não era sempre possível
ir à fonte, que ficava a dois tiros de mosquete, atrás de uma colina. Quando já estávamos
recolhidos, um dos nossos negros foi surpreendido por um caldeirão na fonte. Ao regressar ao
acampamento, gritou por ajuda. Respondemos, armados, e ao ouvir a fala, disparámos uma
espingarda, atingindo um Cafre na perna. Ele foi imediatamente capturado e mantido sob
vigilância para ser julgado no dia seguinte. Ao recolhermo-nos, ouvimos outro grito. Ao
investigar, descobrimos que eram os companheiros do Cafre ferido, que tinham vindo roubar.
Como a noite estava escura, sem que o vigia percebesse, levaram o Cafre ferido para a floresta.
No final deste confronto, percebemos que faltavam dois dos nossos cabritos, que tinham
fugido, levando aos seus mestres um caldeirão e uma frigideira de cobre, entre outros itens
escondidos.
---
Suspeitando da presença de mais ladrões, emboscámos alguns dos nossos homens. Pouco
depois, encontrámos um Cafre. Tentámos capturá-lo, mas ele resistiu. José Gonçalves Velloso,
um marinheiro residente em Belém, atingiu-o com uma espingarda, quebrando-lhe um braço.
Ao aproximarmo-nos para o identificar, percebemos que era um Cafre chamado João, um dos
que tinha fugido de D. Duarte Lobo da Silveira e roubado o nosso acampamento. O Almirante
interrogou-o, e ele confessou que ele e os seus companheiros estavam na área para roubar. Por
isso, decidimos enforcá-lo no dia seguinte, após ele se ter confessado. Logo depois, o comércio
de troca recomeçou, com muitos grãos, moedas e alguns recipientes de leite e vacas. Estes
bárbaros pareciam agora mais domesticados, talvez devido ao contacto anterior com os nossos
da Nau Belém, que naufragou em 1634, o período em que estes bárbaros fizeram os seus
paraísos.
Durante os quatorze ou quinze dias que passámos ali, para descansar as pessoas exaustas pela
fome e pela dura jornada, surgiram algumas discórdias. Alguns queriam separar-se e formar
um acampamento à parte devido à má liderança do Almirante, causada pela sua indecisão e
excessiva bondade. No entanto, isso não aconteceu devido a circunstâncias imprevistas.
Aqueles que tinham ido às aldeias nos dias anteriores para avaliar o comércio de vacas, pois
havia melhores pastagens lá, regressaram ao acampamento. Ao verem-nos já barbeados,
ficaram surpreendidos.
---
Devido ao nosso estado debilitado, mal nos reconhecíamos uns aos outros. Havia quem
confessasse que, devido à fome, sentia como se algo lhe estivesse a sair pelo corpo, algo que
nunca imaginou ser possível.
Os Cafres que tinham fugido com o indivíduo que foi enforcado, ao perceberem que estavam
sem ele, pediram proteção e desejaram regressar ao nosso grupo. Isso foi concedido,
principalmente devido à falta que faziam a D. Duarte Lobo e à dificuldade que este fidalgo
tinha em se movimentar, devido a novos problemas de saúde que se somavam aos que já trazia
do mar. Para aliviar um pouco a sua situação, ele tentou domesticar dois bois e fez um acordo
com dezasseis grumetes para que o transportassem até Moçambique em troca de três mil e
quinhentos xerafins. No entanto, numa segunda-feira à noite, entre os dias 25 e 26 de Agosto,
sofreu um episódio de ventosidades que o deixou muito debilitado. Usou algalia, um remédio
que costumava tomar, e melhorou temporariamente. Mas, de repente, o mesmo mal atacou-
lhe a garganta, impedindo-o de falar. Na sua mão, segurava uma imagem de Cristo na Cruz. O
Padre Fr. António de São Guilherme, ao vê-lo naquele estado, pediu-lhe que apertasse a mão
se desejasse confessar-se. Ele assim o fez, e o padre absolveu-o imediatamente. Pouco depois,
D. Duarte Lobo faleceu.
A sua morte foi profundamente sentida por todos, pois era um fidalgo muito querido. Não
houve quem não lamentasse a sua partida, por inúmeras razões que, por respeito e dever, opto
por não detalhar. D. Duarte Lobo era o segundo filho de D. Rodrigo Lobo, General...
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Ele fez parte da Armada deste Reino que navegou para a Índia no ano de 1629 sob o comando
do Conde de Linhares. Foi designado para a fortaleza de Baçaim por três anos e também para
as terras de Bardés durante a sua vida. Anteriormente, ele tinha embarcado na Armada da
costa, que naufragou em França, no Galeão Santiago, que conseguiu escapar após um combate
corajoso contra quatro navios turcos. No Estado da Índia, serviu em várias posições de
destaque, incluindo Capitão, Capitão-mor das Armadas e, por último, Governador dos Estreitos
de Ormuz e Mar Vermelho, onde proclamou Sua Majestade. Esteve presente em várias
situações importantes ao serviço do rei, incluindo o socorro à Ilha de Ceilão como soldado do
seu irmão, D. António Lobo. Em todas estas situações, demonstrou grande competência, o que
sempre foi reconhecido pelos Vice-Reis. Estava a regressar ao Reino neste navio, mais para ver
Sua Majestade do que para ser recompensado pelos seus muitos serviços.
A 28 de Agosto, dia de Santo Agostinho, começámos a nossa marcha e, seguindo o caminho,
chegámos a um ribeiro perto da praia. Esperámos por João Lopes, o tanoeiro do navio, a quem
o Almirante tinha enviado para buscar uma vaca que pertencia a D. Duarte Lobo, que não pôde
acompanhar-nos devido a uma ferida na perna. Mais para o interior, montámos acampamento
para passar a noite numa planície junto a um ribeiro de água salobra. Aqui, mandou-se
enforcar, com base em poucas evidências, um Cafre que tinha vindo connosco e que pertencia
a D. Duarte Lobo, alegando que ele tinha negociado e outro seu companheiro, que tinha
servido o mesmo fidalgo e era do Sotapiloto, fugiu com medo por ser um dos que tinha vindo
com garantia de segurança. Neste local, ficámos mais um dia.
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Devido a um levantamento no acampamento, surgiu a ideia de nos separarmos, argumentando
que, se continuássemos juntos, não haveria suficiente para negociar para todos. Por causa
disso, o Almirante convocou um conselho. Como todos estavam insatisfeitos com a sua
liderança, decidiu-se que haveria uma divisão. Esta decisão foi tomada devido a desacordos na
eleição de um novo capitão e na distribuição do cobre.
No dia seguinte, 30 de Agosto, retomámos a marcha com algumas vacas à frente até uma
floresta fresca, perto de três povoações. Muitos Cafres e Cafras saíram destas povoações,
trazendo consigo vacas, milho, leite e outros bens para negociar. Acampámos ali, desfrutando
dessa abundância no dia seguinte. No entanto, os marinheiros e grumetes voltaram a levantar
a voz, querendo separar-se com o seu Mestre. Pediram a divisão das pessoas, gado, cobre,
armas e outros recursos. O Almirante, sentindo-se isolado e sem conselheiros, concordou.
Primeiro, registou-se nos livros do Rei as razões e a forma como essa separação ocorreria, que
era para o bem de todos. A ideia era que, se estivessem separados, todos teriam melhores
condições, pois o que estava disponível para negociar não seria suficiente para todos.
A divisão foi feita: pessoas, armas, gado e outros recursos foram distribuídos. O Almirante deu
a liderança ao Mestre, que marchou com os melhores marinheiros e o grupo de camaradas de
D. Duarte Lobo. Após a morte de D. Duarte, este grupo manteve-se unido, sem divisões, e com
as melhores armas do acampamento. O líder deste grupo era o Padre Fr. António de São
Guilherme, conhecido pelo seu grande talento e coragem, tendo demonstrado a sua valentia
em várias ocasiões de guerra na Índia antes de entrar na religião. Neste grupo estavam
também o Padre Fr. Diogo da Apresentação, Fr. Bento Arrábida, Fr. João da Encarnação e, como
negociadores, Aleixo da Silva e António Carvalho da Costa.
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Com o Almirante ficaram sem camaradas e os Padres Fr. Afonso de Beja, Francisco Pereyra, o
Capelão da Nau, Frey Ambrosio de Magalhães de Menezes, Domingos Borges de Sousa, Veyga,
Faro e os restantes oficiais da Nau. Paulo de Barros atuava como negociador. Neste local, um
Cafre fugiu a Roque Martins de Miranda, compadre e camarada do Almirante, levando tudo o
que trouxera da China, onde estava casado, e escapou da Nau. Despedimo-nos uns dos outros
com grande tristeza, pedindo perdão mútuo. Passadas duas ou três horas, quando o Mestre
começou a marchar, o Almirante levou o seu grupo com o gado à frente, passando por várias
povoações de onde recebia muitas ofertas. Como eram poucos, todos se beneficiavam, e os
Cafres eram mais dóceis. Ao passar pelas suas aldeias, por vezes o seu gado misturava-se com
o nosso, e eles separavam-nos com muita calma.
Desta forma, por volta das quatro da tarde, o Almirante avistou o grupo do Mestre, que estava
a negociar, depois de ter contornado e atravessado muitos caminhos, tentando adiantar-se.
Cada negociador tentava ser o primeiro, no entanto, voltámos a encontrar-nos. O Almirante
marchava à frente com o seu gado e grupo, e nós seguíamo-lo até um rio onde fizemos uma
paragem. Ele de um lado e o Mestre do outro. O rio tinha água muito boa, chegava até à altura
da cintura e estava rodeado por uma fresca floresta. Montaram-se tendas e o gado foi colocado
no meio com boas sentinelas. Durante a noite, disparou-se um tiro de espingarda do grupo do
Almirante porque os nossos jovens gritaram, pensando que os Cafres estavam emboscados,
prontos para atacar os caldeirões que usávamos para buscar água às fontes.
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No entanto, nesta ocasião, não tiveram sucesso. Para evitar este risco, os nossos homens
recorreram a cabaços que tinham trocado por leite, distribuídos pelos grupos. O Mestre ficou
dois dias sem marchar, pois chegou muita mercadoria de todos os tipos, incluindo algumas
galinhas e espetadas de gafanhotos, que os Cafres ofereciam, esperando receber cobre em
troca. A 5 de Setembro, pela manhã, após rezarmos uma Ladainha a Nossa Senhora,
marchámos por uma serra muito íngreme, descendo-a logo de seguida. Não avançámos nesse
dia devido à grande quantidade de mercadorias que chegavam ao longo de um rio cristalino e
de boa água, onde trocámos por vacas, leite e outros bens, no meio de muitas povoações. No
dia seguinte, marchámos por uma montanha alta com dois bárbaros que nos serviam de guias,
deixando enforcado um Cafre que nos tinha traído e roubado.
Como estes bárbaros valorizam muito o cobre, todos os que tinham trocado mercadorias no
dia anterior conspiraram para nos roubar. Os dois bárbaros que se ofereceram como guias
serviram de espiões. Fugiram por uma floresta com uma vaca, mas foram apanhados pelos que
iam à frente. Quando Joseph Gonçalves Veloso tentou amarrar um deles, o outro atacou-o.
Vicente da Silva interveio, mas um Cafre do mato roubou a sua espingarda e fugiu
rapidamente. Ao sairmos daí, encontrámo-nos num campo cercado por tantos Cafres quanto
estrelas no céu, todos em formação de guerra.
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Brandindo as suas lanças, os Cafres eram inúmeros em comparação com os portugueses. No
entanto, ao dispararmos as nossas armas, mesmo que com pouco efeito devido à distância,
conseguimos fazê-los recuar. Continuaram a seguir-nos até uma floresta onde entramos,
pensando que seria uma forma de nos desviarmos deles. Organizámo-nos para marchar com
precaução, com armas à frente e atrás, o gado no meio e vigias pelos lados, pois o caminho era
difícil e longo. Os Cafres não perdiam oportunidade de nos atacar. Atacaram-nos no meio da
floresta com grandes gritos, mas graças a Deus conseguimos matar três deles rapidamente e,
sem sofrer danos, saímos da floresta. Perto de uma fonte de água fresca, alguns trouxeram-nos
mercadorias para trocar. É surpreendente como estes povos, ao verem cobre, não hesitam em
trocar, mesmo que isso signifique trair a sua família ou amigos.
A 7 de Setembro, marchámos por vastas planícies sob uma espessa névoa, sem poder ver
devido às nuvens de gafanhotos. No dia 8, dia do Nascimento de Nossa Senhora, muitos Cafres
aproximaram-se com mercadorias, como vacas e milho. A terra era fértil e alegre, com vista
para muitas aves grandes, semelhantes a garças, mas tão altas que à distância pareciam
carneiros. Nesse dia, vimos um grupo de leões num vale, brincando sem nos notar, enquanto
passávamos por um monte de onde se via o mar. Dirigimo-nos para lá com 42 vacas vivas na
nossa companhia, sem intenção de nos aprofundarmos mais no interior devido ao risco dos
Cafres. No dia de São Nicolau de Tolentino, enquanto marchávamos pela praia, encontrámos
um farol e muita madeira, que parecia ser de algum navio naufragado. Antes do meio-dia,
chegámos a um rio caudaloso.
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Não atravessámos aquele dia devido à forte corrente e à maré cheia. Vimos alguns Cafres
pescadores do outro lado, que não trouxeram nada para trocar. Mais tarde, percebemos que
estavam a espiar-nos, atravessando o rio com água até à cintura. Deixámos marcas no que
chamámos de Rio da Cruz, erguendo uma cruz de madeira e esculpindo outra numa pedra,
para que, caso a companhia do Almirante viesse atrás de nós, soubesse que já tínhamos
passado.
Subimos a um planalto rochoso onde mais de duzentos Cafres nos esperavam em formação de
guerra, protegidos por escudos de couro. Confrontámo-los e castigámos a sua audácia,
matando o líder deles. António Carvalho da Costa acertou-o com duas balas nas pernas,
fazendo-o cair ferido, e acabámos por matá-lo com uma espada. Os restantes fugiram ao ver
isto, pois não são um povo que resista muito. Notámos que quando estes bárbaros se
aproximam em grande número sem trazer nada para trocar, é porque vêm com intenções de
roubar. Assim, é sempre melhor não os poupar. O caminho pela praia é o mais seguro, onde
voltaram a confrontar-nos. No entanto, depois de Alexio da Silva matar outro com uma
espingarda, pararam de nos seguir. Nessa noite, acampámos perto de uma lagoa, atrás de um
rio que nos bloqueava a vista do mar.
No dia seguinte, 12 de Setembro, não nos movemos devido a uma forte tempestade com
relâmpagos. Ao olhar para uma montanha, vimos muitas pessoas a marchar com vacas à
frente, procurando rapidamente um lugar para se abrigarem da chuva.
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Reconhecemos que era a companhia do Almirante. Ao avistar o nosso acampamento,
dispararam duas espingardas, às quais respondemos com outras. Eles acamparam do outro
lado da lagoa, protegidos por uma mata. Paulo de Barros e outros vieram até nós e contaram
sobre a infeliz jornada que tiveram e o confronto com os Cafres.
O Mestre Jacinto António enviou o Er. João da Encarnação para visitar o Almirante. Este
respondeu por escrito, pedindo e solicitando que se juntassem à sua companhia para, juntos,
se defenderem melhor dos Cafres. Avisou que, caso contrário, seria responsabilizado por
qualquer dano que ocorresse. Com esta carta, o Mestre convocou um conselho. Após várias
opiniões, onde os marinheiros votaram para não se juntarem, temendo ser governados pelos
passageiros, a quem o Almirante só deveria obedecer, o Mestre, influenciado por Frei João e
temendo os Cafres, decidiu unir-se ao grupo. Acordaram que ambos teriam igualdade de
jurisdição e comando, o que parecia ser a melhor decisão para a segurança de todos. Os
acampamentos unidos descansaram enquanto explicavam a António da Câmara de Noronha os
eventos dos nove dias em que estiveram separados.
Assim que amanheceu, o dia em que o Almirante se separou de nós, ele começou a marchar
montanha acima. Ao descer, encontrou muitos alimentos. Atravessou uma mata densa e, ao
sair, encontrou terras planas com abundância de vacas, milho, mochilas e leite. Encontrou
alguns nativos amigáveis que o ajudaram a conduzir as vacas, embora estivessem sempre
atentos ao que poderiam roubar. Fez duas jornadas com essa abundância e, na terceira...
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Ao passar por um pequeno bosque, surpreenderam o irmão do Sota-piloto e roubaram a sua
mochila. O Cafre, ao ser descoberto, fugiu rapidamente, mostrando uma agilidade
impressionante. Outro Cafre atacou um mulato, membro da tripulação do Contramestre,
tentando roubar-lhe os alforges. Enquanto lutavam, outros se aproximaram, fazendo com que
o Cafre fugisse. Mais adiante, chegaram a um rio rodeado de muitas árvores e, ao cruzá-lo,
encontraram uma aldeia. Os habitantes saíram ao seu encontro, oferecendo-lhes cabaças
cheias de leite.
Ao tentarem subir uma colina, foram abordados por um Cafre de aparência distinta, adornado
com várias pulseiras de cobre. Ele estava acompanhado por cerca de trezentos outros Cafres,
mas nenhum deles estava armado. Ao tentarem negociar e mostrar-lhes cobre, o Cafre
respondeu em português que não estava interessado em trocar as suas vacas por cobre, mas
sim por prata, "brilhante como a Lua", e ouro, "radiante como o Sol". Deduziram que esse
Cafre poderia ter tido algum contacto anterior com portugueses, talvez de uma expedição
anterior que terminou em desastre.
Paulo de Barros, familiarizado com os costumes dos Cafres devido a viagens anteriores,
percebeu que o Cafre estava de olho no gado que o Almirante tinha domesticado e carregado.
Temendo um ataque, começou a mover-se rapidamente com as vacas à frente, sendo seguido
por um grumete e alguns Cafres locais que os guiavam. Quando os outros viram Paulo a
avançar, seguiram-no. Ao chegarem ao topo da colina e perceberem que os que os seguiam
não conseguiriam alcançá-los rapidamente devido ao terreno íngreme, os Cafres atacaram
Paulo de Barros e o grumete. Apesar de estarem armados com uma espingarda e uma espada,
foram superados e feridos pelos Cafres, que usavam longos paus como armas. Roubaram-lhes
os alforges e três vacas. O grumete conseguiu defender-se um pouco melhor com o seu
bacamarte, perdendo apenas o chapéu no confronto.
