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ISSN >> I Encuentro de las Ciencias Humanas y
Tecnológicas para la Integración en el Conosur
Catalogação na fonte: Ceila Soares - CRB10/926

E56    Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la Integración
         en el Conosur (1. : 2011 : Pelotas-Brasil)

           Anales del I Encuentro internacional del conocimiento : diálogos en
      nuestra América / I Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas
      para la Integración en el Conosur, 5, 6, e 7 de mayo 2011, Pelotas,
      Brasil – Pelotas (RS) : Instituto Federal Sul-rio-grandense/IFSul, 2011. –
      v.1, 2011. - 1 CD-ROM.

          ISSN 2238-0078

          1. Conesul, integração do 2. Ciências humanas – Conesul
      3. Ciências tecnológicas – Conesul I. Título.


                                                    CDD: 300

                                                          600



             ESTRATÉGIAS PÓS-MODERNAS NA ARTE – UMA QUESTÃO DE
                                       FRONTEIRAS
                                                      Profª Drª Ana Lúcia Montano Boessio
                                                 Universidade Federal do Pampa – Jaguarão




Dados pessoais:

Endereço: Rua 15 de Novembro, 204, casa 4 – Jaguarão – RS – 96300-000
Fone: (51) 8114.1682
Email: aboessio@terra.com.br




Mini-currículo:

Professora adjunta do curso de Letras / Unipampa – Jaguarão; tradutora pública e intérprete
comercial de língua inglesa e italiana; artista plástica. Graduada em Letras – Tradutor
Italiano–Português pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; Mestre em
Literatura Italiana pela INDIANA UNIVERSITY, Bloomington-IN / USA, especialista em
Poéticas Visuais – gravura, fotografia, imagem digital, pela FEEVALE; Doutora em
Literatura Inglesa, na linha de pesquisa Literatura e outras Linguagens, pela UFRGS.




RESUMO:

O objetivo deste trabalho é traçar um panorama da nossa condição pós-moderna, buscando
compreender de que modo as fronteiras contemporâneas se configuram, ou desconfiguram, os
processos que as constituem, assim como o modo como se refletem na arte e especialmente na
literatura e na crítica, alterando também as suas fronteiras e entrecruzamentos.

Palavras-chaves: pós-modernidade, fronteiras culturais, linguagens artísticas.




          Quando se pensa em pós-modernidade, invariavelmente temos que considerar o
conceito de fronteiras, seja no âmbito político-econômico-geográfico, seja no âmbito
sociocultural. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é traçar um panorama da nossa condição
pós-moderna, buscando compreender de que modo as fronteiras contemporâneas se
configuram, ou desconfiguram, os processos que as constituem, assim como o modo como se
refletem na arte e especialmente na literatura e na crítica, alterando também as suas fronteiras
e entrecruzamentos.


          De fato, na chamada pós-modernidade, o processo modernista de estruturas em choque
levou a uma mudança profunda no que foi chamado pelos editores da revista de arquitetura
PRECIS 61 de “estrutura do sentimento”, uma mudança na sensibilidade, na prática e
desenvolvimento de um discurso distinto daquele do período anterior. Datas e terminologias
variam de um autor para outro (alguns o chamam pós-modernidade; outros, de segunda
modernidade; alguns dirão que inicia nos anos 1960; outros, nos anos 1970, ou até mesmo nos
1980), mas uma coisa é certa: desde então, as mudanças tem ocorrido e deverão ocorrer de um


1   PRECIS 6. Columbia University Graduate School of Architecture. The culture of fragments. New York, 1987.
modo bastante seminal e interconectado. Elas refletem o que Zygmunt Bauman (2007)2,
chama de passagem de uma modernidade “sólida” para a “líquida”, um período no qual as
organizações sociais não mais conseguem sustentar as estruturas e, portanto, não há uma
instituição capaz de definir as escolhas individuais ou assegurar a repetição dos padrões que
determinam o comportamento social. Como pudemos ver no final dos anos 70, algo havia
mudado radicalmente na nossa sociedade, tornando evidente que, de algum modo, o que quer
que tenhamos aprendido havia se tornado inútil, colocando aquela década no cenário onde
todos aqueles anos pós-guerra de esforços por desenvolvimento e reconstrução internacional
estavam entrando em colapso, extinguindo antigas fronteiras e abrindo novas. A “sabedoria
existencial”, como Bauman chama, parecia ter perdido o seu espaço no mundo, o qual
clamava por uma revisão profunda de todos os nossos valores e práticas sociais. E esse tem
sido o nosso tempo – um momento de estruturas em derretimento; um tempo marcado pela
diversidade. No entanto, esse processo de derretimento não promove unidade, ele apenas
continua a oferecer aos atores da arena social o espetáculo de estratégias de vida em
desaparecimento, estruturas que antes eram consideradas sólidas e permanentes.           E agora,
depois do boom da globalização, com a nossa visão ampliada a um nível planetário, onde
todas as conexões parecem possíveis, o que nos resta é o que Bauman define como
“globalização negativa” (2007, p.13): uma sociedade aberta em relação à soberania territorial
e ao respeito (ou falta de) a qualquer fronteira entre Estados. Mas, com uma peculiaridade:
essa abertura não inclui um comércio ou distribuição de capital equânime e livre, nem o
controle da violência e do terrorismo.


