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A Centralidade da Epoché na Fenomenologia Husserliana.



                                                                                   Nascimento, C. L.1



        Predominava entre os antigos gregos, inicialmente, a consciência mítica, cuja maior

expressão se encontra nos poemas de Homero e Hesíodo. Na passagem para a consciência

racional, aparecem os primeiros sábios, sophos, como se diz em grego. Um deles, chamado

Pitágoras (séc. VI a. C.) usou pela primeira vez a palavra filosofia( philos-sophia), que

significa “amor à sabedoria”. Para Platão, a grande virtude do filósofo é admirar-se. A

admiração (thaumatzein) é a condição de onde deriva a capacidade de problematizar. Nasce

assim o pensamento filosófico ou atitude filosófica, que tem como seu arkhé o

estranhamento, a admiração.           A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo.

(M.Merleau-Ponty).

        Epoché (εποχη) é um termo grego que significa “parada”, “obstrução” e foi muito

utilizado na filosofia cética. A Górgias (séc. IV a.C.), um dos representantes da sofística

grega, é atribuída a postura conhecida como cética. Outro grego, Pirro, acompanhante de

Alexandre Magno em suas viagens de conquistas ainda naquele século, veio a conhecer

muitos povos com diferentes valores e crenças. O que passou desde então a caracterizar o

pensamento conhecido como cético, que, confrontando a diversidade das convicções que

animavam os homens, bem como diferentes filosofias tão contraditórias, foi o abster-se, no

final, de aderir a qualquer certeza. O cético, que vem de skeptikó, em grego, que significa

1
 Doutor em Educação, Mestre em psicologia, Psicólogo Clínico, Professor do IFEN e Professor do Instituto
Superior de Ensino Anísio Teixeira.
“quem observa”; “quem considera”, conclui, nos casos mais radicais, pela impossibilidade

do conhecimento; e nas tendências mais moderadas, pela suspensão provisória de qualquer

juízo.

         Ao reconhecermos a subjacente postura de estranhamento que possibilita qualquer

“afastar-se” desta ou daquela concepção da realidade, pensamos poder ter, assim,

identificado uma possível filiação filosófica da epoché husserliana com o impulso pré-

socrático que marca a transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico.

                                       O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo
                                       de minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E, contudo
                                       não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de
                                       filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma? ... Só os
                                       pensadores secundários que, na verdade, não se podem
                                       chamar filósofos, estão contentes com as suas definições.
                                       (Husserl, 2001, pg 143)


          Husserl toma emprestado o conceito cético de epoché e desenvolve aquilo que

acredita ser o caminho seguro para proceder uma análise filosófica que pudesse realmente

atender às exigências do rigor científico, que ele almejava alcançar. Epoché, no sentido

fenomenológico, visa colocar entre parênteses a crença em toda realidade temporal e

espacial, isto é, em toda a transcendência. Isto quer dizer que não devemos fazer juízo

algum sobre o mundo e tudo aquilo que nele se inclui, até mesmo as mais convincentes

evidências científicas, uma vez que as ciências naturais alimentam-se deste mundo

empírico. Uma teoria rigorosa do conhecimento deve partir da absoluta e total falta de

pressupostos. Evidentemente, isso não quer dizer que devemos negar a existência do

mundo, o que seria impossível, mas simplesmente que tudo deve ficar em suspenso, “por

decidir”.


                               Ao encetar a crítica do conhecimento, importa, pois, adjudicar o
                               índice da questionabilidade a todo o mundo, à natureza física e
                               psíquica e, por fim, também, ao próprio eu humano, juntamente
                               com todas as ciências que se referem a estas objetalidades. A sua
                                                                                               2
                               existência, a sua validade ficam por decidir.(HUSSERL, 1986,
                               pg 53)
Até 1901, data da publicação do último volume das Investigações Lógicas, Husserl

não pensara ainda em introduzir o conceito de epoché em sua fenomenologia. Pareceu-lhe

suficiente olhar simplesmente para os fenômenos sem ulteriores considerações, induzindo

mesmo a uma interpretação psicológica da fenomenologia, em contradição com a sua

própria crítica tão acirrada, desencadeada contra o psicologismo.

       A partir de 1906, no entanto, começa a viver uma profunda angústia que o coloca

diante do imperioso dilema de renunciar a uma vida dedicada à Filosofia ou,

definitivamente, encontrar uma solução segura sobre a essência do conhecimento. Nesta

época, se detinha demoradamente ao estudo de Kant, que lhe sugeriu as primeiras idéias na

busca da solução do dilema, orientando-o para a “consciência transcendental”. Recorre

também a Descartes e, na sua dúvida metódica à qual resiste a própria consciência ou a

cogitatio, encontrou ainda maior motivação, não só a confirmá-lo na posse da subjetividade

transcendental, mas também a impulsioná-lo na busca de um método para a ela chegar.

       Husserl imaginou que, se o conhecimento encerra um problema, isto não quer dizer

que ele seja problemático. Admitir que há no conhecimento um enigma, não é afirmar que

todo o conhecimento é enigmático. Impõe-se, para ele, uma solução, não propriamente no

seio do conhecimento, mas na relação entre mundo interior e exterior, imanente e

transcendente.