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Ao chegarem, Paulo de Barros reuniu-se com os demais e, juntando as vacas, trataram da sua
ferida. Este incidente ocorreu perto de uma aldeia, onde os nativos do nosso acampamento
entraram e roubaram o que encontraram para comer. O Almirante não permitiu que
incendiassem a aldeia. Salvador Pereyra, aproximando-se com o seu arcabuz, encontrou-se
com mais de cem Cafres e atingiu um deles, fazendo-o cair. Os restantes recuaram, deixando
para trás os alforges que tinham roubado a Barros. Celebraram a sua pequena vitória com
grande festa.
A partir daí, sempre que o acampamento se estabelecia, os Cafres continuavam a segui-los,
embora não ousassem atacar diretamente. No entanto, ao se aproximarem de dois montes e
sendo forçados a passar pela encosta mais íngreme, mais de trezentos Cafres posicionaram-se
em ambos os montes, armados. Domingos Borges, com alguns companheiros, avançou
montanha acima e conseguiu tomar o ponto mais alto, fazendo com que os Cafres recuassem.
Assim, o restante do grupo pôde continuar a sua marcha sem incidentes, embora os bárbaros
os seguissem de perto.
Numa certa área arborizada, Domingos Borges emboscou-se e conseguiu abater um dos Cafres.
Isso enfureceu-os de tal forma que, mesmo mantendo-se fora do alcance dos tiros de arcabuz,
continuaram a atacar com pedras. Sempre que desciam uma colina, era necessário que três
homens, armados, protegessem o grupo até que todos passassem. Este padrão repetiu-se até
chegarem a outras aldeias. Sem causar mais danos, continuaram a sua marcha, com as vacas à
frente e sempre em alerta. Ao chegarem a um caminho estreito, ladeado por montanhas altas
de um lado e uma floresta densa do outro, perceberam que seria difícil avançar.
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Os Cafres atacaram-nos com uma chuva de pedras, das quais não conseguiram se proteger,
ferindo o Almirante e Salvador Pereyra, que estavam na retaguarda. Não conseguiram reagir
adequadamente, exceto pelo primeiro disparo, que não teve efeito. Muitos bravos guerreiros
correram para se proteger da intensa saraivada de pedras. Após o ataque, reuniram-se todos
num campo que parecia ter sido cultivado, próximo a um rio. Os Cafres, percebendo que o
grupo se estabeleceria ali, atearam fogo à erva seca. O Almirante, em resposta, atravessou para
o outro lado do rio e dirigiu-se para as colinas, estabelecendo-se no ponto mais alto para
passar a noite, mantendo vigias até o amanhecer, sem montar acampamento ou preparar
comida, pois os Cafres estavam por perto, fazendo barulhos e dando a entender que poderiam
atacar durante a noite.
Ao amanhecer, o Almirante continuou sua jornada pela colina com o gado. No entanto,
descobriu que os bárbaros já haviam ocupado o topo e estavam prontos com pedras. Sem
outra opção, Domingos Borges de Souza, Salvador Pereyra e outros avançaram, com as
espingardas apontadas e atentos às pedras que os Cafres começaram a lançar. Mas, ao verem
os nossos a avançar, os Cafres recuaram, permitindo que todos passassem em segurança.
Depois deste confronto, continuaram a marchar e decidiram passar a noite junto a um rio,
exaustos da jornada e dos confrontos com os Cafres. No dia seguinte, enquanto subiam e
desciam terrenos acidentados, encontraram cinco Cafres que os seguiam. Ao tentar chamá-los,
estes não esperaram. No entanto, ao meio-dia, dois deles regressaram, dando-lhes pequenos
objetos como guias para mostrar o caminho.
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Eles foram conduzidos por uma floresta densa, onde rapidamente perceberam que estavam
sendo levados de volta pelo mesmo caminho. Ao notar que tinham sido descobertos, os guias
tentaram fugir, e alguns sugeriram que deveriam ser mortos. Continuando a marcha, o
Almirante chegou a um rio rodeado por uma vegetação exuberante. Depois de um breve
descanso, ele ordenou que continuassem a marchar, o que foi recebido com desagrado, pois
estavam cansados e o local parecia seguro. Ao subir uma colina, os cinco guias que se
adiantaram retornaram e ocuparam o topo sem serem notados. Assim que tiveram vantagem,
começaram a lançar pedras e a bloquear o caminho. Se não fosse pela intervenção dos Cafres,
teriam tido dificuldades em escapar. No entanto, conseguiram avançar até o ponto mais alto da
colina, onde recuperaram o fôlego e sentiram algum alívio.
Retomaram a marcha por terras planas e caminhos estreitos, avistando muitos Cafres e seus
rebanhos, o que lhes deu esperança de conseguir fazer trocas. Encontraram-se com Benamufa,
um líder local que parecia ter autoridade, vestido com uma capa de couro cortada em tiras,
assim como os seus acompanhantes, que era considerado um sinal de status entre esses povos.
O Almirante pediu-lhe que os guiasse até um rio próximo, prometendo trocar bens por cobre.
Satisfeito com a oferta, Benamufa enviou dois dos seus Cafres como guias. Assim, continuaram
a marchar, com armas em punho, o gado à frente e sempre atentos à retaguarda, lembrando-
se dos perigos que já haviam enfrentado.
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Entraram por um caminho estreito, ladeado de um lado por uma floresta densa e do outro por
altas rochas que pareciam edifícios antigos e cavernas naturais, que serviam de abrigo. Os
cinco Cafres, mencionados anteriormente, juntaram-se a outros e avisaram-nos da morte dos
três. Unidos, posicionaram-se no topo das cavernas e começaram a lançar pedras. Quando o
gado, que ia à frente, se aproximou, eles tiveram que se expor para atirar, acertando primeiro
nas bordas das cavernas e depois no caminho, permitindo que as pessoas se desviassem. Os
que iam à frente alertavam sobre a emboscada. Vendo isso, os Cafres guias tentaram fugir.
Domingos Borges de Souza, com sua espingarda pronta, derrubou o primeiro, enquanto o
outro escapou, apesar de ser alvo de seis espingardas, devido à sua rapidez. Os atacantes não
pararam de lançar pedras, mas o grupo conseguiu refugiar-se atrás das cavernas. Ao chegarem
ao rio, atravessaram-no com água até os joelhos e montaram acampamento, agradecendo a
Deus por terem escapado de tão grandes perigos. Os Cafres vieram chorar o morto,
lamentando-se durante toda a noite. O Almirante manteve uma vigilância apertada até a
manhã, quando retomaram a marcha. Alguns Cafres aproximaram-se com ofertas de troca, e o
grupo parou, pensando em acampar ali por dois dias. No entanto, dado o estado debilitado e
ferido do Almirante e o receio de uma emboscada dos Cafres, decidiram continuar a marchar.
Atravessaram uma montanha cheia de espinhos e uma praga de gafanhotos nas árvores. Uma
densa névoa, acompanhada de uma chuva fina, dificultou a visão do caminho, levando-os em
direção ao mar para escapar dos Cafres que os perseguiam incessantemente.
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Os feridos estavam tão exaustos que decidiram descansar por um dia e meio junto a um rio
com lagoas e árvores, onde havia muita lenha. Mataram algumas vacas para se refrescarem e
aliviar o cansaço do trabalho anterior. Trataram os feridos com óleo de coco, pois não tinham
outra medicação disponível.
Deste local, dirigiram-se para o mar, do qual sentiam saudades. Marcharam seis a sete léguas
todos os dias, atravessando áreas queimadas e caminhos difíceis. Estavam tão cansados que,
ao chegarem à noite, mal conseguiam se sustentar. Numa ocasião, encontraram-se no topo de
uma montanha rochosa e assustadora. A descida era tão íngreme e aterrorizante quanto a
subida do outro lado, que levava a um rio caudaloso com grandes pedras no meio. Ao guiarem
as vacas montanha abaixo, estas começaram a deslizar, levando rochas consigo. Se houvesse
pessoas à frente, teriam sido esmagadas. Algumas vacas ficaram presas entre as árvores,
incapazes de se mover. As pessoas desciam, arrastando-se pelo chão, exaustas. Ao chegarem
ao fundo, encontraram a vaca em que o Almirante montava, morta. Ela tinha caído montanha
abaixo, levando muitas pedras consigo. Essa vaca serviu de alimento para o acampamento
naquela noite. Acamparam num local com capim alto, que servia de sombra para os elefantes.
Dormiram com mais conforto do que nas noites anteriores, sem medo dos bárbaros, em camas
de palha alta e macia. No dia seguinte, continuaram a sua jornada pela montanha, enfrentando
dificuldades. Ao atravessarem o rio, que tinha uma travessia difícil, só pensavam em seguir em
frente, desejando libertar-se daquela terrível terra e de sua pior gente. Por volta das três da
tarde, encontravam-se na encosta da montanha, avançando e segurando-se nas caudas das
vacas para não caírem.
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Com o que se diz, o que se pôde encarar e, descansando desse trabalho, voltaram a ele,
marchando adiante. Deram conta de cerca de cinquenta Cafres armados com rodellas e
azagaias. Ao se aproximarem, não tiveram coragem para atacar o acampamento.
Os nossos sentiram a falta de um marinheiro, sabendo-se que ele tinha ficado a dormir duas
léguas atrás, quando descansaram, sem que os camaradas o acordassem. Após passarem com
grande esforço por algumas poças de água, escolheram um melhor local para passar a noite,
com cada um procurando água e lenha para cozinhar o que havia para comer. O marinheiro,
que tinha ficado a dormir, ao perceber-se sozinho, seguiu o acampamento e, ao anoitecer, foi
seguido até cerca das onze horas da noite. Encontrou-se no meio de muitas fogueiras, algumas
perto da praia e outras mais para o interior. Dirigiu-se até elas até descobrir as barracas,
chegando muito contente. No acampamento, foi recebido com festa, como algo que já se
considerava perdido. Na manhã seguinte, levantaram-se cedo, pensando que as fogueiras que
o marinheiro tinha visto na praia poderiam ser de um grupo de Cafres que os esperava. Foram
com alguma chuva em direção à praia, onde descobriram a companhia do Mestre Jacinto
António, que tinham salvo, como já mencionado. Acamparam em frente, muito cansados e
cortados pelo trabalho e medo dos Cafres. Como vimos, juntaram-se aos acampamentos, com
cada companhia estabelecendo o seu acampamento separadamente, porque no do Mestre
havia mais vacas. Nesse dia, os Cafres trouxeram muitas mercadorias, que foram distribuídas
entre todos. Juntando os acampamentos, marcharam para um rio, que atravessaram em três
braças, com água até aos joelhos. Se não o tivessem encontrado seco na foz, seria maior do
que o da Nau Belém. Ali, alguns Cafres trouxeram mercadorias como milho e frangos, que
foram distribuídos pelos doentes e feridos. O Almirante tratou das feridas que os Cafres lhe
tinham feito.
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Chegaram a nós alguns com mercadorias, sendo os primeiros que vimos a usar barretes feitos
do seu próprio cabelo na cabeça, semelhantes às toucas dos Banianos da Índia, e contas
vermelhas ao pescoço. Por volta das três da tarde, fizemos uma pausa para alimentar o gado e
abater algumas vacas para comer. No Dia de São Mateus, após termos marchado duas léguas
pela praia, avistámos mais vacas e decidimos acampar, tanto para alimentar o nosso gado
como para descansar. Cinco pessoas do nosso grupo foram enviadas com armas às aldeias
próximas para ver se havia mercadorias para trocar. Voltaram com boas notícias, trazendo uma
cabra e um cabrito, pois não podiam carregar mais. Logo depois, os nativos apareceram e
negociámos com eles o que trouxeram. No dia seguinte, não faltaram mercadorias, incluindo
muitas galinhas, que chegaram em boa hora para os doentes. Sempre que encontrávamos
vacas, negociávamos as que estavam disponíveis para venda, considerando a escassez que
poderíamos enfrentar, pois abatíamos três vacas a cada dois dias para alimentar o grupo.
Partindo desse lugar, no vigésimo terceiro dia de setembro, chegámos a outro rio. Fomos
forçados a fazer uma pausa devido à quantidade de mercadorias que os nativos trouxeram, e
estas foram distribuídas igualmente entre nós. Procurámos um local raso para atravessar o rio,
que se encontrava a uma latitude de nove graus e meio. Embora aqueles que se tinham
perdido no naufrágio dissessem que tinham atravessado o rio com uma jangada, fomos
afortunados em encontrar um caminho mais fácil, dado o trabalho que as jangadas exigiam.
Atravessámos o rio com água até ao pescoço e montámos o acampamento do outro lado, onde
muitos nativos nos receberam com grande festa.
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Foi dada ordem aos negociadores para que negociassem, mas eles aproveitaram-se sempre da
situação em detrimento do bem comum. Vendo a familiaridade e abundância com que os
nativos vinham negociar, parecendo que seria sempre assim, a maioria dos marinheiros pensou
em ficar como o Mestre e separar-se do restante grupo, tendo em seu poder a maior parte do
cobre. Esta discórdia surgiu devido às desavenças entre eles e ao descontentamento com a
liderança do Almirante. Este, sem considerar os outros ou dar-lhes satisfações, decidiu agir por
conta própria. Montou no seu cavalo, apesar de estar doente e ferido, e começou a marchar
sozinho. O Padre Frei António de São Guilherme e seus camaradas intervieram, bloqueando-
lhe o caminho. O Padre perguntou-lhe o que pretendia fazer e por que estava a agir sozinho.
Pediu-lhe que chamasse Paulo de Barros, que era o líder da facção do Mestre e que tinha
recebido muitos favores do Almirante. No entanto, ele respondeu que não queria vir, o que
desagradou a todos. Quando António Carvalho da Costa, aliado do Mestre, se aproximou do
Almirante, aconselhou-o a não permitir a divisão que estava a ser planeada, pois não seria
benéfica para todos. Argumentou que a maior parte do cobre ficaria com o grupo do Mestre,
deixando o seu grupo sem recursos para negociar. Propôs que o cobre e as vacas fossem
divididos igualmente e ofereceu-se para ser o negociador. Vendo a situação e a audácia com
que alguns agiam, sem temor de Deus, o Padre Frei António exclamou que, se não fosse pelo
seu hábito e votos, enfrentaria todos e puniria tal ousadia. Isso motivou os seus camaradas e
outros a pegar nas armas e dirigirem-se à barraca do Mestre. Os aliados do Mestre, que eram a
maioria, defenderam-no. Se esta disputa tivesse continuado, muitos poderiam ter morrido, e
os sobreviventes ficariam à mercê dos nativos.
---
Se o Mestre não tivesse saído apressadamente para o mato por detrás da barraca, e o Padre
Frei João da Encarnação, seu camarada, não tivesse aparecido à porta, de joelhos, implorando
com uma imagem de Nossa Senhora do Rosário nas mãos, pedindo em nome desta Senhora e
pelas chagas de Cristo que todos se acalmassem, a situação poderia ter escalado. O Almirante,
com a sua habitual serenidade, não permitiu que se usasse o rigor merecido, e assim, a
situação foi resolvida sem qualquer ofensa. O Mestre e Paulo de Barros apresentaram razões
que não foram aceites, mas no final, prevaleceu a amizade e a união. Todos concordaram com
o que o Almirante propôs, pois era do interesse de todos manter a coesão do grupo. Assim, o
acampamento foi reestabelecido, e aquele dia foi dedicado a um conselho onde se propuseram
leis e medidas para um bom governo. O resultado foi um acordo que beneficiava a todos,
ratificado pelo voto do Padre Frei António de São Guilherme, sem cuja aprovação nada de bom
seria feito. Este acordo foi registado nos livros reais e todos assinaram. Foram nomeados
capitães e companhias, como anteriormente, e ao cair da noite, todos estavam em paz e
contentes, agradecendo a Deus por nos ter livrado de um perigo tão evidente.
---
No dia seguinte, dia de São Jerónimo, marchámos duas léguas. Ao avistarmos alguns Cafres,
decidimos descansar. O acampamento foi reabastecido com uma grande quantidade de milho,
mantos e sésamo, sendo este o primeiro que vimos. Tudo chegou em abundância, como nunca
tínhamos visto até então. Avançando mais para o interior, a meia légua da praia, fizemos uma
pausa de dois dias. Durante esse tempo, até nos trouxeram peixe, que foi distribuído, assim
como os outros bens, de forma igualitária e sem queixas, graças às novas leis estabelecidas. Em
cumprimento destas leis, um grumete foi punido neste local por trocar bens sem permissão.
João Barbosa, que servia como escrivão do acampamento, foi acusado do mesmo crime, mas
como não se conseguiu provar a sua culpa, foi destituído do cargo. Em resposta, enviou-se uma
equipa para procurar vacas nas aldeias vizinhas, mas só conseguiram trazer três. Decidimos
então voltar à praia, deixando para trás três Cafres que tinham fugido: dois pertenciam a Dom
Duarte Lobo e tinham roubado uma pequena caldeira de cobre, e o outro pertencia ao Padre
Frei António de São Guilherme.
Ao anoitecer, aventurámo-nos pelo mato à procura de água potável. Chegámos a um local que
parecia ter sido uma aldeia, onde encontrámos muitas beldroegas, canas-de-açúcar jovens e
figueiras carregadas de frutos, o que nos alegrou bastante. Ao enviar exploradores para
investigar a área, souberam da existência de aldeias próximas. O Almirante enviou quatro
homens para trocar bens por vacas, mas o Padre Frei António desaprovou a decisão, pois
experiências anteriores mostraram que aqueles que iam às aldeias pensavam apenas em si
mesmos e não no bem-estar do acampamento. Assim, decidimos seguir os quatro homens,
levantando o acampamento e sendo guiados por dois Cafres. Durante esta jornada, um jovem
escravo do Padre Francisco Pereira desapareceu e, apesar das buscas, não foi encontrado.
Finalmente, chegámos a um local.
