Vindos de um outro mundo: breve introdução à ficção científica para alunos do AE Venda do Pinheiro. Uma viagem pessoal pela história, literatura e cinematografia de FC.
Ficção científica é uma forma de ficção que lida principalmente com o impacto da ciência e tecnologia, verdadeira ou imaginada, sobre a sociedade ou os indivíduos. Esta ideia foi proposta primeiramente por Hugo Gernsback para promover e sustentar as suas publicações focalizadas em histórias cujo cerne incidia sobre especulações técnicas e científicas.
De onde veio a FC? Ao longo da história da literatura existem muitos exemplos de ficções pré-FC, no campo das utopias e mundos imaginários. Mas talvez o primeiro livro que teve como premissa uma ideia de base científica, à época, foi Frankenstein de Mary Shelley. Parece-nos estranho, uma vez que o vemos como monstro de terror, mas no livro a criatura monstruosa nasce não de explicações sobrenaturais ou mágicas mas sim da aplicação de ideias científicas ligadas à medicina e electricidade. No século XIX e princípios do século XX o que se viria a tornar FC ganhou popularidade e leitores, quer com a vertente de aventuras com tecnologia de Júlio Verne os seus seguidores, com a visão do papel da tecnologia de HG Wells, ou com as aventuras que misturam tecnologias futuristas à época (caso das edisonades, inspiradas na figura de Edison), e guerras futuras, um género muito em voga na viragem do século XX que ainda hoje se mantém vivo.
Imaginem um tempo onde não abundavam os meios de entretenimento. Sem televisão, internet, jogos. Só cinema e rádio para os mais afortunados. Ler era um passatempo, ea abundavam revistas cheias de contos empolgantes que encantaram os seus leitores. Estas publicações ajudaram a FC a afirmar-se como género por direito próprio. Foram, e ainda hoje são, a primeira linha de publicação para os autores, muitos dos quais se tornaram grandes nomes do género. A maior parte da FC pulp é elementar, de entretenimento rápido, sem grandes aspirações, mas saíram daqui alguns dos maiores autores do género. Das revistas clássicas salientam-se a Amazing Stories editada por Hugo Gernsback que se caracterizava por uma aproximação mais rigorosa à ciência na FC, e o foco no deslumbre com ciência e tecnologia da Astounding SF de John W. Campbell. Algumas destas revistas, como a Analog, Asimov e Magazine of F e SF ainda hoje são publicadas. Das mais recentes destaca-se a New Worlds, que apostou numa FC mais literária e experimental, e a Interzone, das poucas de FC europeia que ainda se mantém em publicação.
A banda desenhada tem sido um dos campos onde a FC se afirma. Desde os tempos da BD clássica (Buck Rogers, Flash Gordon, Weird SF e tantos outros) até aos dias de hoje os autores de BD têm aproveitado as possibilidades visuais da BD para despertar sonhos do imaginário futurista. Destaco aqui, da BD franco-belga, o incontornável Hergé com Tintin a ir à lua; o surrealismo de Enki Bilal; a FC em estado de pura magia de Moebius (Jean Giraud). Do Fumetti italiano destaco o retro-futurismo inspirado em Verne de Greystorm e as viagens pacifistas no tempo de Lilith de Luca Enoch. Dos comics modernos muita coisa poderia ser dita, mas sublinha-se o futurismo de Warren Ellis, talvez dos melhores actualidade. A série Saga, a ser editada em portugal, Hickman em ManhattanProjects. Hoje, a BD é um dos campos onde a mistura de ideias especulativas e iconografias desafiantes da FC consegue ir mais longe, graças ao carácter intrínseco da BD como mistura de texto, imagem e técnicas narrativas mistas.
E por cá, há FC? Sim, mas pouca. O século XIX legou-nos uma lisboa sonhada no ano 2000; dos tempos do estado novo sonhos de um império português do futuro. Mais recentemente, autores como Luís Filipe Silva, António de Macedo e JoãoBarreiros têm-se preocupado em escrever FC de qualidade. E há novos autores a experimentar o género, caso do universo partilhado do comandante serralves. O género tem tido alguma expressão, mas muito reduzida, apesar de um número considerável de obras publicadas por autores portugueses. E, até no cinema português encontramos exemplos de FC: os filmes Os Emissários de Khâlom e Os Abismos da Meia Noite de António de Macedo, Aparelho Voador a Baixa Altitude de Solveig Nordlund, e os recentes RPG de David Rebordão e Collider de Jason Butler.