       Descartes julgou libertar-se do problema duvidando o mais radicalmente possível.

Assim, se deparou com o ego cogito, que se afirmava na própria dúvida. Os idealistas

buscavam a solução exclusivamente na imanência. Mas, relativamente ao mundo exterior,

ou adotava uma atitude cética, como propôs Hume, ou simplesmente suprimia-o, por uma

identificação com a própria imanência, ou seja, do “objeto em si” com o “ser percebido”,

como propôs Bekerley. Husserl rejeita a ambos, pois pretende resolver o problema


                                                                                        3
superando tais orientações. Para isso, começará pela imanência, pois, afirma que esta é

conhecida, ao passo que não se sabe como se conhece a transcendência. Husserl acredita

que é na imanência que encontramos a posse imediata do objeto e, portanto a sede da

evidência apodítica.

       Contra Descartes, exige que a imanência seja despojada de todo o caráter de

transcendência que em si mesma possa conservar, para que o radicalismo seja mais

profundo. Contra o idealismo, não pretende suprimir o transcendente, nem sequer

provisoriamente. A dúvida husserliana não tem o mesmo sentido da dúvida cartesiana. O

caráter metódico da dúvida proposta por Husserl está apenas em ser um critério a indicar-

nos que não atingimos ainda a evidência apodítica.

       Não significa, portanto que a existência do mundo se põe propriamente em dúvida,

pois é evidente que o mundo é, em si e por si, aquilo que é, quer vivamos ou morramos,

quer o conheçamos ou não. Relativamente a esta existência, Husserl suspenderá apenas o

seu juízo, mesmo que se trate da existência do próprio eu e dos seus pensamentos. Tal

“suspensão” designou-a pela equivalente palavra grega epoché, usada já na antiguidade

pelos céticos pirrônicos na filosofia grega que “suspendiam” ou se “abstinham” de qualquer

assentimento por não reconhecerem razões decisivamente eliminatórias da incerteza.

       Husserl introduzi-la-á, porém, não como instrumento de uma atitude cética, mas de

depuração em busca de um radicalismo particularmente reflexo em direção às evidências

apodíticas. Não se pretende propriamente duvidar da existência do mundo, nem, muito

menos suprimi-lo. O mundo encarar-se-á apenas sob o aspecto como se apresenta na

consciência, reduzido à consciência. Continuará a ser considerado “posto entre parênteses”,

numa espécie de idealização caracteristicamente original. Da existência ou “posição” do




                                                                                         4
mundo em si mesmo, da “tese” do mundo, como Husserl diz, simplesmente não faremos

nenhum uso.



                                “... em nossas afirmações fundamentais nada pressuporemos, nem
                        sequer o conceito de Filosofia, e assim queremos ir fazendo adiante. A
                        epoché filosófica, que nos propusemos praticar, deve consistir,
                        formulando-a expressamente, em nos abstermos por completo de julgar
                        acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas
                        as nossas descrições no âmbito desta abstenção”.(Husserl Apud.
                        Zilles,2002, pg 22)

       Em suma, tudo o que transcende a esfera imanente da consciência deve levar o rigor

da criticidade e questionabilidade. Com isso, a existência do mundo, dos objetos, das

ciências etc. é colocada fora de juízo, porque carece do caráter de evidência absoluta, uma

vez que suas afirmações vão além do que é imanente e seguro, do ponto de vista de uma

fundamentação rigorosa do conhecimento.

       Posto isto, vemos que o que é colocado entre parênteses não é negado, mas perde o

caráter de absoluto e inquestionável e de validade, que lhe é atribuído na atitude natural e

passa a valer como fenômeno da consciência. Na atitude fenomenológica propiciada pela

epoché, o modo de visão do mundo sofre uma transformação radical: deixa-se de aceitar a

evidência da existência das coisas, ao contrário, deixo de lidar com o mundo físico (objetos

espaço-temporais) e passo a lidar com o “mundo da consciência”, formado pelas vivências

do sujeito.

       Com isso, fica claro que a epoché é o primeiro passo do método fenomenológico, ou

seja, ela reflete a mudança de atitude necessária para o empreendimento proposto por

Husserl, qual seja, a migração da atitude natural para a atitude fenomenológica. Tal

caminho metodológico escolhido pelo filósofo vem a ratificar o seu desejo de




                                                                                               5
fundamentação absoluta, pois, se o que está em questão é o conhecimento, uma ciência não

pode usar como fundamento aquilo que pretende investigar.

       A ciência rigorosa que Husserl almeja construir exige, naturalmente, que nenhum

conhecimento seja considerado de antemão. Evidentemente, no entanto, é de se supor que o

filósofo alemão estabeleça algum conhecimento como sustentáculo inquestionável, a partir

do qual ele edifique o seu pensamento reconstrutivo, sob o risco de recair permanentemente

num círculo de regressão infinita. Segundo Husserl, o próprio exercício da epoché oferece

como resultado este ponto de partida. A partir desta suspensão metodológica, “resiste” algo

que é evidente e inquestionável e que remonta a reflexão cartesiana: a cogitatio.

