O documento descreve a vida e obra do poeta moçambicano José Craveirinha. Craveirinha foi um dos maiores poetas africanos e sua poesia refletia os conflitos políticos de Moçambique no século XX. Seu livro mais famoso, Maria, é uma coleção de poemas de luto pela morte de sua esposa, escritos com grande delicadeza e ausência de sentimentalismo. A poesia de Craveirinha celebra a cultura africana e protesta contra o racismo e a opressão em Moçamb
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JOSÉ CRAVEIRINHA: ANTIQUÍSSIMOS ASTROS DA ÁFRICA
O que sabemos de Moçambique? Bastaria dizer José
Craveirinha e saberíamos muito. O poeta é um país, um jeito
de silenciar, uma mistura explosiva entre oceano, nativismo
negro, furor da terra e n’goma (tambores ressoando). Mas
poucos conhecem Moçambique e Craveirinha, apesar do multiculturalismo e
africanidade ostentados pelos brasileiros.
Da literatura africana, arranha a nossa porta a ficção de Pepetela, Mia Couto e
José Eduardo Agualusa. Nenhum sinal de poesia, que só pode ser conhecida via
edições de Lisboa.
Craveirinha foi o maior poeta africano. Representa uma natureza sofrida,
resistente, encarna as transformações de Moçambique nas últimas quatro décadas e
que pontuou no noticiário brasileiro em rápido bloco internacional. Dificilmente uma
obra literária se mesclou tão perfeitamente aos conflitos de sua época e aos
tormentos de seu povo. Literatura é, neste caso, vida antecipada.
Moçambique alcançou a independência em 1975, após mais de uma década de
luta contra o exército português. Teve de enfrentar a guerra de agressão promovida
pelos regimes racistas que dominavam a então Rodésia (atual Zimbabué) e a África
do Sul. Nos anos 80, mergulhou numa terrível guerra civil. Ao lado da destruição
beligerante, a seca implacável suplantava a esperança (Mia Couto retratou com
minúcia a escalada de violência em Terra Sonâmbula).
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O caldeirão de som e selvageria desencadeou uma das vozes mais ternas da
língua portuguesa.
Prémio Camões de 1991, a mais alta distinção literária do idioma, Craveirinha foi
atleta, jornalista, ativista social sob o pseudónimo de Mário Vieira, e presidente da
Associação de Escritores Moçambicanos. Começou a sua atividade literária no
jornal O Brado Africano, atuando depois como jornalista em Notícias, A
Tribuna, Notícias da Beira, O Jornal e a Voz de Moçambique. A sua estreia na
literatura aconteceu com Chigubo (1964). Logo após o seu lançamento, conheceu
os porões da repressão e esteve preso de 1965 a 1969. Natural de Lourenço
Marques (Maputo), morreu aos 80 anos a 6 de fevereiro.
Autor de Cântico a un Dio de Catrame (1966) e Karingana ua
Karingana (1974), a sua morte não balançou os obituários,
restrita às parcas linhas desse parágrafo.
Craveirinha é uma espécie de Nicolás Guillen de
Moçambique. Como o cubano centenário, a sua poesia nasceu
gritada, ricocheteando a voz em munição da miséria. Dialetos
inflamam a garganta a subir alto. “E seu grito de Mãe é
um chiuáia-uáia de desespero. E o mato desperta em assombrações de lua e o velho
batuque fermenta os espíritos”. Na sua parelha de sons, narra o conflito da superfície
do mundo, opressora, governista e racista (“os botões amarelos das fardas
metálicas”) com as funduras da ancestralidade, impulsiva e ligada aos clamores da
plantação, aos hábitos e à exultação africana (“os homens desta terra/ dançam as
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danças do tempo de guerra/ das velhas tribos juntas na margem do rio”). O seu
apelo mistura-se à denúncia, à indisposição atávica contra a segregação racial. “E
brinquedos de trapos não se misturam na Munhuana/ com bonecas loiras de sapato
e tudo/ porque os pais arianos rezando nas catedrais/ não deixam, Senhor!”
Apesar do avanço da civilização, o elemento telúrico e tribal é preservado e ganha
sentido especial de tributo e magia vocabular. A teoria de Craveirinha consistia num
mandamento simples: para ser herdeiro do futuro, o passado não pode ser omitido.
Poesia engajada? Não é o que se lê, já que o autor não tinha escolha. Fazia uma
poesia de sobrevivência, tingindo de “cor nova os algodoais sem fim” e contestando a
morte brutal de meninos e adolescentes numa região dividida. “Menino vadio já não
pede esmola/ menino vadio já não quer mais papaia/ menino vadio já comeu toda a
bala/ menino vadio já não tem fome”.
