Semelhante a Oliveira, thelma. é tudo faz de-conta. as relações entre o poder entre o poder e o currículo de história em uma sala de aula da escola pública
Semelhante a Oliveira, thelma. é tudo faz de-conta. as relações entre o poder entre o poder e o currículo de história em uma sala de aula da escola pública (20)
Oliveira, thelma. é tudo faz de-conta. as relações entre o poder entre o poder e o currículo de história em uma sala de aula da escola pública
1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
THELMA CADEMARTORI FIGUEIREDO DE OLIVEIRA
É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma
sala de aula da escola pública.
São Paulo
2008
2. 2
THELMA CADEMARTORI FIGUEIREDO DE OLIVEIRA
É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma
sala de aula da escola pública
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação
da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Área de concentração: Didática, Teorias de Ensino e
Práticas Escolares
Orientadora: Profa. Dra. Kátia Maria Abud
São Paulo
2008
3. 3
FOLHA DE APROVAÇÃO
Thelma Cademartori Figueiredo de Oliveira
É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em uma sala de aula da
escola pública.
Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação
da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Área de concentração: Didática, Teorias de Ensino e
Práticas Escolares
Orientadora: Profa. Dra. Kátia Maria Abud
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr.__________________________________________________________________
Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________
Prof. Dr.__________________________________________________________________
Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________
Prof. Dr.__________________________________________________________________
Instituição:______________________ Assinatura:_________________________________
4. 4
... entro eu também em uma vita nuova, marcada agora por este novo lugar, esta nova hospitalidade. Tento
assim deixar-me levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o
que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que não se sabe: a isso se chama
procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de desaprender, de deixar germinar a
mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças
que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui
arrebatar, sem complexos, à sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de
sabedoria e o máximo de sabor possível.
Roland Barthes
5. 5
DEDICATÓRIA
Aos meus pais, por todos os inícios.
Às minhas filhas, pela continuação dos sonhos.
6. 6
AGRADECIMENTOS
Embora acredite que toda a escrita seja um espelho de seu autor, num trabalho acadêmico são
poucas as oportunidades de uma expressão de si mais acentuada. Assim sendo, tomo a liberdade
de, neste espaço, ser bastante pessoal, talvez até incomodamente pessoal para os cânones
acadêmicos. Entretanto, é um direito que considero conquistado depois de enfrentar as inúmeras
dificuldades da escrita científica e pelo qual assumo todos os riscos. Também é uma oportunidade
de um agradecimento sincero, no qual me coloco por inteira, sem os filtros do academicismo.
Profa. Kátia Abud, obrigada pela confiança, pela orientação e pela amizade em todas as etapas
dessa jornada. Mesmo nos meus momentos de delírio teórico, você teve a paciência de me trazer
para a realidade do que tinha de ser alcançado. Todos os apontamentos foram justos e
necessários. A convivência com você me fez aprender muito e admirá-la ainda mais. Obrigada
pela amizade e por ser tão generosa como orientadora.
Profa. Ernesta Zamboni e prof. Julio Groppa Aquino, foi muito importante e definidor o
momento da qualificação, graças aos comentários significativos com os quais vocês me
presentearam. Eles desvendaram caminhos e traçaram rumos não previstos no início deste estudo,
mas que trouxeram o inusitado e o desafiador. Muito obrigada.
Prof. Nelson Schapochnik, obrigada por permitir que eu participasse da disciplina de
Metodologia do Ensino de História, através do projeto PAE. Além disso, o texto do Hébrard que
você me cedeu foi o que permitiu o pontapé inicial dessa escritura, de parto tão complicado
quanto demorado para começar.
Prof. Jorge Ramos do Ó, as suas aulas e seminários foram inspiradores de uma nova visão do que
pode ser a escrita científica e essa perspectiva me acompanhou durante o caminho. Agradeço
muito.
Profa. Dislane Zerbinatti, amiga e grande companheira de viagem, obrigada pelas conversas em
que aprendo muito, pela amizade e pelo companheirismo de várias horas.
Colegas do grupo de orientação André Chaves, Milton Joeri, Ronaldo Alves, Elizabeth Salgado,
sou grata pelo apoio amigo que vocês ofereceram a essa estrangeira.
Murilo Rezende, Norberto Soares, Regina Oliveira, colegas do grupo e também de outras
paragens, que bom contar com a amizade de vocês, com as conversas sérias e as engraçadas e
com as nossas socializações (que também é preciso).
Daniel Canecchio, o seu conhecimento aliado a um coração generoso tornou possível a confecção
de vários pontos desse trabalho. Passando pelo mesmo momento de elaborar a sua dissertação,
ainda encontrou o tempo para ajudar uma amiga. Luciene Souza, a literatura e as conversas de
conterrâneas que você me ofereceu foram sempre de grande ajuda. Valeu! Aos dois, muito
obrigada.
Dalila Damião, agradeço pela indicação bibliográfica no início do trabalho. Ajudou bastante.
7. 7
Rafael Scavone, Rafael Bennemann, Rafael Schwalm e Rodrigo Graef, amigos e suporte técnico
insuperáveis. Valeu por tudo.
Flávio Pietrobelli, obrigada pelo apoio e pelo interesse.
Profa. Sonia Bercito e Profa. Tereza Van Acker, uma me apresentou à outra e as duas me
apresentaram o mundo acadêmico paulista. Não vou esquecer. É muito bom tê-las como amigas.
Obrigada, meninas.
Prof. Anderson Z. Vargas e Prof. Benito B. Schmidt, lembro muitas vezes da nossa convivência
em Porto Alegre, que deixou bases sólidas que ainda agora utilizo nessa retomada acadêmica.
Sempre admirei as pessoas que vocês são e hoje os professores e pesquisadores que vocês se
tornaram.
Maristel, Adalberto e Carolina Pereira Nogueira, a nossa amizade de tantos anos é parte do que
sou. Mesmo distantes vocês compõem a minha história.
Alberto F. de Oliveira e Irlandina F. de Oliveira, obrigada por fornecerem todas as minhas bases
e pela compreensão em relação a tudo o que não pude fazer nos últimos meses. Mãe, obrigada
pela versão do resumo para o inglês.
Ildo e pessoal do grupo de trabalho, conseguimos! Que trajetória, amigos. Chegamos ao final, ou
estamos iniciando. O fato é que sem vocês nada disso seria possível. Que venham os próximos
desafios.
Patcha e Maína, obrigada pelo suporte técnico e pelas correções de português, estilo e normas,
feito com tanto desprendimento. Sedimentaram a raiz! É isso.
Porém, como agradecer pelos anos de alegria e companheirismo, pelos momentos em que
choramos juntas e por aqueles em que voltamos a conseguir sorrir? Ou pelo aprendizado que
vocês me proporcionam dia a dia? Inclusive o de saber mais de mim pelos olhos de vocês. Não
existem gestos nem palavras suficientes. Até porque a lição maior que me proporcionaram não
tem como ser mensurada, que é a de aprender a amar, profunda e incondicionalmente. Devo
também agradecer a uma força maior que permitiu que vocês, como se apenas companheiras não
bastasse, sejam ainda minhas filhas.
Por tudo isso, e na falta da palavra suficiente, obrigada, meus amores.
(a ordem de apresentação foi pelo nascimento, Maína)
Patucha (in memorian), é muito bom saber que o amor não desaparece com a distância física.
8. 8
RESUMO
OLIVEIRA. T. C. F. É tudo faz-de-conta: as relações entre o poder e o currículo de História em
uma sala de aula da escola pública. 2008. 128 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
Esse trabalho parte da constatação de que as escolas não conseguem administrar as
questões que estão postas no mundo contemporâneo. Há uma grande disparidade entre aquilo que
se espera que a escola produza em termos de significação do mundo para o aluno e o que ela tem
condições concretas de dar conta, da maneira como está formulada. Nesse contexto, procurou-se
averiguar o que se produz em sala de aula a partir do currículo de História. Para isso, buscou-se
compreender como funciona esse currículo e que tipo de conhecimento e de relações ele
realmente produz, diante da realidade contemporânea complexa e multifacetada. Com esse
intuito, foi realizada uma observação de duas salas de aula de uma escola pública estadual de São
Paulo. Essa etapa do trabalho foi desenvolvida através de uma pesquisa de campo qualitativa,
com inspiração na etnografia. Esse tipo de investigação possibilita a observação do espaço da sala
de aula buscando apreender, dentro dos pequenos acontecimentos cotidianos, as diferentes
dinâmicas que se desenvolvem no grupo observado. Posteriormente, foi realizada a análise do
material coletado através de referências dos autores que se dedicam a estudar a estruturação do
ensino de História, assim como das referências das Teorias Críticas e Pós-críticas do currículo.
Esse trabalho se caracteriza por um aporte teórico híbrido, que permita dar conta da
complexidade das relações que se estabelecem no ensino na atualidade. A pesquisa analisou
nessa etapa os cadernos dos alunos, o livro didático utilizado, os discursos em circulação na sala
de aula, as teorias acadêmicas e o programa curricular institucional, os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), tomados como dispositivos curriculares. O que se constatou é que existem
muitos currículos em funcionamento em uma sala de aula de História. As suas propostas variam
de complexidade, capacidade de aprofundar conteúdos e de dar conta das questões
contemporâneas. Porém, o currículo que é utilizado no trabalho com os alunos, nessas salas de
aula observadas, se apresenta com um caráter aligeirado e empobrecido em relação aos conteúdos
historiográficos. Enquanto os discursos legitimadores sobre a disciplina trazem a permanência da
idéia do seu aspecto formativo. Confirmou-se a hipótese inicial da impermeabilidade do currículo
de História que é posto em funcionamento nessa sala de aula em relação às propostas acadêmicas
e programáticas, no caso, os PCN.
Palavras-chave: Currículo, História, Teorias Críticas, Teorias Pós-críticas, Hibridismo Teórico,
Dispositivo, Aligeiramento, Permanências.
9. 9
ABSTRACT
OLIVEIRA. T. C. F. It’s all make believe: the relations between the History curriculum and the
power in a classroom of a public state school. 2008. 128 f. Dissertation (Master’s degree) -
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
This work begins with the corroboration of that the schools do not get to manage the
questions that are put in the contemporary world. There is a great disparity between what we
hope the school produces – in terms of signification of the world to the student and what he has
the concrete conditions of understand of such a manner it is formulated. In this context, we tried
hard to investigate what we can produce in a classroom starting the History curriculum. Then, we
tried to comprise how it perform these curriculum and what kind of knowledge and relationship it
really produces in front of the contemporary complex and multifaceted reality. With this purpose
it was put in practice the observations in two public state schools of São Paulo. That step of the
work was developed through a qualitative field research with inspiration in the ethnography. This
kind of investigation let us observe the space in the classroom seeking to perceive in the small
and daily events – as the distinct dynamics that develops in the group that was watched. After
some time later, it was done the analysis of the gathered material by means of the authors that are
devoted to study the structure of the History teaching – as well as of the references of the Critical
and Post- Critical of the curriculum. This work is characterized by an theoretical and hybrid
approach that is able to demonstrate the complexity of the teaching today. The search has
analysed at that time the pupil’s notebooks, the didactic books utilized, the speeches in
circulation in the schoolrooms, the academic theories and institutional curricular program, the
“Parâmetros Curriculares Nacionais” (PCN) (National Curriculum Parameters) – took as
curriculum devices. It was proved that there are many curriculums functioning in a schoolroom
of History. Their proposals differ of complexity, capacity of deepen their contents and define the
contemporary questions. But, the curriculum utilized in the work with the students – in those
classrooms observed – presents a superficial and impoverished character in relation to the
historiographical contents. While the legitimating speeches about the discipline bring the
permanency of the idea of his formative aspect. It was confirmed the initial hypothesis of the
impermeability of the curriculum of History that is functioning in this classroom in relation to the
academic and programmatic proposals, in this case, the PCN.