       No entanto, nem bem o radicalismo cartesiano foi retomado e Husserl denuncia, o

que lhe parece, a sua insuficiência: a dúvida cartesiana relativa à coisa natural (pedaço de

cera) continua sendo em si mesma uma atitude mundana, sendo tão somente uma

modificação desta atitude, sem corresponder, portanto, à exigência desta radicalidade.

Prova disto será dada nas Meditations Cartésiennes, em que Husserl denuncia o

pressuposto geométrico pelo qual Descartes assimila o cogito a um axioma do saber em

geral, quando o cogito deve ser muito mais, uma vez que ele é o fundamento dos próprios

axiomas.

       Esse pressuposto geométrico revela a insuficiência da dúvida como processo de

radicalização. À dúvida, é preciso, portanto, opor uma atitude pela qual eu não tomo

posição em relação ao mundo como existente, ainda que esta posição seja afirmação natural

de existência, dúvida cartesiana etc. É claro que eu, como sujeito empírico e concreto,

continuo a participar da posição natural do mundo. Esta tese continua a ser algo de vivido,

mas não faço dela nenhum uso. Fica assim o mundo circundante não mais como

simplesmente existente, mas sim como fenômeno de existência.


                                                                                          6
No momento em que estende a todas as experiências da consciência, até mesmo as

imaginadas, a possibilidade de se apresentarem como “dados absolutos”, Husserl afirma

que o que importa não é a ocorrência real em mim, aqui e agora, da vivência, mas sim a

apresentação de sua essência. Assim, ele passa a se reportar a uma “esfera de dados

absolutos”, como resultado do exercício da epoché. Tal dimensão se refere a todas as

vivências da consciência, tomadas em sua essência, constituindo-se assim como marco zero

da teoria fenomenológica do conhecimento.

       A solução afigurou-se-lhe tão evidente, que lhe pareceu ter encontrado o que há

tantos séculos ansiosamente se buscava, e não duvidou dedicar as ulteriores elaborações,

bastante numerosas, ao esclarecimento desta descoberta ideal. Às alturas radicais da

“consciência transcendental”, onde atingiremos os fenômenos na sua pureza absoluta,

ascenderá Husserl exercitando a epoché em graus sucessivamente mais elevados. Tudo

aquilo que não tiver o caráter da apresentação imediata, só realizável na consciência, não

pode ser “apodítico”. Por isso, também Deus está incluído, embora seja o Ser transcendente

no pólo oposto à transcendência do mundo.

       Só assim a fenomenologia, como ciência fundamental por excelência, pode

começar, sem nada pressupor, numa independência absoluta. Acabamos de exercitar assim

a epoché no primeiro grau: Tudo o que me é exterior, mesmo as outras pessoas e o próprio

Deus, este “posto entre parênteses”. Em lugar do mundo em si, surge o “mundo”

consciente, o mundo reduzido às vivências, ou psicológico. Daqui em diante, à rigor, só

poderemos falar na primeira pessoa do singular. Trata-se da redução eidética.



                                 “Como filósofos que pensamos radicalmente, não
                                 consideramos nenhuma ciência como válida, nem o mundo
                                 como existente... Isto também se aplica à existência
                                 intramundana de todos os outros eus, de tal modo que nós, de
                                 si, já não deveríamos falar no plural”.(Husserl, 2001, pg 36)
                                                                                            7
A redução eidética, como observamos acima, mantém-se ainda no plano

psicológico. Neste grau de imanência, as vivências apresentam-se na sua singularidade

concreta. Refletindo sobre tais fenômenos singulares, podemos sujeitá-los a uma série de

variações arbitrárias. Aquilo, no entanto, que se me apresenta como invariável, como

necessariamente comum, é a essência ou “eidos”. Deste modo, praticamos a “redução

eidética”.

        Surge assim o “método das variações”, que me leva do individual, por exemplo,

“este homem”, à essência ainda empírica, por exemplo, “homem branco”, e daqui à

essência pura, a que acima diretamente nos referimos, e que é a essência no seu caráter

absolutamente necessário, “o homem como tal”.

       Temos, pois um fenômeno novo, que prescinde do fato ou singularidade e, portanto,

se pode dizer de caráter puro ou metaempírico. Estas essências, assim “purificadas”, não

perdem ainda inteiramente o caráter psicológico. Neste sentido, Husserl afirma que a

“fenomenologia psicológica deve apoiar-se na feomenologia eidética”, pois, a “redução

eidética revela as formas essenciais relativa à existência psíquica”.

       Com a “redução psicológica”, as vivências, e até as essências, mesmo que as

consideremos como conteúdos de atos, conservam ainda, pelo menos, uma existência

“mundana”: “A vida psíquica de que trata a psicologia sempre se concebeu e é concebida

como vida psíquica no mundo”.(Husserl, 2001, pg 43).

       O radicalismo não é, portanto, absoluto, o que se equivale a dizer que ainda não se

atingiu o que Husserl chama de campo plenamente seguro da apoditicidade. Para isso,

devemos exercitar a epoché num grau mais elevado, que nos leve à inibição de todo o


                                                                                        8
interesse existencial e de toda a “mundanidade”, operando-se a transformação da

subjetividade psicológica na subjetividade transcendental.