         Apesar do significado original de “abertura” dado por Karl Popper, que se referia a
uma sociedade que francamente admitia a sua incompletude, para Bauman “abertura” hoje
está associada a um destino irresistível, com os efeitos não planejados e imprevisíveis da
“globalização negativa” acima mencionada. Agora, sem ter restado nenhum limite para nos
proteger (seja físico, político ou social), enfrentamos esse sentimento aterrorizador de
vulnerabilidade e o que o autor define como “cultura do medo”, não apenas do que já existe,
mas também de qualquer coisa que imaginamos que exista. E em tal contexto tenebroso, o
progresso tornou-se um fantasma que escapa dos labirintos do nosso porão social e nos
assombra como longos e infindáveis pesadelos nos quais o tempo nos consome, o espaço


2
    BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Translated by Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
derrete, e somos jogados no nada. Medo é o que sobrou como a grande fonte de poder na
nossa sociedade pós-moderna, e juntamente com ele vem o individualismo e a solidão. E
como nos faltam as ferramentas apropriadas para reconstruir a nossa estrutura social, nesse
processo de autoconsumação, temos sido forçados a encarar outro tipo de resíduo – o excesso
humano, esse grupo crescente de pessoas “deslocadas” que não mais encontram um espaço
onde possam ser reconhecidas como indivíduos socialmente ou até mesmo profissionalmente
uteis. O fato é que, ao mesmo tempo em que discutimos e enfatizamos o respeito pela
diversidade cultural, o espaço onde essa diversidade pode existir tem-se tornado cada vez
menor. Como Clifford Geertz (2000)3 observou, as fronteiras sociais e culturais coincidem
cada vez menos, e a pós-modernidade terá que lidar com essa quantidade de “excesso
humano” – seja na figura do refugiado, seja na figura do indivíduo socialmente ou
culturalmente desavantajado, e que clamam por um espaço real onde possam de fato existir.
Esse excesso atingiu uma condição de impotência totalmente impensável, e que vai além de
aspectos filosóficos, atingindo os extremos não apenas da fome, mas também da ausência de
leis protetoras que garantam a sua existência material, especialmente no caso dos refugiados,
para quem o que parecia ser uma condição temporária tornou-se um estado de longo prazo, se
não permanente, de inexistência legal em “lugar nenhum” – o que Foucault chamaria de
“lugar sem lugar” (1986)4. Nas comunidades imaginárias do mundo contemporâneo, esses
indivíduos       tornaram-se      os    “inimagináveis”,       estratificando    a   sua    condição      de
“permanentemente transitórios”.


          Naomi Klein (2003)5 vai mais além: num artigo para o Guardian, ela menciona os
“continentes-fortalezas”, um grupo de nações que unem forças para auferir vantagens
comerciais sobre outros países e, ao mesmo tempo, proteger as suas fronteiras para evitar a
entrada daqueles sobre os quais elas tiram vantagens. Num certo ponto, Klein questiona
como seria possível manter-se aberto para negócios e fechado para as pessoas, e a própria
autora dá a resposta: primeiro, você expande o perímetro e, depois, você tranca a porta. De
certo modo, a pós-modernidade parece ter criado um “entre-espaço”, não apenas para os

3   GEERTZ, Clifford. The use of diversity. In: Available light: Anthropological reflections on philosophical
topics. Princeton University Press, 2000.

4   FOUCAULT, Michel. Of other spaces. In: Diacritics, 1. 1986.

5   KLEIN, Naomi. Fortress continents. In: Guardian, 16 January 2003, p. 23.
refugiados, como Klein apontou, mas para quem quer que se sinta inadequado ou indesejado
num universo social com um escopo tão claro e com um “pitch” tão forte de insegurança,
tornando a vulnerabilidade humana cada vez mais evidente. Na opinião de Bauman, surgiu
um novo medo – o medo da inadequação, uma doença quase universal, o medo de ser
socialmente excluído.      A onipresença do medo compele as pessoas a construir muros mais
altos e mais fortes, e nesse processo de construir proteção, chegamos ao ponto no qual a saída
de certa forma foi perdida e a referência de quem está trancado do lado de dentro e quem está
fora se apagou. Este é um exemplo concreto que demonstra que o espaço, em todas as suas
dimensões – metafóricas e físicas – está no âmago da condição pós-moderna e, portanto,
estudá-lo e tentar compreendê-lo tornou-se crucial para a compreensão da nossa própria
condição de sujeitos sociais.