Key words: Curriculum, History, Critical Theories, Post-Critical Theories, Theorical Hybridism,
Device, Superficiality, Permanency.
10. 10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 11
1.1 O tema, as perguntas, as possíveis respostas ....................................................................... 11
1.2 Como compreender essas questões: o método .................................................................... 16
1.2.1 A pesquisa de campo .................................................................................................... 16
1.2.2 A Professora e a escola................................................................................................. 17
1.2.3 Algumas considerações de ordem prática .................................................................... 20
1.3 A orientação do olhar: a teoria ............................................................................................ 21
2 CADERNOS............................................................................................................................... 31
3 LIVRO DIDÁTICO.................................................................................................................... 54
4 DISCURSOS DA SALA DE AULA ......................................................................................... 83
5 A TEORIA E OS PROGRAMAS CURRICULARES............................................................. 101
5.1 Histórico da disciplina de História e da noção moderna de currículo ............................... 101
5.1.1 Mas quando se começou a pensar sobre o currículo?................................................. 104
5.1.2 Pesquisas sobre currículo no Brasil ............................................................................ 107
5.2 A questão institucional: os PCN........................................................................................ 111
5.3 Ensino e as teorias da História........................................................................................... 116
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 124
11. 11
1 INTRODUÇÃO
1.1 O tema, as perguntas, as possíveis respostas
Tu deves amar os livros, pois nada há que os supere.
Tenho visto todos os ofícios, e quero que ames os livros mais do que à sua mãe.
O artífice, em seu forno, com os dedos como escamas de crocodilos, fede mais do que ovas de peixe.
O carpinteiro é mais cansado que um camponês: seu campo é de madeira e sua enxada de bronze.
O oleiro está sempre no meio do barro, e vive sujo como um porco.
O tecelão tem sempre os joelhos no estômago.
O mensageiro sempre anda no deserto à mercê dos ladrões.
O sapateiro, com seus couros curtidos, é como quem vive entre cadáveres.
Vê, não há profissão sem patrão a não ser para o escriba – ele é o patrão!
Logo, se souberes ler e escrever, boas coisas te virão no futuro!
Não serás como nestas profissões que lhe mostrei, cada uma pior que a outra!
O que te digo durante este caminho é por amor a você!
Aproveita bem cada dia de aula, pois os benefícios serão eternos!
Portanto, agradece a teu pai, que te encaminha para os livros!1
Um texto, tido como jocoso na Antigüidade, mostra (e ironiza) a cantilena da promessa de
um futuro melhor trazido nas asas do conhecimento. É significativo que, para nós, o seu sentido
irônico não fique tão claro, uma vez que ainda se discursa sobre a educação através desse sentido
emancipatório e libertador dos quais ela é, em princípio, a portadora.
Contudo, na atualidade há uma grande disparidade entre aquilo que se espera que a escola
produza em termos de significação do mundo para o aluno e o que ela tem condições concretas de
dar conta, da maneira como está formulada. Os valores nos quais os discursos sobre educação
ainda se baseiam – como o da escola favorecer a autonomia, a independência e a
responsabilidade, contraditoriamente criando regras para adaptar o jovem ao funcionamento da
sociedade – não têm mais uma correspondência direta com o que está estabelecido como os
valores desse mesmo mundo. Desde meados do século XX até hoje, transformações aceleradas
em todos os níveis, político, sócio-econômico e cultural, vêm modificando normas e valores e
1 Texto da antigüidade egípcia, de autor desconhecido, são conselhos de um pai para seu filho proferido a
caminho da escola no primeiro dia de aula. Foi bastante copiado nas escolas egípcias como texto para
exercícios, com um sentido de sátira bem humorada (BACHA, 1997, p. 31).
12. 12
provocando deslocamentos em todas as áreas, sejam as científicas ou aquelas ligadas às práticas
mais cotidianas.
Esses deslocamentos da contemporaneidade provocaram uma desestabilização dos
critérios baseados na razão e na verdade iluministas, criando diferentes perspectivas que parecem
não se encaixar na maior parte dos discursos praticados nas esferas ligadas à educação: meio
acadêmico, meio institucional e mesmo dentro das próprias escolas. Assim, se configuram uma
série de discursos dispersos, com uma coerência aparente (afinal todos falam sobre educação),
mas que, quando convivendo dentro da sala de aula, geram dissonâncias que tornam manifestas
as diferentes redes discursivas que estão ali em choque.
No currículo da disciplina de História também há uma aparente estabilidade, no sentido
em que o consenso em torno do que deve compô-lo situa-se na incorporação das renovações
historiográficas e das atualizações de tópicos contemporâneos através dos temas propostos pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). No entanto, na minha prática docente observei que o
aparente consenso dos discursos sobre que conteúdos devem fazer parte do currículo de História,
quando vistos a partir da sala de aula, são pura dispersão e conflito.
Os alunos não compreendem a relevância que as informações transmitidas (na maior parte
do tempo são apenas informações) podem ter para a compreensão do seu cotidiano. E outros
sentidos que a disciplina possa apresentar não são oferecidos pela forma como ela é abordada na
maior parte das salas de aula.
Por outro lado, os professores se encontram paralisados na sua prática diante das muitas
prescrições e exigências a que são submetidos, na maior parte, alheias ao seu verdadeiro ofício,
fazendo com que este acabe se tornando quase tão desprovido de sentido para eles quanto é a
disciplina para os alunos.
Essas dificuldades acompanharam a minha prática docente, assim como de colegas da
área de História na escola em que trabalhei em Porto Alegre, o Colégio Farroupilha, no período
de 1994 a 2000. As discussões em torno desses temas nos levaram a desenvolver um projeto de
modificação do currículo de História da escola, no qual trabalhamos a partir de 1996. As
modificações propostas pelo grupo de cinco professores iniciaram quando alteramos a seqüência
da disciplina, partindo do conteúdo de Pré-história geral e da América na 5ª série, até os temas de
História Contemporânea no 3º ano do Ensino Médio, sem haver retornos ou interrupções.
13. 13
A modificação proposta, aparentemente simples, partia de uma série de pressupostos que
foram bastante discutidos entre nós. Para que não houvesse a necessidade de se retornar aos
conteúdos anteriores, se fazia necessário um aprofundamento maior tanto dos conteúdos
trabalhados quanto da metodologia empregada. Optamos por trabalhar com conceitos da área
(Estado, poder, cultura e revolução, entre outros), numa proposta de currículo em espiral, onde
estes fossem constantemente retrabalhados em novos conteúdos, acompanhando a sua
complexidade e a faixa etária dos alunos.
Ao longo dos anos em que atuei nesse projeto, revisando-o e reformulando-o à medida
que a sua prática em sala nos indicava novos caminhos, pude constatar, junto com os demais
colegas, as possibilidades que a disciplina de História oferece quando se dispõe de mais tempo
para o trabalho com cada tema e de uma proposta conceitual que forneça a base para o seu
desenvolvimento. O grupo como um todo observou que o envolvimento dos alunos com a
disciplina aumentou. Percebemos que os seus questionamentos em sala de aula eram mais
consistentes, que demonstravam mais interesse pelas atividades (sendo que algumas eram
propostas por eles) e que levantavam discussões trazidas da sua própria vivência, ou de
conclusões a que chegavam sobre um assunto visto em aula.
Entretanto, apesar da significativa melhora na qualidade do trabalho, manteve-se a
estrutura de conteúdo e a seqüência cronológica própria do currículo de História tradicional.
Embora o avanço tenha sido significativo, ficou o questionamento em relação às reais inovações
obtidas. A estrutura curricular seqüencial aplicada nessa escola foi um passo, mas não modificou
o currículo de História estruturalmente.
Ao buscar um aprofundamento teórico sobre esse tema para melhor avaliar o projeto
realizado e poder avançar nas reflexões, iniciei leituras nessa área e, ao mudar para São Paulo,
resolvi me dedicar a estudá-lo de uma forma mais sistemática. Foi então que tomei contato com a
ampla literatura sobre o assunto e o nível de desenvolvimento teórico que ele possui. Atualmente
a pesquisa no campo de Currículo é uma das mais desenvolvidas na Educação a receber
influências das mais variadas áreas do conhecimento acadêmico, como a Antropologia, a História
e a Filosofia. Mais recentemente, recebe também contribuições do pensamento Pós-moderno e do
Pós-estruturalista.
14. 14
A partir das leituras que realizei, aumentaram as minhas inquietações a respeito do quanto
as pesquisas nessas áreas e as suas formulações teóricas – tanto em Educação e Currículo quanto
daquelas em História – alcançam as escolas. Elaborei então um projeto de pesquisa para
participar da seleção na pós-graduação da Faculdade de Educação (FEUSP) que inicialmente
buscava compreender o currículo praticado na sala de aula a partir de alguns conceitos como os
de Nação, nacionalismo, identidade nacional e cultural, a partir de uma pesquisa de campo em
escola pública. Porém, ao ingressar na pós-graduação e iniciar o trabalho de campo, a professora
que observei não trabalhou esses temas com os alunos, embora eu houvesse escolhido uma sala
de 5ª série, buscando observar como questões culturais eram abordadas nas aulas de História
Antiga, e uma de 7ª série, para observar o trabalho com os conceitos citados em História
Moderna e em História do Brasil.
A partir de então, ao longo e ao término das observações, vi-me no centro dos discursos
que não se encontravam. Havia as minhas leituras sobre Educação e Currículo, avançando na
direção da quebra dos paradigmas iluministas, e também as leituras voltadas para as questões da
História Cultural, que também rompe com paradigmas, abrindo a possibilidade das pesquisas
historiográficas abordarem outros campos da vida dos homens, como as práticas simbólicas e as
idéias das pessoas comuns, a partir de uma valorização por igual de todos os aspectos da cultura.
E havia a prática da Professora, realizada dentro de um universo institucional completamente
alheio a essas questões.
As diferentes perspectivas dos discursos com os quais estava envolvida foram, na
verdade, um espelho da realidade multifacetada em que vivemos, provocada pelos deslocamentos
da contemporaneidade citados anteriormente. Só consegui articulá-los a partir da qualificação,
quando foi sugerido pela banca composta pelos professores Julio Groppa Aquino, Ernesta
Zamboni e pela orientadora do trabalho Kátia Abud, que a pesquisa se desenvolvesse em torno do
currículo nas diferentes instâncias nas quais ele é formulado: no discurso teórico acadêmico
(teorias críticas e pós-críticas do currículo e teorias da História), no discurso oficial (Parâmetros
Curriculares Nacionais), na ação da Professora, nos livros didáticos e, finalmente, no seu produto
final: os cadernos dos alunos fotografados durante a observação.