---
Chegámos a um local onde encontrámos os exploradores que o Almirante tinha enviado à
frente. Estavam rodeados por mais de trezentos Cafres, incluindo mulheres e crianças. Já
tinham trocado dois feixes de canas-de-açúcar e alguns mantos com eles. Outros Cafres tinham
ido buscar gado. Pareciam ser pessoas amigáveis, pois quando o nosso grupo passou por eles,
fomos recebidos com festa, cantigas e danças tradicionais. Acampámos perto deles, e de
muitas outras aldeias, junto a um rio. Recebemos muitos bens em troca, incluindo mais de mil
mantos de milho, que era o melhor pão de toda a região, muitas galinhas, milho, vacas, cabras
e canas-de-açúcar. No entanto, devido à nossa escassez de comida, alguns dos nossos homens
foram secretamente ao mato trocar, contrariando o que tinha sido acordado, que era a pena de
morte para quem o fizesse. O Almirante tentou punir os culpados, mas muitos se declararam
inocentes, por isso decidiu não castigar ninguém.
Ficámos neste local durante nove dias, descansando e aproveitando as trocas. Durante este
tempo, uma mulher negra livre, com o seu filho, fugiu. Ela pertencia a Joana do Espírito Santo,
a Beata, e levou consigo outra mulher negra, escrava de Domingos Borges de Sousa. Depois
destes dias, continuámos a nossa marcha, passando por várias aldeias. Deixámos para trás um
jovem marinheiro de Almada, chamado Francisco Gonçalves, que estava demasiado doente
para continuar, quer a pé quer a cavalo. Tínhamos cuidado dele até então, mas agora
entregámo-lo aos cuidados dos Cafres, dando-lhes um pequeno pedaço de cobre para que
cuidassem dele. Despedimo-nos dele com grande tristeza.
Continuámos a marchar até 13 de outubro, sempre com muitas trocas. Nesse dia, um Cafre,
acompanhado por outros e trazendo galinhas, falou-nos em português. Quando perguntámos
como tinha aprendido a língua, ele contou que tinha ficado na região após o naufrágio do navio
São João. Os portugueses tinham tido conflitos com os Cafres, e ele tinha decidido ficar ali
quando era jovem. Mostrou sinais de ser cristão, beijou um crucifixo com devoção e mostrou
grande respeito pelos sacerdotes. Disse que vivia ali, casado e com cinco filhos, e pediu-nos
para ficarmos mais um dia, prometendo voltar no dia seguinte, apesar de o seu rei viver a uma
grande distância dali.
---
No dia seguinte, quando estávamos prestes a partir, muitos Cafres aproximaram-se com bens
para trocar. Assim, decidimos montar novamente as barracas no mesmo local. Estes Cafres
pareciam mais leais e amigáveis do que os que tínhamos encontrado anteriormente. Eram bem
apresentados, afáveis e confiáveis nas trocas. Um dos Cafres, que disse chamar-se Alexandre,
veio com seu filho, Francisco, e trouxe alguns bens para trocar. Mostrando-se afetuoso à fé
cristã, o Padre Francisco Pereyra, membro da Companhia de Jesus, expressou o desejo de ficar
com eles, com o objetivo de cuidar da salvação daquelas almas.
Ele discutiu esta intenção com o Almirante e outros amigos, que tentaram dissuadi-lo. No
entanto, o Padre estava determinado, argumentando que não hesitaria em dar a sua vida pela
salvação daquelas almas, especialmente depois de Deus o ter protegido em tantos perigos e
adversidades. Com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos, despediu-se de todos no
acampamento. Levou consigo a imagem de Cristo e uma relíquia do Nascimento. No entanto,
enquanto caminhava para a aldeia do Cafre, encontrou-se sozinho no meio da floresta,
abandonado pelo guia. Sentindo-se desolado, regressou ao acampamento, trazendo consigo a
imagem e a relíquia. Acreditava que, por milagre, o Cafre apenas lhe tinha roubado o cobre e
poupado a vida.
A 15 de outubro, caminhámos pela praia, enfrentando areias soltas que tornavam a marcha
difícil. Cafres aproximaram-se com muitos bens para trocar. Depois de adquirirmos vários itens,
estes foram colocados num monte na praia para serem distribuídos. Durante este processo, o
Almirante, segurando uma azagaia, tentou pegar num manto amarelo que parecia pertencer a
um líder Cafre. Apesar de haver comida suficiente no acampamento, aqueles com menos bens
tentaram pegar o que queriam sem pedir. Vendo isto, e sem qualquer intervenção dos
religiosos presentes, alguns Cafres, irritados, levaram todos os mantos. O Almirante, tentando
manter a calma, usou a sua própria azagaia para afastar alguns deles, mas evitou confrontos
maiores para prevenir mais tumultos e proteger o acampamento de possíveis desastres.
---
Daqui partimos e tínhamos marchado cerca de duas léguas quando fomos surpreendidos por
uma tempestade com relâmpagos, trovões e chuvas intensas. Acampámos junto a um rio de
água doce, rodeados por um mato. Durante o caminho, muitos Cafres seguiram-nos, cantando
e dançando com grande alegria à sua maneira. Continuaram connosco até anoitecer, trazendo
consigo muitos bens para troca, incluindo cabras, cabritos e ramos de figos da Índia, que nos
serviram de alívio.
No dia seguinte, esperámos que a maré baixasse e atravessámos o rio com água até ao peito.
Este rio foi nomeado "dos figos", pois foram os primeiros figos que encontrámos nesta região
dos Cafres. Continuando a nossa jornada, chegámos a outro rio que atravessámos durante a
maré baixa, com água até à cintura, por três canais distintos. Nos dias seguintes, fomos
abordados por Cafres que nos ofereceram vacas e galinhas em abundância para troca. Cada um
de nós recebeu cerca de cinco galinhas e algumas cabras. As peles destas cabras foram usadas
para trocar por leite e milho. Durante estas trocas, houve alguma desordem, pois não havia
respeito pelo Almirante nem pelos religiosos.
A 22 desse mês, partimos com o acampamento montado e na nossa companhia estava um
Cafre chamado Thomé, que nos acompanhou durante quatro dias. Ele era extremamente útil e
seguia todas as nossas ordens sem hesitação, sendo recompensado com algumas joias de
cobre. Ao subir uma duna de areia, coberta de mato, e depois descendo para o interior,
encontrámos uma das mais belas planícies que já tínhamos visto, repleta de aldeias e irrigada
por rios de água doce, com muitos animais. Muitos Cafres vieram ao nosso encontro, trazendo
tantos bens para troca que decidimos descansar um pouco à sua vista.
No dia seguinte, antes da chegada dos Cafres com os bens para troca, o Almirante chamou os
religiosos, oficiais e passageiros da Nau para uma reunião à parte, junto ao rio. Ele expôs as
dificuldades que enfrentava e disse que não podia continuar a liderar o acampamento. Propôs
renunciar ao seu cargo e à sua jurisdição, sugerindo que se elegesse alguém capaz de nos levar
em paz até ao Cabo das Correntes, e que ele obedeceria a essa pessoa.
---
Foi-lhe respondido que, supondo a confissão que fazia sobre a falta de forças, mesmo que na
companhia não houvesse quem pudesse aceitar a sua deficiência, esta seria aceite por todos.
Procedendo-se à eleição, foram eleitos para tomar os votos o Padre Fr. António de S.
Guilherme e Urbano Fialho Ferreyra. Eles dirigiram-se à barraca de António Carvalho, onde
todos se reuniram. Durante a votação, houve algum desacordo por parte de alguns
marinheiros, mas a situação foi apaziguada. Paulo de Barros foi escolhido como terceiro e, após
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  • 1. O livro narra a jornada de sobreviventes de um naufrágio ao largo da costa africana, especificamente na região da Cafraria (atualmente parte da África do Sul). A narrativa começa com a descrição da destruição de suas embarcações, a Náo e o Galeão, e como os sobreviventes se organizaram após o desastre. Após o naufrágio, os sobreviventes enfrentaram inúmeros desafios, incluindo a necessidade de encontrar comida e água, lidar com o clima adverso e navegar por territórios desconhecidos e muitas vezes hostis. Eles encontraram várias tribos locais ao longo do caminho, algumas das quais eram amigáveis e outras hostis. A interação com essas tribos foi essencial para a sobrevivência do grupo, pois muitas vezes dependiam delas para obter alimentos e orientações. A jornada foi marcada por perigos constantes, incluindo ataques de tribos locais, animais selvagens e as dificuldades inerentes à travessia de rios e regiões pantanosas. Apesar dos desafios, o grupo foi auxiliado por alguns membros das tribos locais, que os guiaram e forneceram recursos essenciais. Eventualmente, o grupo chegou a Moçambique, onde foram recebidos por outros portugueses. A chegada foi marcada por uma mistura de alívio e tristeza, pois, enquanto estavam gratos por terem sobrevivido à sua provação, também foram confrontados com notícias de outros desastres marítimos e perdas na região. A narrativa conclui refletindo sobre os perigos do mar e a resiliência e determinação dos portugueses em enfrentar tais adversidades. Há uma ênfase particular na habilidade dos portugueses em navegar e descobrir os "segredos do mar e da terra" No ano de 1647, a Nau Nossa Senhora da Atalaia enfrentou um dos momentos mais críticos da sua existência. No dia 19 de Abril, sob as ordens do Almirante, a tripulação saudou o Galeão Sacramento com uma salva de sete tiros de canhão. O que deveria ser um gesto de cortesia e camaradagem rapidamente se transformou em calamidade. Após a salva, a Nau Nossa Senhora da Atalaia começou a fazer água a um ritmo alarmante. Escravos e grumetes, em uma tentativa desesperada de manter o navio à tona, esgotavam a água que invadia o navio duas vezes por dia. A situação era agravada pelo fato de que a embarcação já mostrava sinais de envelhecimento, tornando-a mais vulnerável a tais adversidades. Aqueles a bordo que tinham conhecimento marítimo estavam cientes do perigo iminente. O Cabo da Boa Esperança, conhecido pelas suas águas traiçoeiras e tempestades violentas, estava no horizonte da rota da nau. E enfrentar esse desafio durante o rigoroso inverno só aumentava os riscos. As tempestades nesta região são notoriamente desafiadoras, e mesmo as embarcações mais robustas e novas enfrentam dificuldades para navegar por estas águas. Infelizmente, a combinação de um navio antigo, danos estruturais após a saudação e as condições adversas do Cabo da Boa Esperança culminaram no trágico naufrágio da Nau Nossa Senhora da Atalaia. Este evento serve como um lembrete sombrio dos perigos do mar e das decisões que, embora tomadas com boas intenções, podem ter consequências devastadoras. SENHOR,
  • 2. Sendo costume e sempre verdadeiro propósito dos perigos logo se contar depois de passados, outro maior mérito fica dos que me custaram tanto, qual foi o que Vossa Majestade, que Deus guarde, mostrou quando me fez mercê escutar o largo discurso dos mesmos, mandando-me lhe oferecer depois de tão larga jornada. Pois Vossa Majestade tem tanto a sua conta honrar e premiar seus vassalos, como também a rigorosa certeza de passar os olhos pela relação dos trabalhos de tantos, porque com esse só fato receberemos todos o maior prêmio que se pode desejar. À muito alta e poderosa pessoa de Vossa Majestade guarde nosso Senhor, como estes Reinos hão mister, e deseja seus vassalos. Lisboa, 3 de janeiro de 1650. Com o devido respeito e na mais humilde posição, Bento Teixeira Feio. --- Na noite, soltámos as velas com ventos favoráveis até atingir uma latitude de dez graus e um terço a norte. Numa manhã de sábado, a Capitania içou uma bandeira, que logo avistámos, assim como uma outra vela. Ao aproximar-se mais, a Capitania disparou duas peças sem bala, forçando o outro navio a reduzir as velas e a lançar o seu batel ao mar. O Capitão Mor enviou o seu escudeiro, Manuel Luís, com uma equipa ao batel. Durante quatro dias e noites, mantivemo-nos na companhia deste navio. Durante este tempo, o Capitão Mor tentou convencer a tripulação do outro navio, que tinha sido capturado, a juntar-se a nós, apesar de trazerem cartas do Vice-Rei em nome do Rei para Mucelapatao, um aliado importante da Índia. No entanto, o capitão, os oficiais e os cavaleiros do navio Asfalaya, ao serem consultados sobre o assunto, não concordaram com a proposta. Deixámos a área na terça-feira, 5 de março. Durante os dias em que estivemos parados, os marinheiros experientes acreditavam que tínhamos perdido tempo valioso, o que mais tarde se confirmou quando enfrentámos dificuldades para contornar o Cabo da Boa Esperança. A bordo do navio em que embarquei, os religiosos tomaram a iniciativa de cantar as Ladaínhas todos os dias, celebrar a Missa e pregar aos domingos e dias santos. João da Cruz, o Guardião do navio, construiu um sepulcro muito elaborado, onde mantivemos o Senhor exposto durante vinte e quatro horas, com confissões e comunhões realizadas na Quinta-feira Santa. A 12 de março, chegámos à foz do rio, com a Capitania a cortar caminho devido ao sinal que tinha sido dado. --- Com três peças, descobrimos que o Inquisidor Antonio de Faria Machado havia falecido. Ele tinha estado na Índia durante dezessete anos e era muito respeitado e admirado por sua conduta e autoridade. Sentimos a sua perda, assim como a de outras pessoas que tinham saído de Goa doentes. Ainda assim, havia muitos fidalgos e pessoas nobres que, com a sua coragem, ajudaram na
  • 3. salvação daqueles de nós que sobreviveram, muitas vezes arriscando as suas próprias vidas. Com chuvas intensas e períodos de calmaria, navegámos depois de cruzar a linha do Equador. De repente, um grito vindo da gávea anunciou: "Uma vela à vista!" Era o Galeão S. Pedro, que tinha partido de Goa quinze dias depois de nós e nos acompanhou durante vinte dias antes de seguir o seu próprio caminho. No dia 19 de Abril, o Almirante ordenou uma saudação ao Galeão Sacramento com sete tiros de canhão. No entanto, o nosso navio começou a fazer água rapidamente, e escravos e grumetes tinham que esgotá-la duas vezes por dia. Isso preocupava aqueles que entendiam o perigo que enfrentávamos, especialmente porque o nosso navio era antigo e estávamos prestes a enfrentar o Cabo da Boa Esperança durante o rigoroso inverno, quando as tempestades são frequentes e desafiantes, mesmo para embarcações novas. Em 10 de Junho, já a uma latitude de 33 graus sul e com bom tempo, o nosso mastro principal quebrou. Informámos a Capitania sobre o incidente e sobre a água que entrava no navio, pedindo-lhes que nos acompanhassem. Foi-nos enviado um semi-mastro para reparar o dano, mas devido ao aumento do vento, não foi possível realizar o conserto. Em 12 de Junho, ao anoitecer, estávamos ainda na companhia da Capitania quando o vento acalmou pouco antes do pôr do sol, seguindo na mesma direção. --- Da terra, com o vento vindo do oeste, surgiu um céu muito vermelho com nuvens negras e carregadas. Houve um relâmpago isolado e avistámos um peixe Orelhão, uma criatura grande, ambos sinais de uma noite tempestuosa que se aproximava. O vento começou a soprar com força. Recolhemos as velas e ficámos apenas com os papafigos ajustados durante uma parte da noite. Com o surgimento da Lua, o mar agitou-se e o vento intensificou-se de tal forma que o navio inclinou-se violentamente, levando muita água para o convés e submergindo as antenas e cordas. Ordenou-se que se recolhessem as velas e cordas para virar a vela principal, mas devido ao medo do forte temporal e à inexperiência de alguns marinheiros, as velas foram recolhidas de forma desordenada. Isso fez com que o navio virasse abruptamente, enfrentando um vendaval tão intenso que destruiu a vela principal e o traquete. O estrondo foi tão grande que pensámos que o navio iria partir-se. Durante algum tempo, o navio foi jogado de um lado para o outro pelas ondas, tornando quase impossível mantermo-nos de pé. Naquele momento, muitos da tripulação já haviam falecido devido a doenças, restando apenas oito marinheiros, quatro grumetes e alguns passageiros. Todos se esforçaram para controlar uma vela de emergência que tínhamos
  • 4. preparado para situações extremas. Com esta vela, conseguimos estabilizar um pouco o navio, apesar da vela principal estar destruída e o traquete estar danificado, com os estandartes presos e impossíveis de cortar devido às condições adversas. Neste estado, passámos o resto da noite com o navio a ser constantemente atingido pelas ondas, acumulando rapidamente água no convés, enquanto tentávamos manter o curso com o vento. --- Um tempestuoso amanhecer nos surpreendeu no dia de Santo António, com as velas rasgadas e sem a companhia da Capitania. Preparámo-nos para a noite seguinte, que se mostrava tão ameaçadora quanto a anterior, com chuvas de pedras tão grandes quanto as velas, acompanhadas de muitos trovões e relâmpagos. Apesar do mau tempo, e com o navio a navegar a favor do vento, fomos ajustando e retirando o pano que restava na verga, colocando uma vela menor no traquete, para que, caso o vento diminuísse, o navio pudesse manobrar e evitar as ondas que pareciam querer nos engolir. Passámos esse dia e, no seguinte, com o tempo um pouco mais calmo, ajustámos outra vela, mas sem nunca largar as bombas. Após alguns dias de navegação, avistámos terra a 32 graus e decidimos rumar para ela, com a esperança de que, à sua sombra, poderíamos fazer reparos e verificar a condição da água no navio. No entanto, a principal preocupação parecia ser a pesca, e houve quem criticasse essa falta de atenção ao estado do navio. O Mestre Jacinto António, considerando a situação em que nos encontrávamos e a escassez de soluções, achou prudente dirigir-se a Moçambique antes que o tempo nos impedisse completamente. Lá, poderíamos salvaguardar os bens e a artilharia de Sua Majestade e procurar ajuda para todos. Esta ideia espalhou-se rapidamente. Dom Duarte Lobo pediu ao Mestre que, ao verificar o estado do navio, do qual havia relatos variados, levasse consigo os outros oficiais para decidir o melhor a fazer. No entanto, muitos não ficaram satisfeitos com esta proposta, devido aos compromissos que tinham e à pouca atenção que lhes foi dada em Goa. Isso fez com que o Mestre e os outros que consideravam a ideia de dirigir-se a Moçambique fossem intimidados, de modo que a única decisão tomada foi continuar a navegar. --- A caminho de Portugal, navegamos por várias rotas durante alguns dias, aumentando a nossa distância em relação ao Cabo. As bombas não paravam de trabalhar, e todos nós ajudávamos, sem exceção, incluindo os próprios religiosos. Preparámos alguns barris para bombas, fazendo-lhes arcas e abrindo a boca do porão para uma cisterna. No entanto, o esforço foi em vão devido à forma como a artilharia tinha sido arrumada em Goa. Na boca da escotilha, deixaram quatro peças, e havia rumores de que o navio tinha muitas curvas e pés de carneiro fora do seu lugar. Decidiram que, navegando a uma altitude menor, encontraríamos condições mais calmas e poderíamos recolher alguma água. O Mestre, outros oficiais e o Almirante foram verificar a situação abaixo do convés, sem levar D. Duarte Lobo, apesar de ele ter pedido. Quando regressaram, o Mestre, mostrando três pregos do forro, disse que o navio não estava em condições de ir a Jerusalém. Assim, decidiram apenas focar-se na viagem de regresso ao Reino e na pesca, voltando para o mar sem tomar mais medidas, apesar dos riscos e desafios da viagem que tinham pela frente.