       No dizer de Domenico De Masi, sociologista da Universidade “La Sapienza”, de
Roma – Itália, em entrevista à revista brasileira Época, em 13 de Setembro de 2007, o
denominador comum que caracteriza a sociedade contemporânea é “desorientação”, causada
pela rapidez e multiplicidade das mudanças, e o problema de nos sentirmos desorientados é
que caímos num sentimento profundo de crise, e aqueles que se sentem em crise param de
planejar o futuro; e se paramos de fazer isso, alguém o fará por nós, e não será por bondade
altruística, mas para o seu próprio bem. Citando Heráclito, que dizia que “é através das
mudanças que as coisas se acomodam”, o autor questiona se poderíamos dizer o mesmo hoje,
já que todas as mudanças ocorridas no séc. XX aconteceram num ritmo muito mais lento.
Hoje, depois de poucas décadas, fomos de uma economia industrial, baseada no automóvel e
equipamentos para a casa, para uma economia pós-moderna baseada em serviços, informação,
símbolos, valores e estética. Essa transformação foi rápida e global, como se de repente uma
imensa avalanche, uma enorme massa de água, a erupção de um vulcão e um terremoto
tivessem atingido de uma só vez uma região calma, aterrorizando seus habitantes. O ponto de
vista de De Masi nos leva a entender como chegamos ao ponto da “não-familiaridade”, das
“entre-comunidades” mencionadas por autores como David Harvey e Zygmunt Bauman, e
que tem efeitos também no campo artístico em geral, que acaba tornando-se o palco onde
essas rupturas ganham forma, cor e voz – uma grande colagem de imagens, crenças e valores
estéticos e ideológicos.
Nesse processo de deslocamentos constantes, está inserido também o deslocamento do
Sujeito moderno, como afirma Stuart Hall (2006)6, provocado por uma serie de eventos, tais
como a descoberta do Inconsciente por Freud, que destruiu o conceito de cognoscenti e do
Sujeito racional dotado de uma identidade fixa e unificada; a Linguística Estrutural, que
afirma que não somos os autores da nossa própria língua, mas que, ao contrário, a linguagem
é um sistema social e não individual; os trabalhos de Michel Foucault sobre a genealogia do
Sujeito moderno, no qual ele enfatiza outro tipo de poder – o poder disciplinar – focado,
primeiramente, na regulação, no governo da espécie humana, e em segundo lugar no
indivíduo, para produzir um homem que possa ser tratado como um corpus obediente.
(DREYFUS and RABINOW apud BAUMAN, 2001)7.


          Em suma, esses movimentos, entre outros, podem ser vistos como elementos-chave
que transformaram o Sujeito da era Iluminista, com uma identidade fixa e estável, em um
Sujeito pós-moderno, deslocado, aberto, contraditório, incompleto e fragmentado. E para
aliviar essa condição, apesar da mobilidade global ter tornado impossível considerar uma
nação como uma identidade cultural unificada, culturas nacionais com ênfase na tradição e na
continuidade vem ao encontro para apoiar essa ideia, mesmo que elas existam, como Homi
Bhabha (1990)8 diria, apenas na imaginação do indivíduo, pois, independentemente do quão
diferentes os membros da nação sejam, ou quão violentamente forçado esse processo seja,
essas representações podem dar a eles o sentimento de estarem unificados em uma identidade
cultural. Eis por que, para muitos, a globalização é o pior fantasma criado pela pós-
modernidade: ao mesmo tempo em que pasteuriza o modus vivendi e cria uma aura social de
igualdade, ela também torna mais evidente as diferenças e as lutas dentro do corpus social
para preservar identidades étnicas – ao mesmo tempo em que há o desejo de assimilação
universal, há também a vontade de manter o privado, o local. Como afirma Hall, o discurso
da cultural nacional constroi identidades ambiguamente colocadas entre o passado e o futuro,
e a globalização é o elemento principal causando o deslocamento das identidades culturais
nacionais, à medida que conecta comunidades e organizações através de novas combinações
fragmentadas de tempo-espaço, comprimindo distâncias, escalas temporais e identidades.

6   HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Translated by Tomaz T. da Silva and Guacira L.
Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
7
    BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
8
    BHABHA, Homi. (org.) Narrating the nation. London: Routledge, 1990.
Como resultado, os conflitos entre nacional e local causados pela globalização estão
originando outro tipo de identidade nacional – o tipo híbrido – com ênfase na impermanência,
diferença e pluralidade cultural.


       Desse modo, a Tradição, a principal fonte do nosso conforto cultural, tem sido
desafiada pela necessidade de constantemente reinterpretar a si mesma, contrastando ao
mesmo tempo com outro conceito centrado não na permanência e continuidade, mas na
impermanência e diferença – o conceito de “Tradução”, apresentado por Bhabha (1990). Esse
conceito descreve aquelas identidades formadas através de intersecções espaciais, históricas e
culturais, e compostas por pessoas que estavam dispersas da sua terra natal e forçadas a
negociar com novas culturas sem serem totalmente absorvidas ou terem perdido totalmente as
suas velhas identidades. Unificação cultural nesse novo mundo perdeu o seu significado, pois
esses indivíduos serão irrevogavelmente o produto da diversidade, para sempre habitando
pelo menos duas culturas, tendo duas identidades nunca unificadas, sendo para sempre o que
Salman Rushdie (1991)9 chamou de “homens traduzidos”, filhos de um tempo e espaço
comprimidos, existindo em um “entre-tempo”, entre o passado e o futuro que, entretanto, não
é o presente – uma espécie de “entre-identidade” pós-moderna. Na realidade, esses Sujeitos
são como entre-personagens de uma peça de Samuel Beckett, vivendo em entre-tempos e
espaços, presos uns aos outros pelo tênue fio de palavras que não revelam, que não
significam. Uma condição que torna evidente a diferença crescente entre espaço e lugar, uma
vez que reforça as relações entre “outros” ausentes, distantes de qualquer tipo de interação
face a face, diferentemente das sociedades pré-modernas, nas quais espaço e lugar eram
amplamente coincidentes. Agora, nos deparamos com o que Harvey chama de “destruição do
espaço através do tempo” (HARVEY, 1989, p. 205), o que salienta essa diferença entre
espaço e lugar: ao mesmo tempo em que lugares nos dão raízes, tendo em vista que
permanecem fixos, o espaço pode ser rapidamente cruzado, pois a estrutura social é atomizada
por redes de linguagem flexíveis que permitem ao indivíduo acessar diferentes grupos de
códigos, de acordo com o papel social que está representando no momento (político, religioso,
cultural, etc.). Sendo assim, se há muitos jogos diferentes sendo jogados ao mesmo tempo,
segundo Jean F. Lyotard (1984)10, a consequência que podemos esperar é o nascimento de