Nesse sentido, cada um desses âmbitos passou a ser uma fonte para o estudo, um
documento, e cada um é uma camada pela qual o currículo de História trafega, sem que haja a
15. 15
melhor ou a mais correta, mas todas representando os discursos da sua época. E investigar essas
fontes como os diferentes discursos que estão em luta para estabelecer as suas verdades é
investigar também a questão do poder como produtor dessas verdades.
A partir desse deslocamento na minha investigação, passei a analisar o material coletado
nas observações de sala de aula, averiguando as formulações curriculares nas diferentes
instâncias da sua produção, desde a acadêmica e institucional até o seu uso em sala de aula. Nessa
trajetória procurei responder a algumas indagações: as renovações na academia e as propostas
institucionais se traduzem em reformulações curriculares que realmente inovam, no sentido de
aproximá-las da prática e das necessidades da sala de aula? Diante da realidade contemporânea,
complexa e multifacetada, qual é o sentido daquilo que se propõe como currículo de História e
como funciona esse currículo nos diferentes níveis que ele percorre até chegar à sala de aula?
Quais as transformações, os acréscimos e os silêncios que são produzidos a partir dele? Quais são
as relações de poder que se estabelecem a partir da prática com esse currículo? Em síntese, o que
se produz nas salas de aula através do currículo de História?
A minha hipótese é que as propostas teóricas formuladas nas áreas acadêmicas
relacionadas ao tema e as indicações dos documentos curriculares institucionais não alcançam a
maioria das salas de aula brasileiras, nas quais o currículo da disciplina de História permanece
com a sua estrutura linear e conteudista, impermeável a proposições que talvez trouxessem
aportes significativos para a História ensinada, como as propostas que buscam incorporar outras
explicações para aspectos políticos ou econômicos através da cultura, inserindo grupos sociais
diversos, bem como as pessoas comuns, no contexto explicativo da História. Assim sendo, ao não
passar por inovações teóricas, o currículo de História ainda é visto e utilizado como vetor de um
discurso relacionado ao caráter da disciplina como “mestra da vida”, formadora das virtudes
morais tanto quanto das intelectuais. Como último ponto, fica a questão: se as discussões teóricas
não alcançam as escolas e se a História ainda é vista como formadora da moral, interessa
compreender qual é o tipo de conhecimento que é trabalhado na disciplina, uma vez que, nestas
condições, dificilmente este poderia ser voltado à reflexão e a um aprofundamento das questões
historiográficas. Nosso objetivo, portanto, é averiguar como essas questões se dão na sala de aula,
buscando compreender como funciona o currículo de História e que tipo de conhecimento e de
relações ele realmente produz.
16. 16
1.2 Como compreender essas questões: o método
1.2.1 A pesquisa de campo
O trabalho na sala de aula foi desenvolvido através de uma pesquisa de campo qualitativa,
com inspiração na etnografia. Esse tipo de investigação possibilita a observação do espaço da sala
de aula buscando apreender, dentro dos pequenos acontecimentos cotidianos, as diferentes
dinâmicas que se desenvolvem no grupo observado.
Atualmente, esse recurso é bastante utilizado em pesquisas de campo na educação2, pois
permite que se ultrapassem os limites das impressões iniciais e se aprofunde a capacidade do
pesquisador de enxergar as camadas menos aparentes dos acontecimentos da sala de aula a partir
do estranhamento em relação ao objeto investigado. Na escola essa tarefa se torna mais difícil,
por ser um ambiente ao qual todos estão acostumados de uma forma ou de outra, mas ainda assim
não impossibilitou completamente o meu “olhar estrangeiro”, afinal, não conhecia nenhum dos
envolvidos e nem a escola em questão. Além disso, a dinâmica de uma sala de aula sempre nos
traz surpresas, ainda que seja a constatação de que certas coisas não mudam.
Elsie Rockwell assinala que essa técnica de pesquisa, que provém da Antropologia, é
utilizada principalmente para estudar outras culturas que não a nossa. No entanto, pode ser
empregada na investigação sobre a escola, gerando uma pesquisa descritiva e analítica a partir de
um trabalho de campo com um tempo e um espaço definido (ROCKWELL, 1985, p. 1). Ao
utilizar o termo “descrição densa”, Clifford Geertz assinala que, para fazer falar os dados obtidos
em campo e descritos no trabalho, é necessário o emprego de uma análise realizada através de um
arcabouço teórico consistente (GEERTZ, 1989). Nesse sentido, a “descrição densa” procura
interpretar os significados, buscando compreender uma cultura – que, no nosso caso, é a cultura
escolar – a partir dela mesma, através da observação de seus conflitos, suas contradições e seus
diferentes contextos.
2
Ver, entre outros: ANDRÉ, Marli Eliza D. A. de. Etnografia da prática escolar. 8a ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2002.
(Série prática pedagógica); EZPELETA, Justa e ROCKWELL, Elsie. A construção social da escola. In: Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1994; ROCKWELL, Elsie. Reflexiones sobre el
processo etnográfico. Centro de investigacion y estúdios avanzados del instituto politécnico nacional. México,1985; BOGDAN,
Robert e BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Ed. Porto, 1997;
LÜDKE, Menga e ANDRÉ, Marli. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Cortez, 2002.
17. 17
Como técnicas empregadas na observação, utilizei um caderno (meu “diário de campo”)
onde registrei aquilo que pude observar da forma mais textual possível, com o intuito de não
deixar passar qualquer percepção, por mais pessoal que ela fosse. Aceitar a subjetividade do olhar
como objeto do conhecimento é também uma característica da pesquisa etnográfica, porém, um
pouco desconfortável para quem é formada na noção de objetividade da ciência. Como forma de
orientar essa subjetividade, volto ao principal aspecto da “descrição densa”, isto é, utilizar autores
que nos possibilitem contrapor a nossa experiência de campo com outros trabalhos de pesquisa,
tanto teóricos quanto empíricos, que balizem a análise, permitindo tirar do material o que ele tem
de mais significativo para responder às perguntas propostas.
1.2.2 A Professora e a escola
No início de abril de 2006, comecei a busca por uma escola para fazer a observação
empírica, nesse momento em que as atividades escolares já estão em pleno andamento e o ritmo
da sala de aula estabelecido. Foram várias as recusas, até encontrar uma em que o coordenador
me recebeu e, após expor o meu projeto a ele, solicitei fazer o acompanhamento de aulas de
História da escola. O coordenador me apresentou para a Professora de 5ª a 7ª série. Ela foi
receptiva, mas sem oferecer muita abertura. Deixei-a livre para escolher as classes que ela
permitiria que eu observasse, apenas solicitando que fosse uma sala de 5ª e uma de 7ª série,
devido à proposta de pesquisa que eu desenvolvia na época. Ela disse que não havia problema e
escolheu uma sala de cada. No caso, a 5ª e a 7ª mais calmas, segundo ela. Como o meu objetivo
não era observar diretamente a atitude e a disciplina dos alunos, penso que esse fator não alterou
significativamente a análise.
Comecei as observações em junho, com a interrupção da licença da Professora na última
semana do mês e das férias de julho, e terminei em novembro, pois a Professora tirou licença
prêmio. O anonimato foi empregado como condição oferecida à escola, à Professora e aos alunos,
por questões éticas envolvidas nesse tipo de pesquisa, na qual não se pode expor os envolvidos,
uma vez que a observação é feita em um espaço muito particular, que deve ser respeitado em
todas as suas instâncias.
Inicialmente observei uma aula por semana em cada sala, porém, senti falta da percepção
do processo no qual se desenrolava o trabalho. Então, pedi permissão à Professora para assistir
todas as aulas da semana, sempre que possível. Ela permitiu e eu intensifiquei as observações.
18. 18
Nas aulas eu sentava junto com os alunos e fazia anotações no meu caderno, sempre reservando
as margens para anotações complementares observadas por mim e anotações posteriores
realizadas em casa (essas feitas a lápis para marcar os diferentes tempos em que foram
realizadas). A Professora não abriu espaço para que eu participasse ou sugerisse alguma
atividade. Como fui para a pesquisa de campo com a disposição de manter um olhar que
mergulhasse naquela realidade sem expectativas prévias, procurei observar as aulas aproveitando
as oportunidades de convívio, mas respeitando o espaço da Professora e seguindo nele de acordo
com as diretrizes que ela me oferecia.
Na transcrição para o computador, optei por usar cores: azul para o que registrei como
comentário ainda em aula e verde para o que registrei em casa. Procurei ser o mais literal
possível, para não perder o envolvimento com os momentos passados naquele ambiente e para
poder captar, o mais fielmente possível, resguardadas todas as implicações da minha
subjetividade, o que eu percebi nos momentos em que compartilhei com a Professora e os alunos
daquele espaço e daquelas significações (material nos Anexos do CD ROM).
Em relação à escola, esta se situa no bairro Saúde, de classe média de São Paulo. É uma
escola grande, apenas de Ensino Fundamental. As salas de 1ª a 4ª série ficam num prédio
separado e menor e as de 5ª a 8ª ficam em outro prédio, de dois andares. Esse prédio principal é
maior, pois, além das aulas, ali funciona a parte organizacional da escola: secretaria, sala dos
professores, sala da direção e orientação e saguão de entrada. As salas de 5ª e 6ª séries ficam no
primeiro andar e as de 7ª e 8ª séries no segundo.
Os professores têm estacionamento com entrada pelo pátio. Este é bem grande, com duas
quadras de esportes, espaço com árvores, cantina com mesinhas, um tanque de azulejo grande
com 4 torneiras e banheiros. É uma escola bem cuidada, com um bom espaço externo para os
alunos e uma estrutura bem organizada.
No geral, em termos de atitude dos professores e funcionários, se vê dois aspectos:
afetividade de alguns adultos em relação aos alunos, somada a uma falta de compromisso com
aspectos da organização e cuidado com os afazeres da escola por parte de quase todos (auxiliares,
professores, secretárias e direção). Na semana de recuperação do final do ano, alunos mais velhos
entraram na sala em que os menores estavam tendo aula e nada aconteceu, a Professora que
estava na sala não tomou qualquer providência. Os alunos saíram por vontade própria, depois de
19. 19
interromper a atividade que realizavam os que estavam na sala. Ninguém se responsabiliza por
nada, essa é a imagem que fica. Porém, apesar disso, ou por estarem acostumados com isso,
parece que os alunos gostam da escola.
Conversei com um grupo que me informou que havia um laboratório para assistirem
filmes (o laboratório era sala de vídeo?), mas a 7ª série estava usando como sala de aula (depois
conheço o “laboratório”, que têm pias e balcão, mas é utilizado como sala de aula normal). Há
uma biblioteca, mas os alunos só usam para pesquisa, isto é, não costumam freqüentar apenas
para ler ou retirar livros. Ia abrir uma sala de informática, mas esta ainda não existe. Há um
elevador, instalado esse ano, porque entrou um aluno “cadeirante”. Os alunos confirmaram que
gostam da escola, de uma maneira geral.