  • 5. Ao virar para terra no dia de São Pedro e São Paulo, o Piloto Gaspar Rodrigues Coelho decidiu soltar a vela da gávea de proa. O Sotapiloto Balthazar Rodrigues avisou-o de que estavam perto da terra, mas Gaspar respondeu que tinha navegado por aquela costa durante muito tempo e que não havia motivo para preocupações, a menos que vissem as duas empulhetas do quartinho. Bras da Costa, marinheiro e cunhado do Mestre, que estava a comandar a navegação, gritou em alta voz e com grande urgência: "Virem para cima, irmãos!" Isso causou um alvoroço no navio, pois viram um banco de areia à superfície do mar. --- Na Baía da Lagoa, a oito braças de profundidade, lançando o prumo, encontraram essa medida, causando grande preocupação a todos, como se pode imaginar ao pensar em tal perigo. Rapidamente ajustámos as velas, içando e ajustando a vela da gávea grande mais de doze vezes. Os oficiais e os restantes não abandonaram os seus postos. O Sotapiloto Balthazar Rodrigues, que se manteve firme durante esta provação, gritou da proa, de onde dirigia o navio com grande precisão, dizendo para não temerem, pois ele levaria o navio pelo mesmo caminho por onde tinha entrado. As ondas rebentavam por todos os lados, fazendo o navio balançar intensamente, como se viesse das profundezas. Ao encontrar-se atravessado por três ondas consecutivas, o impacto foi tão grande que parecia que o mundo estava a acabar. O Guardião João da Cruz, que ajudava nas bombas com os grumetes, tão aflito, clamou pelo céu e Deus nosso Senhor enviou um vento que nos empurrou para fora. Como a principal solução em tal tribulação estava nas mãos de Deus e no nosso esforço, todos trabalharam arduamente, incluindo os religiosos, que nesta ocasião valiam por muitos. O Padre Fr. António de São Guilherme da Ordem de Santo Agostinho, que estava a caminho de Portugal como Procurador Geral da sua Congregação, trabalhou tanto que, quando o Padre Fr. Diogo da Apresentação da mesma Ordem se aproximou para lhe dar a confissão, ele respondeu que não era o momento, mas sim de trabalhar. Ao dirigir-se para o convés para nos ajudar, caiu por uma escada devido a um dos balanços do navio, abrindo uma grande ferida na cabeça. No entanto, após apertar a ferida com um lenço, não deu mais importância ao assunto até que a situação se acalmasse. --- Na tarde anterior, tinha-se feito uma súplica ao Santo Cristo do Carmo de Lisboa. Vendo algumas pessoas o navio em tamanha aflição e desespero, e depositando a sua esperança apenas em Deus, gritaram em altas vozes: "Alegria, irmãos! Agora vi na gávea a Nossa Senhora com uma luz, como uma coroa, de grande resplendor." Nesse momento, o ânimo e a coragem de todos foram tão reforçados que a morte já não era temida. Assim passámos a noite, com o navio tão danificado por todo este esforço que não havia parte que não deixasse entrar água. Todos acorreram às bombas e perceberam que a água entrava ainda mais rapidamente, agravada pelo grande temporal que se abateu sobre nós no dia seguinte. Navegámos com a vela da proa, enfrentando o mar agitado e os fortes balanços do navio, esperando a cada momento que ele se partisse ao meio. O mar lançava tanta água sobre nós que os padres tinham de se revezar na popa, benzendo os mares. Se alguma vez se distraíam, as ondas tornavam-se tão fortes que o contramestre, que estava ao leme, sentia-se quase afogado, gritando por ajuda, já que todos estavam ocupados com as bombas. Os
  • 6. religiosos e passageiros, que estavam sob nossa responsabilidade devido ao número reduzido de tripulantes, ajudavam na bomba de estibordo, enquanto os grumetes trabalhavam de dia e os cafre de noite na bomba de bombordo. D. Duarte Lobo e D. Sebastião Lobo da Silveira assistiam dia e noite, desde 13 de Junho, quando começaram os trabalhos, incentivando com doces e mimos aqueles que trabalhavam, pois como não havia fogo, tudo era necessário e nada faltava. --- A bomba de água dava-nos imenso trabalho e preocupação porque frequentemente nos faltavam os fusíveis. Decidiu-se que os cafre deveriam assistir à bomba durante os turnos da noite, mas isso não foi cumprido, ficando apenas os dois calafates. Estes, ao perceberem o aumento do nível da água, alertaram várias vezes para o perigo em que nos encontrávamos, mas foi ordenado que não causassem pânico a bordo. Ao amanhecer, abrimos a escotilha principal e encontrámos água acima do lastro. Rapidamente, montámos as bombas e tentámos esvaziar a água, mas em menos de duas horas, o nível da água aumentou tanto que os barris começaram a encher-se por si mesmos. As pipas do porão romperam-se e os sacos de pimenta espalharam-se, obstruindo as bombas. Com este cenário, trabalhámos continuamente com dois barris de quatro almudes e dois de seis, usando o cabrestante e ao redor do mastro principal, onde abrimos uma grande escotilha para permitir a saída de mais pimenta do que água. Com todo este esforço e com o navio já inclinado para a proa, não conseguíamos controlá-lo, com a água já acima do convés e a proa submersa mais de dois palmos. Neste perigo evidente, passámos dois dias e duas noites sem avistar terra, até que ao amanhecer vimos uma ponta de recifes com muitas árvores, parecendo ser a foz de um rio com uma longa praia de areia e uma grande enseada, que julgámos ser possível alcançar a pé com o batel. Em conselho, considerando a situação do navio, decidiu-se procurar a terra avistada, lançando ao mar a artilharia, que sempre esteve pronta, exceto a da Cuina, que... --- Durante a viagem, não conseguimos manter o porão devido à incapacidade dos corpos de suportar o trabalho, e duas peças foram lançadas ao mar. Com um vento suave, embora o mar estivesse agitado, içámos a vela da gávea grande. No entanto, ao ajustá-la, rasgou-se, assim como a vela de proa. A cevadeira estava toda rasgada e o traquete com muitos cortes. Navegámos com a vela grande, que, ao ajustá-la, também se rasgou. Nesse momento, o Almirante ordenou ao Condestável Francisco Teixeira que guardasse alguma pólvora e balas em barris, recolhesse as armas disponíveis e todo o cobre e bronze, que serviriam como moeda naquela região da Cafraria, para comprar o necessário. A noite foi passada a trabalhar nos gamotes, enquanto os nativos, já em terra, faziam grandes fogueiras. Na manhã seguinte, 3 de Julho, começámos a preparar o batel para desembarcar, assim que o mar permitisse. No entanto, o vento mudou e, com o traquete, ancorámos em sete braças de profundidade. O Mestre ordenou que cortassem as cordas grandes, deixando a verga atravessada no meio do convés, para que, se cortada, pudesse transportar algumas pessoas. Lançámos o batel ao mar com instruções para levar apenas algumas pessoas, armas e mantimentos para estabelecer um acampamento, enquanto os restantes ficavam a bordo. No
  • 7. entanto, devido à forte corrente e ao avançar da hora, o batel regressou sem desembarcar nada, informando que o mar não estava propício e havia um grande banco de areia. Ao anoitecer e com a maré a baixar, o navio começou a encalhar e a lançar água. --- Durante a meia-noite, perdemos o leme, o que nos levou a cortar a árvore grande e o traquete, lançando a outra âncora para não sermos arrastados pela corrente. Ao virar com a maré, ficámos em oito braças de profundidade. Ao amanhecer, na quarta-feira, 4 de Julho, juntámos todos os cabos finos para fazer uma corda, que foi fixada dentro do batel. Com as pessoas necessárias, armas e o que puderam levar à mão, deixando uma ponta da corda no navio, remaram em direção à terra. Ao chegarem à rebentação, a ondulação era tão forte que o Padre Fr. Diogo da Apresentação, que estava no batel, absolveu a todos, com cada um confessando-se publicamente devido à situação crítica. Chegaram à terra sem interferência dos nativos, que não apareceram. Desembarcaram o que levavam e, regressando ao navio, fizeram uma segunda viagem com D. Bárbara e Joana do Espírito Santo, duas portuguesas, bem como todas as escravas que levávamos, o Almirante e D. Sebastião Lobo, entre outros. D. Duarte Lobo e o Padre Fr. António de São Guilherme permaneceram no navio com os oficiais e eu. Optámos por não deixar este nobre, apesar dos seus pedidos para que nos embarcássemos. Todos estavam exaustos, pois os que podiam trabalhar ou estavam no batel ou ficaram em terra para proteger o que estava sendo desembarcado e ajudar os que estavam no batel. Os restantes a bordo não conseguiram construir uma jangada nem embarcar quatro fardos de arroz, apesar de haver mais de mil na embarcação. Não chegaram à terra mais do que trinta fardos, e estes estavam molhados. Nesse dia, o batel fez quatro viagens à terra, e na última, já quase de noite, D. Duarte embarcou. --- Juntamente com os oficiais, a pedido de todos, e com ele o Padre Fr. António e o Padre Francisco Pereira, que foi da Companhia de Jesus, não consentiram que se levasse mais gente no batel do que o necessário. Com a maré a subir e os escravos a bordo, chamámos pelo Padre Capelão, que não quis sair, dizendo que ficaria com aqueles irmãos para os acompanhar, pois a noite prometia ser difícil e não havia ninguém a bordo para trabalhar nos cabos. Nessa viagem, embarcámos setenta pessoas e, ao chegar à terra com dificuldade, o batel estava alagado até à borda, levando alguns de nós a nadar. Aquela noite, o batel ficou encalhado, e os da embarcação passaram por grandes dificuldades. Pela manhã, no dia 5 de Julho, Bras da Costa e Paulo de Barros embarcaram com o restante grupo que estava no batel. Estes dois marinheiros sempre se mantiveram no batel, enfrentando riscos e trabalhos, enquanto os outros se revezavam. Muitos, depois de chegar à praia, voltavam para o navio em busca de comida, que escasseava em terra. A primeira viagem foi feita com segurança graças à corda, mas na segunda, com o mar agitado e ao regressar do navio para a terra, apesar dos esforços daqueles que já estavam no batel, muitas pessoas lançaram-se a ele, sobrecarregando-o. Quando já estavam a alguma distância do navio, um chinês, pertencente a D. Sebastião Lobo, cortou com um machado a corda que estava presa ao navio. Com isso, ao ser atingido pela ondulação, o batel virou-se, inundando-se com as setenta pessoas a bordo. Cinquenta delas morreram afogadas, e nós, que estávamos em terra, não pudemos ajudar, puxando o batel para a praia, onde chegou completamente danificado.
  • 8. --- E aqueles que escaparam, sem que o mar devolvesse nada do que foi embarcado a bordo. Na terça-feira, o Almirante ordenou que se reparasse o batel e, oferecendo quinhentos xerafins a quem se aventurasse nele até ao navio para buscar as pessoas que lá permaneciam, ninguém se atreveu devido ao mar agitado e ao terror do acontecimento do dia anterior. Os que estavam a bordo causavam um espetáculo lamentável com os seus gritos e clamores dirigidos ao céu. Mesmo à distância, os gritos eram tão intensos que percebíamos o desespero daqueles que estávamos na praia. E como já não havia mais refúgio no navio, exceto o mastro grande à ré, e o resto estava coberto pelo mar, e perdendo a esperança no batel, muitos se lançaram à água em pares, dos quais alguns chegaram à terra e os restantes pereceram. Na noite anterior, tinham disparado um canhão pedindo ajuda. Na noite seguinte, de sexta-feira para sábado, alguns negros chegaram à nossa terra, dizendo que ainda havia pessoas brancas no navio, sem mais proteção do que um painel na popa, onde estava a imagem de Nossa Senhora da Atalaya. No entanto, ao amanhecer, o navio despedaçou-se completamente, com apenas um pequeno quartel intacto chegando à terra, e o restante em pedaços. E assim, testemunhámos o fim trágico de um navio tão poderoso, e aqui vimos muitos nus e pobres, que há pouco tempo eram ricos e bem vestidos. O Almirante fez uma chamada aos sobreviventes, dividindo-os em três esquadrões. Ele ficou responsável pelo dos passageiros, e os marinheiros e grumetes foram distribuídos pelos oficiais. Ordenou que tudo o que fosse encontrado para comer fosse levado ao acampamento principal. --- Para isso, nomeei alguns homens que percorressem a praia, proibindo aos restantes sair do acampamento. Mudámos o acampamento para o interior da floresta, pois na praia onde desembarcámos, estávamos cobertos de areia. Construímos barracas, que são o mesmo que tendas de panos brancos, onde nos alojávamos, preparando-nos para a jornada que esperávamos fazer pela Cafraria até ao Cabo das Correntes. Os mantimentos encontrados foram colocados no acampamento sob vigilância. Durante os onze dias que estivemos ali, enfrentámos grandes dificuldades de fome e sede, devido à falta de mantimentos. A água tinha de ser buscada no Rio do Infante, a quase uma légua de distância, e era de tão má qualidade que muitos adoeceram e morreram, incluindo Vicente Lobo de Sequeira, membro da Ordem de Cristo e natural de Macau, que já se tinha perdido nesta região no navio S. João, e um artilheiro chamado Marcos Coelho. Para os casos que surgissem, foram nomeados como adjuntos ao Almirante, D. Sebastião e D. Duarte Lobo da Silveira, irmãos, Domingos Borges de Sousa, senhor da Vila e membro do Conselho de Alva, que veio do Reino no mesmo navio, os Padres Fr. António de S. Guilherme e Fr. João da Encarnação, e os oficiais do navio e o escrivão João Barbosa, uma vez que Francisco Cabrita Freyre estava à beira da morte. Neste naufrágio, encontraram-se três marinheiros que, quatro anos antes, se tinham perdido nesta região no navio, do qual D. Luís de Castelbranco era capitão. Eles tinham viajado pela Cafraria até ao Cabo das Correntes e chamavam-se António Carvalho da Costa, Paulo de Barros e Mattheus Martins. Os dois primeiros foram nomeados como negociadores do acampamento, juntamente com Alexio da Silva, um
  • 9. passageiro nomeado como feitor. Nesta praia onde desembarcámos, encontrámos, durante a maré baixa, uma grande quantidade de amêijoas muito saborosas, que ajudaram a aliviar a fome que enfrentámos. --- O piloto Balthazar Rodrigues, juntamente com Urbano Fialho Ferreira, membro da Ordem de Cristo e filho de António Fialho Ferreira, e outros, chegaram ao Rio do Infante e encontraram trinta e três grãos e um terço. Observaram um recife que se estendia para o noroeste, repleto de árvores, e uma praia com mais de duas léguas de extensão. A costa tinha bancos de areia branca com árvores espalhadas e o terreno era rochoso. Ao tomar o sol, foi dado o alerta da presença de Cafres na praia. Tentaram comunicar com eles através de gestos, mas não conseguiram entender a sua linguagem, pois falavam por sinais. Os Cafres andavam nus e apenas usavam algumas peles como vestimenta. Não praticavam agricultura e sobreviviam comendo algumas raízes, caça e mariscos que encontravam na praia. As suas armas eram paus afiados e algumas lanças de ferro. Quando D. Duarte Lobo e os outros regressaram ao acampamento, distribuíram as armas, balas e pólvora, bem como alguns recipientes para guardar o cobre necessário para o resgate, linhas e arpões para atravessar os rios. Tudo foi registado nos livros do Rei. O arroz que tinham estava todo estragado e podre, o que acelerou a sua partida, deixando enterrados o cobre e a pólvora excedentes. Durante os dias que estiveram ali, o Almirante tratou com o piloto Gaspar Rodrigues Coelho, o escrivão Francisco Cabrita Freyre e outros que estavam doentes ou incapacitados de marchar. Propôs-lhes que, se desejassem, prepararia o batel e forneceria tudo o que fosse necessário para a viagem. No entanto, o piloto não aceitou a oferta, e assim, o assunto não foi mais discutido. Esta decisão foi tomada principalmente para que estas pessoas, juntamente com as mulheres e outros doentes, não se tornassem um fardo, como se verá mais tarde. --- D. Sebastião Lobo da Silveira era tão incapaz de marchar devido ao seu excesso de peso e outros problemas de saúde que o impediam de andar sequer alguns passos por si mesmo. Assim, pediu aos grumetes e oficiais que o persuadissem, e através do seu irmão, D. Duarte Lobo, que era bem visto por todos, chegaram a um acordo para o transportar numa rede feita de linhas de pesca. Cada grumete receberia oitocentos xerafins, e D. Duarte Lobo deu penhores de ouro como garantia. Este fidalgo também estava doente, e durante a nossa estadia no acampamento, tememos pela sua vida. Uma vez organizada a rede com os seus servos e mais dois que comprou, preparou-se para a jornada. Domingos Borges de Sousa fez um andor de uma alcatifa, e Francisco Cabrita fez outro de um pano, usando remos do batel como canas, adaptados pelo carpinteiro. O Piloto, apoiando-se em duas muletas, e os outros, conforme as suas condições de saúde permitiam, seguiram com as suas armas e cada um com os seus alforjes, onde carregavam o seu resgate em cobre e roupa para a sua higiene pessoal. Teria sido necessário mais tempo para descansar do esforço anterior e ganhar forças para os desafios que nos esperavam, mas a falta de alimentos e as condições adversas do local apressaram a nossa partida na segunda-feira, 15 de julho, pela manhã, depois de todos rezarem uma ladainha à Nossa Senhora. É difícil expressar a emoção e as lágrimas que