        O mundo da “atitude natural”não é só exterior. Num novo grau de reflexão, dirijo a

mente para mim mesmo e para a minha imanência. Então, também eu me percebo como

uma realidade concreta e “mundana”. Toda a posição da natureza deve ficar fora de

circuito, e, portanto, também a existência de mim mesmo que reflito, o eu como ente psico-

físico. Deste modo, atinjo o eu absoluto ou transcendental e, com ele, o âmbito da

experiência genuinamente filosófica. Este eu, assim depurado, torna-se apenas concebível

na sua relação ao “objeto”, o qual já também não é um objeto mundano, existente no

sentido vulgar da palavra, mas um “objeto” puramente “intencional”. Um objeto que é uma

idealidade pura meramente significada, desprovido de “qualquer caráter psicológico”.

       Eu perco assim o mundo, para o ganhar de um modo mais “puro”, retendo o sentido

do mundo com o qual estou tão imediatamente em contato, que os “objetos”, assim

considerados, não só estão presentes diante de mim, mas brotam de mim mesmo: “É de

mim mesmo, do meu eu transcendental que o mundo objetivo haure todo os seus sentidos e

valores existenciais”.(Husserl, 2001, pg 43).

       Atingimos assim o “ego cogito” verdadeiramente radical, só inteligível na sua

explicitação plena “ego cogito cogitatum”. Segundo Husserl, também Descartes chegara a

um “ego cogito” que prescindia do corpo, mas, apesar de incorpóreo, era ainda uma

realidade substancial, concretamente existente, identificada com a alma. Em outras

palavras, um eu natural ou mundano. Por isso, apesar de ter chegado à maior de todas as

descobertas, não lhe apreendeu o verdadeiro sentido e, conseqüentemente, para Husserl,

não ultrapassou o que ele chamou de “os portais da genuína filosofia transcendental”.




                                                                                        9
Para ultrapassar este “meio caminho” de Descartes, Husserl começa pelo

absolutamente radical, numa apodicidade absoluta, pondo “entre parênteses” não só o

corpo, mas o eu na sua radicalidade total, enquanto existente no mundo, e, com ele, todos

os seus atos. Neste exercício radical da epoché atingimos os fenômenos verdadeiramente

puros, pois só levamos em consideração aquilo que nos é dado na pura imanência, e,

portanto, com plena evidenciação.

       Nem os preconceitos do próprio eu podem viciar esta intuição plenamente

originária, pois tudo está posto “entre parênteses”. O eu, assim depurado, é o eu puro, apto

a conhecer sem vícios, como “expectador desinteressado” ou “imparcial”, tudo o que se

apresenta como é, ou melhor, tudo o que dele brota; é o eu numa nova atitude oposta à

natural. O eu em atitude fenomenológica ou transcendental.

       Deste modo, Husserl acreditava que se teria atingido o último fundamento que

verificava todas as condições requeridas para a construção da Filosofia rigorosa:

aprioridade absoluta numa ausência radical de pressupostos, e evidência imediata,

plenamente garantida contra a intromissão de qualquer pressuposto. “Entro num mundo

novo que Descartes não pôde explorar precisamente porque não exercitou a ”epoché”de

um modo absolutamente radical”.(Husserl, 1907 Apud. Fragata, pg 67).

       Portanto, Descartes construiu sobre o cogito num processo de aditamentos

sucessivos; Husserl não terá mais que encerrar-se no seu cogito para explorar o que nele

está contido, num processo descritivo ou analítico. Resumindo em poucas palavras,

Descartes investigou o que se conclui do cogito; Husserl, o que nele se inclui.

       Assim, compreendemos melhor o sentido profundo da epoché husserliana. Por meio

dela, não se renuncia propriamente ao mundo, mas apenas, à maneira ingênua de o

considerar:


                                                                                         10
“em vez de possuir o mundo de um modo ingênuo
                                    e de propor questões ingênuas sobre o mundo, propomos
                                    agora novas questões sobre o mundo que puramente em
                                    nós, e primeiro de mim e em mim, adquiriu sentido e
                                    valor; em mim, notemo-lo bem, como eu transcendental”.
                                    (Husserl, 1941 Apud. Fragata, pg 81)




       Torna-se aqui, agora, mais facilmente compreensível uma mais precisa definição de

fenomenologia:



                                          “disciplina puramente descritiva que explora, pela
                                  intuição pura, o campo da consciência transcendentalmente
                                  pura”.(Xirau, 1941, pg 44).



       Graças à atitude aonde nos conduziu a epoché mais radical, estamos em contato

imediato com as “coisas” que se nos apresentam na sua evidência originária, pois, em vez

de possuirmos simplesmente o mundo, possuímos apenas a consciência do mundo. O

fenomenólogo não mais do que olha puramente para estes fenômenos, deixando-se orientar

por eles como se apresentam na sua “evidência originária”, explorando e descrevendo as

riquezas insondáveis deste novo mundo, que é a “consciência pura”.



Bibliografia:

FRAGATA, J., A Fenomenologia de Husserl. Braga: Livraria Cruz, 1959.

HUSSERL, E., A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia. Porto Alegre: EdipucRS,
2002.

___________. A Idéia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986.

___________. Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras Editora Ltda, 2001.

_____________. Psychologie Phénoménologique. Paris: Vrin, 2001.

KANT, I., Critica da Razão Pura. Lisboa: Gulbenkian, 1989.