O professor que é o atual coordenador da escola me forneceu mais informações que me
auxiliaram a traçar um perfil dos seus freqüentadores. No aspecto sócio-econômico a escola
atende um público variado: alunos mais humildes, médios e os de classe média que os pais não
conseguem mais pagar uma escola particular. Alguns pais trabalham pela redondeza em funções
pouco prestigiadas socialmente e com baixo poder econômico. São zeladores, empregadas
domésticas, ou trabalham no comércio da região. Conseguem colocar os filhos na escola muitas
vezes com falsos comprovantes de endereço.
Essa procura, inclusive por parte da classe média, segundo o coordenador, acontece
porque a escola tem fama de séria, tem bom nome e também por ser rígida (“não no sentido
antigo, mas cuida da disciplina, tem normas”). Muitos alunos moram longe, em Divisa Diadema,
por exemplo. Apesar das diferenças no perfil sócio-econômico dos alunos, a convivência entre
eles é boa, “sem conflitos”. O professor relata que os alunos menos preparados, com pais sem
instrução, aprendem com os outros alunos de famílias mais preparadas e com melhor nível social
e intelectual. Já os alunos de melhor nível “aprendem com os mais pobres outras coisas” (ficou aí
subentendido uma aprendizagem do que está à margem dos valores socialmente relevantes e
dignos).
A escola atende 1ª a 8ª série, ou I e II Ciclos. Os laboratórios de Ciências foram
desativados para ocupar as salas com aulas normais, pois há excesso de alunos. Hoje são 22 salas:
11 pela manhã e 11 pela tarde. Segundo o coordenador, existem laboratórios (desativados, como
constatamos e o próprio coordenador explicou), sala de vídeo, sala de informática e sala de
20. 20
leitura. Esta é usada pelo professor que tem treinamento para isso pela Secretaria de Educação e é
a diretoria que convoca para esses treinamentos. Existe o projeto de leitura, que faz parte da
grade de disciplinas. Nas conversas com os alunos vimos que ou eles não conhecem as salas, ou,
se conhecem, não as utilizam.
As orientações e treinamentos dos professores (como o da sala de leitura) têm suporte do
estado e se dão em forma de parcerias. Como exemplo, ele cita um treinamento que fez junto à
Petrobrás sobre meio ambiente. Quando voltou para a escola, ele reproduziu o que aprendeu.
Perguntei a ele se, depois de passar para os professores o que aprendeu na orientação, essa
atividade entra nas disciplinas como o tema transversal meio ambiente. Ele diz que sim, “com
certeza”.
Como essas informações são passadas para os professores? Nas reuniões de 3ª e 4ª feiras,
em horário coletivo, contrário ao turno de aulas (as HTPC). São reuniões fixas, obrigatórias e
pagas. Pela manhã, acontecem das 10h30min até as 12h30min. À tarde, ocorrem das 12h30min
até as 14h30min. Nessas reuniões são discutidos os projetos, os planejamentos, a disciplina na
escola, etc. Não existe reunião por área. Como horário extra de atividades, em abril de 2007 iria
começar o projeto de recuperação paralela, que antes não existia. As recuperações eram
realizadas em horário normal de aula: tanto as aulas quanto as provas, como está na observação
de sala de aula.
1.2.3 Algumas considerações de ordem prática
A grande quantidade de material advindo da pesquisa de campo nos fez optar por colocá-lo
à disposição do leitor em um CD ROM afixado ao final do trabalho, composto pelo Anexo 1 e
2, onde estão os cadernos dos alunos; Anexo 3, os planos de ensino da Professora; Anexos 4 ao
19, as imagens das páginas do livro didático referenciadas no capítulo 3; e no Anexo 20 estão as
observações de aula.
As fotos são citadas no corpo do trabalho pela série e pelo seu número correspondente,
sendo que são dois cadernos por série, cuja referência é o primeiro número (exemplo: 5ª série –
1.21, isto é, caderno um da 5ª série, foto número 21). Ao falar das anotações realizadas no
acompanhamento da sala de aula, a referência é “observação das aulas”.
21. 21
Outro ponto importante a salientar é que as definições teóricas que estão no início do
Capítulo 1 e do Capítulo 2, sobre caderno escolar e livro didático, foram ali colocadas por
oferecer um panorama referente à outra área de pesquisa, no caso a História da Educação, que
tem aportes teóricos específicos e importantes, como campos de conhecimento bem estabelecidos
que são. Nesse caso, as considerações realizadas têm sentido dentro do contexto desses capítulos,
mas não nas outras partes que compõem o trabalho.
1.3 A orientação do olhar: a teoria
O campo do Currículo no Brasil se caracteriza como uma área de estudos polissêmica e
híbrida, em que é possível combinar as tentativas de preservar certo horizonte utópico das teorias
críticas com o pensamento radical realizado pelo pós-modernismo, como propõe Moreira
(MOREIRA, 2003). Em que pesem todos os rompimentos pós-modernos (descrença na razão que
levaria inexoravelmente ao progresso, na verdade científica e nos grandes discursos
universalizantes, ou metanarrativas, para citar alguns), Moreira segue o pensamento de
Boaventura Santos para propor “a formulação de uma utopia, a invenção ou reinvenção tanto do
pensamento emancipatório como da vontade de emancipação” (MOREIRA, 2003, p. 21).
Sem confiar muito em uma emancipação possível, mas não descuidando da idéia, a
proposta desse trabalho se caracteriza teoricamente por ser um estudo híbrido, que busca
compreender uma realidade também polissêmica e híbrida e, portanto, não pode prescindir de
análises realizadas por diferentes vertentes do pensamento. Os autores das teorias críticas e pós-críticas
do currículo serão utilizados ao longo do estudo, aliados àqueles que se dedicam a
pesquisar a estruturação do ensino de História, com os devidos cuidados teóricos no trabalho com
as suas formulações. O objetivo é desenvolver uma pesquisa que permita a rearticulação das
diferentes proposições, para estudar a construção do conhecimento histórico na sala de aula.
Assim sendo, a perspectiva que percorre a pesquisa como um todo é a de historicizar as
práticas relacionadas à educação, procurando, com isso, perceber o quanto elas não são naturais e
onipresentes no tempo e no espaço. Entre os autores que trabalham sob essa ótica está Thomas
Popkewitz, que analisa o currículo e as reformas educacionais utilizando conceitos que
privilegiam a compreensão da historicidade dos processos da escolarização, em uma visão a
22. 22
partir da “virada lingüística” 3. Na relação com o conhecimento escolar, historicizar significa
perceber as “relações de poder entranhadas na seleção, organização e avaliação do
conhecimento” (POPKEWITZ, 2002, p.183). É a busca pela compreensão de como se materializa
tudo aquilo que temos como natural na escola: seus sistemas de idéias, suas práticas, suas
relações institucionais. É uma investigação que procura perceber as rupturas e descontinuidades
da vida institucional, quebrando a percepção de progresso linear, que subjaz a própria noção de
reforma, pois esta traz naturalmente a tendência de perceber o novo como uma evolução em
relação ao que existia antes (POPKEWITZ, 1997).
O conhecimento é construído a partir de “processos de categorização” que definem os
fenômenos e ordenam, através de “lentes conceituais”, aquilo que tomamos como um dado pré-definido
e anterior a qualquer conhecimento. Ao desvendar os sistemas de idéias a partir da sua
construção, de como foram constituídos e categorizados, percebemos as práticas sociais e de
poder que moldaram o atual sistema de escolarização. Nesse sentido, Popkewitz usa o método
histórico para
compreender como os problemas atuais da escola, definidos pelo conceito de
reforma escolar, são constituídos da forma que são: como viemos a colocar os
problemas referentes a conhecimento escolar, crianças, ensino e avaliação da
forma como fazemos (POPKEWITZ, 2002, p. 174).
Este autor aborda os seus problemas de investigação através do conceito de
“epistemologia social”, que procura enfatizar as relações sociais entre o conhecimento e as
práticas do poder e perceber como este atua nas instituições. O uso do termo epistemologia não
está vinculado apenas às reflexões em torno do conhecimento humano, mas também às relações
de poder que se estabelecem através da forma como o conhecimento “organiza as percepções, as
formas de responder ao mundo e as concepções do eu” (POPKEWITZ, 2002, p. 174). Com a
qualificação de “social”, Popkewitz procura dar conta das implicações sociais do conhecimento e
dos padrões de regulação historicamente formados nos processos de escolarização.
3 “Na análise pós-estruturalista, o momento no qual o discurso e a linguagem passaram a ser considerados
como centrais na teorização social. Com a chamada ‘virada lingüística’ ganha importância a idéia de que
os elementos da vida social são discursiva e lingüisticamente construídos. Noções como as de ‘verdade’,
‘identidade’ e ‘sujeito’ passam a ser vistas como dependentes dos recursos retóricos pelos quais elas são
construídas, sem correspondência com objetos que supostamente teriam uma existência externa e
independente de sua representação lingüística e discursiva”. (SILVA, 2000, p. 111)
23. 23
Dessa forma, o currículo é visto por este autor como um conhecimento sobre o “modo
como as crianças tornam o mundo inteligível”, conhecimento este também contextualizado na
história (POPKEWITZ, 2002, p. 174). Ao analisar as diferentes formações curriculares,
percebemos que ali estão postas maneiras de organização sobre o que se deve conhecer e como se
deve conhecer. É uma forma de “disciplinamento” dos indivíduos. Na escola as irregularidades e
as descontinuidades não estão aparentes, afinal, o seu papel é o de homogeneizar
comportamentos e conhecimento.
Entramos, então, em outro conceito importante para o autor, que é o de “regulação
social”. O currículo seleciona (incluindo e excluindo conteúdos), organiza, molda visões do
mundo e do “eu”. É construído, e constantemente reformulado, dentro de concepções políticas e
sociais que procuram disciplinar os indivíduos através de “sistemas simbólicos”, que dizem como
se deve ver o mundo e estar nele. Essas diferentes formas de “disciplinarização” dos indivíduos
começaram a ser construídas a partir do século XIX, quando se desenvolveram, através das novas
concepções científicas, diversos conceitos para se pensar a sociedade e o mundo, como, por
exemplo, raça, classe, pobreza e capitalismo.
Também foram importantes na “disciplinarização” as mudanças no pensamento social,
que se deram a partir do surgimento da estatística e do “raciocínio populacional”, como uma nova
forma de pensar e categorizar a sociedade, dividindo as pessoas por critérios, de acordo com as
necessidades do Estado, criando “novas formas de individualidade. Uma individualidade na qual
a pessoa é definida normativamente em relação a agregados estatísticos que atribuíam um
‘crescimento’ ou ‘desenvolvimento’ a ser monitorado e supervisionado” (POPKEWITZ, 2002, p.
189). Ao construir uma média, a estatística forneceu também os padrões de normalidade de
sujeitos e instituições.