  • 10. marcaram o início desta trágica e lamentável jornada. Ficaram para trás, devido a ferimentos, um Cafre do Contramestre Manoel de Sousa e um jovem cabrito meu. --- Uma jovem negra pertencente ao Condestável Francisco Teixeira, que morreu afogado ao vir para terra no batel. Começámos a marchar, com o Almirante levando a dianteira, o Mestre Jacinto António a vanguarda e o Contramestre a retaguarda. Desde o início, sentimos pena e compaixão pelos doentes e aqueles incapazes de acompanhar o grupo, prevendo o que viria a acontecer mais tarde. Depois de termos marchado menos de uma légua pela praia, Bertholameu Pereyra Loreto, um marinheiro, ficou para trás devido ao cansaço. Os Cafres, que já nos seguiam, rapidamente o mataram, e nada pudemos fazer para ajudá-lo. Mais à frente, os mesmos Cafres roubaram a D. Barbora os alforjes que continham os seus bens, incluindo o seu resgate em cobre, mantimentos e uma muda de diamantes que escapou. Se a retaguarda não tivesse intervindo rapidamente, teriam-na matado, tal como fizeram ao Loreto. Antonio Carvalho da Costa, um marinheiro, ajudou-a, carregando as suas coisas até ao anoitecer. A portuguesa Beata Joana do Espírito Santo também nos causou muitos problemas, assim como os outros doentes. Mesmo assim, conseguimos acampar num recife junto ao mar, onde encontrámos uma fonte de água muito boa. O Piloto, incapaz de chegar à fonte, ficou um pouco atrás, e ao pedir confissão, os Padres acorreram com grande caridade. O Escrivão chegou à noite, muito tarde, e ali passámos a noite. Na terça-feira, 16 de julho, o Almirante convocou um conselho para decidir o que fazer com as mulheres e as pessoas incapacitadas que nos impediam de avançar rapidamente em direção à terra de resgate, pois os grãos de arroz que tínhamos quando nos perdemos... --- Eram tão poucos que não passavam de duas medidas por pessoa. Segundo afirmavam aqueles que já tinham passado por aquele caminho, não se poderia encontrar resgate em menos de um mês. Após uma discussão intensa, decidiu-se que, dada a nossa situação e considerando que o Piloto, o Escrivão, D. Barbora e João do Espírito Santo não podiam nos acompanhar, e esperar por eles nos exporia a morrer de fome, deveríamos avisar as mulheres para marcharem à frente. Já não se tratava do Piloto e do Escrivão, pois um deles já estava sem fala e o outro não estava em condições de ajudar. Ao serem avisadas, as portuguesas responderam que Deus nos acompanhasse, pois elas não se atreviam nem podiam seguir. Assim, deixámo-las após se confessarem, juntamente com uma menina negra que quis ficar com elas, sem qualquer alimento. Nesta ocasião, D. Sebastião esteve em risco de ficar para trás, pois os grumetes que o carregavam, incapazes de suportar o trabalho, queriam abandoná-lo. D. Duarte Lobo interveio, e com bons argumentos e algum incentivo, conseguiu que o levassem aos poucos. Naquele dia, marchámos ao longo do mar por recifes, de onde surgiam muitos ribeiros de água doce, e atravessámos alguns rios que, se não estivessem secos, nos causariam problemas. Nas praias, encontrava-se algum marisco, mas pouco, e viam-se alguns pássaros grandes, semelhantes a pavões. Aqui, devido ao caminho ser difícil e à escassez de comida, os grumetes decidiram abandonar D. Sebastião Lobo. A solução foi escolher, entre todos, os doze mais robustos, e os
  • 11. restantes carregariam as bagagens destes. Continuámos a marchar por um dia por caminhos ásperos e estreitos junto ao mar. --- Por onde só cabia uma pessoa atrás da outra, devido a um declive e ravinas junto à praia, chegámos a uma passagem muito arriscada. Depois, atravessámos um rio muito caudaloso e agitado, com água acima do joelho. Após atravessá-lo, descansámos, mas os grumetes, ao retomar a marcha, deixaram para trás D. Sebastião Lobo, que não se atreveu a caminhar pelos seus próprios pés. No dia seguinte, chegámos a outro rio com uma densa floresta na sua foz, onde encontrámos um baleato (parte de uma baleia) na praia. Cada um de nós cortou um pedaço para comer. Naquela tarde, passámos por muitos pântanos e terrenos difíceis, e ao final, montámos o acampamento junto a um ribeiro de água fresca. Ao percebermos a ausência de D. Sebastião, porque o Almirante e Dom Duarte, que iam à frente, não tinham notado que os grumetes o haviam deixado para trás, combinaram com os marinheiros para o ir buscar. Já de noite, voltaram duas léguas atrás e encontraram-no onde o tinham deixado, trazendo-o de volta ao acampamento. Ele chegou muito tarde, proclamando em voz alta que D. Sebastião Lobo da Silveira não temia a morte, mas sim os maus tratos que recebia. No dia seguinte, discutiu-se com este fidalgo sobre o seu embarque de regresso ao Reino, chamado por Sua Majestade. No dia seguinte, marchámos pouco e, quase a uma légua de distância, encontrámos o rio de São Cristóvão. Para o atravessar, organizámos duas jangadas, pois o rio era caudaloso, muito profundo, com uma corrente forte e agitada. --- Dedicámos uma [jangada] à Nossa Senhora da Ajuda e outra à do Bom Sucesso. Convencido de que não nos poderia acompanhar, [D. Sebaastião] mostrou-nos muitas joias e objetos valiosos dos quais não tínhamos conhecimento, oferecendo-os a quem pudesse levá-lo às costas. Vendo isso e após persuasões do Mestre Jacinto António, a quem, para este propósito, deu seis voltas de uma corrente de ouro, negociou-se com dezasseis marinheiros, os mais robustos, a quem D. Sebastião entregou imediatamente tudo o que possuía. Depois de atravessar o rio, que devido à sua forte corrente e à impossibilidade de embarcar as jangadas a não ser na maré baixa, não pudemos fazê-lo naquele dia. No dia seguinte, 19 de Julho, concluímos a travessia, mas perdemos um Cafre nosso, que foi levado pela corrente, e um marinheiro, Antonio da Silva, que estava doente e não se atreveu a continuar a marcha. E no dia 20 de Julho, os marinheiros concluíram o transporte dos dezasseis, incluindo D. Sebastião Lobo. Depois de passar o rio, continuámos a marchar pela praia, por caminhos estreitos, e ao chegar a uma fonte, Filipe Romão, um passageiro que tinha vindo do Reino no mesmo navio e que era casado em Lisboa e tinha sido escudeiro da Princesa Margarida, ficou para trás, incapaz de nos seguir devido à doença. Lourenço Rodrigues, escudeiro de Dom Duarte Lobo e casado em Alfama, também ficou para trás, incapaz de caminhar mais, mesmo tendo feito isso até então com a ajuda de duas muletas. Quando o seu senhor, passando por ele, lhe disse para se animar, ele respondeu que Deus o ajudasse e que levasse perante os olhos da senhora Dona Leonor,
  • 12. sua mulher, pois ele não se sentia com forças nem ânimo para os seguir. O Padre Fr. António de São Guilherme também tentou animá-lo. --- No entanto, ele preferiu persistir na sua decisão. Quando o Padre já estava um pouco afastado, ele chamou-o de volta. O Padre, pensando que seria para alguma reconciliação, voltou para ouvir o que ele queria. Ele disse: "Padre Fr. António, já que vais embora, faz-me o favor de me dar um pouco de tabaco. Que Deus esteja contigo." E com uma expressão muito serena, pediu que lhe fizessem uma pequena cova para se deitar. Continuando a nossa marcha, atravessámos um rio com água até à cintura. No dia seguinte, depois de termos caminhado cerca de uma légua, chegámos a outro rio, que atravessámos durante a maré baixa com água até aos ombros. Depois deste rio, encontrámos um caminho melhor, mas deserto, vendo apenas alguns Cafres caçadores que não quiseram falar connosco. Neste percurso, encontrámos boas fontes de água, algumas palmeiras selvagens e pequenas, cujos palmitos, embora difíceis de extrair, serviam como alimento, dada a fome generalizada. Nesse dia, avistámos algumas cabanas com Cafres, que ao nos verem, fugiram. Ao entrarmos nas cabanas, encontrámos dois polvos e alguns grãos de milho. Mais à frente, encontrámos dois Cafres, a quem demos duas fechaduras de escritório como presente, que são as joias que os nativos desta região mais valorizam. Ao perguntarmos sobre a possibilidade de troca, responderam com gestos, indicando que haveria alguma troca nas proximidades. À vista de um monte chamado "da pressa", devido à nossa urgência causada pela fome e pela falta de organização na marcha, pois estávamos muito fracos, dois nativos saíram do mato. Encontrando Felício Gomes, um marinheiro, isolado dos demais, roubaram-lhe a mochila e um jarro de latão que ele tinha na mão. Tentaram fugir rapidamente, mas sem sucesso, pois ao atacarem, ninguém conseguia alcançá-los. --- Ao chegarmos a um ponto elevado onde vimos algumas cabanas, não encontrámos nada além de algumas panelas de barro vazias. Depois disso, montámos o nosso acampamento perto de um rio, e todos estavam muito tristes pela decisão daqueles que acompanhavam D. Sebastião de o deixar, pois sentiam-se sem forças. Ele, resignado e decidido a ficar, primeiro tratou de se confessar novamente e deu a cada um dos que o tinham acompanhado até ali um anel com um rubi. Depois, despojou-se até da sua cruz de tambaca com relíquias que trazia ao pescoço e de uma pequena panela de cobre, pois não havia comida. Todos se despediram dele com a devida tristeza, deixando-o sob uma pequena tenda de pano, robusto e bem-disposto, pois não se sentia capaz de marchar a pé. Com ele ficou um pequeno Chines e um Cafre, que era servo de Domingos Borges de Sousa. D. Duarte Lobo, seu irmão, ficou com ele por um longo tempo. D. Sebastião mostrou, neste momento difícil, tanta paciência e coragem que se pode acreditar piamente na sua salvação. Depois de sairmos desse local, atravessámos outro rio com água até ao peito durante a maré baixa. A partir daí, a terra parecia mais fresca, com algumas boninas, orquídeas e outras plantas, das quais muitos, impulsionados pela fome, comeram com vontade. Depois de atravessar dois rios secos, chegámos a um que vadeámos com água pela cintura, seguindo por terras arenosas e depois por uma floresta onde encontrámos um ribeiro. Acampámos ali durante a noite e, pela manhã, continuámos pela praia. Atravessámos três rios secos e outro
  • 13. que, para atravessar, foi necessário construir uma jangada, que dedicámos a Nossa Senhora do Socorro. --- No local onde passámos, no dia seguinte, vieram até nós alguns com quatro peixes, que trocámos com eles, dando a entender que perto dali havia mais para trocar. No dia seguinte, dia de Santiago, enquanto caminhávamos pela praia, desviamo-nos para um bosque devido a muitos recifes que não conseguíamos ultrapassar. No bosque, encontrámos armadilhas e buracos para elefantes. Mais à frente, num ponto elevado, encontrámos cinco cabanas redondas, semelhantes a fornos, mas estavam vazias. Continuando a marcha e depois de atravessar quatro rios secos, fizemos uma paragem junto a um rio caudaloso e agitado, onde planeámos construir uma jangada para o atravessar no dia seguinte, dia de Santa Ana. Ali, encontrámos alguns pequenos montes verdes e alguns de nós tiveram a sorte de encontrar favas, que ao serem comidas na praia, quase levaram alguns à morte. No sábado, 1º de julho, depois de atravessar o rio, caminhámos por um bosque e, ao sair para a praia, vimos sinais de fogo num ponto elevado. Três dos nossos foram investigar e regressaram com a notícia de que havia vacas nas proximidades. Esta notícia encheu-nos de alegria e, em agradecimento, rezámos uma ladainha em honra de Nossa Senhora. Logo depois, apareceram muitos Cafres, incluindo um que falava português chamado João, que tinha ficado na região desde o naufrágio da Nau Belém. Ele reconheceu-nos imediatamente. Os outros comunicavam através de gestos. Vestiam-se com peles que usavam para cobrir as coxas, e o resto do corpo nu, tanto homens como mulheres. As mulheres diferenciavam-se por usarem chapéus do mesmo couro. Nesse local, trocámos e, no dia seguinte, conseguimos dez vacas, que foram abatidas e comidas. Foi-nos oferecido um preço fixo para todas as vacas que quiséssemos comprar, mas os nossos negociadores não concordaram, argumentando que... --- O Almirante pediu ao Cafre João que considerasse juntar-se à nossa companhia, prometendo- lhe grandes recompensas. No entanto, ele recusou, alegando ter compromissos de caça, e ficou para trás. Continuámos a nossa marcha pela praia. Na segunda-feira, o Cafre João e os seus companheiros atacaram-nos com flechas, tentando matar-nos e roubar-nos. Não se atreveram a atacar diretamente o nosso acampamento, pois estávamos sempre bem vigiados. Nesta praia, deixámos um marinheiro, que trabalhava como gajeiro e morava perto de Duarte Bello em Lisboa. Ele confessou-se, pois não se sentia capaz de continuar a marcha. Os Cafres arrastaram-no pela praia à nossa vista, e ele, de joelhos e com as mãos levantadas, não teve ajuda de nós. Enquanto continuávamos a marchar pela praia, os Cafres continuaram a atacar- nos com flechas. No entanto, Urbano Fialho e Salvador Pereira, com os seus arcabuzes, fizeram-nos recuar, permitindo-nos caminhar com mais liberdade por um caminho difícil e árduo. Saímos deste caminho e encontrámos um rio grande, onde passámos uma noite muito fria devido à falta de água. Na manhã seguinte, esperámos pela maré baixa para atravessar o rio, que tinha água até à cintura. Foi difícil vencer a corrente. Depois, seguimos por recifes tão agudos que magoavam muito os que usavam calçado e rasgavam os pés dos descalços. Depois deste desafio, enfrentámos outro: montanhas íngremes que pareciam tocar o céu. Descemos até um ribeiro onde descansámos e vimos Cafres que se aproximaram para falar connosco. Eles trocaram cinco peixes connosco, dando a entender...
  • 14. --- Havia rumores de que haveria possibilidade de troca mais à frente. Aqui, encontrámos alguns figos, que na Índia são chamados de "gralha", mas eram poucos. Ao subir uma colina, fizemos uma pausa na sua descida para passar a noite junto a um ribeiro de água doce. No dia seguinte, o Almirante mandou explorar a terra para ver se havia algum povoado ou gado. Os exploradores regressaram ao acampamento cansados, famintos e sem qualquer informação. A partir daí, seguimos pela praia, passando por recifes onde colhemos ostras para comer, cruas tal como as encontrámos, pois já não comíamos nada há cinco dias. Chegámos a um rio muito largo e com uma corrente forte. Demorámos três dias a atravessá-lo, esperando pela maré baixa. Depois, fomos descansar numa praia onde foi difícil encontrar água potável. Conseguimos aliviar a fome com algumas ostras e lapas. Chamámos a este rio de São Domingos, pois encontrámo-lo na véspera do dia de São Domingos. A fome tornava a nossa jornada ainda mais difícil. Continuámos até chegarmos a uma montanha de terra movediça, tão íngreme que tivemos de nos agarrar às raízes das figueiras bravas que cresciam ali. Para atravessar um barranco grande e íngreme em direção ao mar, todos nós fizemos o Ato de Contrição, pois se caíssemos, iríamos parar a recifes e lagoas muito agudas. O Mestre Jacinto António teve ainda mais dificuldade, pois era sua vez de liderar a expedição. Enquanto nos preparávamos, ele, armado com uma espingarda e uma adaga, ouviu um grito indicando que ele e alguns dos seus seguidores se estavam a desviar. Havia rumores no acampamento há dias sobre isso. --- Por causa disso, a maior parte do nosso grupo seguiu em frente, deixando D. Duarte Lobo e seus companheiros para trás. Não sabíamos deste desvio e, por isso, retomámos o caminho por dentro de um mato, subindo uma colina com menos dificuldade e chegando ao local onde os aflitos que seguiam o Mestre estavam mais mortos do que vivos. Ao perguntar-lhes sobre ele, disseram-nos que ele tinha tomado outro caminho mais perigoso, pois não encontrou saída pela praia. Reunimo-nos todos novamente e, após um breve descanso, continuámos a marchar até montar acampamento junto a um ribeiro. A fome era tão intensa que nem sequer as ervas verdes eram poupadas, e muitas vezes, ao atravessar o ribeiro, comíamo-las cruas. Na manhã seguinte, começámos a marchar, instruindo os exploradores para irem sempre à frente, procurando sinais de possíveis trocas. Paulo de Barros encontrou uma aldeia de Cafres, mas não conseguimos obter informações claras deles. Estávamos tão exaustos que, sempre que parávamos para descansar, rastejávamos à procura de ervas e favas, sabendo que ao comê-las arriscávamos a vida, pois eram venenosas. Mudámos o nosso caminho da praia, que era muito estéril, sem lapas ou caranguejos, e cheia de recifes. Ao entrar no interior, fizemos uma paragem junto a um ribeiro de água fresca, onde encontrámos cabanas de Cafres. Ao ver-nos, esconderam-se no mato, evitando qualquer comunicação connosco. Continuámos até uma pedra coberta de árvores frescas, com uma poça de água doce tão clara que nos convidou a descansar. Ali, procurámos algumas ervas e quem encontrava um caranguejo considerava-se afortunado. Durante dois dias, marchámos pelo interior, sofrendo as maiores fomes que alguma vez tínhamos suportado.