                                                                                       11
LYOTARD, J. F., A Fenomenologia. São Paulo: Ed. Difusão Européia do Livro, 1967.

MARCONDES, D., Introdução à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2001.

MERLEAU-PONTY, M., Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo: Ed. Saraiva,
1973.

XIRAU, J., La Filosofia de Husserl – Una Introducción a la Fenomenologia. Buenos
Aires: Editorial Losada, 1941.

ZILLES, U. Introdução de “A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia”. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2002.




                                                                                   12

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Nascimento, c.l. a centralidade da epoché na fenomenologia husserliana

  • 1. A Centralidade da Epoché na Fenomenologia Husserliana. Nascimento, C. L.1 Predominava entre os antigos gregos, inicialmente, a consciência mítica, cuja maior expressão se encontra nos poemas de Homero e Hesíodo. Na passagem para a consciência racional, aparecem os primeiros sábios, sophos, como se diz em grego. Um deles, chamado Pitágoras (séc. VI a. C.) usou pela primeira vez a palavra filosofia( philos-sophia), que significa “amor à sabedoria”. Para Platão, a grande virtude do filósofo é admirar-se. A admiração (thaumatzein) é a condição de onde deriva a capacidade de problematizar. Nasce assim o pensamento filosófico ou atitude filosófica, que tem como seu arkhé o estranhamento, a admiração. A verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo. (M.Merleau-Ponty). Epoché (εποχη) é um termo grego que significa “parada”, “obstrução” e foi muito utilizado na filosofia cética. A Górgias (séc. IV a.C.), um dos representantes da sofística grega, é atribuída a postura conhecida como cética. Outro grego, Pirro, acompanhante de Alexandre Magno em suas viagens de conquistas ainda naquele século, veio a conhecer muitos povos com diferentes valores e crenças. O que passou desde então a caracterizar o pensamento conhecido como cético, que, confrontando a diversidade das convicções que animavam os homens, bem como diferentes filosofias tão contraditórias, foi o abster-se, no final, de aderir a qualquer certeza. O cético, que vem de skeptikó, em grego, que significa 1 Doutor em Educação, Mestre em psicologia, Psicólogo Clínico, Professor do IFEN e Professor do Instituto Superior de Ensino Anísio Teixeira.
  • 2. “quem observa”; “quem considera”, conclui, nos casos mais radicais, pela impossibilidade do conhecimento; e nas tendências mais moderadas, pela suspensão provisória de qualquer juízo. Ao reconhecermos a subjacente postura de estranhamento que possibilita qualquer “afastar-se” desta ou daquela concepção da realidade, pensamos poder ter, assim, identificado uma possível filiação filosófica da epoché husserliana com o impulso pré- socrático que marca a transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico. O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E, contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma? ... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições. (Husserl, 2001, pg 143) Husserl toma emprestado o conceito cético de epoché e desenvolve aquilo que acredita ser o caminho seguro para proceder uma análise filosófica que pudesse realmente atender às exigências do rigor científico, que ele almejava alcançar. Epoché, no sentido fenomenológico, visa colocar entre parênteses a crença em toda realidade temporal e espacial, isto é, em toda a transcendência. Isto quer dizer que não devemos fazer juízo algum sobre o mundo e tudo aquilo que nele se inclui, até mesmo as mais convincentes evidências científicas, uma vez que as ciências naturais alimentam-se deste mundo empírico. Uma teoria rigorosa do conhecimento deve partir da absoluta e total falta de pressupostos. Evidentemente, isso não quer dizer que devemos negar a existência do mundo, o que seria impossível, mas simplesmente que tudo deve ficar em suspenso, “por decidir”. Ao encetar a crítica do conhecimento, importa, pois, adjudicar o índice da questionabilidade a todo o mundo, à natureza física e psíquica e, por fim, também, ao próprio eu humano, juntamente com todas as ciências que se referem a estas objetalidades. A sua 2 existência, a sua validade ficam por decidir.(HUSSERL, 1986, pg 53)
  • 3. Até 1901, data da publicação do último volume das Investigações Lógicas, Husserl não pensara ainda em introduzir o conceito de epoché em sua fenomenologia. Pareceu-lhe suficiente olhar simplesmente para os fenômenos sem ulteriores considerações, induzindo mesmo a uma interpretação psicológica da fenomenologia, em contradição com a sua própria crítica tão acirrada, desencadeada contra o psicologismo. A partir de 1906, no entanto, começa a viver uma profunda angústia que o coloca diante do imperioso dilema de renunciar a uma vida dedicada à Filosofia ou, definitivamente, encontrar uma solução segura sobre a essência do conhecimento. Nesta época, se detinha demoradamente ao estudo de Kant, que lhe sugeriu as primeiras idéias na busca da solução do dilema, orientando-o para a “consciência transcendental”. Recorre também a Descartes e, na sua dúvida metódica à qual resiste a própria consciência ou a