Esses novos conceitos e formas de interpretar o mundo foram sendo incorporados pelo
senso comum e hoje fazem parte do nosso cotidiano. E não estão de fora do que é a escola, pois
esta também é uma das construções ocorridas na modernidade. Popkewitz trabalha com a
historicização no sentido de tornar aparentes esses processos que hoje estão tão capilarizados na
nossa forma ocidental de ver o mundo que não conseguimos mais nos afastar a ponto de
estranharmos – no sentido antropológico – o nosso entorno, para que possamos melhor refletir
sobre ele.
24. 24
Assim, o método histórico permite que percebamos os processos de regulação que
ocorrem na escola, primeira instância de convivência social do indivíduo, e onde ele adquirirá os
padrões para interpretar e produzir conhecimento e sua visão de mundo. Esses padrões vinculam
a formação do “eu” com as relações socioeconômicas, políticas e culturais do Estado moderno.
Surgem daí as classificações racionais (e universais) de rendimento escolar, de desenvolvimento
psicológico, de estágio de aprendizagem e de qual currículo conhecer. Para analisar a reforma
escolar e as concepções de currículo – compreendendo a construção dos padrões de regulação
social que estão implícitos a elas – “essas regras de representação não podem ser pressupostas:
elas têm que ser historicizadas” (POPKEWITZ, 2002, p.191).
Na perspectiva da História, Raimundo Cuesta Fernandéz também destaca a importância
do pensamento histórico e social na análise educacional. Ele situa a disciplina escolar de história
como um “arbitrário cultural”, isto é, uma construção criada em determinado tempo e condições
sociais (FERNANDÉZ, 1997, p. 10).
Porém, se diferencia de Popkewitz ao colocar em cena os “agentes sociais” nessa
construção, como alunos e professores (POPKEWITZ, 2002). Para Popkewitz, os agentes saem
de cena para se problematizar o que é tomado como natural; no caso da educação, se explora as
regras e sistemas de idéias que a embasam, questiona-se sua construção, conformação e validade,
para reintroduzir o sujeito em um outro cenário. Nesse novo cenário, aquilo que antes era dado e
universal torna-se contingente e relacionado ao momento histórico e a questões sociais e de
poder.
Contudo, Cuesta Fernandéz também aponta os perigos de se reificar o conhecimento,
qualquer que ele seja, mas, em especial, quando se trata de compreender os processos da
escolarização. Nesse sentido, demonstra também as dificuldades teóricas que a noção de
progresso científico traz, dessa vez, ao estudo da disciplina de História. Essa visão faz com que se
perceba a disciplina escolar como uma “miniaturização” do saber acadêmico de referência que
vem se desenvolvendo contínua e progressivamente e gerando suas subsidiárias, entre elas, a
matéria escolar. Sobre isso, nos diz Cuesta Fernandéz:
esta idea de progreso científico, despojado de todo componente social o
histórico, tiene su correlato en la consideración de la escuela como um escenario
25. 25
o receptáculo vacío de significados sociales y culturales, al que llega siempre la
ciencia de la Historia con un cierto retraso (FERNANDÉZ, 1997, p. 13).
Este autor destaca, ainda, que a própria institucionalização da História como curso
acadêmico foi muito tardia, impossibilitando uma análise da vinculação com a disciplina escolar
que use as mesmas referências para o século XIX que para a atualidade. Portanto, as disciplinas
escolares “poseen una autonomia constitutiva (con respecto a las ciencias de referencia)”, uma
originalidade que é adquirida na transposição da academia para a constituição de um outro tipo de
conhecimento formado em outro contexto social e cultural que é a escola (FERNANDÉZ, 1997,
p. 18).
Embora a discussão sobre o estatuto da História escolar não faça parte do tema deste
estudo, a noção de progresso pelo desenvolvimento contínuo e linear da ciência de referência é
uma idéia que nos interessa ressaltar. Ela traz como pressuposto que a disciplina também deve
incorporar os avanços científicos, pois são necessariamente melhores do que aquilo que existe
atualmente. Essa percepção forma uma rede de discursos reformistas na educação, que justificam
todas as mudanças apresentadas como necessárias para trazer melhorias ao ensino, sendo
automáticas e completamente absorvidas pelos envolvidos no processo, quando sabemos que essa
é uma afirmação bastante questionável.
Cabe, ainda, destacar que muitas dessas discussões têm a sua origem nas referências da
Nova Sociologia da Educação, principalmente nos trabalhos de Ivor Goodson, que tiveram
grande repercussão nas pesquisas, tanto internacionais como naquelas desenvolvidas no Brasil.
Esse autor trabalha com a idéia de currículo como uma construção social, porém, não se filia à
“virada lingüística”.
Ele emprega o conceito de “currículo pré-ativo” para implementar a análise das “normas
básicas” que antecedem sua formação curricular, mas que estão presentes e são transmitidas
através do currículo escrito (GOODSON, 2005). Utilizando autores como P. Jackson, Maxine
Greene e Michael Young, Goodson demonstra a importância dos significados anteriores que
estão estabelecidos no currículo, das lutas e conflitos do passado que estruturaram o que se
encontra nas definições pré-ativas e que algumas vezes é ignorado por reformistas nos conflitos
atuais que envolvem as questões curriculares. Sem usar o termo “historicizar”, ele ressalta a
importância do conhecimento da história que precede o currículo escrito para uma melhor
26. 26
compreensão dos debates que ocorrem nos processos da escolarização atual. Nesse estudo,
Goodson se concentra “na ‘confecção do currículo’ em nível pré-ativo”, afirmando que:
este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos
patenteados na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode
estabelecer parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala
de aula e da própria escola (GOODSON, 2005, p. 21).
Ele busca com isso não desvalorizar a sala de aula, tomando apenas o “currículo como
fato”, mas demonstrar como a compreensão do “currículo na prática” pode ser idealizada, se não
for mediada pela compreensão dos conflitos históricos em torno das escolhas que prevaleceram
na sua construção. Daí a importância dessa análise, que procura apreender a construção social do
currículo (no caso, o pré-ativo) para entender a sua prática em sala de aula, chamada por ele de
“fase interativa”. Nesse sentido, Goodson e Popkewitz se aproximam ao não aceitarem o
currículo como um dado natural, pressuposto ao que acontece em sala de aula. Goodson também
problematiza aquilo que foi aceito como a versão correta de determinado conhecimento e de
práticas escolares, procurando a contingência histórica que motivou a inclusão ou exclusão de
conteúdos, valores e práticas.
Além disso, Goodson caracteriza a trilogia pedagogia, currículo e avaliação como a forma
moderna de se pensar o ensino, processo que começou a emergir no final do século XIX. Ao
mesmo tempo, a criação do sistema de sala de aula com horários, matérias e notas foi se
padronizando nesse período. Com a divisão das aulas em horários com disciplinas
compartimentadas, a matéria escolar aparece como “a manifestação curricular dessa mudança”
(GOODSON, 2005, p. 35). Essa concepção adquiriu proeminência e hoje há a percepção de
currículo como matéria escolar. Com o surgimento do Certificado Escolar e dos exames para
obtê-lo, temos o outro vértice do triângulo já citado: a avaliação, que se soma ao currículo e à
pedagogia como a maneira naturalizada de pensarmos a educação nos tempos que correm.
A fim de tornar operativa a análise, tratamos de articular as diferentes fontes investigadas
por meio de alguns discursos que foram recorrentes nos vários âmbitos do currículo e da
disciplina. Entre eles se encontram os discursos legitimadores da História, que são perceptíveis na
permanência de concepções a respeito do valor formativo da História como disciplina escolar.
Também há o aligeiramento dos conteúdos ministrados no ensino público, causados pelo
27. 27
empobrecimento do trabalho com o arcabouço teórico e metodológico da disciplina. Para
avaliarmos as condições citadas, tomamos as fontes – os cadernos escolares, o livro didático, os
discursos da sala de aula, a legislação e as teorias acadêmicas – como diferentes dispositivos
curriculares, que se cruzam em vários níveis com variadas intensidades.
A concepção de “dispositivo”, empregada por Foucault, parte de uma mudança
metodológica nos seus trabalhos, ocorrida a partir da década de 1970, e do diferente
entendimento deste autor sobre as relações de poder. Na verdade, o uso desse termo, segundo
Judith Revel, advém da substituição do conceito de episteme, utilizado pelo autor em relação a
sua análise dos discursos. É um termo que está vinculado ao projeto de compreender o poder não
através de uma concepção jurídica e institucional, mas como mecanismos de dominação. Dessa
forma, “a episteme é um dispositivo especificamente discursivo, enquanto o ‘dispositivo’ (...)
contém igualmente instituições e práticas, isto é, ‘todo o social não-discursivo’”, segundo a
acepção de Foucault que a autora resgata (REVEL, 2005, p. 40).
Edgardo Castro também faz essa distinção de dois momentos na obra de Foucault, sendo
o primeiro aquele em que o uso do termo episteme corresponde ao que seria o projeto
arqueológico, ligado à descrição dos discursos, mas não às condições da sua produção. Ao
introduzir a questão do poder, com as relações “entre lo discursivo y lo no-discursivo”, entra em
cena o projeto genealógico, atuando por meio de dispositivos (CASTRO, 2004, p. 36).
A acepção mais citada desse conceito pelos autores que o empregam é aquela estabelecida
por Foucault em uma entrevista transcrita no livro Microfísica do Poder, em que ele aborda as
questões levantadas pelo primeiro volume da obra História da Sexualidade. Nessa entrevista esse
autor o define como
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT,
1989, p.244).
Interessa a Foucault a relação entre esses elementos, as suas diferentes configurações e
mudanças, que podem se materializar
28. 28
como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite
justificar e mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda funcionar
como reinterpretação desta prática, dando-lhe acesso a um novo campo de
racionalidade (FOUCAULT, 1989, p.244).
Por meio desse conceito, então, podemos analisar muitas das práticas relacionadas à
disciplina de História, desde os seus fundamentos teóricos e os seus componentes curriculares,
até as intenções do seu ensino, explicitadas ou não. Também podemos inserir aí as metodologias
aplicadas, que aparecem nos diferentes discursos da prática da sala de aula, os seus suportes, no
caso analisado neste estudo são os cadernos de aula e o livro didático, ou as leis e os programas
que atuam no plano institucional, como dispositivos curriculares da prescrição do que é válido
como conteúdo e conhecimento.
A função estratégica do dispositivo também é importante como fundamento teórico dessa
pesquisa, pois, “em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a
uma urgência” (FOUCAULT, 1989, p.244). Nesse caso, identificamos aí a possibilidade de,
através desse enfoque, buscar compreender como os dispositivos curriculares colocados em
funcionamento na sala de aula articulam a posição dos discursos legitimadores da disciplina nos
currículos escolares e a quais necessidades esses discursos respondem. Nesse ponto nos interessa
também a acepção de Deleuze, que o percebe como “um emaranhado, um conjunto multilinear
(...) composto de linhas de natureza diferente (...) submetidas a variações de direção, bifurcante e
engalhada, submetida a derivações” (DELEUZE, 1996, p. 30). Através dessas concepções, pode-se
aceder ao aspecto dos diferentes atravessamentos aos quais os dispositivos estão sujeitos, as
linhas de força que os cercam e envolvem provocando efeitos inesperados.