9
  RUSHDIE, Salman. Imaginary homelands. Essays and criticism 1981-1991. London: GRANTA Books,
1991.
10 LYOTARD, J. The postmodern condition. Minneapolis: University of Minnesota, 1984.
instituições quebradas, o que o autor chama de “determinismos locais”, entendidos como
comunidades interpretativas formadas por “produtores-consumidores” de conhecimentos
específicos, que atuam em contextos culturais igualmente específicos (acadêmicos, religiosos,
políticos, comunitários, etc.)


        A importância dessa variedade de redes de linguagem atuando ao mesmo tempo está
no fato que tornam evidente um dos aspectos mais fortes do pós-modernismo: a alteridade, a
idéia de que cada grupo é capaz e tem o direito de falar por si mesmo e ser respeitado e aceito
como uma voz legítima. A pós-modernidade nos tornou conscientes da pluralidade de
mundos, e esse efeito pode ser sentido não somente do ponto de vista sociológico, mas em
todas as formas de expressão – no mundo tecnológico, tanto quanto nos universos acadêmico
e artístico, e em especial na ficção literária. Na realidade, isso é o que Foucault chama de
“heterotopia”, a coexistência de um vasto número de mundos fragmentados possíveis num
“espaço impossível”; lugares que tem a curiosa propriedade de estar em relação com todos os
outros lugares, mas de tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de
relações que são designadas, espelhadas ou refletidas por eles. E, entre utopias e heterotopias,
Foucault acreditava que havia um tipo de experiência mista, conjunta, que seria o espelho – ao
mesmo tempo uma utopia e uma heterotopia, pois o espelho é um lugar sem lugar; no espelho
eu vejo a mim mesma lá onde não estou, num espaço irreal, virtual que rompe atrás da
superfície, uma espécie de sombra que me permite ver a mim mesma onde estou ausente. O
espelho, quando reflete a nossa imagem, torna o espaço refletido completamente real,
conectado com todo o espaço que o circunda, e totalmente irreal, uma vez que para ser
percebido ele tem que passar por esse ponto virtual que está lá, do outro lado. Esses
imensuráveis espaços superpostos criam para o personagem pós-moderno diferentes novos
enigmas a serem decifrados: “Que mundo é este?” “O que devo fazer aqui?” “Que persona
devo usar?” Essas são algumas das questões colocadas por Harvey para entender os novos
dilemas enfrentados pelo personagem pós-moderno – processos de espelhamento que nos
forçam a olhar para trás, para os conflitos e contradições vividas no modernismo,
especialmente se considerarmos a definição de modernidade dada por Baudelaire: in The
painter of modern life, publicado em 186311, ele a define como “o transiente, o fugaz, o
contingente; é metade arte e a outra metade é o eterno e o imóvel”. E esse conflito entre
efêmero e eterno parece permear o que Marshall Berman chama de uma modalidade de

11
  BAUDELAIRE, Charles. The painter of modern life. http://www.idehist.uu.se/distans/ilmh/pm/baudelaire-
painter.htm. 20/09/2010.
experiência vital, um experiência de espaço e tempo para o indivíduo e para os outros, uma
experiência de possibilidades e perigos de vida, como se houvesse um constante conflito entre
um mundo de aventuras, poder, alegria e sucesso, e a ameaça de uma destruição total,
provocada pelo derretimento dos limites geográficos, culturais, ideológicos e religiosos, o que
não traz mais do que uma unidade paradoxal – uma unidade na “desunidade”. Na opinião de
Berman, a modernidade nos joga num redemoinho de desintegração e renovação perpétuas, de
luta e contradição, de ambiguidade e ansiedade, o que nos leva a crer que para muitos
escritores modernos a única coisa da qual eles poderiam ter certeza na modernidade era a sua
insegurança e até mesmo a sua tendência ao “caos totalizante” (BERMAN apud HARVEY,
2004, p.21). Desse modo, o chamado pós-modernismo emergiu de um espectro antimoderno
para firmar-se como uma estética cultural; uma estética de uma nova ordem de espaço e,
consequentemente, de uma nova ordem de tempo.