cogitatio, encontrou ainda maior motivação, não só a confirmá-lo na posse da subjetividade transcendental, mas também a impulsioná-lo na busca de um método para a ela chegar. Husserl imaginou que, se o conhecimento encerra um problema, isto não quer dizer que ele seja problemático. Admitir que há no conhecimento um enigma, não é afirmar que todo o conhecimento é enigmático. Impõe-se, para ele, uma solução, não propriamente no seio do conhecimento, mas na relação entre mundo interior e exterior, imanente e transcendente. Descartes julgou libertar-se do problema duvidando o mais radicalmente possível. Assim, se deparou com o ego cogito, que se afirmava na própria dúvida. Os idealistas buscavam a solução exclusivamente na imanência. Mas, relativamente ao mundo exterior, ou adotava uma atitude cética, como propôs Hume, ou simplesmente suprimia-o, por uma identificação com a própria imanência, ou seja, do “objeto em si” com o “ser percebido”, como propôs Bekerley. Husserl rejeita a ambos, pois pretende resolver o problema 3
  • 4. superando tais orientações. Para isso, começará pela imanência, pois, afirma que esta é conhecida, ao passo que não se sabe como se conhece a transcendência. Husserl acredita que é na imanência que encontramos a posse imediata do objeto e, portanto a sede da evidência apodítica. Contra Descartes, exige que a imanência seja despojada de todo o caráter de transcendência que em si mesma possa conservar, para que o radicalismo seja mais profundo. Contra o idealismo, não pretende suprimir o transcendente, nem sequer provisoriamente. A dúvida husserliana não tem o mesmo sentido da dúvida cartesiana. O caráter metódico da dúvida proposta por Husserl está apenas em ser um critério a indicar- nos que não atingimos ainda a evidência apodítica. Não significa, portanto que a existência do mundo se põe propriamente em dúvida, pois é evidente que o mundo é, em si e por si, aquilo que é, quer vivamos ou morramos, quer o conheçamos ou não. Relativamente a esta existência, Husserl suspenderá apenas o seu juízo, mesmo que se trate da existência do próprio eu e dos seus pensamentos. Tal “suspensão” designou-a pela equivalente palavra grega epoché, usada já na antiguidade pelos céticos pirrônicos na filosofia grega que “suspendiam” ou se “abstinham” de qualquer assentimento por não reconhecerem razões decisivamente eliminatórias da incerteza. Husserl introduzi-la-á, porém, não como instrumento de uma atitude cética, mas de depuração em busca de um radicalismo particularmente reflexo em direção às evidências apodíticas. Não se pretende propriamente duvidar da existência do mundo, nem, muito menos suprimi-lo. O mundo encarar-se-á apenas sob o aspecto como se apresenta na consciência, reduzido à consciência. Continuará a ser considerado “posto entre parênteses”, numa espécie de idealização caracteristicamente original. Da existência ou “posição” do 4
  • 5. mundo em si mesmo, da “tese” do mundo, como Husserl diz, simplesmente não faremos nenhum uso. “... em nossas afirmações fundamentais nada pressuporemos, nem sequer o conceito de Filosofia, e assim queremos ir fazendo adiante. A epoché filosófica, que nos propusemos praticar, deve consistir, formulando-a expressamente, em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito desta abstenção”.(Husserl Apud. Zilles,2002, pg 22) Em suma, tudo o que transcende a esfera imanente da consciência deve levar o rigor da criticidade e questionabilidade. Com isso, a existência do mundo, dos objetos, das ciências etc. é colocada fora de juízo, porque carece do caráter de evidência absoluta, uma vez que suas afirmações vão além do que é imanente e seguro, do ponto de vista de uma fundamentação rigorosa do conhecimento. Posto isto, vemos que o que é colocado entre parênteses não é negado, mas perde o caráter de absoluto e inquestionável e de validade, que lhe é atribuído na atitude natural e passa a valer como fenômeno da consciência. Na atitude fenomenológica propiciada pela epoché, o modo de visão do mundo sofre uma transformação radical: deixa-se de aceitar a evidência da existência das coisas, ao contrário, deixo de lidar com o mundo físico (objetos espaço-temporais) e passo a lidar com o “mundo da consciência”, formado pelas vivências do sujeito. Com isso, fica claro que a epoché é o primeiro passo do método fenomenológico, ou seja, ela reflete a mudança de atitude necessária para o empreendimento proposto por Husserl, qual seja, a migração da atitude natural para a atitude fenomenológica. Tal caminho metodológico escolhido pelo filósofo vem a ratificar o seu desejo de 5