Sobre os efeitos que os dispositivos podem provocar a partir da sua posição estratégica,
Foucault define que há uma “sobredeterminação funcional”, pois esses efeitos estabelecem uma
rede de rearticulações, intencionais ou não, com conseqüências que não se pode prever ou
controlar. Daí a noção de poder como uma instância que não tem necessariamente uma
articulação pré-determinada e intencional, cuja gênese pode ser sempre rastreada nos aparatos
burocráticos do Estado, ou naqueles da repressão policial. A sua noção de poder é mais difusa,
pois que ele não parte de determinado ponto e chega a outro de uma forma linear e contínua. Os
efeitos dos dispositivos formam um “processo de perpétuo ‘preenchimento estratégico’”, isto é,
são imprevisíveis e podem ser rearticulados e aproveitados em novas estratégias, gerando nova
29. 29
rede de poder que “ocupou o espaço vazio ou transformou o negativo em positivo”
(FOUCAULT, 1989, p.245). É um ângulo diferente daquele de conceber o poder como,
necessariamente, fruto de artimanhas e maquinações dos poderosos.
Foucault então nos fala “que é possível deduzir qualquer coisa do fenômeno geral da
dominação da classe burguesa. O que faço é o inverso: examinar historicamente, partindo de
baixo, a maneira como os mecanismos de controle puderam funcionar” (FOUCAULT, 1989, p.
185). É nesse sentido que a nossa pergunta é como o currículo de História funciona na sala de
aula, quais são os mecanismos que definem a sua estratégia de funcionamento e porque, ou como,
os discursos relacionados a ele são tão dispersos. O currículo passa por uma rede de dispositivos
que mudam constantemente de aparência, mas são estrategicamente articulados para, no fundo,
não mudar a sua estrutura? Será que essa é a sua estratégia de funcionamento?
O presente estudo é uma análise dos diferentes dispositivos curriculares que atuam em
uma sala de aula de História, caracterizando uma dispersão de elementos heterogêneos, mas que
funcionam no mesmo tempo e espaço, produzindo relações de força que operam constantes
rearticulações de poder. Assim, as fontes analisadas exercem forças uma sobre a outra, num
constante deslocamento de suas funções e do seu espaço de poder.
Para realizar essa análise, dividimos o estudo em capítulos que forneçam uma visão do
material coletado em aula. Do primeiro ao quarto capítulo analisamos o material coletado nas
observações seguindo a proposta do trabalho. Estes são compostos do estudo dos cadernos
escolares fotografados, do livro didático utilizado em aula, dos discursos que circulam na sala de
aula e das teorias do Currículo e da História em conjunto com os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN). Respectivamente, cada estudo foi realizado em um capítulo, buscando
compreender os diferentes cruzamentos que determinam o funcionamento curricular em cada
uma dessas instâncias. Nas Considerações Finais, procuramos responder aos questionamentos
propostos na Introdução, articulando cada etapa do trabalho na compreensão das diversas
composições que o currículo de História assume e os efeitos que produz em sala de aula.
No início da escrita desse trabalho selecionamos alguns trechos de obras do próprio
Foucault e de outros autores que utilizam suas formulações para trabalhar com educação,
procurando manter um eixo que conduzisse as nossas análises. A leitura desses pequenos textos
30. 30
serviu como um guia ao longo do percurso que realizamos e, nesse sentido, tomamos a liberdade
de situá-las nesse espaço, com a intenção de que se tornem uma referência também para o leitor.
[o poder] não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles
que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor,
como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns,
nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas
os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação;
nunca são os alvos inertes ou consentidos do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos,
o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 1989, p. 183).
Deve-se, antes, fazer uma análise ascendente do poder: partir dos mecanismos infinitesimais que tem uma
história, um caminho, técnicas e táticas e depois examinar como estes mecanismos de poder foram e ainda
são investidos, colonizados, utilizados, subjugados, transformados, deslocados, desdobrados, etc., por
mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global. Não é a dominação global que se
pluraliza e repercute até embaixo. Creio que deva ser analisada a maneira como os fenômenos, as técnicas
e os procedimentos se deslocam, se expandem, se modificam; mas sobretudo como são investidos e
anexados por fenômenos mais globais; como poderes mais gerais ou lucros econômicos podem inserir-se
no jogo destas tecnologias de poder que são, ao mesmo tempo, relativamente autônomas e infinitesimais
(FOUCAULT, 1989, p. 184).
O efeito desse micro-poder é a ‘produção de almas, produção de idéias, de saber, de moral.’ E é
justamente essa produção de almas, idéias, saber e moral que, para Foucault, estabelece uma diferença
radical entre poder e violência. Para ele, suas diferenças não são de intensidade, mas de natureza.
Enquanto uma ação violenta age apenas sobre um corpo, age diretamente sobre uma coisa, submetendo-a
e a destruindo, o poder é uma ação sobre ações. Ele age de modo que aquele que se submete à sua ação o
receba, aceite e o tome como natural e necessário (VEIGA-NETO, 2004, p. 143)
A pedagogia se formou a partir das próprias adaptações da criança às tarefas escolares, adaptações
observadas e extraídas do seu comportamento para tornarem-se, em seguida, leis de funcionamento das
instituições e forma de poder exercido sobre a criança (FOUCAULT, 2004, p. 61).
31. 31
2 CADERNOS
Seguindo a perspectiva que nos interessa nesse trabalho, procuraremos resgatar o aspecto
da historicidade dos suportes da escrita escolar – uma vez que, nesta etapa, analisaremos os
cadernos de História fotografados durante as observações – para demonstrar que o caráter, o
sentido e a materialidade dessas anotações se constroem em diferentes tempos e circunstâncias e
se modificam em maior ou menor escala, conforme mudam as práticas constituídas pelo seu uso.
Essas práticas, entre outras, geram efeitos no que é produzido na disciplina de História e na forma
como o currículo é resignificado nessa que é a sua ponta final: a sala de aula.
Houve uma trajetória até o caderno tornar-se um dos muitos artefatos da nossa vida
cotidiana, pois adquiriu diferentes formatos e atributos ao longo de sua história e ficou cada vez
mais acessível com o advento da industrialização.
O aparecimento da escrita e o seu registro tiveram, no decorrer do tempo, diversos
materiais como suporte, desde as tabuletas de argila da Mesopotâmia até a difusão do papel na
Época Moderna. Na Europa, o papiro (utilizado até o século VI, pelo menos) e depois o
pergaminho foram os materiais mais utilizados para se escrever durante a Antigüidade e o
medievo, até que os árabes difundissem o uso do papel por esse continente, no seu processo de
expansão, entre os séculos XII e XIII. Eles aprenderam a confeccioná-lo com os chineses e
trouxeram a tecnologia para a Península Ibérica, de onde, lentamente, disseminou-se pelas
diferentes regiões européias. A utilização do papel acabou trazendo consigo a necessidade de se
estabelecer uma configuração diferente na relação com esse novo suporte da escrita.
Seguindo Jean Hébrard (2000), o emprego do papel em folhas retangulares, que depois
poderiam ser montadas em livro, implicou em uma outra forma de organizar a escritura para
compor a página, bastante diferente do que se fazia em um material como o papiro ou o
pergaminho, que eram guardados em rolo. Havia que se escrever pensando na divisão da folha
que deveria ser dobrada em duas ou mais vezes para compor os cadernos, que depois seriam
agrupados em um livro. A partir de indícios do século XVI, já se percebe a utilização do papel na
escola próximo ao que conhecemos hoje como caderno escolar: folhas, que poderiam ser
costuradas já dobradas, antes ou depois de terem sido escritas, formando o caderno. Em pinturas
da época aparece o uso mais generalizado da folha solta, caso em que a costura dos papéis
poderia ser feita até em casa.
32. 32
Preocupado em reconstituir a história das práticas e processos relacionados ao papel e sua
conexão com a escritura pessoal, Hébrard localiza no Dictionnaire universel, de Antoine
Furetière, alguns dos usos dados a esse importante suporte no século XVII, como pelos varejistas
do papel, que denominavam de cayers (como se grafava na época) as unidades de venda das
folhas; ou como na linguagem dos impressores, na qual um livro era (e ainda é) composto por
vários cadernos. Interessa-nos aqui, particularmente, aquele relacionado à educação, último
sentido que aparece no dicionário de Furetière. Nesse caso, falamos dos cayers que constituíam
as folhas com o que era escrito na aula sob a orientação do professor e que deveria ser
reapresentado a ele para se “obter um atestado de seu tempo de estudo”, conforme está no
Dictionnaire (HÉBRARD, 2000).
Hébrard pesquisou os mesmos verbetes no Dictionnaire de la langue française, de Paul-
Emile Littré, do século XIX, que acusava um uso menos técnico destes. Aqui, a acepção escolar
veio imediatamente após a explicação do sentido original, como “cadernos de um curso, aulas de
um professor tomadas por escrito” (HÉBRARD, 2000, p.36). Esse deslocamento aponta o sentido
da palavra cahier voltado então, a partir do século XIX, preponderantemente para o uso escolar.
Porém, poderia também ser utilizado/apropriado para atividades variadas, como acontece ainda
hoje.
É interessante notar a historicidade das práticas para se trabalhar com o caderno, desde o
início do Período Moderno. Primeiro, os indícios apontam para o seu uso nos cursos mais
avançados, pelos alunos mais adiantados, e não nos períodos iniciais da vida estudantil.
Anotavam-se as aulas ditadas pelo professor, de retórica e gramática, por exemplo, assim como
se preparava a coletânea de “lugares comuns”. Esta era uma atividade pedagógica comum no
século XVI, que consistia em anotar citações interessantes tiradas das sucessivas leituras para
reorganizá-las em verbetes segundo “os grandes capítulos da teologia, da história natural ou do
direito, etc.”, criando as máximas que comporiam os thesaurus que portavam os intelectuais
renascentistas (HÉBRARD, 2000, p. 52). Outro modo de trabalho escolar era a impressão de
textos latinos, deixando largas margens e entrelinhas, aonde o estudante encontrava espaço para
realizar as suas próprias anotações. É uma forma mais sofisticada do emprego da escrita pessoal
sem perder a continuidade do texto traduzido e interpretado, mostrando uma elaboração maior no
uso do espaço da folha, aqui igualmente impressa, e traduzindo um domínio por parte do aluno ao
lidar com as suas idéias no espaço concreto do papel. A partir do século XIX e da entrada de
33. 33
estudantes de camadas populares na escola, esta se tornou “o lugar de uma aprendizagem sutil
dos gestos gráficos elementares” (HÉBRARD, 2000, p. 57).
