O documento descreve a desistência de João Doria de concorrer à Presidência do Brasil em 2022. Ele fez um breve discurso para sua equipe de campanha, agradecendo o trabalho realizado, mas informando que circunstâncias políticas o obrigaram a deixar a corrida presidencial. Apesar de ter tido sucesso como empresário e governador de São Paulo, Doria conhece bem a derrota na política e seus aspectos cruéis e inesperados.
2. POLÍTICA E CORAGEM
Por Fernando Henrique Cardoso
A
essência da política é juntar pessoas. E a política no Brasil tem
precisado cada vez mais de lideranças que juntem pessoas em
torno das boas ideias, para tomar as decisões mais certas, mesmo
quando às vezes elas são as mais difíceis.
É a política grande, o contrário da política pequena, que é imediatista,
eleitoreira, populista e, por estar geralmente baseada em promessas
vazias, sempre acaba em nada, ou, melhor dizendo, num país pior.
Por isso, em nome de princípios e pela defesa do que é mais
certo, às vezes a política tem de ser feita com sacrifícios, lidar com
resistências, olhar para as necessidades, e não somente para o radar
eleitoral. Sobretudo em tempos difíceis, é preciso liderar: fazer o que
precisa ser feito, com realismo, custe o que custar. Essa é a base
que, ao final, dá credibilidade e autoridade ao governante e mostra
as grandes lideranças.
É assim, com credibilidade e autoridade, e não com autoritarismo,
que se chega à eficiência, à solução real dos problemas, e se governa
de verdade. Autoridade não é falar grosso, e liderança não é alimentar
seguidores com mentiras ou falsas promessas. É encontrar os meios
de resolver os problemas em sociedade, unir as pessoas em torno de
soluções concretas e executá-las.
O caminho para o progresso nem sempre é o mais fácil. Para fazer
a grande política, é preciso coragem. Coragem de insistir no certo,
mesmo quando há o risco de se pagar um preço por isso. Coragem
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Thales Guaracy JOÃO DORIA – O PODER DA TRANSFORMAÇÃO
para contrariar interesses, quando estes procuram difundir a mentira,
se protegem e se beneficiam do retrocesso.
João Doria foi provado em tempos difíceis, sobretudo no governo
de São Paulo, quando durante a pandemia do coronavírus tomou a
frente na política de vacinação do país. Ficou não apenas contra o
negacionismo do governo federal, como praticamente sozinho no
meio de boa parte dos políticos, que preferiram manter silêncio, para
não arcar com o ônus das decisões mais difíceis.
Como mostra este livro, Doria nunca morreu de amores pelas
restrições durante a pandemia, mas, diante da avaliação do que
precisava ser feito, e como vinha sendo feito no mundo inteiro, de
acordo com a ciência médica e o realismo responsável na política,
abertamente defendeu e deu início à vacinação contra a covid-19 no
Brasil. O governo federal teve que vir atrás e, graças a essa iniciativa,
muitas vidas foram salvas.
Nisso está a coragem. João não teve problema de assumir o ônus
político, porque sua prioridade era a sociedade: a grande política, que faz
a grande liderança. Hoje, passada a emergência da pandemia, há quem
discuta se ele devia ter confrontado tão diretamente o governo federal,
e se a sua maneira aberta de fazer política não teria sido responsável por
sua saída da corrida presidencial. Nesse caso, é de se perguntar qual
política queremos, e quais políticos. E especialmente se queremos
a política pequena ou a grande, que coloca o espírito público na frente.
Em defesa da grande política, essa que nem sempre faz a opção
mais fácil, está o fato de que ela é a única que dá resultado. Isso acaba
sendo reconhecido, no fim das contas, cedo ou tarde. O tempo mostra
a virtude de quem a tem, assim como os seus resultados.
