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ÓRFÃOS DA PROFISSÃO (Cláudio de Moura Castro)
"Setenta milímetros? Deve ser próximo de 7 centímetros, não é?"
Com uma chave de fenda estreita, o pintor raspava pingos de tinta em um rodapé de granito. Primeiro, a
tinta não deveria pingar; segundo, o rodapé deveria estar protegido com fita gomada; terceiro, usava a
ferramenta errada.
O jovem instalava drywall, cortando placas com uma serra de metal (sem o arco). Ferramenta errada!
O marceneiro esqueceu um formão na minha casa. Era de má qualidade e estava malcuidado.
As peças de madeira que comprei não foram aplainadas e lixadas, como combinado. Não eram nem
retangulares nem da mesma bitola. Uma se estreitava ao final, e a metade delas, por empenadas, era
inservível. Quem comprar madeira tem ínfimas chances de que as navalhas da plaina da serraria
estejam afiadas e sem cicatrizes de pregos esquecidos nas tábuas.
Para controlar uma luminária com dois interruptores, ensinei ao eletricista como era a ligação.
A parede ficou impecável, mas, como o pedreiro não sabia ler planta, foi erguida no lugar errado.
O serralheiro não veio, como prometeu, pois apareceu outra obra que não queria perder.
Eis uma colagem do que vemos em um amplo segmento de nossa mão de obra. Em suma, falta
profissionalismo em todos os azimutes. De que falo?
O profissional sério:
- Conhece e domina os gestos e técnicas da sua profissão, tendo disso muito orgulho;
- Possui e usa a ferramenta certa, cuidando dela com desvelo e competência (sobretudo na afiação!).
Aliás, ama suas ferramentas;
- Prepara gabaritos e apoios ou constrói ferramentas, para facilitar o trabalho;
- É um crente na religião da qualidade, sendo o fiscal mais impiedoso do seu próprio desempenho;
- Cumpre com dedicação as obrigações assumidas (horários, orçamentos etc.).
Se são escassos os verdadeiros profissionais, por alguma razão há de ser. Para entender, exploremos
as três maneiras clássicas de prepará-los.
O aprendiz e seu mestre: vem da época medieval a tradição do mestre que recebe jovens, para ensinar-
lhes a profissão. Até hoje esse método dá certo, seja com o futuro pedreiro, seja com o doutorando.
No interiorzão de Minas, havia uma oficina mecânica cujos 120 funcionários tinham padrão de qualidade
europeu, embora houvessem aprendido lá mesmo. 0 segredo é que, por muitas décadas, foram
aprendizes do Chico Alemão, exímio mecânico, do checo Jan Hasek e do Fritz Boetger ("Botija"),
engenheiro em um estaleiro de submarinos na Alemanha. O exemplo mostra, justamente, uma condição
pétrea: o mestre tem de ser um profissional competente. Se não for, o aprendiz aprende errado ou não
aprende, como nos casos citados no início. Sobretudo na construção civil, quem mais sabe ainda sabe
pouco. O jovem não tem com quem aprender certo, nem os gestos da profissão nem os valores do
profissionalismo.
Cursos de formação profissional: o Senai é uma fórmula de sucesso, havendo sido a matriz de
formação dos nossos melhores profissionais. Mas seu alcance é insuficiente. As empresas maiores
sugam avidamente seus graduados, sobrando pouco para as pequenas.
Muitos dos outros cursos que andam por aí são desconectados dos reais empregos. Ou têm instrutores
que não dominaram a profissão, às vezes, por se lhes exigirem excessivos diplomas. Em muitos casos,
são curtos demais — na Alemanha, a aprendizagem dura 3,5 anos.
Autodidatismo: é possível aprender por conta própria, observando, praticando, lendo, olhando vídeos.
Porém, a capacidade de autoaprendizado é profundamente determinada pelo nível de educação. Mais
aprende sozinho o ofício quem mais aprendeu na escola. Como nossa gente estudou pouco e aprendeu
menos ainda, é limitado o uso dessa fórmula. Além disso, faltam bibliotecas para facilitar tais
aprendizados — menos mal que se democratizam o santo Google e a mágica do YouTube.
Uma exagerada proporção da nossa força de trabalho é órfã da boa formação profissional, seja desta
ou daquela modalidade. Como podemos reclamar que trabalham mal, se não tiveram a mais remota
chance de aprender certo? Como vituperar contra a nossa baixa produtividade, se não preparamos os
profissionais?