  • 6. fundamentação absoluta, pois, se o que está em questão é o conhecimento, uma ciência não pode usar como fundamento aquilo que pretende investigar. A ciência rigorosa que Husserl almeja construir exige, naturalmente, que nenhum conhecimento seja considerado de antemão. Evidentemente, no entanto, é de se supor que o filósofo alemão estabeleça algum conhecimento como sustentáculo inquestionável, a partir do qual ele edifique o seu pensamento reconstrutivo, sob o risco de recair permanentemente num círculo de regressão infinita. Segundo Husserl, o próprio exercício da epoché oferece como resultado este ponto de partida. A partir desta suspensão metodológica, “resiste” algo que é evidente e inquestionável e que remonta a reflexão cartesiana: a cogitatio. No entanto, nem bem o radicalismo cartesiano foi retomado e Husserl denuncia, o que lhe parece, a sua insuficiência: a dúvida cartesiana relativa à coisa natural (pedaço de cera) continua sendo em si mesma uma atitude mundana, sendo tão somente uma modificação desta atitude, sem corresponder, portanto, à exigência desta radicalidade. Prova disto será dada nas Meditations Cartésiennes, em que Husserl denuncia o pressuposto geométrico pelo qual Descartes assimila o cogito a um axioma do saber em geral, quando o cogito deve ser muito mais, uma vez que ele é o fundamento dos próprios axiomas. Esse pressuposto geométrico revela a insuficiência da dúvida como processo de radicalização. À dúvida, é preciso, portanto, opor uma atitude pela qual eu não tomo posição em relação ao mundo como existente, ainda que esta posição seja afirmação natural de existência, dúvida cartesiana etc. É claro que eu, como sujeito empírico e concreto, continuo a participar da posição natural do mundo. Esta tese continua a ser algo de vivido, mas não faço dela nenhum uso. Fica assim o mundo circundante não mais como simplesmente existente, mas sim como fenômeno de existência. 6
  • 7. No momento em que estende a todas as experiências da consciência, até mesmo as imaginadas, a possibilidade de se apresentarem como “dados absolutos”, Husserl afirma que o que importa não é a ocorrência real em mim, aqui e agora, da vivência, mas sim a apresentação de sua essência. Assim, ele passa a se reportar a uma “esfera de dados absolutos”, como resultado do exercício da epoché. Tal dimensão se refere a todas as vivências da consciência, tomadas em sua essência, constituindo-se assim como marco zero da teoria fenomenológica do conhecimento. A solução afigurou-se-lhe tão evidente, que lhe pareceu ter encontrado o que há tantos séculos ansiosamente se buscava, e não duvidou dedicar as ulteriores elaborações, bastante numerosas, ao esclarecimento desta descoberta ideal. Às alturas radicais da “consciência transcendental”, onde atingiremos os fenômenos na sua pureza absoluta, ascenderá Husserl exercitando a epoché em graus sucessivamente mais elevados. Tudo aquilo que não tiver o caráter da apresentação imediata, só realizável na consciência, não pode ser “apodítico”. Por isso, também Deus está incluído, embora seja o Ser transcendente no pólo oposto à transcendência do mundo. Só assim a fenomenologia, como ciência fundamental por excelência, pode começar, sem nada pressupor, numa independência absoluta. Acabamos de exercitar assim a epoché no primeiro grau: Tudo o que me é exterior, mesmo as outras pessoas e o próprio Deus, este “posto entre parênteses”. Em lugar do mundo em si, surge o “mundo” consciente, o mundo reduzido às vivências, ou psicológico. Daqui em diante, à rigor, só poderemos falar na primeira pessoa do singular. Trata-se da redução eidética. “Como filósofos que pensamos radicalmente, não consideramos nenhuma ciência como válida, nem o mundo como existente... Isto também se aplica à existência intramundana de todos os outros eus, de tal modo que nós, de si, já não deveríamos falar no plural”.(Husserl, 2001, pg 36) 7
  • 8. A redução eidética, como observamos acima, mantém-se ainda no plano psicológico. Neste grau de imanência, as vivências apresentam-se na sua singularidade concreta. Refletindo sobre tais fenômenos singulares, podemos sujeitá-los a uma série de variações arbitrárias. Aquilo, no entanto, que se me apresenta como invariável, como necessariamente comum, é a essência ou “eidos”. Deste modo, praticamos a “redução eidética”. Surge assim o “método das variações”, que me leva do individual, por exemplo, “este homem”, à essência ainda empírica, por exemplo, “homem branco”, e daqui à essência pura, a que acima diretamente nos referimos, e que é a essência no seu caráter absolutamente necessário, “o homem como tal”. Temos, pois um fenômeno novo, que prescinde do fato ou singularidade e, portanto, se pode dizer de caráter puro ou metaempírico. Estas essências, assim “purificadas”, não perdem ainda inteiramente o caráter psicológico. Neste sentido, Husserl afirma que a “fenomenologia psicológica deve apoiar-se na feomenologia eidética”, pois, a “redução eidética revela as formas essenciais relativa à existência psíquica”. Com a “redução psicológica”, as vivências, e até as essências, mesmo que as consideremos como conteúdos de atos, conservam ainda, pelo menos, uma existência “mundana”: “A vida psíquica de que trata a psicologia sempre se concebeu e é concebida como vida psíquica no mundo”.(Husserl, 2001, pg 43). O radicalismo não é, portanto, absoluto, o que se equivale a dizer que ainda não se atingiu o que Husserl chama de campo plenamente seguro da apoditicidade. Para isso, devemos exercitar a epoché num grau mais elevado, que nos leve à inibição de todo o 8
