1. BDA – Boletim de Direito Administrativo – Junho/2000416
As agências reguladoras foram introduzidas
no País, seguindo tendência mundial, com o sen-
tido de republicizar os controles administrativos
sobre as entidades prestadoras de serviços pú-
blicos.
Essas entidades, geralmente multiplicadas
sob a forma de paraestatais, em todos os níveis
federativos, como empresas públicas ou socie-
dades de economia mista, embora por definição
legalmente vinculadas à Administração direta,
quase sempre logravam adquirir desmesurada
autonomia de ação, o que, freqüentemente, as
levava a confundir os interesses públicos, que
lhes eram delegados, com os seus próprios inte-
resses empresariais, com graves prejuízos para
os administrados.
Esse inconveniente, todavia, em nada per-
turbou a grande expansão experimentada por
essa modalidade paraestatal de prestação de
serviços públicos, o que se estendeu por quase
todo o século XX, só vindo a declinar, tal tendên-
cia, por volta da década de setenta, com o inevi-
tável reconhecimento da exaustão da capacida-
de de capitalização do Estado pela via tributária,
que o havia impedido de aportar novos recursos
a suas cada vez mais necessitadas empresas.
A conseqüência, no Brasil, em nada distinta
da que ocorreu em outros países nas mesmas
circunstâncias, foi a descapitalização das empre-
sas estatais e a conseqüente deterioração da qua-
lidade dos serviços públicos por elas prestados.
Com a devolução da execução dos serviços
públicos, até então preferencialmente prestados
pelo Estado aos entes da sociedade, fenômeno
que passou a ser conhecido como privatização,
solucionou-se o problema da recapitalização des-
sas atividades econômicas, ensejando, em con-
seqüência, a expansão e a modernização tecno-
lógica das empresas prestadoras de serviços.
Mas, por outro lado, tinha ficado evidente a
necessidade de desenvolver novos instrumentos
de controle que pudessem garantir a satisfação
finalística do serviço, pelo cumprimento das obri-
gações por parte das delegatárias privadas e,
por certo, sobretudo, pela satisfação dos usuários
do serviço. Seriam instrumentos de muito maior
eficiência que o velho acompanhamento tutelar
administrativo, que se exercia sobre as paraesta-
tais e que acabava por ser minimamente efetivo.
Com efeito, esses antigos institutos de con-
trole, desenhados para as paraestatais, que ha-
viam falhado em assegurar bons serviços, preci-
savam ser substituídos por novos, mais adequa-
dos para atuar com especialidade, eficiência e
equilíbrio no delicado manejo dos interesses en-
volvidos: o interesse público secundário do po-
der público, os interesse públicos privados das
entidades delegatárias e, acima de todos, o inte-
resse público primário dos usuários.
À semelhança das congêneres de outros
países, onde se foi buscar a modelagem das
agências reguladoras, muitas delas com longa
tradição, o instituto passou a ser adotado no Bra-
sil na medida em que as privatizações foram ocor-
rendo e em outros campos da administração pú-
blica, como o de recursos hídricos e o de vigilân-
cia sanitária, que revelaram semelhante neces-
sidade de regulação e de administração setorial
e independente.
Dois deles, destacadamente, foram instituí-
dos em nível constitucional: a agência regulado-
ra das telecomunicações, pela a Emenda Cons-
titucional nº 8, de 1995, e a agência reguladora
do petróleo, pela Emenda Constitucional nº 9, de
1995, marcando, assim, o status jurídico que se
passava a conferir à novel instituição e, em con-
seqüência, o distinguido tratamento hermenêuti-
co que as agências passariam a merecer, como
se exporá.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto
Professor Titular de Direito Administrativo do Conjunto Universitário Cândido Mendes – RJ
A Independência das Agências Reguladoras
2. DOUTRINA, PARECERES E ATUALIDADES 417
Ainda, seguindo os melhores modelos exis-
tentes, procurou-se assegurar independência
administrativa, notadamente sob quatro aspec-
tos fundamentais, para o êxito de sua atuação: a
independência dos gestores, a técnica, a norma-
tiva e a gerencial, orçamentária e financeira.