Como vimos nessa breve exposição, as anotações escolares como ação objetiva e
pragmática na vida do aprendiz não representam uma novidade. Mas é significativo apontar para
o surgimento do caderno escolar e para as transformações que o seu uso vem sofrendo:
transformações no aprendizado de como lidar com aquele espaço, como registrar informações,
como resgatar essas informações, como guardar o material e como torná-lo utilizável em aula ou
em casa. E já que aprender a tomar notas do que foi dito pelo professor, a redigir textos e a
organizar as idéias para dispô-las nesse espaço concreto, vem sendo uma atividade normalizada
pela escola, é no caderno que podemos distinguir alguns aspectos do dia-a-dia escolar e da
configuração que o currículo toma nesse cotidiano.
Porém, não há como apreender todo o sentido dos conteúdos e das atividades escolares
que são registradas nesse suporte se o tomarmos como dado, sem pensarmos na sua constituição.
Os cadernos têm uma história que apresenta os entrelaçamentos das atividades desenvolvidas nos
processos de escolarização e da construção das normas que passaram a regular essas atividades e
os conteúdos nelas trabalhados. Seguindo esse raciocínio, uma abordagem interessante é aquela
que possibilita pensar que o caderno não apenas sofre os efeitos da escolarização, mas igualmente
produz efeitos nesse processo.
Entre eles, podemos perceber as relações de poder que se estabelecem através do controle
da realização das atividades de aula pelo professor e da produção do autocontrole do aluno
através do aprendizado das normas para lidar com esse material. Também é possível traçar uma
analogia entre a normalização do caderno e o conteúdo que se expressa nele, portanto, do que
está sendo produzido em sala de aula a partir do currículo de História, tema do nosso estudo. Para
desenvolver melhor as idéias acima, utilizaremos as autoras Silvina Gvirtz e Anne-Marie
Chartier, que localizam o caderno como um dispositivo escolar, utilizando o conceito de
Foucault.
Para Gvirtz, o conceito de dispositivo permite que se considere o caderno não como uma
idéia ou representação dos conteúdos e programas seguidos pela escola, mas “como um conjunto
de práticas discursivas escolares que se articulam de um determinado modo produzindo um
efeito” (GVIRTZ, 1999, p.14). Entre os seus efeitos, Gvirtz entende que o caderno produz o saber
34. 34
de como ocupar o seu espaço, como lidar com as tarefas na sucessão de folhas, com as margens,
com o lugar das datas, dos títulos, das lições, dos textos – produção que, como vimos, vem se
construindo ao longo da história da escolarização. Nesse sentido, podemos observar como essas
idéias se traduzem no corpo dos cadernos analisados nesse trabalho, onde a normalização é
perceptível e indicativa do controle exercido sobre as atividades dos alunos.
Já Chartier diferencia o conceito técnico de dispositivo utilizado nos discursos
pedagógicos (dispositivo de recuperação, de treinamento, de formação) do conceito teórico
elaborado por Foucault (CHARTIER, 2002, p. 12). Indica ainda que outra característica do
dispositivo é a sua não autoria. Esse conceito é tirado das experiências comuns e cotidianas, pois
está onde menos se percebe e só passa a ser um dispositivo quando sua existência está
naturalizada: não se pensa sobre ele a não ser “quando ele é atualizado, reformado ou
‘desmobilizado’”, e essas mudanças “provocam acontecimento, discursos, resistências, o
imprevisto, conflitos”. (CHARTIER, p.13).
O dispositivo, então, tem de ser assimilado e praticado a ponto de tornar-se uma realidade
tida como atemporal e ahistórica, perene no tempo e no espaço. E daí vem o seu poder: unir, de
forma tida como natural, diferentes realidades, de diferentes tempos e lugares, como se
houvessem estado sempre ali. A sua força vem da sua transparência. Não os enxergamos com
clareza como dispositivos de controle, mas os sentimos como películas invisíveis que dão forma e
sentido às diferentes coisas do mundo. Para Chartier:
um dispositivo assimilado é, portanto, uma realidade interior tanto quanto
exterior, subjetiva tanto quanto objetiva, representada tanto quanto instituída.
Fala-se dele sem que se pense nele (CHARTIER, p. 15).
Esse é o caso do caderno escolar, prática tão assimilada e invisível que, dentre as
inúmeras preocupações das pesquisas em educação, apenas há pouco tempo vem fazendo parte
dos estudos na área. O caderno é um meio material fixado e quadriculado (FOUCAULT, 1989), e
tanto professores como alunos operam com as regras da sua normalização e com as formas de
fiscalização desses procedimentos. Daí o nosso interesse em resgatar a historicidade dos usos de
um espaço concreto para a escrita até chegar ao caderno como o temos hoje, mostrando uma
pequena parte da construção de um meio operativo do sistema escolar atual que nos parece tão
natural e incorporado ao nosso dia-a-dia que nos esquecemos que há não muito tempo, em alguns
35. 35
lugares do Brasil, nossos avós escreviam em pequenas lousas de ardósia, frágeis e quebradiças,
apagando os exercícios depois de realizados e, podemos supor, mantendo uma outra relação com
a memória e o aprendizado.
Nessa trajetória observamos, denotando o óbvio, que os atributos do caderno de História
em uma escola pública de São Paulo são diferenciados em relação aos primeiros cayers do
período moderno, ou mesmo às lousas de ardósia de nossas avós e os seus conteúdos. Mas o
sentido para o qual é utilizado não mudou tanto assim. Ainda é empregado a partir de regras
estabelecidas, com a função de anotar a matéria e os exercícios, e ainda passa pela avaliação de
um professor. Mas podemos chamá-lo de dispositivo pelas características que encerra. Além do
seu aspecto normalizador, no caderno circula uma rede onde se cruzam as regras para a sua
utilização, a fiscalização e o controle sobre o conteúdo e os exercícios, assim como uma
pretendida aprendizagem da matéria e, acrescentaríamos, a historicidade dessas construções.
Também estão presentes nessas intersecções as diferentes normas estabelecidas pelos
currículos das diversas disciplinas, desde o currículo institucional – os PCN – ao currículo
presente nas aulas planejadas pelos professores, ou ao que está presente nos conteúdos
selecionados pelos livros didáticos. Do mesmo modo, no caso da disciplina que aqui nos
interessa, podemos perceber a intersecção das diferentes concepções teóricas da História
presentes na academia, nos currículos oficiais, na concepção da Professora, e que acabam por
conformar a visão dos alunos em relação a essa matéria escolar. Dessa forma, tomaremos os
cadernos escolares como dispositivos curriculares, por expressarem os cruzamentos de diferentes
proposições de currículos de História que perpassam muitas camadas até chegar a eles. E é a
partir desses pressupostos que analisaremos os cadernos de História da 5a e da 7a séries que foram
fotografados como parte do nosso trabalho de observação da sala de aula.
Portanto, iniciaremos a nossa análise por um dos efeitos da utilização do caderno, que é a
conformação da escrita na folha. Nesse aspecto, é perceptível a diferença no processo de
absorção das normas da disposição das datas, dos textos e dos exercícios entre a 5ª e a 7ª série.
Nos cadernos analisados da 5ª série, existe uma mudança na sua organização quando o professor
rubrica as páginas e quando interrompe esse processo. A desordem na seqüência do conteúdo e
na disposição deste na folha torna-se perceptível quando não há rubrica. Isso se percebe no
caderno 1 da 5ª série (1.18) onde se encontra parte de um texto sobre o período Neolítico, que é
36. 36
copiado novamente na página seguinte (1.19) e só então o texto é concluído. Na foto 1.20 há um
questionário sem respostas. Na 1.31, o questionário sobre Egito inicia na pergunta 2, e na 1.32
existe apenas a indicação de uma atividade do livro (“Sistematizando o conhecimento”) que o
aluno não concluiu. Já nas fotos 1.37 até 1.43, o professor substituto rubricou as atividades e
colocou observações (1.41) e, nessas páginas, novamente o conteúdo aparece organizado.
Outros exemplos são encontrados no caderno número 2 da 5a série, onde as anotações das
aulas iniciam mais tarde, em 13/03, e em agosto o aluno copia em seqüência vários conteúdos
diferentes (Mesopotâmia, Big Bang, Egito, Pré-história), assim como copia o mesmo texto sobre
a Idade dos Metais na pré-história três vezes, em 18/04 (2.7), em 29/05 (2.11) e em 7/08 (2.16).
Aparentemente, isso não representa uma dificuldade para o aluno, pois o resto do caderno segue
organizado, inclusive ganhando um excelente do professor substituto (2.24).
Isso nos leva a pensar que esses alunos ainda estão pouco ambientados com a utilização
desse espaço gráfico nas matérias específicas do Ensino Fundamental II. E a sua organização
exige um esforço que só vale a pena se o professor for exercer a sua prerrogativa de fiscalização.
Essa análise encontra um respaldo maior ao se comparar os cadernos da 5a com os da 7ª série,
onde as normas de como lidar com esse dispositivo parecem já estar bem assimiladas, pois o
aluno está mais independente no seu uso e, conseqüentemente, a seqüência das atividades
apresenta maior regularidade. Fica, inclusive, mais fácil comparar os dois cadernos de 7ª série,
cujas datas das atividades realizadas e/ou a sua ordem coincidem entre si, ficando pouca coisa
destoante entre eles. Já na 5ª série, são poucos os momentos em que conseguimos comparar as
atividades nos dois cadernos, o que passa a impressão de falta de organização dos alunos.
Talvez possamos pensar no sentido da rubrica e na sua historicidade. No período
moderno, como vimos, o caderno deveria ser apresentado ao professor para se obter o atestado do
curso: hoje, o sentido é que o professor está passando o conteúdo e acompanhando/fiscalizando
se o aluno está copiando corretamente. Será que são sentidos tão diferentes? Não podemos
esquecer que hoje a autonomia do professor se encontra bastante restrita pela burocratização do
ensino. São planejamentos a cumprir, tarefas a solicitar, provas e trabalhos a avaliar e, dessa
forma, o processo de fiscalização que antes se dava somente sobre o aluno, amplia-se atualmente
também sobre o professor. Diretores, coordenadores pedagógicos e pais de alunos possuem no
37. 37
caderno um importante balizador do que se passa, pelo menos na sua parte visível, na sala de
aula.
Já outras questões, como a aprendizagem dos conteúdos registrados, não são significativas
para a atividade de rubricar, pelo menos atualmente. O professor, por uma questão de tempo e
número de alunos, apenas verifica se as atividades foram realizadas e se o caderno está em
ordem, de uma maneira geral. A verificação do aprendizado parece se restringir apenas aos
momentos de avaliação escrita, na forma das interpretações de texto devolvidas para a Professora
ou nas provas bimestrais, no caso observado. E não podemos garantir que no passado o tema da
aprendizagem estivesse presente, mesmo se fosse para fornecer o atestado comprovando que o
aluno cumpriu o curso.
Assim, a rubrica marca – como um dispositivo de controle – que o processo foi realizado,
mas sem se preocupar com os seus fins. E é significativo que a cor seja um traço distintivo da sua
função tão importante a ponto da Professora refazer uma rubrica que estava em azul,
reescrevendo-a ao lado ou mesmo em cima desta com o tom normalizado para essa função, o
vermelho (fotos 1.10-1.12 e 2.8-2.9). E quando isso não acontece e ela permanece em azul, fica
até no observador a sensação de que algo não está funcionando como deveria (fotos 2.15-2.18 e
2.29-2.30).