  • 15. --- Durante uma destas noites, um grumete aproximou-se de uma fogueira que estava acesa perto da barraca de D. Duarte. Ele descalçou-se para secar um sapato e, com grande avidez, começou a aquecê-lo, provavelmente para que ninguém mais o fizesse. No terceiro dia, marchámos sete léguas por terrenos e caminhos ásperos até avistarmos um rio. Descemos uma encosta íngreme com dificuldade. Devido ao cansaço da marcha e à falta de ordem na forma como caminhávamos, corremos o risco de o grupo se dividir devido aos diversos caminhos que encontrávamos. Só percebemos que estávamos no caminho certo quando avistámos o rio de uma colina, tendo que retroceder bastante para não nos perdermos. Chegámos ao rio já de noite, onde encontrámos muitas beringelas bravas e amargas, que foram consumidas. Alguns cozinhavam-nas até que ficassem quase sem sabor, enquanto outros, que não tinham essa paciência, ferviam-nas com pimenta e bebiam a água. Aqueles que conseguiam algum amido, misturavam-no, pois perderam o gosto pela comida. Nessa noite, todos os Cafres que carregavam para D. Duarte fugiram, roubando todo o cobre, caldeirões e tudo o mais que puderam levar do acampamento. D. Duarte ficou desprotegido devido à ausência deles e, por estar muito debilitado, não conseguia seguir a marcha conosco. No dia seguinte, 9 de Agosto, dirigimo-nos para a costa junto ao rio, em busca de um vau. Encontrámo-lo ao final da tarde e, por sorte, também encontrámos muitas figueiras bravas da Índia. Os talos destas figueiras, quando cozidos, ajudavam a aliviar a fome. Chegámos a este local tão fracos que alguns decidiram ficar para trás, incapazes de continuar a marcha. No dia seguinte, dia de São Lourenço, enquanto marchávamos pelas montanhas altas (já que a praia não permitia passagem), João Delgado decidiu ficar para trás. --- Que já tinha feito o mesmo no dia anterior, e o Almirante e eu o trouxemos na retaguarda, a um ritmo lento. Ele fez o seu testamento e, após confessar-se novamente com o Padre Francisco Pereira, pediu-me para o deixar à vista do mar, onde ficou. Quando o acampamento já tinha atravessado uns montes e nós já estávamos a alguma distância e nos tínhamos despedido dele, ele começou a gritar e a correr atrás de nós. Tentando esperar por ele, ele caiu de bruços e não se levantou mais, deixando-nos seguir o acampamento, que também nos estava a deixar para trás, acreditando que ele não nos poderia acompanhar. Esse jovem era casado em Estremoz e estava a caminho como remédio, tendo servido na Índia desde 1635, quando viajou para lá com Pedro da Silva, a quem serviu. Nesse dia, subindo e descendo montanhas, marchámos pouco, tanto devido ao terreno áspero como por causa da incapacidade de D. Duarte Lobo, e não queríamos deixá-lo para trás, nem a outros que estavam a desmaiar. Diminuímos o ritmo e avançámos lentamente, deitando-nos no chão para recuperar o fôlego. Ao final da tarde, ao descer uma montanha íngreme, chegámos a uma pequena praia com um ilhéu que, na maré alta, ficava rodeado de água. Havia muitos seixos numa enseada pequena com um ribeiro de água. Pensámos que não faltariam mariscos para aliviar a fome que nos tinha reduzido a um estado em que parecíamos apenas sombras de homens. No entanto, após vasculhar toda a praia, não encontrámos nada, percebendo por experiência que em recifes de pedra semelhante não há marisco. Nessa ocasião e local, os Cafres do Sotapiloto Balthazar Rodrigues, ao vasculhar um barranco, encontraram a cabeça de um tigre muito podre, cheia de insetos. ---
  • 16. E com um mau cheiro, começaram imediatamente a comer a língua e o resto. Muitos, felizes com a descoberta, trouxeram-na ao seu senhor, que começou a cozê-la com os seus camaradas e com Dom Duarte Lobo. Beberam primeiro o caldo, com tanta avidez que, para proteger esta sua descoberta dos outros, enquanto cozinhava, ele ficou com uma espingarda preparada para se defender caso tentassem roubá-lo. Um religioso pediu um pequeno pedaço, mas ele não lhe deu. No dia seguinte, enquanto marchavam, alguns encontraram no mato dois ratos mortos e malcheirosos, o que causou discussões sobre como dividir a descoberta. Paulo de Barros, avançando, encontrou na praia um Cafre, o que indicava que estavam perto do rio da Nau Belem. Este Cafre sugeriu que não faltaria milho e vacas para trocar. Deram-lhe uma joia de cobre, que ele retribuiu com um pequeno montante de milho. Ao dividir o milho por todos, cada pessoa recebeu doze grãos. Esta notícia renovou as nossas energias e, prostrados no chão, agradecemos a Deus. Rezámos uma ladainha em honra de Nossa Senhora com grande devoção. Depois de subir uma colina íngreme, voltámos à praia e marchámos até um rio que não desaguava no mar. Montámos acampamento à beira do rio, perto de duas cabanas onde o Cafre e os seus companheiros se refugiaram. Ele indicou que a sua aldeia estava distante, mas que nos acompanharia no dia seguinte. Deu ao Almirante um lenço feito de mexilhões, que ele partilhou com D. Duarte. Ao montar o acampamento, cada um saiu para o mato para colher figos e comer os talos. Seguindo a indicação de que algumas flores vermelhas eram comestíveis quando cozidas, fizeram delas uma sopa. No entanto, eram ervas viscosas e venenosas, e aqueles que as comeram sofreram agonia. Se não tivessem aliviado os sintomas vomitando, teriam morrido devido ao veneno. --- A 12 de Agosto, seguimos viagem na companhia do Cafre chamado Benamufa. Subimos um pequeno outeiro, fazendo várias pausas pelo caminho. Depois de superar essa dificuldade, descansámos no topo, perto de algumas cabanas. O Almirante deu uma manilha de cobre ao Cafre como pagamento pela sua orientação. O Cafre indicou que queria avançar e sugeriu enviar algumas pessoas com ele para trazer mercadorias da sua aldeia. Inicialmente, houve hesitação, mas o comportamento amigável e animado do Cafre, juntamente com a nossa extrema fome, superou as dúvidas. Decidiu-se que Paulo de Barros, acompanhado por seis marinheiros, e Aleyxo da Silva, com dois passageiros, avançassem com o Cafre. Ao dar-lhe algumas joias de cobre, ele ficou muito satisfeito. Outros três Cafres juntaram-se a ele no mato e seguimos por cerca de uma légua. Ao chegarmos ao topo de uma colina, gritaram de alegria ao avistar o Rio da Nau Belem, o nosso destino tão esperado. Descansámos a uma légua de distância. O Cafre e os seus companheiros seguiram o seu caminho, enquanto nós nos dirigimos ao rio. Chegando à sua praia já tarde, montámos acampamento e encontrámos alguns vestígios da Nau Belem e alguns corpos. Durante esta viagem, o Padre Fr. Antonio de S. Guilherme esteve à beira da morte várias vezes devido ao veneno de algumas favas que comeu. Foi induzido a comê-las por Domingos Borges de Soufa, que lhe garantiu que eram seguras para consumo. No entanto, ele recuperou graças a alguns antídotos, incluindo pedra-pomes moída. ---
  • 17. E à noite, na tenda de Dom Duarte Lobo, jantou-se um pedaço de couro de um fardo de canela que tinha sido cozido, e noutro grupo, uma alparca de couro, que alguém tinha usado nos pés por mais de vinte dias. Na tenda de Jacinto António, o Mestre comeu um cão dos Cafres, que foi abatido com uma espingarda. Ele não partilhou nem com D. Duarte, o que deixou este último chateado. Como não encontrámos água deste lado, cavámos um poço na areia e encontrámos água de boa qualidade. Passámos três dias confiando em Deus e nas pessoas que tinham ido com o Benamusa. Durante esse tempo, construímos uma jangada para atravessar o rio. Negociámos com alguns Cafres que trouxeram tão pouco milho que cada pessoa só recebeu uma pequena porção. Na quarta-feira, véspera de Nossa Senhora da Assunção, os que esperávamos da aldeia do Cafre chegaram do outro lado do rio, livres da fome, com as mochilas cheias e Cafres na sua companhia com seis vacas vivas para negociação. Depois de terminar a jangada, que dedicámos a S. Domingos Soriano, Vicente da Silva, criado de D. Duarte, foi o primeiro a atravessar o rio para informar sobre o que tinha encontrado, a localização das aldeias e os costumes das pessoas. Este jovem trouxe consigo um pouco de milho, dois "mocates" e um pedaço de carne de vaca cozida, que o fidalgo partilhou com o Almirante e outras pessoas, usando o resto como um mimo para ele e os seus amigos. No dia seguinte, Dia de Nossa Senhora, houve grande esforço para atravessar a rede de pesca, de modo a poder usar a jangada para atravessar o rio, que era largo e com uma corrente forte. Não sendo possível que todos atravessassem nesse dia, o Almirante e os restantes ficaram para o dia seguinte. Um grumete tentou atravessar à tarde, mas a corrente da maré baixa arrastou- o. Todos pensaram que ele não iria sobreviver. O Padre Fr. João da Encarnação deu-lhe a extrema-unção à distância e, ao invocar S. Domingos Soriano, o grumete conseguiu salvar-se. --- Ele apanhou uma refeição e levou-a para terra sem causar dano a ninguém. Os Cafres, que vinham com as seis vacas para negociação, ao verem-nos ainda do outro lado, voltaram à noite para as suas aldeias, prometendo regressar com elas. Isso contrariava a crença daqueles que tinham atravessado o rio primeiro, que não acreditavam nas histórias dos que tinham vindo com eles sobre a abundância encontrada e a boa hospitalidade que o Cafre lhes proporcionara. Pediram a Dom Duarte, um dos primeiros a atravessar, que enviasse pessoas às aldeias para acelerar a negociação. Assim, foram enviados Urbano Fialho Ferreyra, o Contramestre António Carvalho da Costa e outros, armados e com cobre para negociar. No dia seguinte, 16 de Agosto, todo o acampamento terminou de atravessar, estabelecendo-se entre duas colinas com vista para o mar. Os Cafres chegaram com vacas, que foram negociadas e distribuídas entre os grupos. Algumas foram abatidas, outras preparadas e cozinhadas, e todos comeram com tanto apetite que só sobraram as pontas e as unhas das vacas; tudo o resto foi consumido. Mais Cafres chegaram rapidamente com mais gado, milho e "mocates". No entanto, houve desordem da nossa parte, com os negociadores aproveitando-se da situação, espalhando-se pela floresta e esperando pelos Cafres, negociando milho e "mocates" a preços inflacionados, prejudicando todos. Por um "mocate", davam cobre que poderia negociar três ou quatro no acampamento. Como resultado, foi estabelecida uma regra, sob pena de morte, de que ninguém deveria sair do acampamento para negociar, mas a fome era tão grande que, mesmo com tanta carne disponível, não era suficiente. Foi ordenado ao Mestre Jacinto António e a outros que patrulhassem a floresta e os caminhos. ---
  • 18. Não permitindo que se negociasse e determinando que se prendessem os que fossem encontrados, encontraram três portugueses e três negros nossos, que foram detidos e trazidos para o acampamento. Após uma reunião, os representantes decidiram que dois dos três portugueses seriam chicoteados e exibidos pelo acampamento, com as mãos atadas. Para o terceiro, não havia provas suficientes. Dos negros, foi decidido que um deveria ser executado, e a sorte recaiu sobre um mestiço de Urbano Fialho, que foi imediatamente executado. Os outros dois foram severamente chicoteados pelo acampamento, com tanto os portugueses como os negros a supervisionar a punição. Numa dessas noites, tendo faltado negociações por dois dias, foi feito um curral onde as vacas eram guardadas e domesticadas. Decidiu-se trazer as vacas vivas, pois não era sempre possível ir à fonte, que ficava a dois tiros de mosquete, atrás de uma colina. Quando já estávamos recolhidos, um dos nossos negros foi surpreendido por um caldeirão na fonte. Ao regressar ao acampamento, gritou por ajuda. Respondemos, armados, e ao ouvir a fala, disparámos uma espingarda, atingindo um Cafre na perna. Ele foi imediatamente capturado e mantido sob vigilância para ser julgado no dia seguinte. Ao recolhermo-nos, ouvimos outro grito. Ao investigar, descobrimos que eram os companheiros do Cafre ferido, que tinham vindo roubar. Como a noite estava escura, sem que o vigia percebesse, levaram o Cafre ferido para a floresta. No final deste confronto, percebemos que faltavam dois dos nossos cabritos, que tinham fugido, levando aos seus mestres um caldeirão e uma frigideira de cobre, entre outros itens escondidos. --- Suspeitando da presença de mais ladrões, emboscámos alguns dos nossos homens. Pouco depois, encontrámos um Cafre. Tentámos capturá-lo, mas ele resistiu. José Gonçalves Velloso, um marinheiro residente em Belém, atingiu-o com uma espingarda, quebrando-lhe um braço. Ao aproximarmo-nos para o identificar, percebemos que era um Cafre chamado João, um dos que tinha fugido de D. Duarte Lobo da Silveira e roubado o nosso acampamento. O Almirante interrogou-o, e ele confessou que ele e os seus companheiros estavam na área para roubar. Por isso, decidimos enforcá-lo no dia seguinte, após ele se ter confessado. Logo depois, o comércio de troca recomeçou, com muitos grãos, moedas e alguns recipientes de leite e vacas. Estes bárbaros pareciam agora mais domesticados, talvez devido ao contacto anterior com os nossos da Nau Belém, que naufragou em 1634, o período em que estes bárbaros fizeram os seus paraísos. Durante os quatorze ou quinze dias que passámos ali, para descansar as pessoas exaustas pela fome e pela dura jornada, surgiram algumas discórdias. Alguns queriam separar-se e formar um acampamento à parte devido à má liderança do Almirante, causada pela sua indecisão e excessiva bondade. No entanto, isso não aconteceu devido a circunstâncias imprevistas. Aqueles que tinham ido às aldeias nos dias anteriores para avaliar o comércio de vacas, pois havia melhores pastagens lá, regressaram ao acampamento. Ao verem-nos já barbeados, ficaram surpreendidos. --- Devido ao nosso estado debilitado, mal nos reconhecíamos uns aos outros. Havia quem confessasse que, devido à fome, sentia como se algo lhe estivesse a sair pelo corpo, algo que nunca imaginou ser possível.
  • 19. Os Cafres que tinham fugido com o indivíduo que foi enforcado, ao perceberem que estavam sem ele, pediram proteção e desejaram regressar ao nosso grupo. Isso foi concedido, principalmente devido à falta que faziam a D. Duarte Lobo e à dificuldade que este fidalgo tinha em se movimentar, devido a novos problemas de saúde que se somavam aos que já trazia do mar. Para aliviar um pouco a sua situação, ele tentou domesticar dois bois e fez um acordo com dezasseis grumetes para que o transportassem até Moçambique em troca de três mil e quinhentos xerafins. No entanto, numa segunda-feira à noite, entre os dias 25 e 26 de Agosto, sofreu um episódio de ventosidades que o deixou muito debilitado. Usou algalia, um remédio que costumava tomar, e melhorou temporariamente. Mas, de repente, o mesmo mal atacou- lhe a garganta, impedindo-o de falar. Na sua mão, segurava uma imagem de Cristo na Cruz. O Padre Fr. António de São Guilherme, ao vê-lo naquele estado, pediu-lhe que apertasse a mão se desejasse confessar-se. Ele assim o fez, e o padre absolveu-o imediatamente. Pouco depois, D. Duarte Lobo faleceu. A sua morte foi profundamente sentida por todos, pois era um fidalgo muito querido. Não houve quem não lamentasse a sua partida, por inúmeras razões que, por respeito e dever, opto por não detalhar. D. Duarte Lobo era o segundo filho de D. Rodrigo Lobo, General... --- Ele fez parte da Armada deste Reino que navegou para a Índia no ano de 1629 sob o comando do Conde de Linhares. Foi designado para a fortaleza de Baçaim por três anos e também para as terras de Bardés durante a sua vida. Anteriormente, ele tinha embarcado na Armada da costa, que naufragou em França, no Galeão Santiago, que conseguiu escapar após um combate corajoso contra quatro navios turcos. No Estado da Índia, serviu em várias posições de destaque, incluindo Capitão, Capitão-mor das Armadas e, por último, Governador dos Estreitos de Ormuz e Mar Vermelho, onde proclamou Sua Majestade. Esteve presente em várias situações importantes ao serviço do rei, incluindo o socorro à Ilha de Ceilão como soldado do seu irmão, D. António Lobo. Em todas estas situações, demonstrou grande competência, o que sempre foi reconhecido pelos Vice-Reis. Estava a regressar ao Reino neste navio, mais para ver Sua Majestade do que para ser recompensado pelos seus muitos serviços. A 28 de Agosto, dia de Santo Agostinho, começámos a nossa marcha e, seguindo o caminho, chegámos a um ribeiro perto da praia. Esperámos por João Lopes, o tanoeiro do navio, a quem o Almirante tinha enviado para buscar uma vaca que pertencia a D. Duarte Lobo, que não pôde acompanhar-nos devido a uma ferida na perna. Mais para o interior, montámos acampamento para passar a noite numa planície junto a um ribeiro de água salobra. Aqui, mandou-se enforcar, com base em poucas evidências, um Cafre que tinha vindo connosco e que pertencia a D. Duarte Lobo, alegando que ele tinha negociado e outro seu companheiro, que tinha servido o mesmo fidalgo e era do Sotapiloto, fugiu com medo por ser um dos que tinha vindo com garantia de segurança. Neste local, ficámos mais um dia. --- Devido a um levantamento no acampamento, surgiu a ideia de nos separarmos, argumentando que, se continuássemos juntos, não haveria suficiente para negociar para todos. Por causa disso, o Almirante convocou um conselho. Como todos estavam insatisfeitos com a sua liderança, decidiu-se que haveria uma divisão. Esta decisão foi tomada devido a desacordos na eleição de um novo capitão e na distribuição do cobre.