Toda a sua poesia se refere à uma família social, feita de parentes que se
reproduzem na morte. A sua fala é oral, pungida, florescida em paralelismo e proto-
ritmos.
A segunda fase da produção de José Craveirinha tem o seu apogeu com Maria
(Caminho, 1988), compêndio esplendoroso, maduro e definitivo, que descreve os
seus magros anos após a morte da esposa em outubro de 1979. Não há nada igual
e tão perturbador na lírica amorosa. Em versos livres, sintéticos e arrebatados, fareja-
se uma ausência em todo passo. É como se a ausência estivesse ali, diante dos
olhos, carnal e perfeita, compadecida das imperfeições de quem a chama. É quase
uma elegia, quase um salmo, algo de intuição romântica e de acabamento
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contemporâneo. Apesar de ser um canto fúnebre, uma despedida, é um testemunho
de alta vivacidade e sensualidade sobre “um inusitado casal de namorados já com
netos”. O marido refaz o trajeto dos dois, começando com o final: a descrição da
cena em que ela vai a um exame no hospital para nunca mais voltar. O livro é
dividido em cinco capítulos. A simplicidade da linguagem segue o despojamento e o
rigor do afeto. Nele, o homem suporta a imensidão da casa, o trabalho dobrado.
Engoma a camisa, demora-se na agulha e chora a clareza da mobília e das roupas
no armário. Tudo sugere a presença da esposa, conhecida pelos vizinhos e amada
pelos filhos, que segurou a barra na época em que o marido foi preso (“num jipe
militar/ lírico algemado”). O que incomoda Zé não é tanto a falta de Maria, é
descobrir que – sem ela – é ele que falta. Sem o
testemunho da mulher, é como se não vivesse. Se não há
como contar para Maria, os seus dias não têm sentido. Ele
vivia para narrá-la. “Mais feliz do que eu/ nossa mútua
ausência/ a ti minha esposa/já não te dói.” Um exemplo é
quando o autor tenta limpar a casa: “Nos primeiros tempos/ como era inábil/ nas
minhas mãos/ a viuvez/ da vassoura.”
A delicadeza dos tropeços e a protuberância dos detalhes ocupam o primeiro
plano. O único espaço vem a ser o tempo perdido, filtrado pelas “orfãs
persianas”. Craveirinha encontra Maria na máquina de costura e de escrever, no
fogão pago em doze prestações e nos chinelos da manhã. “Essa maneira de não
estarmos juntos mais nos insepara.”
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O autor explora a elegância do prosaico, das coisas miúdas antes manuseadas
instintivamente e que passam a significar a tomada de consciência. Ele não tinha
percebido, mas permanecer na residência é continuar a habitar o corpo de sua
mulher.
Quem espera um livro caudaloso, adjetivado, com floreios e barragem de
metáforas, deve se abaixar na estante. Essa dor aqui é a de olhos enxutos, que só
fala o necessário. E quando fala, cala. De uma caixa de correspondência, a nostalgia
vem à tona e embaralha a respiração:
Um
só momento
situem-se na minha carne
ao ler os convites
endereçados ao casal
Sr. José Craveirinha e Excelentíssima Esposa.
Os atos falhos são reservas de memória. O luto do moçambicano é sabedoria de
conhecer inteiramente uma pessoa a ponto de desconhecê-la. A convivência não
pode abolir a surpresa. A ironia perpassa o périplo do viúvo, dirimindo resquícios de
sentimentalismo e dando um tom de honestidade ao relato. O sujeito não se esconde
na resignação, porém atua com autocrítica ao rodar as lembranças, como ao
constatar que ela desejava uma mesa maior e que agora sozinho a mesa sobra. Na
metade da obra, o poema Posfácio assegura a verdadeira insuficiência do narrador
poético:
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Nostalgias de Maria
são já o posfácio
de um Zé Póstumo
em única
edição.
Capa: Anónimo.
Tiragem: este exemplar.
É uma poesia de caráter, se assim posso qualificar.
Que não procura glorificar-se em piedade e pedir
perdão. Ninguém sente culpa de nada. O que existe é
uma necessidade de ser real. De tornar a palavra
visível e corpórea. Há um profundo respeito pelo
outro, uma admiração que não precisa ser exagerada, que é feita aos goles e gestos,
documentada em letra pequena atrás das fotos. Um sozinhamento a dois, onde “a
solidão já é uma pessoa”. Numa época narcisista, de intimidade forçada a
megabytes, Craveirinha é uma aula de pudor.
Fabrício Carpinejar (texto com adaptações, de 25-07-2014)
http://www.revista.agulha.nom.br/ag34craveirinha.htm