          De acordo com Terry Eagleton (1997)12, a relação pós-moderna com a tradição
cultural configura-se como um pastiche, intencionalmente carecendo de profundidade,
fazendo uso de uma estética brutal de sordidez e choque. Mais uma vez, como no teatro, a
máscara ganha o papel principal, pois ela incorpora o aspecto fugaz da pós-modernidade, um
tempo e um espaço que valorizam heterogeneidade e diferença como forças liberadoras na
redefinição do discurso cultural – fragmentação, indeterminação e intensa desconfiança em
relação aos discursos universais tornaram-se a marca registrada do pensamento pós-moderno.
Novas abordagens para velhos e novos conceitos surgem em todas as áreas, sejam humanas
ou científicas, principalmente a ênfase dada por Foucault na descontinuidade e diferença na
historia, reforçando a idéia de fim das “metanarrativas” como ferramenta legitimadora da
ilusão de uma historia humana “universal”. A modernidade não envolve apenas uma ruptura
implacável com toda condição histórica previa, mas é também caracterizada por um processo
sem fim de rupturas e fragmentações internas, e apesar de ter estado sempre focada na
descoberta do “caráter essencial do acidental”, como Paul Klee costumava dizer, ela agora
precisava fazê-lo num campo de sentidos em constante mudanças. O séc. XX, com os seus
campos de exterminação, o seu militarismo, as duas grandes guerras mundiais e a
possibilidade devastadora de uma destruição total, põe abaixo o otimismo e leva o projeto
iluminista à autodestruição. E nesse projeto modernista, que abraçou o progresso e a roda da
mudança, tendo o transiente, o fugidio e o fragmentário como condição necessária para a sua


12
     EAGLETON, Terry. Teoria da literatura – uma introdução. São Paulo: UNESP, 1997.
realização, foi dado um papel especial à definição da essência da humanidade aos artistas,
escritores, arquitetos, compositores, poetas e filósofos. O artista, de acordo com Frank Lloyd
Wright, um dos maiores arquitetos modernistas, deve não apenas entender o espírito do seu
tempo, mas também iniciar o seu processo de mudança. Consequentemente, a definição de
uma estética modernista dependia crucialmente do tratamento dado pelo artista a esses
processos de mudança, fragmentação e efemeridade; independente da posição que eles
tomassem, eles iriam interferir no modo como os produtores culturais consideravam o fluxo e
a mudança. O pintor, o arquiteto, o escritor, artistas em geral, deveriam encontrar modos de
representar essa condição eterna e imutável, e eles o encontraram através da estratégia de
chocar e violar a continuidade esperada. James Joyce e Marcel Proust, Stéphane Mallarmé e
Louis Aragon, Édouard Manet, Camille Pissarro e Jackson Pollock são exemplos dessa
estratégia em ação. Samuel Beckett, especificamente in Dante… Bruno, Vico… Joyce
(COHN, 1984)13, ao analisar o papel revolucionário da escrita de Joyce, numa dimensão
literária e política, defende as suas escolhas linguísticas autônomas, estabelecendo uma
relação com Dante, que preferiu vários dialetos italianos ao latim e sem priorizar ou
privilegiar o seu próprio – o toscano – como um discurso em defesa da autonomia literária e
contra a sujeição ao nacionalismo literário.                    E muito mais tarde, Samuel Beckett,
comparando-se com Joyce, em relação ao seu processo criativo e a quão inovador e
revolucionário o seu papel era, afirma:




                           A diferença em relação a Joyce é que Joyce era um magnífico manipulador de
                           matéria, talvez o maior. Fazia com que as palavras rendessem o máximo; não há
                           sequer uma sílaba a mais. O gênero de trabalho que faço é um trabalho no qual não
                           sou o senhor de minha matéria [...] Joyce tende para a onisciência e a onipotência
                           enquanto artista. Eu trabalho com impotência, com ignorância.
                           [...] não creio que a impotência tenha sido explorada no passado. Parece que há uma
                           espécie de axioma estético que diz que a expressão é uma realização (êxito), deve
                           ser um êxito. Para mim, o que me esforço por explorar é toda essa gama do ser que
                           foi sempre negligenciada pelos artistas como alguma coisa de inutilizável ou por
                           definição incompatível com a arte.




13
     COHN, Ruby (Ed.). Recent Irish Poetry. In: Disjecta – Samuel Beckett. Miscellaneous Writings and a
Dramatic Fragment. New York: Grove Press, 1984.
Creio que hoje qualquer pessoa que preste a mais leve atenção à sua própria
                             experiência se dá conta de que é a experiência de alguém que não sabe, de alguém
                             que não pode. (BECKETT apud MALÉSÈ apud BERRETTINI, 2004, p. xx) 14.