  • 20. No dia seguinte, 30 de Agosto, retomámos a marcha com algumas vacas à frente até uma floresta fresca, perto de três povoações. Muitos Cafres e Cafras saíram destas povoações, trazendo consigo vacas, milho, leite e outros bens para negociar. Acampámos ali, desfrutando dessa abundância no dia seguinte. No entanto, os marinheiros e grumetes voltaram a levantar a voz, querendo separar-se com o seu Mestre. Pediram a divisão das pessoas, gado, cobre, armas e outros recursos. O Almirante, sentindo-se isolado e sem conselheiros, concordou. Primeiro, registou-se nos livros do Rei as razões e a forma como essa separação ocorreria, que era para o bem de todos. A ideia era que, se estivessem separados, todos teriam melhores condições, pois o que estava disponível para negociar não seria suficiente para todos. A divisão foi feita: pessoas, armas, gado e outros recursos foram distribuídos. O Almirante deu a liderança ao Mestre, que marchou com os melhores marinheiros e o grupo de camaradas de D. Duarte Lobo. Após a morte de D. Duarte, este grupo manteve-se unido, sem divisões, e com as melhores armas do acampamento. O líder deste grupo era o Padre Fr. António de São Guilherme, conhecido pelo seu grande talento e coragem, tendo demonstrado a sua valentia em várias ocasiões de guerra na Índia antes de entrar na religião. Neste grupo estavam também o Padre Fr. Diogo da Apresentação, Fr. Bento Arrábida, Fr. João da Encarnação e, como negociadores, Aleixo da Silva e António Carvalho da Costa. --- Com o Almirante ficaram sem camaradas e os Padres Fr. Afonso de Beja, Francisco Pereyra, o Capelão da Nau, Frey Ambrosio de Magalhães de Menezes, Domingos Borges de Sousa, Veyga, Faro e os restantes oficiais da Nau. Paulo de Barros atuava como negociador. Neste local, um Cafre fugiu a Roque Martins de Miranda, compadre e camarada do Almirante, levando tudo o que trouxera da China, onde estava casado, e escapou da Nau. Despedimo-nos uns dos outros com grande tristeza, pedindo perdão mútuo. Passadas duas ou três horas, quando o Mestre começou a marchar, o Almirante levou o seu grupo com o gado à frente, passando por várias povoações de onde recebia muitas ofertas. Como eram poucos, todos se beneficiavam, e os Cafres eram mais dóceis. Ao passar pelas suas aldeias, por vezes o seu gado misturava-se com o nosso, e eles separavam-nos com muita calma. Desta forma, por volta das quatro da tarde, o Almirante avistou o grupo do Mestre, que estava a negociar, depois de ter contornado e atravessado muitos caminhos, tentando adiantar-se. Cada negociador tentava ser o primeiro, no entanto, voltámos a encontrar-nos. O Almirante marchava à frente com o seu gado e grupo, e nós seguíamo-lo até um rio onde fizemos uma paragem. Ele de um lado e o Mestre do outro. O rio tinha água muito boa, chegava até à altura da cintura e estava rodeado por uma fresca floresta. Montaram-se tendas e o gado foi colocado no meio com boas sentinelas. Durante a noite, disparou-se um tiro de espingarda do grupo do Almirante porque os nossos jovens gritaram, pensando que os Cafres estavam emboscados, prontos para atacar os caldeirões que usávamos para buscar água às fontes. --- No entanto, nesta ocasião, não tiveram sucesso. Para evitar este risco, os nossos homens recorreram a cabaços que tinham trocado por leite, distribuídos pelos grupos. O Mestre ficou dois dias sem marchar, pois chegou muita mercadoria de todos os tipos, incluindo algumas galinhas e espetadas de gafanhotos, que os Cafres ofereciam, esperando receber cobre em troca. A 5 de Setembro, pela manhã, após rezarmos uma Ladainha a Nossa Senhora,
  • 21. marchámos por uma serra muito íngreme, descendo-a logo de seguida. Não avançámos nesse dia devido à grande quantidade de mercadorias que chegavam ao longo de um rio cristalino e de boa água, onde trocámos por vacas, leite e outros bens, no meio de muitas povoações. No dia seguinte, marchámos por uma montanha alta com dois bárbaros que nos serviam de guias, deixando enforcado um Cafre que nos tinha traído e roubado. Como estes bárbaros valorizam muito o cobre, todos os que tinham trocado mercadorias no dia anterior conspiraram para nos roubar. Os dois bárbaros que se ofereceram como guias serviram de espiões. Fugiram por uma floresta com uma vaca, mas foram apanhados pelos que iam à frente. Quando Joseph Gonçalves Veloso tentou amarrar um deles, o outro atacou-o. Vicente da Silva interveio, mas um Cafre do mato roubou a sua espingarda e fugiu rapidamente. Ao sairmos daí, encontrámo-nos num campo cercado por tantos Cafres quanto estrelas no céu, todos em formação de guerra. --- Brandindo as suas lanças, os Cafres eram inúmeros em comparação com os portugueses. No entanto, ao dispararmos as nossas armas, mesmo que com pouco efeito devido à distância, conseguimos fazê-los recuar. Continuaram a seguir-nos até uma floresta onde entramos, pensando que seria uma forma de nos desviarmos deles. Organizámo-nos para marchar com precaução, com armas à frente e atrás, o gado no meio e vigias pelos lados, pois o caminho era difícil e longo. Os Cafres não perdiam oportunidade de nos atacar. Atacaram-nos no meio da floresta com grandes gritos, mas graças a Deus conseguimos matar três deles rapidamente e, sem sofrer danos, saímos da floresta. Perto de uma fonte de água fresca, alguns trouxeram-nos mercadorias para trocar. É surpreendente como estes povos, ao verem cobre, não hesitam em trocar, mesmo que isso signifique trair a sua família ou amigos. A 7 de Setembro, marchámos por vastas planícies sob uma espessa névoa, sem poder ver devido às nuvens de gafanhotos. No dia 8, dia do Nascimento de Nossa Senhora, muitos Cafres aproximaram-se com mercadorias, como vacas e milho. A terra era fértil e alegre, com vista para muitas aves grandes, semelhantes a garças, mas tão altas que à distância pareciam carneiros. Nesse dia, vimos um grupo de leões num vale, brincando sem nos notar, enquanto passávamos por um monte de onde se via o mar. Dirigimo-nos para lá com 42 vacas vivas na nossa companhia, sem intenção de nos aprofundarmos mais no interior devido ao risco dos Cafres. No dia de São Nicolau de Tolentino, enquanto marchávamos pela praia, encontrámos um farol e muita madeira, que parecia ser de algum navio naufragado. Antes do meio-dia, chegámos a um rio caudaloso. --- Não atravessámos aquele dia devido à forte corrente e à maré cheia. Vimos alguns Cafres pescadores do outro lado, que não trouxeram nada para trocar. Mais tarde, percebemos que estavam a espiar-nos, atravessando o rio com água até à cintura. Deixámos marcas no que chamámos de Rio da Cruz, erguendo uma cruz de madeira e esculpindo outra numa pedra, para que, caso a companhia do Almirante viesse atrás de nós, soubesse que já tínhamos passado. Subimos a um planalto rochoso onde mais de duzentos Cafres nos esperavam em formação de guerra, protegidos por escudos de couro. Confrontámo-los e castigámos a sua audácia, matando o líder deles. António Carvalho da Costa acertou-o com duas balas nas pernas, fazendo-o cair ferido, e acabámos por matá-lo com uma espada. Os restantes fugiram ao ver
  • 22. isto, pois não são um povo que resista muito. Notámos que quando estes bárbaros se aproximam em grande número sem trazer nada para trocar, é porque vêm com intenções de roubar. Assim, é sempre melhor não os poupar. O caminho pela praia é o mais seguro, onde voltaram a confrontar-nos. No entanto, depois de Alexio da Silva matar outro com uma espingarda, pararam de nos seguir. Nessa noite, acampámos perto de uma lagoa, atrás de um rio que nos bloqueava a vista do mar. No dia seguinte, 12 de Setembro, não nos movemos devido a uma forte tempestade com relâmpagos. Ao olhar para uma montanha, vimos muitas pessoas a marchar com vacas à frente, procurando rapidamente um lugar para se abrigarem da chuva. --- Reconhecemos que era a companhia do Almirante. Ao avistar o nosso acampamento, dispararam duas espingardas, às quais respondemos com outras. Eles acamparam do outro lado da lagoa, protegidos por uma mata. Paulo de Barros e outros vieram até nós e contaram sobre a infeliz jornada que tiveram e o confronto com os Cafres. O Mestre Jacinto António enviou o Er. João da Encarnação para visitar o Almirante. Este respondeu por escrito, pedindo e solicitando que se juntassem à sua companhia para, juntos, se defenderem melhor dos Cafres. Avisou que, caso contrário, seria responsabilizado por qualquer dano que ocorresse. Com esta carta, o Mestre convocou um conselho. Após várias opiniões, onde os marinheiros votaram para não se juntarem, temendo ser governados pelos passageiros, a quem o Almirante só deveria obedecer, o Mestre, influenciado por Frei João e temendo os Cafres, decidiu unir-se ao grupo. Acordaram que ambos teriam igualdade de jurisdição e comando, o que parecia ser a melhor decisão para a segurança de todos. Os acampamentos unidos descansaram enquanto explicavam a António da Câmara de Noronha os eventos dos nove dias em que estiveram separados. Assim que amanheceu, o dia em que o Almirante se separou de nós, ele começou a marchar montanha acima. Ao descer, encontrou muitos alimentos. Atravessou uma mata densa e, ao sair, encontrou terras planas com abundância de vacas, milho, mochilas e leite. Encontrou alguns nativos amigáveis que o ajudaram a conduzir as vacas, embora estivessem sempre atentos ao que poderiam roubar. Fez duas jornadas com essa abundância e, na terceira... --- Ao passar por um pequeno bosque, surpreenderam o irmão do Sota-piloto e roubaram a sua mochila. O Cafre, ao ser descoberto, fugiu rapidamente, mostrando uma agilidade impressionante. Outro Cafre atacou um mulato, membro da tripulação do Contramestre, tentando roubar-lhe os alforges. Enquanto lutavam, outros se aproximaram, fazendo com que o Cafre fugisse. Mais adiante, chegaram a um rio rodeado de muitas árvores e, ao cruzá-lo, encontraram uma aldeia. Os habitantes saíram ao seu encontro, oferecendo-lhes cabaças cheias de leite. Ao tentarem subir uma colina, foram abordados por um Cafre de aparência distinta, adornado com várias pulseiras de cobre. Ele estava acompanhado por cerca de trezentos outros Cafres, mas nenhum deles estava armado. Ao tentarem negociar e mostrar-lhes cobre, o Cafre respondeu em português que não estava interessado em trocar as suas vacas por cobre, mas sim por prata, "brilhante como a Lua", e ouro, "radiante como o Sol". Deduziram que esse
  • 23. Cafre poderia ter tido algum contacto anterior com portugueses, talvez de uma expedição anterior que terminou em desastre. Paulo de Barros, familiarizado com os costumes dos Cafres devido a viagens anteriores, percebeu que o Cafre estava de olho no gado que o Almirante tinha domesticado e carregado. Temendo um ataque, começou a mover-se rapidamente com as vacas à frente, sendo seguido por um grumete e alguns Cafres locais que os guiavam. Quando os outros viram Paulo a avançar, seguiram-no. Ao chegarem ao topo da colina e perceberem que os que os seguiam não conseguiriam alcançá-los rapidamente devido ao terreno íngreme, os Cafres atacaram Paulo de Barros e o grumete. Apesar de estarem armados com uma espingarda e uma espada, foram superados e feridos pelos Cafres, que usavam longos paus como armas. Roubaram-lhes os alforges e três vacas. O grumete conseguiu defender-se um pouco melhor com o seu bacamarte, perdendo apenas o chapéu no confronto. --- Ao chegarem, Paulo de Barros reuniu-se com os demais e, juntando as vacas, trataram da sua ferida. Este incidente ocorreu perto de uma aldeia, onde os nativos do nosso acampamento entraram e roubaram o que encontraram para comer. O Almirante não permitiu que incendiassem a aldeia. Salvador Pereyra, aproximando-se com o seu arcabuz, encontrou-se com mais de cem Cafres e atingiu um deles, fazendo-o cair. Os restantes recuaram, deixando para trás os alforges que tinham roubado a Barros. Celebraram a sua pequena vitória com grande festa. A partir daí, sempre que o acampamento se estabelecia, os Cafres continuavam a segui-los, embora não ousassem atacar diretamente. No entanto, ao se aproximarem de dois montes e sendo forçados a passar pela encosta mais íngreme, mais de trezentos Cafres posicionaram-se em ambos os montes, armados. Domingos Borges, com alguns companheiros, avançou montanha acima e conseguiu tomar o ponto mais alto, fazendo com que os Cafres recuassem. Assim, o restante do grupo pôde continuar a sua marcha sem incidentes, embora os bárbaros os seguissem de perto. Numa certa área arborizada, Domingos Borges emboscou-se e conseguiu abater um dos Cafres. Isso enfureceu-os de tal forma que, mesmo mantendo-se fora do alcance dos tiros de arcabuz, continuaram a atacar com pedras. Sempre que desciam uma colina, era necessário que três homens, armados, protegessem o grupo até que todos passassem. Este padrão repetiu-se até chegarem a outras aldeias. Sem causar mais danos, continuaram a sua marcha, com as vacas à frente e sempre em alerta. Ao chegarem a um caminho estreito, ladeado por montanhas altas de um lado e uma floresta densa do outro, perceberam que seria difícil avançar. --- Os Cafres atacaram-nos com uma chuva de pedras, das quais não conseguiram se proteger, ferindo o Almirante e Salvador Pereyra, que estavam na retaguarda. Não conseguiram reagir adequadamente, exceto pelo primeiro disparo, que não teve efeito. Muitos bravos guerreiros correram para se proteger da intensa saraivada de pedras. Após o ataque, reuniram-se todos num campo que parecia ter sido cultivado, próximo a um rio. Os Cafres, percebendo que o grupo se estabeleceria ali, atearam fogo à erva seca. O Almirante, em resposta, atravessou para o outro lado do rio e dirigiu-se para as colinas, estabelecendo-se no ponto mais alto para passar a noite, mantendo vigias até o amanhecer, sem montar acampamento ou preparar
  • 24. comida, pois os Cafres estavam por perto, fazendo barulhos e dando a entender que poderiam atacar durante a noite. Ao amanhecer, o Almirante continuou sua jornada pela colina com o gado. No entanto, descobriu que os bárbaros já haviam ocupado o topo e estavam prontos com pedras. Sem outra opção, Domingos Borges de Souza, Salvador Pereyra e outros avançaram, com as espingardas apontadas e atentos às pedras que os Cafres começaram a lançar. Mas, ao verem os nossos a avançar, os Cafres recuaram, permitindo que todos passassem em segurança. Depois deste confronto, continuaram a marchar e decidiram passar a noite junto a um rio, exaustos da jornada e dos confrontos com os Cafres. No dia seguinte, enquanto subiam e desciam terrenos acidentados, encontraram cinco Cafres que os seguiam. Ao tentar chamá-los, estes não esperaram. No entanto, ao meio-dia, dois deles regressaram, dando-lhes pequenos objetos como guias para mostrar o caminho. --- Eles foram conduzidos por uma floresta densa, onde rapidamente perceberam que estavam sendo levados de volta pelo mesmo caminho. Ao notar que tinham sido descobertos, os guias tentaram fugir, e alguns sugeriram que deveriam ser mortos. Continuando a marcha, o Almirante chegou a um rio rodeado por uma vegetação exuberante. Depois de um breve descanso, ele ordenou que continuassem a marchar, o que foi recebido com desagrado, pois estavam cansados e o local parecia seguro. Ao subir uma colina, os cinco guias que se adiantaram retornaram e ocuparam o topo sem serem notados. Assim que tiveram vantagem, começaram a lançar pedras e a bloquear o caminho. Se não fosse pela intervenção dos Cafres, teriam tido dificuldades em escapar. No entanto, conseguiram avançar até o ponto mais alto da colina, onde recuperaram o fôlego e sentiram algum alívio. Retomaram a marcha por terras planas e caminhos estreitos, avistando muitos Cafres e seus rebanhos, o que lhes deu esperança de conseguir fazer trocas. Encontraram-se com Benamufa, um líder local que parecia ter autoridade, vestido com uma capa de couro cortada em tiras, assim como os seus acompanhantes, que era considerado um sinal de status entre esses povos. O Almirante pediu-lhe que os guiasse até um rio próximo, prometendo trocar bens por cobre. Satisfeito com a oferta, Benamufa enviou dois dos seus Cafres como guias. Assim, continuaram a marchar, com armas em punho, o gado à frente e sempre atentos à retaguarda, lembrando- se dos perigos que já haviam enfrentado. --- Entraram por um caminho estreito, ladeado de um lado por uma floresta densa e do outro por altas rochas que pareciam edifícios antigos e cavernas naturais, que serviam de abrigo. Os cinco Cafres, mencionados anteriormente, juntaram-se a outros e avisaram-nos da morte dos três. Unidos, posicionaram-se no topo das cavernas e começaram a lançar pedras. Quando o gado, que ia à frente, se aproximou, eles tiveram que se expor para atirar, acertando primeiro nas bordas das cavernas e depois no caminho, permitindo que as pessoas se desviassem. Os que iam à frente alertavam sobre a emboscada. Vendo isso, os Cafres guias tentaram fugir. Domingos Borges de Souza, com sua espingarda pronta, derrubou o primeiro, enquanto o outro escapou, apesar de ser alvo de seis espingardas, devido à sua rapidez. Os atacantes não pararam de lançar pedras, mas o grupo conseguiu refugiar-se atrás das cavernas. Ao chegarem ao rio, atravessaram-no com água até os joelhos e montaram acampamento, agradecendo a Deus por terem escapado de tão grandes perigos. Os Cafres vieram chorar o morto, lamentando-se durante toda a noite. O Almirante manteve uma vigilância apertada até a manhã, quando retomaram a marcha. Alguns Cafres aproximaram-se com ofertas de troca, e o grupo parou, pensando em acampar ali por dois dias. No entanto, dado o estado debilitado e