Há três autores que são incontornáveis quando se está a descobrir a ficção científica. Ray Bradbury, algo atípico, mais próximo do realismo mágico do que da FC pura, que imbuiu os seus livros de um eterno deslumbramento pelos mundos reais e imaginários. Foi dele o primeiro livro que li que me despertou e apaixonou pela FC, as Crónicas Marcianas, um conjunto de histórias sobre a conquista do espaço sem grandes aventuras nem épicas batalhas espaciais. Dele também há o livro que arrepia, aquele em que os bombeiros servem para queimar livros e que é uma ode ao amor à literatura e liberdade de pensamento.
Asimov é outro dos grandes clássicos. Autor prolífico, legou-nos as três leis da robótica, que explorou nos contos que se coligem em I, Robot. É dele uma das primeiras séries de romances que olha para o poder das ideias e não das tecnologias como elemento definidor, Foundation, onde o grande personagem são as tendências estruturais que modelam uma sociedade galáctica milenar.
Mestre da FC hard, Arthur c. Clarke centrava-se na ciência como transformadora. É o maior nome daquela FC clássica feita de personagens estereotípicos cujos dilemas se centram nos desafios trazidos pela ciência e tecnologia.
O melhor da FC está na forma livre como especula. Podíamos falar de sub-géneros, que definem tipos de histórias características, como viagens no tempo, guerra futura, space opera, cyberpunk, mas no seu melhor a FC transcende géneros e, imaginando futuros, desafia-nos a reinventar o presente. Alguns exemplos, pessoais: Channel Sk1n: a televisão e internet enquanto vírus; Hav: um guia de viagens a um país que não existe que atrai leitores incautos a agências de viagens; E se… a américa vivesse ocupada pelos japonese e alemanha nazi e um livro proibido contasse a história do que seria se os aliados tivessem vencido a II guerra? E se o aquecimento global inundasse as cidades mundiais e Londres se transformasse numa selva semi-submersa? Uma ilha onde o presente e o passado coexistem mas não se tocam; Uma língua que é uma arma que muda a maneira de pensar de quem a fala; acordar numa avalanche dos himalaias e descobrir um novo mundo cruzado por dirigíveis; a américa abandonada é redescoberta por uma expediçãão arqueológica.
Vivemos na era digital, numa hipermodernidade em que todos os dias a ciência e tecnologia nos trazem novidades radicais que se entranham no dia a dia. Eis alguns livros, já antigos, que quase anteveram o mundo de hoje (e, nalguns casos, inspiraram directamente cientistas e engenheiros): Schismatrix: a humanidade espalha-se pelo sistema solar e modifica radicalmente a sua genética; Neuromancer: um hacker no meio de intrigas entre empresas e inteligências artificiais, legou-nos o termo ciberespaço; Brasyl: o presente, o passado e o futuro nos trópicos colidem enquanto a física quântica derruba as barreiras temporais; Snow Crash: descreve mundos virtuais em 3D realistas habitados por avatares.
Nem só de língua inglesa vive a FC. Nos últimos anos mutliplicam-se as vozes europeias e mundiais. Trazem à FC outras sensibilidades, expandido o campo literário, mostrando outras visões do mundo e dos futuros que não a ocidental. Alguns exemplos: A mecânica do coração: uma história de amor steampunk em que um jovem busca a rapariga que ama e detém a chave do seu coração mecânico; The Bookman: lagartos alienígenas invadem a terra, fingindo-se humanos, num século XIX cheio de dirigíveis e raios da morte; Mémoria: o mais perigoso assassino da galáxia viaja entre planetas para descobrir que é uma inteligência artificial que se escapou de um laboratório; The Three-Body Problem: um jogo de computador funciona como cavalo de tróia para uma civilização extraterreste invadir a Terra; 10 billion days e 100 billion knights: demasiado estranho para explicar. Jesus e Siddharta lutam ao longo dos séculos utilizando civilizações e mísseis atómicos de curta distância; Aurorarama: os dias da cidade gelada que é a veneza do pólo norte.
Alguns livros imperdíveis, de autores portugueses ou recentemente editados por cá: um astronauta abandonado em marte faz tudo para sobreviver e ser resgatado, em breve será filme; um agente da PIDE investiga estranhos aconcetimentos numa aldeia de pescadores; os contos de João Barreiros; O imaginário português revisto pelo traço espantoso de penim loureiro
É através do cinema que a FC chega ao grande público. Legou-nos iconografias espantosas, que ficam na memória visual e marcam o que conhecemos de FC. Como a imaginamos. Seleccionam-se aqui alguns filmes marcantes, fugindo aos mais esperados. Tudo começou em 1902, com a viagem à lua de Meliès. E continua, hoje, com filmes que deslumbram pelo lado visual e intrigam pelas suas concepções futuristas, que nos inspiram a imaginação.
Desafio: distribuindo cartões visões de utopia, perceber desafios contemporâneos a partir de ideias futuristas.