João sempre foi um realizador, como mostrou tanto na iniciativa
privada como na gestão pública, mas é mais que isso. É alguém com
esse espírito do servidor público, demonstrado mais uma vez na
prefeitura e depois no governo de São Paulo. Exemplo para o Brasil
de que a democracia funciona. Ela pode servir para a escolha de
liderança com espírito público, competência, realismo e coragem, no
caminho de uma política construtiva, voltada para resultados reais.
Digo isso, mas a própria história de João, contada aqui, fala por si.
Sua vida está ligada à democracia e à construção não só de São Paulo
como de um Brasil melhor. Eu o conheci ainda muito jovem, quando
já era um profissional bem-sucedido na comunicação e trabalhava na
campanha de Franco Montoro para o governo do estado de São Paulo,
no início da década de 1980. Foi um período muito importante da
história do Brasil, que era ainda a luta pela retomada da normalização
da vida democrática e da restauração econômica.
Num país que vinha do autoritarismo e de um estatismo muito
grande, as ideias e as práticas liberais, o espírito criativo e sobretudo a
busca obstinada pela eficiência deram impulso a um jovem idealista e
trabalhador, que tinha o objetivo de mudar não apenas sua vida, como
a maneira com que se faziam as coisas no Brasil, tanto na política
quanto na economia, que andam juntas.
O João sabe muito bem o valor da liberdade, porque sabe também
o que é a ditadura. Seu pai foi deputado federal, cassado no golpe de
1964. Em consequência, João teve uma infância de dificuldades. Foi
forjado na necessidade pessoal de, desde criança, ajudar a sustentar a
família. Daí vem sua postura pessoal, diante da realidade mais dura,
e seu compromisso com a democracia e a liberdade, que, depois da
eleição de Montoro, seguiu com a campanha das Diretas Já.
Ele sabe na prática como é um regime autoritário e o efeito que a
arbitrariedade traz para um país e a vida de todos nós. Sabe, também,
que o progresso verdadeiro só é possível dentro de um regime de
liberdade. É a liberdade, dentro do regime democrático, que permite
detectar o erro, a corrupção, o desacerto, e, dentro de um ambiente
de competição, com mais eficiência, melhorar. Algo em que ele é um
homem provado, com um empenho, eu diria, obstinado, em busca da
eficiência na gestão pública e do progresso.
João fez uma carreira bem-sucedida como empresário, na
comunicação e nos eventos empresariais, mas seu perfil também o
levou desde muito cedo à gestão do poder público. Foi o mais jovem
secretário de Turismo do município de São Paulo, acumulando a
presidência da Paulistur, e depois também o mais jovem presidente
da Embratur. Já mostrava nessa época, nos anos 1980, capacidade
de levar adiante ideias inovadoras, com grande ênfase nas parcerias
público-privadas. Ganhou uma experiência que ajudou muito quando
se tornou prefeito de São Paulo e depois governador do estado.
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Depois de longo tempo na vida empresarial, João se elegeu prefeito
como uma novidade, trazido por uma grande onda popular em São
Paulo. Ressurgiu para a administração pública como um liberal, o
verdadeiro novo, apesar de conhecer a política há tanto tempo e tão de
perto, porque nos desacostumamos a ver o político como um gestor da
coisa pública, em busca de eficiência e de resultados para a população.
O caminho da eficiência e do progresso econômico é o mesmo da
democracia, porque a transparência e a liberdade são essenciais para
o combate à corrupção, a renovação e, assim, o aperfeiçoamento do
serviço público.
As dificuldades que João enfrentou, não somente na prefeitura,
mas sobretudo no governo de São Paulo, são as dificuldades de
quem não trocou o certo pelo mais fácil, pelo interesse pessoal, pelo
populismo, que é fazer tudo para ser popular, ganhar eleição, ficar
no poder, sem resolver nada. Com quem só age para a plateia, sem
pensar na gestão pública, o país sempre fica pior.
As coisas que João fez no governo de São Paulo, da vacinação
contra a covid-19 à limpeza do rio Pinheiros, apontam para a coisa
certa. Mesmo que não sejam compreendidas de saída, como a ideia
de colocar uma câmera em cada policial, criticada no início, mas que
reduziu o número de mortes violentas e só fez aumentar a segurança,
em todos os sentidos, inclusive para os próprios policiais.