          Como foi dito antes, a pós-modernidade tornou-se a era da colagem, de experiências,
tempos e linguagens superpostos, textos se entrecruzando com outros e produzindo mais
textos, um fato que enfatiza o problema da comunicação que estamos enfrentando: cada
intersecção de textos necessariamente irá gerar um novo grupo de significados possíveis,
independentemente do que o autor pretendia dar. De fato, o conceito de colagem está na raiz
do desconstrutivismo de Derrida, e é apresentado como a base do discurso pós-moderno. É
importante considerar, porém, que a condição pós-moderna tem as suas raízes muito
anteriores à revolução cultural dos anos 1960. Na verdade, ela tem acompanhado em paralelo
todo o processo de capitalismo e a sua relação com o Mercado, a sua busca constante de
novos meios de produção e troca, seguindo não apenas as tendências econômicas, mas
também as sociais e culturais, incluindo todo tipo de expressão artística, o que culminou com
o desenvolvimento do mercado de arte nos anos 1960. A transformação da experiência de
espaço e lugar que resulta desses vários movimentos é seguida por outras revoluções na
dimensão do tempo, tendo em vista que os capitalistas visam reduzir o tempo de circulação do
seu capital a um piscar de olhos. Assim, o próprio capitalismo torna-se uma força
permanentemente revolucionária e desintegradora e, portanto, uma fonte permanente de
insegurança. Autores como B. Ollman (1971)15, B. Taylor (1987)16 e Walter Benjamin17,
analisando o capitalismo, tentam capturar o modo como política, economia e cultura se
relacionam num sistema multifacetado e fragmentado, no qual alguns dos termos usados por
Marx, como “valor”, “trabalho” e “capital” constantemente se separam e reintegram em novas
combinações, como uma oposição às práticas totalizadoras do capitalismo. Portanto, não é
possível esperar uma representação unificada do mundo, pois, segundo Harvey, essa seria
repressiva e delirante.




14   BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004.

15   OLLMAN, B. Alienation. Massachussets: Cambridge, 1971.
16
     TAYLOR, B. Modernism, post-modernism: a critical perspective for art. Southampton: Winchester, 1987.
17   BENJAMIN, Walter. Illuminations. New York: Schoken Books, 1969.
Em relação a essa impossibilidade, Frederick Jameson (1984)18, estabelece uma
relação entre o conceito de esquizofrenia apresentado por Lacan, não em termos clínicos, mas
como uma desordem lingüística, com a impossibilidade sociológica e cultural de unificar
passado, presente e futuro da nossa própria experiência biográfica ou psicológica. Neste caso,
ela representaria um processo desintegrador composto por diferentes elementos significativos
que não se relacionam entre si numa linha de tempo, como aconteceria numa mente normal, e
assim são incapazes de unificar passado, presente e futuro. Consequentemente, o efeito seria o
colapso dos horizontes temporais e a redução da nossa experiência a uma série de tempos
presentes não-relacionados. Jameson acredita que essa intensa experiência fragmentada,
focada exclusivamente no tempo presente, por ser devastadoramente vívida e material,
desloca o Sujeito e ativa a alienação do Self na estética pós-moderna (JAMESON, 1984). A
produção cultural contemporânea, enraizada na experiência da vida quotidiana, acabou
juntando-se ao frenético processo capitalista e, especialmente depois dos anos 1960, foi
forçada a produzir não apenas bens de consumo, mas também desejos, a necessidade por
mais, por algo diferente. Esse processo pode ser facilmente identificado na estética
pósmoderna, centrada em objetos de arte temporários, incompletos, tais como as
performances e happenings, além da já mencionada colagem, onde toda espécie de confisco,
citação, acumulação e repetição de imagens já existentes é permitida, como podemos ver, por
exemplo, na obra de Robert Rauschenberg, considerado um dos pioneiros do pós-
modernismo. Tais práticas, baseadas na instantaneidade e explorando os recursos dos media,
aproximam cultura popular e produção cultural, reforçando os aspectos transitórios da vida
contemporânea, ao mesmo tempo em que levantam outra questão importante no movimento
pós-moderno, que é o modo como essas duas expressões culturais se relacionam. As imagens
instantâneas trazidas pela televisão e todos os outros media tem uma consequência direta no
conceito e compreensão do espaço contemporâneo que, inclusive na arquitetura, desconsidera
a profundidade. O que vemos atualmente é uma intervenção estética até mesmo na política e
na economia, e não apenas na vida cultural e social – como Harvey aponta, uma conjugação
entre mimesis e intervenção estética, uma ênfase na efemeridade da juissance, uma insistência
na impenetrabilidade do “outro”, uma tendência à desconstrução beirando o niilismo; ou seja,
uma preferência pela estética ao invés da ética. O pós-modernismo clama pela necessidade de
aceitar e render-se às fragmentações e cacofonias de vozes através das quais os dilemas

18   JAMESON, Frederick. Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism. New Left Review, n° 146,
pp. 53-92, 1984.
contemporâneos são compreendidos, à celebração da máscara, simulação e todo tipo de
fetichismo. Assim, ao mesmo tempo em que ele cria espaço para uma variedade de vozes,
também evita que estas tenham acesso à fonte, criando um gueto opaco de alteridade e
destituindo essas vozes de poder. Desse modo, no ponto de vista de Harvey, a superposição de
mundos diferentes em tantas novelas pós-modernas, nas quais prevalece uma alteridade que
não se comunica num espaço de coexistência, pode ser lida como um corte transversal
metafórico da paisagem social num processo de fragmentação, de subculturas e modos locais
de comunicação, pois elas tem uma relação com a perda de poder das minorias nos grandes
centros, o que vai inevitavelmente levar a questões de identidade.