A independência política dos gestores de-
corre da nomeação de agentes administrativos
para o exercício de mandatos a termo, o que
lhes garante a estabilidade nos cargos necessá-
ria para que executem, sem ingerência política
do Executivo, a política estabelecida pelo Legisla-
tivo para o setor.
A independência técnica decisional concorre
com a anterior no sentido de assegurar sua atua-
ção apolítica, em que deve predominar o empre-
go da discricionariedade técnica e da negocia-
ção, sobre a discricionariedade político-adminis-
trativa.
A independência normativa, um instituto re-
novador, que já se impõe como instrumento ne-
cessário para que a regulação dos serviços pú-
blicos se desloque dos debates político-partidá-
rios gerais para concentrarem-se na agência.
A independência gerencial, financeira e or-
çamentária completa o quadro que se precisa
para garantir as condições internas de atuação
da entidade com autonomia na gestão de seus
próprios meios.
A experiência tem demonstrado que, sem
essas quatro garantias, qualquer ente regulador
que se institua, não obstante se lhe dar esta de-
nominação, não passará de uma repartição a
mais na estrutura hierárquica do Poder Executi-
vo, pois estará impossibilitado de executar a po-
lítica legislativa do setor, como se pretende que
deva fazê-lo.
Ocorre que essa independência das agên-
cias reguladoras, atribuída, por certo, em maior
ou menor grau, segundo a vontade do legislador,
não tem sido bem compreendida e, se o foi, pa-
rece estar sendo mal aceita por chefes do Poder
Executivo.
Sentem, os políticos que assim o pensam,
felizmente em minoria, que, não podendo dar
ordens diretas sobre os dirigentes desses entes,
estarão perdendo poder político em suas unida-
des federativas, e, ainda por cima, nas áreas mais
partidariamente garimpáveis, como as das con-
cessões e permissões.
Incomoda-os, acima de tudo, a impossibilida-
de de exonerar ad nutum os gestores das agên-
cias que não se curvarem docilmente a suas de-
terminações.
Por esse motivo, não raro se tem apreciado
a indesejável introdução de estranhos hibridismos
institucionais e temperamentos autocráticos nas
recentes leis criadoras de agências reguladoras,
procurando retirar, em maior ou menor grau, con-
forme a ascendência do Executivo sobre as res-
pectivas casas parlamentares, a independência
das novas agências, sempre com o intuito, claro
ou velado, de mantê-las submetidas ao guante
da Administração.
Um dos pontos de maior resistência é o man-
dato a termo dos gestores das agências.Até pou-
co tempo concentravam-se sobre os dispositivos
que o adotassem, os ataques do Executivo, sob
a alegação de inconstitucionalidade, por supos-
tas violações da Súmula nº 25 do STF e do prin-
cípio da separação de poderes, definido pela,
assim chamada, “lógica do regime presidencial”.
Quanto à Súmula nº 25, vigente ainda o regi-
me constitucional de 1946, seu teor repudiava
quaisquer restrições ao poder, do chefe do Exe-
cutivo, de prover e de desprover os cargos públi-
cos, não obstante a decisão que lhe serviu de
precedente básico, no Mandado de Segurança
nº 8.693, ostentasse a luminosa divergência de
Victor Nunes Leal, posta de forma erudita e van-
guardeira para sua época, ao reconhecer que a
competência administrativa de prover cargos pú-
blicos, na forma da lei, admite configurações de
investidura outras, desde que expressamente
definidas na lei criadora.
Mas é quanto à “lógica do regime presiden-
cial” que mais radiou a preclara visão de Victor
Nunes Leal, ao considerar que essa previsão de
investidura por prazo determinado era providen-
cialmente necessária para estabelecer um regi-
me de autonomia administrativa, desenhado por
lei, como condição necessária para desenvolver
uma política legislativa sobre um determinado
setor, sem interferência da política partidária,
desenvolvida pelo Executivo, à semelhança do
que já ocorria abundantemente em outras na-
ções e, destacadamente, nos Estados Unidos
da América.