  • 25. ferido do Almirante e o receio de uma emboscada dos Cafres, decidiram continuar a marchar. Atravessaram uma montanha cheia de espinhos e uma praga de gafanhotos nas árvores. Uma densa névoa, acompanhada de uma chuva fina, dificultou a visão do caminho, levando-os em direção ao mar para escapar dos Cafres que os perseguiam incessantemente. --- Os feridos estavam tão exaustos que decidiram descansar por um dia e meio junto a um rio com lagoas e árvores, onde havia muita lenha. Mataram algumas vacas para se refrescarem e aliviar o cansaço do trabalho anterior. Trataram os feridos com óleo de coco, pois não tinham outra medicação disponível. Deste local, dirigiram-se para o mar, do qual sentiam saudades. Marcharam seis a sete léguas todos os dias, atravessando áreas queimadas e caminhos difíceis. Estavam tão cansados que, ao chegarem à noite, mal conseguiam se sustentar. Numa ocasião, encontraram-se no topo de uma montanha rochosa e assustadora. A descida era tão íngreme e aterrorizante quanto a subida do outro lado, que levava a um rio caudaloso com grandes pedras no meio. Ao guiarem as vacas montanha abaixo, estas começaram a deslizar, levando rochas consigo. Se houvesse pessoas à frente, teriam sido esmagadas. Algumas vacas ficaram presas entre as árvores, incapazes de se mover. As pessoas desciam, arrastando-se pelo chão, exaustas. Ao chegarem ao fundo, encontraram a vaca em que o Almirante montava, morta. Ela tinha caído montanha abaixo, levando muitas pedras consigo. Essa vaca serviu de alimento para o acampamento naquela noite. Acamparam num local com capim alto, que servia de sombra para os elefantes. Dormiram com mais conforto do que nas noites anteriores, sem medo dos bárbaros, em camas de palha alta e macia. No dia seguinte, continuaram a sua jornada pela montanha, enfrentando dificuldades. Ao atravessarem o rio, que tinha uma travessia difícil, só pensavam em seguir em frente, desejando libertar-se daquela terrível terra e de sua pior gente. Por volta das três da tarde, encontravam-se na encosta da montanha, avançando e segurando-se nas caudas das vacas para não caírem. --- Com o que se diz, o que se pôde encarar e, descansando desse trabalho, voltaram a ele, marchando adiante. Deram conta de cerca de cinquenta Cafres armados com rodellas e azagaias. Ao se aproximarem, não tiveram coragem para atacar o acampamento. Os nossos sentiram a falta de um marinheiro, sabendo-se que ele tinha ficado a dormir duas léguas atrás, quando descansaram, sem que os camaradas o acordassem. Após passarem com grande esforço por algumas poças de água, escolheram um melhor local para passar a noite, com cada um procurando água e lenha para cozinhar o que havia para comer. O marinheiro, que tinha ficado a dormir, ao perceber-se sozinho, seguiu o acampamento e, ao anoitecer, foi seguido até cerca das onze horas da noite. Encontrou-se no meio de muitas fogueiras, algumas perto da praia e outras mais para o interior. Dirigiu-se até elas até descobrir as barracas, chegando muito contente. No acampamento, foi recebido com festa, como algo que já se considerava perdido. Na manhã seguinte, levantaram-se cedo, pensando que as fogueiras que o marinheiro tinha visto na praia poderiam ser de um grupo de Cafres que os esperava. Foram com alguma chuva em direção à praia, onde descobriram a companhia do Mestre Jacinto António, que tinham salvo, como já mencionado. Acamparam em frente, muito cansados e cortados pelo trabalho e medo dos Cafres. Como vimos, juntaram-se aos acampamentos, com cada companhia estabelecendo o seu acampamento separadamente, porque no do Mestre havia mais vacas. Nesse dia, os Cafres trouxeram muitas mercadorias, que foram distribuídas
  • 26. entre todos. Juntando os acampamentos, marcharam para um rio, que atravessaram em três braças, com água até aos joelhos. Se não o tivessem encontrado seco na foz, seria maior do que o da Nau Belém. Ali, alguns Cafres trouxeram mercadorias como milho e frangos, que foram distribuídos pelos doentes e feridos. O Almirante tratou das feridas que os Cafres lhe tinham feito. --- Chegaram a nós alguns com mercadorias, sendo os primeiros que vimos a usar barretes feitos do seu próprio cabelo na cabeça, semelhantes às toucas dos Banianos da Índia, e contas vermelhas ao pescoço. Por volta das três da tarde, fizemos uma pausa para alimentar o gado e abater algumas vacas para comer. No Dia de São Mateus, após termos marchado duas léguas pela praia, avistámos mais vacas e decidimos acampar, tanto para alimentar o nosso gado como para descansar. Cinco pessoas do nosso grupo foram enviadas com armas às aldeias próximas para ver se havia mercadorias para trocar. Voltaram com boas notícias, trazendo uma cabra e um cabrito, pois não podiam carregar mais. Logo depois, os nativos apareceram e negociámos com eles o que trouxeram. No dia seguinte, não faltaram mercadorias, incluindo muitas galinhas, que chegaram em boa hora para os doentes. Sempre que encontrávamos vacas, negociávamos as que estavam disponíveis para venda, considerando a escassez que poderíamos enfrentar, pois abatíamos três vacas a cada dois dias para alimentar o grupo. Partindo desse lugar, no vigésimo terceiro dia de setembro, chegámos a outro rio. Fomos forçados a fazer uma pausa devido à quantidade de mercadorias que os nativos trouxeram, e estas foram distribuídas igualmente entre nós. Procurámos um local raso para atravessar o rio, que se encontrava a uma latitude de nove graus e meio. Embora aqueles que se tinham perdido no naufrágio dissessem que tinham atravessado o rio com uma jangada, fomos afortunados em encontrar um caminho mais fácil, dado o trabalho que as jangadas exigiam. Atravessámos o rio com água até ao pescoço e montámos o acampamento do outro lado, onde muitos nativos nos receberam com grande festa. --- Foi dada ordem aos negociadores para que negociassem, mas eles aproveitaram-se sempre da situação em detrimento do bem comum. Vendo a familiaridade e abundância com que os nativos vinham negociar, parecendo que seria sempre assim, a maioria dos marinheiros pensou em ficar como o Mestre e separar-se do restante grupo, tendo em seu poder a maior parte do cobre. Esta discórdia surgiu devido às desavenças entre eles e ao descontentamento com a liderança do Almirante. Este, sem considerar os outros ou dar-lhes satisfações, decidiu agir por conta própria. Montou no seu cavalo, apesar de estar doente e ferido, e começou a marchar sozinho. O Padre Frei António de São Guilherme e seus camaradas intervieram, bloqueando- lhe o caminho. O Padre perguntou-lhe o que pretendia fazer e por que estava a agir sozinho. Pediu-lhe que chamasse Paulo de Barros, que era o líder da facção do Mestre e que tinha recebido muitos favores do Almirante. No entanto, ele respondeu que não queria vir, o que desagradou a todos. Quando António Carvalho da Costa, aliado do Mestre, se aproximou do Almirante, aconselhou-o a não permitir a divisão que estava a ser planeada, pois não seria benéfica para todos. Argumentou que a maior parte do cobre ficaria com o grupo do Mestre, deixando o seu grupo sem recursos para negociar. Propôs que o cobre e as vacas fossem divididos igualmente e ofereceu-se para ser o negociador. Vendo a situação e a audácia com que alguns agiam, sem temor de Deus, o Padre Frei António exclamou que, se não fosse pelo seu hábito e votos, enfrentaria todos e puniria tal ousadia. Isso motivou os seus camaradas e outros a pegar nas armas e dirigirem-se à barraca do Mestre. Os aliados do Mestre, que eram a
  • 27. maioria, defenderam-no. Se esta disputa tivesse continuado, muitos poderiam ter morrido, e os sobreviventes ficariam à mercê dos nativos. --- Se o Mestre não tivesse saído apressadamente para o mato por detrás da barraca, e o Padre Frei João da Encarnação, seu camarada, não tivesse aparecido à porta, de joelhos, implorando com uma imagem de Nossa Senhora do Rosário nas mãos, pedindo em nome desta Senhora e pelas chagas de Cristo que todos se acalmassem, a situação poderia ter escalado. O Almirante, com a sua habitual serenidade, não permitiu que se usasse o rigor merecido, e assim, a situação foi resolvida sem qualquer ofensa. O Mestre e Paulo de Barros apresentaram razões que não foram aceites, mas no final, prevaleceu a amizade e a união. Todos concordaram com o que o Almirante propôs, pois era do interesse de todos manter a coesão do grupo. Assim, o acampamento foi reestabelecido, e aquele dia foi dedicado a um conselho onde se propuseram leis e medidas para um bom governo. O resultado foi um acordo que beneficiava a todos, ratificado pelo voto do Padre Frei António de São Guilherme, sem cuja aprovação nada de bom seria feito. Este acordo foi registado nos livros reais e todos assinaram. Foram nomeados capitães e companhias, como anteriormente, e ao cair da noite, todos estavam em paz e contentes, agradecendo a Deus por nos ter livrado de um perigo tão evidente. --- No dia seguinte, dia de São Jerónimo, marchámos duas léguas. Ao avistarmos alguns Cafres, decidimos descansar. O acampamento foi reabastecido com uma grande quantidade de milho, mantos e sésamo, sendo este o primeiro que vimos. Tudo chegou em abundância, como nunca tínhamos visto até então. Avançando mais para o interior, a meia légua da praia, fizemos uma pausa de dois dias. Durante esse tempo, até nos trouxeram peixe, que foi distribuído, assim como os outros bens, de forma igualitária e sem queixas, graças às novas leis estabelecidas. Em cumprimento destas leis, um grumete foi punido neste local por trocar bens sem permissão. João Barbosa, que servia como escrivão do acampamento, foi acusado do mesmo crime, mas como não se conseguiu provar a sua culpa, foi destituído do cargo. Em resposta, enviou-se uma equipa para procurar vacas nas aldeias vizinhas, mas só conseguiram trazer três. Decidimos então voltar à praia, deixando para trás três Cafres que tinham fugido: dois pertenciam a Dom Duarte Lobo e tinham roubado uma pequena caldeira de cobre, e o outro pertencia ao Padre Frei António de São Guilherme. Ao anoitecer, aventurámo-nos pelo mato à procura de água potável. Chegámos a um local que parecia ter sido uma aldeia, onde encontrámos muitas beldroegas, canas-de-açúcar jovens e figueiras carregadas de frutos, o que nos alegrou bastante. Ao enviar exploradores para investigar a área, souberam da existência de aldeias próximas. O Almirante enviou quatro homens para trocar bens por vacas, mas o Padre Frei António desaprovou a decisão, pois experiências anteriores mostraram que aqueles que iam às aldeias pensavam apenas em si mesmos e não no bem-estar do acampamento. Assim, decidimos seguir os quatro homens, levantando o acampamento e sendo guiados por dois Cafres. Durante esta jornada, um jovem escravo do Padre Francisco Pereira desapareceu e, apesar das buscas, não foi encontrado. Finalmente, chegámos a um local. ---
  • 28. Chegámos a um local onde encontrámos os exploradores que o Almirante tinha enviado à frente. Estavam rodeados por mais de trezentos Cafres, incluindo mulheres e crianças. Já tinham trocado dois feixes de canas-de-açúcar e alguns mantos com eles. Outros Cafres tinham ido buscar gado. Pareciam ser pessoas amigáveis, pois quando o nosso grupo passou por eles, fomos recebidos com festa, cantigas e danças tradicionais. Acampámos perto deles, e de muitas outras aldeias, junto a um rio. Recebemos muitos bens em troca, incluindo mais de mil mantos de milho, que era o melhor pão de toda a região, muitas galinhas, milho, vacas, cabras e canas-de-açúcar. No entanto, devido à nossa escassez de comida, alguns dos nossos homens foram secretamente ao mato trocar, contrariando o que tinha sido acordado, que era a pena de morte para quem o fizesse. O Almirante tentou punir os culpados, mas muitos se declararam inocentes, por isso decidiu não castigar ninguém. Ficámos neste local durante nove dias, descansando e aproveitando as trocas. Durante este tempo, uma mulher negra livre, com o seu filho, fugiu. Ela pertencia a Joana do Espírito Santo, a Beata, e levou consigo outra mulher negra, escrava de Domingos Borges de Sousa. Depois destes dias, continuámos a nossa marcha, passando por várias aldeias. Deixámos para trás um jovem marinheiro de Almada, chamado Francisco Gonçalves, que estava demasiado doente para continuar, quer a pé quer a cavalo. Tínhamos cuidado dele até então, mas agora entregámo-lo aos cuidados dos Cafres, dando-lhes um pequeno pedaço de cobre para que cuidassem dele. Despedimo-nos dele com grande tristeza. Continuámos a marchar até 13 de outubro, sempre com muitas trocas. Nesse dia, um Cafre, acompanhado por outros e trazendo galinhas, falou-nos em português. Quando perguntámos como tinha aprendido a língua, ele contou que tinha ficado na região após o naufrágio do navio São João. Os portugueses tinham tido conflitos com os Cafres, e ele tinha decidido ficar ali quando era jovem. Mostrou sinais de ser cristão, beijou um crucifixo com devoção e mostrou grande respeito pelos sacerdotes. Disse que vivia ali, casado e com cinco filhos, e pediu-nos para ficarmos mais um dia, prometendo voltar no dia seguinte, apesar de o seu rei viver a uma grande distância dali. --- No dia seguinte, quando estávamos prestes a partir, muitos Cafres aproximaram-se com bens para trocar. Assim, decidimos montar novamente as barracas no mesmo local. Estes Cafres pareciam mais leais e amigáveis do que os que tínhamos encontrado anteriormente. Eram bem apresentados, afáveis e confiáveis nas trocas. Um dos Cafres, que disse chamar-se Alexandre, veio com seu filho, Francisco, e trouxe alguns bens para trocar. Mostrando-se afetuoso à fé cristã, o Padre Francisco Pereyra, membro da Companhia de Jesus, expressou o desejo de ficar com eles, com o objetivo de cuidar da salvação daquelas almas. Ele discutiu esta intenção com o Almirante e outros amigos, que tentaram dissuadi-lo. No entanto, o Padre estava determinado, argumentando que não hesitaria em dar a sua vida pela salvação daquelas almas, especialmente depois de Deus o ter protegido em tantos perigos e adversidades. Com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos, despediu-se de todos no acampamento. Levou consigo a imagem de Cristo e uma relíquia do Nascimento. No entanto, enquanto caminhava para a aldeia do Cafre, encontrou-se sozinho no meio da floresta, abandonado pelo guia. Sentindo-se desolado, regressou ao acampamento, trazendo consigo a imagem e a relíquia. Acreditava que, por milagre, o Cafre apenas lhe tinha roubado o cobre e poupado a vida.
  • 29. A 15 de outubro, caminhámos pela praia, enfrentando areias soltas que tornavam a marcha difícil. Cafres aproximaram-se com muitos bens para trocar. Depois de adquirirmos vários itens, estes foram colocados num monte na praia para serem distribuídos. Durante este processo, o Almirante, segurando uma azagaia, tentou pegar num manto amarelo que parecia pertencer a um líder Cafre. Apesar de haver comida suficiente no acampamento, aqueles com menos bens tentaram pegar o que queriam sem pedir. Vendo isto, e sem qualquer intervenção dos religiosos presentes, alguns Cafres, irritados, levaram todos os mantos. O Almirante, tentando manter a calma, usou a sua própria azagaia para afastar alguns deles, mas evitou confrontos maiores para prevenir mais tumultos e proteger o acampamento de possíveis desastres. --- Daqui partimos e tínhamos marchado cerca de duas léguas quando fomos surpreendidos por uma tempestade com relâmpagos, trovões e chuvas intensas. Acampámos junto a um rio de água doce, rodeados por um mato. Durante o caminho, muitos Cafres seguiram-nos, cantando e dançando com grande alegria à sua maneira. Continuaram connosco até anoitecer, trazendo consigo muitos bens para troca, incluindo cabras, cabritos e ramos de figos da Índia, que nos serviram de alívio. No dia seguinte, esperámos que a maré baixasse e atravessámos o rio com água até ao peito. Este rio foi nomeado "dos figos", pois foram os primeiros figos que encontrámos nesta região dos Cafres. Continuando a nossa jornada, chegámos a outro rio que atravessámos durante a maré baixa, com água até à cintura, por três canais distintos. Nos dias seguintes, fomos abordados por Cafres que nos ofereceram vacas e galinhas em abundância para troca. Cada um de nós recebeu cerca de cinco galinhas e algumas cabras. As peles destas cabras foram usadas para trocar por leite e milho. Durante estas trocas, houve alguma desordem, pois não havia respeito pelo Almirante nem pelos religiosos. A 22 desse mês, partimos com o acampamento montado e na nossa companhia estava um Cafre chamado Thomé, que nos acompanhou durante quatro dias. Ele era extremamente útil e seguia todas as nossas ordens sem hesitação, sendo recompensado com algumas joias de cobre. Ao subir uma duna de areia, coberta de mato, e depois descendo para o interior, encontrámos uma das mais belas planícies que já tínhamos visto, repleta de aldeias e irrigada por rios de água doce, com muitos animais. Muitos Cafres vieram ao nosso encontro, trazendo tantos bens para troca que decidimos descansar um pouco à sua vista. No dia seguinte, antes da chegada dos Cafres com os bens para troca, o Almirante chamou os religiosos, oficiais e passageiros da Nau para uma reunião à parte, junto ao rio. Ele expôs as dificuldades que enfrentava e disse que não podia continuar a liderar o acampamento. Propôs renunciar ao seu cargo e à sua jurisdição, sugerindo que se elegesse alguém capaz de nos levar em paz até ao Cabo das Correntes, e que ele obedeceria a essa pessoa. --- Foi-lhe respondido que, supondo a confissão que fazia sobre a falta de forças, mesmo que na companhia não houvesse quem pudesse aceitar a sua deficiência, esta seria aceite por todos. Procedendo-se à eleição, foram eleitos para tomar os votos o Padre Fr. António de S. Guilherme e Urbano Fialho Ferreyra. Eles dirigiram-se à barraca de António Carvalho, onde todos se reuniram. Durante a votação, houve algum desacordo por parte de alguns marinheiros, mas a situação foi apaziguada. Paulo de Barros foi escolhido como terceiro e, após