          Nessa moldura social, falar e escrever sobre solidão torna-se uma demanda cultural,
um tema recorrente; e as palavras, esvaziadas na sua função de significar, repetitivas, como
podemos ver, por exemplo, em Esperando Godot, de Samuel Beckett, revelam-se como um
esforço que torna ainda mais evidente a impossibilidade de superar a solidão; um refúgio
contra o nada – lá, o trágico e o ridículo unem-se em modos agressivos, cínicos, e até
amargos, para pintar o absurdo da condição humana, atacando os valores humanos primários,
tais como religião e amor, brincando com clichés e lugares-comuns – uma espécie de grande
farsa metafísica.


          Nesse cenário de contraposições e entrecruzamentos, ao analisar o papel da crítica
desde a Antiguidade até os nossos dias, André Richard, in A Crítica de Arte (1989)19, aponta a
crise na crítica como parte da crise da nossa civilização. De acordo com o autor, ao contrário
de outros tempos, quando os críticos inescrupulosamente faziam uso do julgamento canônico,
atualmente, os historiadores da arte e literatura experimentam a necessidade de confessar as
suas intenções, de especificar a natureza e o valor dos seus critérios. No campo da crítica
literária, é somente no final do séc. XX que podemos identificar a reconfiguração do conceito
de intertextualidade, que adquire um efeito de ressonância, atingindo o interdiscursivo e
identificando elementos de outros campos. É também o momento de uma compreensão mais
profunda do espaço ilimitado, transgressor da própria linguagem, já que, como afirma Bella
Jozef (2006)20, literatura é uma questão de linguagem; e linguagem é o sujeito, que é a “base”


19   RICHARD, André. A crítica de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.


20   JOZEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 2006.
da obra, isto é, uma ausência: qualquer metáfora é um signo sem base; o crítico pode seguir as
metáforas na obra, mas não reduzi-las. Hoje, a sua função não é mais apenas organizar
didaticamente a informação para outro leitor, mas materializar transparências, agregar formas,
memórias, saberes aparentemente invisíveis. É claro que, para fazer isso, uma nova ordem
terá que surgir em novos espaços, ou melhor, espaços trans-historizados. É esse movimento
que leva à substituição da noção de “fato comparativo” pela de “estratégia”, a qual relaciona
textos aparentemente não-comparáveis; ou seja, a comparação se dá pela diferença. Agora,
apesar da literatura comparada não ignorar o trabalho do autor, o foco está na passagem,
transgressão, superação de limites, na eliminação das margens – ser capaz de agregar, eis a
estratégia da forma.        As fronteiras tornaram-se casas mal-assombradas, labirintos, sótãos –
nas palavras de Gaston Bachelard (2003)21, “espaços de devaneio”. Entendendo o crítico
como co-escritor, encontrar esses espaços, as vozes e monstros que os habitam, construir
pontes onde não havia comunicação, criar espaços de transparências através das quais o
espectador possa encontrar memórias e o conhecimento, ou parte dele, que sustentou a
construção da obra tornou-se o grande desafio.


           Igualmente, em relação à criação artística, Edith Derdyk (SOUSA et al., 2001)22
afirma que pensar sobre a criação é um ponto de partida e também de chegada, pois, muito
mais que pensar e escrever sobre criação, esse ato provoca uma demanda de tempo para
reconstituir os pensamentos e sensações que o ato criativo gera por si só. O ato criativo é um
campo de força convergindo para a construção de uma forma inaugural, uma vez que causa o
derretimento da experiência singular e de conjunções culturais, ativando repertórios
pertinentes ao visível, à memória e ao imaginário. O ato de criação, diz Derdyk, cria um
“corte” no tempo e no espaço, ressignificando experiências, trazendo à tona um sentimento de
eterno continuum no aqui e agora, como se a ambição poética do ato criativo residisse na
imersão da nossa subjetividade na matéria desejosa de ser linguagem. Aqui, como no processo
de criação, o crítico-espectador está diante do espaço aberto da imaginação, que será
preenchido, transformado, completado com o seu próprio repertório. O espaço da obra-de-
arte, da imagem pós-moderna não se desdobra mais em correlação com a forma e a matéria;
ele existe somente porque há um algo a mais, que é a dimensão que contem o tempo – o

21
     BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
22
     DERDYK, Edith. Linha de horizonte por uma poética do ato criador. São Paulo: Escuta,
       2001.
tempo dentro da imagem imóvel, estagnada, como diz Bardonnèche. Esse tempo, no entanto,
transforma-se em outra coisa: o espaço da preguiça, que é o espaço do jogo, do desejo, o
espaço de deus; como no espaço vazio do jogo, o seu tempo é “um tempo em parêntesis” – é o
universo lúdico que nos faz esquecer o tempo e onde a atividade é permitida numa espécie de
apropriação de um tempo abandonado (BARDONNÈCHE apud DOMINGUES, 1997)23.