Revista VEJA, 10-Dez-2014, pg. 26)

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  • 1. ÓRFÃOS DA PROFISSÃO (Cláudio de Moura Castro) "Setenta milímetros? Deve ser próximo de 7 centímetros, não é?" Com uma chave de fenda estreita, o pintor raspava pingos de tinta em um rodapé de granito. Primeiro, a tinta não deveria pingar; segundo, o rodapé deveria estar protegido com fita gomada; terceiro, usava a ferramenta errada. O jovem instalava drywall, cortando placas com uma serra de metal (sem o arco). Ferramenta errada! O marceneiro esqueceu um formão na minha casa. Era de má qualidade e estava malcuidado. As peças de madeira que comprei não foram aplainadas e lixadas, como combinado. Não eram nem retangulares nem da mesma bitola. Uma se estreitava ao final, e a metade delas, por empenadas, era inservível. Quem comprar madeira tem ínfimas chances de que as navalhas da plaina da serraria estejam afiadas e sem cicatrizes de pregos esquecidos nas tábuas. Para controlar uma luminária com dois interruptores, ensinei ao eletricista como era a ligação. A parede ficou impecável, mas, como o pedreiro não sabia ler planta, foi erguida no lugar errado. O serralheiro não veio, como prometeu, pois apareceu outra obra que não queria perder. Eis uma colagem do que vemos em um amplo segmento de nossa mão de obra. Em suma, falta profissionalismo em todos os azimutes. De que falo? O profissional sério: - Conhece e domina os gestos e técnicas da sua profissão, tendo disso muito orgulho; - Possui e usa a ferramenta certa, cuidando dela com desvelo e competência (sobretudo na afiação!). Aliás, ama suas ferramentas; - Prepara gabaritos e apoios ou constrói ferramentas, para facilitar o trabalho; - É um crente na religião da qualidade, sendo o fiscal mais impiedoso do seu próprio desempenho; - Cumpre com dedicação as obrigações assumidas (horários, orçamentos etc.). Se são escassos os verdadeiros profissionais, por alguma razão há de ser. Para entender, exploremos as três maneiras clássicas de prepará-los. O aprendiz e seu mestre: vem da época medieval a tradição do mestre que recebe jovens, para ensinar- lhes a profissão. Até hoje esse método dá certo, seja com o futuro pedreiro, seja com o doutorando. No interiorzão de Minas, havia uma oficina mecânica cujos 120 funcionários tinham padrão de qualidade europeu, embora houvessem aprendido lá mesmo. 0 segredo é que, por muitas décadas, foram aprendizes do Chico Alemão, exímio mecânico, do checo Jan Hasek e do Fritz Boetger ("Botija"), engenheiro em um estaleiro de submarinos na Alemanha. O exemplo mostra, justamente, uma condição pétrea: o mestre tem de ser um profissional competente. Se não for, o aprendiz aprende errado ou não aprende, como nos casos citados no início. Sobretudo na construção civil, quem mais sabe ainda sabe pouco. O jovem não tem com quem aprender certo, nem os gestos da profissão nem os valores do profissionalismo. Cursos de formação profissional: o Senai é uma fórmula de sucesso, havendo sido a matriz de formação dos nossos melhores profissionais. Mas seu alcance é insuficiente. As empresas maiores sugam avidamente seus graduados, sobrando pouco para as pequenas. Muitos dos outros cursos que andam por aí são desconectados dos reais empregos. Ou têm instrutores que não dominaram a profissão, às vezes, por se lhes exigirem excessivos diplomas. Em muitos casos, são curtos demais — na Alemanha, a aprendizagem dura 3,5 anos. Autodidatismo: é possível aprender por conta própria, observando, praticando, lendo, olhando vídeos. Porém, a capacidade de autoaprendizado é profundamente determinada pelo nível de educação. Mais aprende sozinho o ofício quem mais aprendeu na escola. Como nossa gente estudou pouco e aprendeu menos ainda, é limitado o uso dessa fórmula. Além disso, faltam bibliotecas para facilitar tais aprendizados — menos mal que se democratizam o santo Google e a mágica do YouTube. Uma exagerada proporção da nossa força de trabalho é órfã da boa formação profissional, seja desta ou daquela modalidade. Como podemos reclamar que trabalham mal, se não tiveram a mais remota chance de aprender certo? Como vituperar contra a nossa baixa produtividade, se não preparamos os profissionais? Revista VEJA, 10-Dez-2014, pg. 26)