3. BDA – Boletim de Direito Administrativo – Junho/2000418
Foi, aliás, desse país, que o Ministro Victor
Nunes Leal trouxe o exemplo, lembrando, no jul-
gamento, a doutrina estabelecida no Myers Case,
que, ao examinar o conteúdo dos poderes do
Presidente norte-americano de nomear e exone-
rar, excluía a disponibilidade presidencial de afas-
tar funcionários antes de seu termo de mandato,
sempre que se tratasse de órgãos dotados de
autonomia administrativa.
À época, o voto vencido não logrou pleno
reconhecimento de seus pares, não obstante sua
notável antecipação em matéria de administra-
ção pública e de direito administrativo, mas, hoje,
quase quarenta anos depois, vem de ser resta-
belecido, em toda sua meridiana clareza e rica
fundamentação, pela pena ilustre do Ministro
Nelson Jobim que, na Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade nº 1.949, em longo voto proferido na
apreciação de liminar, conduziu a maioria do
excelso pretório no sentido do reconhecimento
do novo e autêntico perfil independente das agên-
cias reguladoras.
Assim, com o julgamento liminar da ADIn. nº
1.949, ficou aberto o caminho para assegurar,
sempre que vier a ser necessária, essa indepen-
dência das agências reguladoras criadas e por
criar, e, até, estimular a correção das que foram
vitimadas por desvios autoritários que as emas-
cularam.
Este memorável precedente não só põe em
evidência a auspiciosa sintonia do STF com a
doutrina juspublicista mais moderna no campo
dos serviços públicos, como sinaliza, aos demais
Poderes, tanto a possibilidade jurídica como as
vantagens políticas em garantir a independência
das agências reguladoras.
Como é ressabido, de certa forma, sempre
que se reparte o poder já se o está controlando,
o que é inquestionavelmente sadio. Mas, ao dis-
tinguir o exercício da discricionariedade técnico-
administrativa do exercício da discricionariedade
político-administrativa, o julgado passa a ser his-
tórico, rasgando avenidas para instituírem-se, sob
inspiração e guarda da Constituição, sistemas
de controle cada vez mais amplos e sempre mais
permeados pela participação popular.
Cabe, ainda, recordar aqui que, em breve, a
Nação haverá de fazer uma opção, em nível cons-
titucional, sobre o controle que se deseja para a
moeda nacional. Oxalá, neste momento, a lição
do julgado possa ser recolhida, para que essa
tarefa venha a ser também cometida a uma agên-
cia independente; um Banco Central que seja
institucionalmente livre das ingerências político-
partidárias e dotado de autonomia suficiente para
assegurar, permanentemente, em qualquer regi-
me político e sob qualquer governo que se ve-
nha a ter, a plena defesa da confiabilidade da
moeda nacional, este precioso patrimônio que
no passado foi tão aviltado, sacrificando gera-
ções sob o perverso holocausto inflacionário ge-
rado por sucessivos governos inconseqüentes.
Este patrimônio, a moeda nacional, não tem
por que ser entregue aos mesmos gestores do
Tesouro: merece sua gestão independente.É que
a moeda não pertence ao governo, tampouco ao
Estado, mas é patrimônio da sociedade, a única
produtora de toda a riqueza nacional e que pode
exigir o direito de custodiá-lo soberanamente.
Em suma, não apenas prevaleceram, com o
voto do Ministro Jobim, os melhores fundamen-
tos, que foi recolher em bom magistério, como a
eles se somaram novas e ponderáveis razões de
acolhimento, ao fazer prevalecer a nova interpre-
tação sistemática da Constituição sobre a que
vinha sendo praticada, já que nela, hoje, estão
inseridas as agências reguladoras, trazidas pe-
las duas emendas constitucionais apontadas,
sem dúvida com algum propósito diferenciador.
Com efeito, se não fosse para distinguir as
agências reguladoras das demais autarquias que
conformam a administração indireta, não have-
ria razão para serem inseridas e destacadas na
Constituição como o foram.
E, por terem sido, segue-se que, com a nova
sistemática, passou a se impor o reconhecimen-
to da existência de uma nítida referência doutri-
nária implícita na própria menção a elas feita,
para afastar qualquer confusão com as entida-
des autárquicas tradicionais, bem como para
desautorizar, como se deu, a persistência da ve-
lha interpretação conservadora, que prevaleceu
na sistemática constitucional anterior.
Rio de Janeiro, verão de 2000.