Com seu perfil, João representa o avanço que pedimos hoje em dia
na vida política e empresarial brasileira. Em uma e outra, ele deixa sua
marca, dá sua contribuição ao país. Sua visão, treinada no campo da
iniciativa privada, cuja necessidade de eficiência ele transporta para
o serviço público, é hoje ainda mais essencial. Avançamos muito no
Brasil nos últimos 40 anos, mas o bom caminho é algo que tem de ser
sempre defendido. O Brasil ainda tem muito por fazer, se quisermos
prosperar e ganhar um lugar ainda mais importante no mundo.
No momento em que escrevo esta breve apresentação, passamos
por desafios importantes. A continuidade da construção do Brasil
depende somente de nós. Ainda mais comparado comigo, João é
ainda um jovem, para o empreendedorismo e a política. Tem um perfil
liberal e democrático e, ao mesmo tempo, uma genuína preocupação
social, com a consciência de que o progresso só ocorre quando é o
progresso de todos. Sua trajetória, apresentada aqui, mostra quais são
as capacidades necessárias para levar o Brasil adiante.
Acredito que os interesses, com as barreiras criadas diante do
melhor caminho, não são maiores do que aquilo que realmente
funciona. Um bom governo favorece a todos, inclusive aqueles que
procuram agarrar uma fatia maior que a dos outros. A política é
também a ciência da realidade. E a realidade se impõe, ao final,
e melhor para quem lida com ela sem medo. Em São Paulo e no Brasil,
precisamos disso mais do que nunca.
6. E
ram 11 horas da manhã do dia 30 de junho de 2022, e o escritório
de campanha do ex-governador de São Paulo João Doria estava
em silêncio. Dentro do sobrado da Avenida Brasil, em São Paulo,
não havia ninguém nas salas de reunião – paredes pintadas de
branco e cinza, com mesas e portas pretas, fotografias de São Paulo
em preto e branco dentro de molduras negras nas paredes. Sobre as
mesas, repousavam em profusão canetas e lápis pretos perfeitamente
apontados; em todas as dependências, sobre os aparadores, deitavam-se
exemplaresdeUmaterraprometida,livrodoex-presidentenorte-americano
Barack Obama, para João um modelo inspirador. E despontavam
orquídeas brancas, que decoravam todos os lugares onde ele se
instalava. A flor era por ali o único sinal de vida.
Encontrava-se vazia até mesmo a sala onde a equipe de marketing
digital monitorava, num longo painel na parede, atualizado em tempo
real tudo que se falava nas redes sociais sobre cada um dos candidatos
a presidente em 2022 – a “zona de guerra”.
Todos estavam concentrados num pequeno auditório: 50
colaboradores da campanha, sentados em cadeiras de plástico, além
de seis auxiliares – faxineiros e serventes –, uniformizados de preto,
aos fundos, encostados em pé contra a parede. Diante da plateia, ao
lado de uma TV onde flutuava em fundo azul o slogan de campanha
(“TMJoão”, ou “tamo junto, João”), João fazia um breve discurso.
Nada de pronunciamento à nação, gravação de vídeo para o
YouTube ou declaração à imprensa: era somente uma despedida.
Vestido de preto, com mocassins e jaqueta estilo Mao, abotoada até o
colarinho de padre, evitou estender-se sobre as razões de sua repentina
desistência da candidatura à Presidência. “Vocês não erraram”, disse.
“Circunstâncias da política me obrigaram a deixar o pleito. Porém, não
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crise dramática, com dimensões planetárias: deixou 15 milhões de mortos
pelomundo,atémaiode2022,segundodadosdaOrganizaçãoMundialde
Saúde (OMS)1
. No Brasil, foram 695 mil mortes, até janeiro de 2023.