  • 9. interesse existencial e de toda a “mundanidade”, operando-se a transformação da subjetividade psicológica na subjetividade transcendental. O mundo da “atitude natural”não é só exterior. Num novo grau de reflexão, dirijo a mente para mim mesmo e para a minha imanência. Então, também eu me percebo como uma realidade concreta e “mundana”. Toda a posição da natureza deve ficar fora de circuito, e, portanto, também a existência de mim mesmo que reflito, o eu como ente psico- físico. Deste modo, atinjo o eu absoluto ou transcendental e, com ele, o âmbito da experiência genuinamente filosófica. Este eu, assim depurado, torna-se apenas concebível na sua relação ao “objeto”, o qual já também não é um objeto mundano, existente no sentido vulgar da palavra, mas um “objeto” puramente “intencional”. Um objeto que é uma idealidade pura meramente significada, desprovido de “qualquer caráter psicológico”. Eu perco assim o mundo, para o ganhar de um modo mais “puro”, retendo o sentido do mundo com o qual estou tão imediatamente em contato, que os “objetos”, assim considerados, não só estão presentes diante de mim, mas brotam de mim mesmo: “É de mim mesmo, do meu eu transcendental que o mundo objetivo haure todo os seus sentidos e valores existenciais”.(Husserl, 2001, pg 43). Atingimos assim o “ego cogito” verdadeiramente radical, só inteligível na sua explicitação plena “ego cogito cogitatum”. Segundo Husserl, também Descartes chegara a um “ego cogito” que prescindia do corpo, mas, apesar de incorpóreo, era ainda uma realidade substancial, concretamente existente, identificada com a alma. Em outras palavras, um eu natural ou mundano. Por isso, apesar de ter chegado à maior de todas as descobertas, não lhe apreendeu o verdadeiro sentido e, conseqüentemente, para Husserl, não ultrapassou o que ele chamou de “os portais da genuína filosofia transcendental”. 9
  • 10. Para ultrapassar este “meio caminho” de Descartes, Husserl começa pelo absolutamente radical, numa apodicidade absoluta, pondo “entre parênteses” não só o corpo, mas o eu na sua radicalidade total, enquanto existente no mundo, e, com ele, todos os seus atos. Neste exercício radical da epoché atingimos os fenômenos verdadeiramente puros, pois só levamos em consideração aquilo que nos é dado na pura imanência, e, portanto, com plena evidenciação. Nem os preconceitos do próprio eu podem viciar esta intuição plenamente originária, pois tudo está posto “entre parênteses”. O eu, assim depurado, é o eu puro, apto a conhecer sem vícios, como “expectador desinteressado” ou “imparcial”, tudo o que se apresenta como é, ou melhor, tudo o que dele brota; é o eu numa nova atitude oposta à natural. O eu em atitude fenomenológica ou transcendental. Deste modo, Husserl acreditava que se teria atingido o último fundamento que verificava todas as condições requeridas para a construção da Filosofia rigorosa: aprioridade absoluta numa ausência radical de pressupostos, e evidência imediata, plenamente garantida contra a intromissão de qualquer pressuposto. “Entro num mundo novo que Descartes não pôde explorar precisamente porque não exercitou a ”epoché”de um modo absolutamente radical”.(Husserl, 1907 Apud. Fragata, pg 67). Portanto, Descartes construiu sobre o cogito num processo de aditamentos sucessivos; Husserl não terá mais que encerrar-se no seu cogito para explorar o que nele está contido, num processo descritivo ou analítico. Resumindo em poucas palavras, Descartes investigou o que se conclui do cogito; Husserl, o que nele se inclui. Assim, compreendemos melhor o sentido profundo da epoché husserliana. Por meio dela, não se renuncia propriamente ao mundo, mas apenas, à maneira ingênua de o considerar: 10
  • 11. “em vez de possuir o mundo de um modo ingênuo e de propor questões ingênuas sobre o mundo, propomos agora novas questões sobre o mundo que puramente em nós, e primeiro de mim e em mim, adquiriu sentido e valor; em mim, notemo-lo bem, como eu transcendental”. (Husserl, 1941 Apud. Fragata, pg 81) Torna-se aqui, agora, mais facilmente compreensível uma mais precisa definição de fenomenologia: “disciplina puramente descritiva que explora, pela intuição pura, o campo da consciência transcendentalmente pura”.(Xirau, 1941, pg 44). Graças à atitude aonde nos conduziu a epoché mais radical, estamos em contato imediato com as “coisas” que se nos apresentam na sua evidência originária, pois, em vez de possuirmos simplesmente o mundo, possuímos apenas a consciência do mundo. O fenomenólogo não mais do que olha puramente para estes fenômenos, deixando-se orientar por eles como se apresentam na sua “evidência originária”, explorando e descrevendo as riquezas insondáveis deste novo mundo, que é a “consciência pura”. Bibliografia: FRAGATA, J., A Fenomenologia de Husserl. Braga: Livraria Cruz, 1959. HUSSERL, E., A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia. Porto Alegre: EdipucRS, 2002. ___________. A Idéia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986. ___________. Meditações Cartesianas. São Paulo: Madras Editora Ltda, 2001. _____________. Psychologie Phénoménologique. Paris: Vrin, 2001. KANT, I., Critica da Razão Pura. Lisboa: Gulbenkian, 1989. 11
  • 12. LYOTARD, J. F., A Fenomenologia. São Paulo: Ed. Difusão Européia do Livro, 1967. MARCONDES, D., Introdução à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MERLEAU-PONTY, M., Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo: Ed. Saraiva, 1973. XIRAU, J., La Filosofia de Husserl – Una Introducción a la Fenomenologia. Buenos Aires: Editorial Losada, 1941. ZILLES, U. Introdução de “A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia”. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 12