Parece-nos, portanto, que a rubrica normaliza as atividades dos alunos, acostumando-os
ao processo de vigilância por um mecanismo rápido de homogeneização da forma como se deve
compor o espaço do caderno. E mesmo o professor não escapa dessa norma, assim como quem
observa as diferentes atividades de uma sala de aula, todos nós acostumados com essa forma
aparentemente tão banal de controle exercida nas atividades escritas dos alunos, inclusive por
termos passado pelo mesmo processo na escola.
Outro indício de que a normalização e a fiscalização das regras impõem uma determinada
maneira de organizar o caderno, que depois são empregadas também nas atividades de aula, são
os comentários recorrentes feitos nas observações de aula (Anexo 20), sobre a organização e o
capricho de todas as atividades, inclusive as que são entregues para a Professora para serem
avaliadas. Foi surpreendente constatar como a realidade do caderno da 5ª série se apresentava
diferente, fora da ordem e com algumas atividades e textos incompletos. Nas atividades de
interpretação de texto, que são devolvidas para a Professora e avaliadas para compor a nota
38. 38
bimestral, as respostas são completas e a organização, na maioria dos trabalhos, é impecável nas
séries observadas.
Somando-se esse fato às observações das aulas, parece haver uma desconexão entre
aquilo que a Professora trabalha em sala e aquilo que realmente fica como registro que será
manuseado em algum outro momento, como em uma revisão no período de provas, por exemplo.
O que reforça o argumento da análise sobre o significado da produção e utilização desse material:
o que se torna mais importante é que as regras sejam observadas, pelo menos quando há a
vigilância materializada na rubrica, e que ocorra o autocontrole por parte do aluno ao incorporá-las.
Ainda como efeito do processo de utilização do caderno, agora alcançando o conteúdo da
disciplina, um dado interessante são as indicações dadas pela Professora do número de linhas que
devem ser deixadas para as respostas dos questionários. Como exemplo, podemos tomar as
anotações das observações de aula do dia 31/08, no “Questionário sobre o Egito Antigo” da 5ª
série, pois temos as fotos correspondentes a essa atividade, que foi realizada pelos alunos no
caderno (1.31 – 2.18-2.20). Esses números foram colocados pela Professora no quadro de giz (ao
final das perguntas) e variam conforme cada questão, mas os alunos cujos materiais observamos
não copiaram essa informação nos seus cadernos. No entanto, embora o número de linhas que
utilizaram para as respostas não tenha variado muito daquilo que a Professora determinou na
lousa, existem alguns pontos interessantes. Como na pergunta três sobre o que é o papiro, com
indicação dada pela Professora de 5 linhas para a resposta. No caderno 1, o aluno ocupa duas
linhas com uma resposta coerente, mas sucinta, e no caderno 2 a resposta está mais completa e
ocupa 3 linhas.
E aí vemos um efeito sobre o conteúdo trabalhado, pois já há uma predefinição do que os
alunos devem responder, a qual eles parecem estar acostumados, mas nem sempre seguem
integralmente. E essa predefinição é bastante aleatória, se pensada em termos da significação das
informações. Por exemplo, para a pergunta sobre o que é o papiro são indicadas 5 linhas para a
resposta, em uma questão cuja importância não é tão significativa para a compreensão da
estrutura da civilização egípcia – e os alunos respondem de forma adequada com menos linhas
que as sugeridas.
39. 39
Contudo, esse é o mesmo número indicado para responder uma questão mais complexa e
que fornece uma explicação importante sobre a composição social e política dos egípcios, que é a
definição de monarquia teocrática. E para a pergunta ainda mais complexa sobre a caracterização
da monarquia egípcia como despotismo oriental são indicadas 4 linhas. Se as linhas são
definidoras da quantidade de termos utilizados para explicar a complexidade de um assunto, seria
de se esperar que a Professora indicasse uma quantidade maior para assuntos mais complexos.
Mas não é isso o que ocorre com o tema da vinculação entre política e religião no Egito Antigo.
Chartier observa que, entre os aprendizados realizados pela criança ao usar esse
“’dispositivo’ de escrita” (CHARTIER, p.22), está a percepção de que há uma hierarquia entre as
diferentes disciplinas. Na análise dos cadernos que ela realiza, a matemática e o francês, por
exemplo, são matérias cujas anotações são constantemente observadas e corrigidas, denotando
uma preocupação por parte dos professores e da instituição com o seu aprendizado. Enquanto
outras disciplinas que não trabalham com caderno têm um caráter menos valorizado na
instituição. Isso leva às crianças a perceberem essa disposição e, embora elas gostem de
Educação Física, por exemplo, sabem que no currículo ela não tem a mesma importância que as
disciplinas citadas acima. No Brasil essa hierarquia também é claramente perceptível, inclusive
na carga horária das disciplinas. Matemática e Português são as que têm um número de aulas por
semana (4 ou 5 aulas) bem maior que outras como a História que tem, em geral, 2 ou 3 aulas
semanais.
No caso que analisamos, observamos que há uma hierarquia – passível de crítica – dentro
do próprio conteúdo de História, expresso no caderno pela demarcação do espaço das respostas, e
absorvido pelo aluno. E nesse caso, para os alunos de 5ª série, percebemos que a compreensão do
significado da resposta sobre o papiro está correta, pois foi realizada a contento de acordo com o
que consideraram mais importante como resposta.
Na análise dos conteúdos de História que estão presentes no caderno, aparecem algumas
atividades que indicam a possibilidade de se fazer um trabalho mais aprofundado com o
conteúdo. Existe na parte final do caderno 2 da 7a série (2.44), um trabalho bastante interessante
nesse sentido. É solicitada a escolha de três temas estudados na disciplina como os mais
importantes vistos no ano. O aluno deve definir esses temas e justificar historicamente por que os
escolheu. Justificar uma escolha de conteúdo explicando a sua importância histórica é uma
40. 40
habilidade bastante sofisticada de raciocínio, pois envolve capacidade de inferir as conseqüências
de determinado acontecimento pelo seu significado em determinado contexto histórico. E embora
em uma resposta haja repetições de fatos já citados na pergunta (o que chamamos coloquialmente
de “enrolação”), algumas informações são acrescentadas e formam o sentido daquilo que foi
solicitado (Anexo 2 – Trabalhos dos alunos - TRABALHO A).
No caso da resposta um, a repetição tem o sentido de enfatizar a importância da guerra
para o início do absolutismo na Inglaterra. Já na resposta dois, a aluna não consegue pensar a
questão na sua justificativa, inclusive colocando o fim do absolutismo e do feudalismo na mesma
situação histórica. E contrariando o esquema copiado no caderno que fala sobre o término das
relações feudais – termo indicado, nesse contexto, para as relações sócio-econômicas (e não do
feudalismo como um todo) – e o fortalecimento do capitalismo (1.25 - 2.28). Mas na questão três,
ela não apenas pensa no fato escolhido, como também define a sua importância em um sentido
mais amplo.
Em termos de seleção de conteúdo, embora o trabalho seja em cima do conhecimento
formal presente na maioria dos currículos, a atividade solicitada foge ao padrão de repetição de
informações da maioria das atividades desenvolvidas até então. E é interessante notar que isso
acontece em novembro, sugerindo que tenha sido uma atividade pensada como um resultado do
que foi trabalhado ao longo do ano. E a aluna não se saiu mal, demonstrando que algo acontece
além do caos que não poucas vezes associamos à escola pública brasileira.
Nesse mesmo sentido, podemos analisar os apontamentos feitos no final do caderno 1 da
7a série. É um resumo da matéria, realizado sem a menor preocupação com as normas aprendidas.
O que traz um caráter muito especial a essas folhas (1.41-1.42), que foram fotografadas com a
expressa autorização da sua proprietária, mas que, nesse momento, é quase como se a
expiássemos no seu processo de estudo através de uma porta entreaberta. O tema é a Revolução
Industrial inglesa. A diagramação da página é pessoal (com partes escritas a lápis, outras a caneta
e com divisões feitas à mão livre no meio da página), mas indicativa do raciocínio que ela
desenvolve ao longo do conteúdo trabalhado.
O conteúdo aparece na sua forma tradicional, mas uma coisa foi corrigida. O Tratado de
Methuen, que várias vezes foi escrito nas cópias do caderno como Tratado dos Panos (1.22 e
2.25, nas aulas do professor substituto em final de junho), ficou com uma denominação que
41. 41
esquece que também haviam os vinhos exportados por Portugal, o que gerava o déficit na balança
comercial portuguesa pelo baixo valor arrecadado com sua venda comparado à compra dos
tecidos manufaturados ingleses. Esse lapso se repete nos exercícios sobre as razões do
pioneirismo inglês na Revolução Industrial (1.26 e 2.29), em outro exercício posterior (1.28 e
2.32) e na revisão da matéria do caderno 2 (2.34). Mas embora o vinho tenha sido acrescentado
pela aluna no título do tratado (Tratado dos Panos e Vinhos), nessa revisão pessoal a análise da
sua importância não foi aprofundada.
Isso talvez se deva ao fato de que uma explicação mais detalhada sobre o tema está na
página 77 do livro didático, do capítulo 6, que trata sobre a mineração no Brasil. Mas a parte do
livro que foi trabalhada em aula é o capítulo 9, “A Revolução Industrial”. E nessa parte a
definição do tratado é exatamente a que a aluna copiou no caderno: “De acordo com esse tratado,
os ingleses forneciam tecidos a Portugal, que pagava com o ouro extraído de Minas Gerais. Todo
o lucro obtido com essas exportações foi investido na indústria.” (VAZ; PANAZZO, 2002, 7ª
série, p. 177). Nesse caso, a falta se deve mais a necessidade de uma explicação ou retomada do
assunto pelo professor. E podemos perceber aí um aligeiramento na maneira de abordar os
conteúdos, pois o tema é importante para a compreensão da dependência econômica de Portugal
em relação à Inglaterra. Da forma como ficou, nada nos garante que ela conseguiu entender o
significado dessa relação. Apenas podemos inferir, pela estrutura geral do resumo, que ela
compreendeu o texto que copiou – a maior parte do livro didático – até pela seleção das partes
importantes para a composição de um esquema explicativo da matéria.
Um outro exemplo que identifica a compreensão do texto por parte da aluna aparece no
mesmo resumo quando ela aborda o tema da origem da mão-de-obra inglesa e da definição de
proletariado e burguesia, assim como o das difíceis condições de trabalho e as conseqüentes
reações dos proletários a essa situação. Há uma boa síntese da matéria, levantando as principais
questões sobre o assunto. Do mesmo modo, o entendimento do sentido geral do conteúdo pode
ser inferido pelo acréscimo de informações que ela fez, colocando-as no contexto correto. Essas
informações podem ter sido obtidas nas explicações da Professora ou nos próprios textos
copiados no caderno. Contudo, nas duas situações, não temos como saber se essa compreensão
acontece pelo sentido do texto e da sua lógica intrínseca, ou se chega a atingir o conteúdo
histórico nas suas relações e complexidade.