Com tudo isso, saía do governo paulista como se a pandemia não
tivesse ocorrido, em todas as áreas, da economia à cultura. Nos três
anos, entre o início de 2019 e o final de 2021, mesmo atravessando a
depressão pandêmica, a economia de São Paulo cresceu acumulados
7,5%, cinco vezes mais que o Brasil como um todo, que cresceu 1,5%.
Como o estado respondia por 60% da economia brasileira, sem São
Paulo o Brasil teria caído 2,5% nesse período.
Foi como criar desenvolvimento em meio a uma guerra de
verdade – onde, para dificultar ainda mais as coisas, o general de um
sóbatalhãolutavacontraasdecisõesdomarechal,nocasoopresidente
da República, que desdenhava do inimigo.
Para quem foi acusado pública e sistematicamente por Bolsonaro
de ser o governador que paralisou a economia com o fechamento do
comércio, chegava a ser uma ironia. “Foi tudo ao contrário do que disse
o presidente”, afirma o ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do Banco
Central e secretário da Fazenda e Planejamento de João no governo de
São Paulo, Henrique Meirelles. “São Paulo cresceu e o Brasil caiu.”
Ainda assim, candidato oficial do PSDB, nem sequer disputaria
a Presidência. Embora tivesse construído uma carreira de sucesso na
iniciativa privada, e no poder público tivesse se acostumado a não perder,
conhecia profundamente a derrota na política, na sua face mais cruel.
Aos 64 anos, João sabia como a política historicamente flerta com
o absurdo, a arbitrariedade, o inesperado, contrariando a lógica e a
civilidade, podendo derrubar e até mesmo destruir a vida de alguém,
de um momento para outro. Sabia também, na pele, como era longo,
duro e penoso o caminho da volta.
Essa era, na verdade, a história de sua vida.
saí pela porta dos fundos. Saí com dignidade, respeitando a todos, sem
culpar quem quer que seja.”
Três meses depois de deixar o governo de São Paulo para se
candidatar à Presidência pelo PSDB, em 31 de março, João mantinha
a postura de autoridade pública, à qual se acostumara ao longo de três
anos e três meses de exercício do mandato. Foram tempos fervilhantes,
em que não apenas teve de enfrentar a pandemia da covid-19, como
se colocou em direta oposição ao presidente Jair Bolsonaro, em defesa
da adoção de medidas de restrição ao convívio social para conter o
alastramento da doença. Um desgaste que só aumentou com a batalha
em defesa da vacina, como solução definitiva para salvar vidas.
Achou que tudo que havia feito o habilitava a postular o gabinete
do Palácio do Planalto, mas de repente aquela porta se fechava. “Os
próximos anos serão difíceis, mas, se desistirmos, quem cuidará do
Brasil senão as más pessoas, que só olham seu interesse pessoal e
político?”, disse. “Isso não pode prevalecer.” Para encerrar, agradeceu
o apoio e a colaboração. “Não foi possível agora”, disse. “Quem sabe,
amanhã.” Recebeu os aplausos com as mãos cruzadas sobre o peito.
A desmobilização do seu pessoal era o último ato da campanha à
Presidência, antes de realmente começar. Tudo tinha sido preparado
para ir adiante, mas, uma vez decidido a parar por ali, João não
hesitava. Com a mesma prontidão com que montou e deixou o QG de
campanha pronto para pleno funcionamento, ele o desativava, como
num jogo no qual a morte súbita faz parte da regra.
*
João podia considerar aquela uma derrota política – a primeira
em uma intensa trajetória de seis anos, em que se elegera prefeito da
maior capital do país e governador do estado mais rico e populoso,
com mais de 46 milhões de habitantes. Nesse período, não apenas
enfrentou a pandemia da covid-19, que no Brasil chegou a matar 4
mil pessoas por dia em seu pico, em abril e maio de 2021, como o fez
diante da resistência pública do governo federal, contrário às medidas
de distanciamento social e depois à vacinação.
Acabou envolvido num confronto com o presidente da República, Jair
Bolsonaro,responsávelpelaposturadaUnião,comopesoadicionaldeuma