          O espaço contemporâneo é o cenário para uma arte que constantemente é solicitada a
romper com a tradição, inovando permanentemente, e é esse apelo por um gênio eterno que
causa uma dessincronização e ruptura cada vez mais evidente entre arte, as suas vanguardas e
o público. E para minimizar esse efeito, a segunda metade do séc. XX presenciou uma
abordagem na arte que visava ao estabelecimento de uma relação mais imediata entre arte e
seu público, através da sua participação no próprio processo de feitura da obra e,
consequentemente, dividindo com ele o tempo da criação. A forma mais simples disso se dar
é através da “instalação” que, de acordo com Edmond Couchot (COUCHOT apud
DOMINGUES, 1997) permite que o artista instale o espectador no centro da obra,
convidando-o a adotar uma atitude diferente em relação a ela. Este processo foi usado também
na Land Art, onde o corpo inteiro do observador está inscrito na arte; mais drasticamente,
temos a arte cinética, que aproxima ainda mais o espectador através de retroações: a obra é
sensível a diferentes solicitações, manipulações, operações, acionadas pelo deslocamento do
observador, seu contato, o som da sua voz, o calor do seu corpo, seu batimento cardíaco, etc.
Ou seja, estamos diante de uma estética da participação, onde o essencial deixou de ser o
objeto de arte e, sim, a confrontação do espectador com uma situação perceptiva (POPPER
apud DOMINGUES, 1997, p. 137). Nessa forma de arte, a existência e significação da obra
dependem da intervenção do espectador.


          Atualmente, o espectador foi convidado a dar um passo adiante em direção à arte
interativa, através de dispositivos abertos (online) ou fechados (offline). Um exemplo desta
última é o trabalho de Jeffrey Shaw, que nos convida a visitar uma cidade, criada com letras
que compõem um texto, ao pedalarmos uma bicicleta real – ele nos faz ver com os nossos pés
e as nossas pernas tanto quanto com os nossos olhos. Um dispositivo artístico aberto, por
outro lado, é uma rede interconectada: muitas pessoas podem entrar juntas no jogo da
interatividade, e o espectador participa através de gestos, textos, imagens, às vezes sons, os

23
     DOMINGUES, Diana (org.). A arte no séc. XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997.
quais são inscritos na memória da obra cuja identidade muda constantemente e evolui ao
redor de um núcleo preconcebido pelo autor, que assegura a sua continuidade e coerência. Os
primeiros experimentos aconteceram nos anos 1980 e desde então esses trabalhos tem
apresentado uma forte vocação transcultural; mas, em paralelo, há também aqueles trabalhos
que visam a uma espécie de reterritorialização monocultural, ou seja, ações que exigem, por
exemplo, o uso de uma língua ou cultura específica. Para esse tipo de trabalho, o material
usado pelo artista não é físico ou energético, mas simbólico: são materiais abstratos, altamente
formalizados, constituídos por programas de computador. A obra não é exclusivamente fruto
da autoridade do artista; ela se produz através de um diálogo quase instantâneo (em tempo
real) com o espectador, que não está mais limitado a simplesmente olhar; ele tem a
possibilidade de atuar sobre o trabalho e modificá-lo, tornando-se, assim, seu coautor.


       Portanto, olhando para todo esse cenário, o que vemos mais fortemente é, de fato, uma
quebra, um deslocamento, muitas vezes um derretimento total das fronteiras entre os vários
campos de expressão de um sujeito que leva para as suas construções, tanto materiais quanto
simbólicas, a sua condição temporária, fragmentada, incompleta, aberta; um sujeito que está
aprendendo a viver e a se constituir num tempo esquizofrênico, num espaço descontínuo, em
meio a experiências líquidas, e que tem na colagem (de materiais, filosofias, espaços e até
mesmo técnicas artísticas) a sua perfeita representação. Um sujeito que busca, nas grandes
manifestações coletivas, dissolver as fronteiras da incomunicabilidade e do medo, como se
elas fossem uma espécie de grande shopping center onde ele se dissolve e mistura,
construindo para si uma idéia, ou uma colagem, de pertencimento e permanência num tempo
e num espaço em constante deslocamento.



ABSTRACT:

The aim of this paper is to draw an overview of our postmodern condition, in order to
understand the way the contemporary frontiers are configured, or disconfigured, the processes
that constitute them, and how they reflect on art, especially on literature and criticism, altering
their borders and intersections.

Keywords: postmodernity, cultural borders, artistic languages.

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Encuentro de las Ciencias Humanas

  • 1. ISSN >> I Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la Integración en el Conosur Catalogação na fonte: Ceila Soares - CRB10/926 E56 Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la Integración en el Conosur (1. : 2011 : Pelotas-Brasil) Anales del I Encuentro internacional del conocimiento : diálogos en nuestra América / I Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la Integración en el Conosur, 5, 6, e 7 de mayo 2011, Pelotas, Brasil – Pelotas (RS) : Instituto Federal Sul-rio-grandense/IFSul, 2011. – v.1, 2011. - 1 CD-ROM. ISSN 2238-0078 1. Conesul, integração do 2. Ciências humanas – Conesul 3. Ciências tecnológicas – Conesul I. Título. CDD: 300 600 ESTRATÉGIAS PÓS-MODERNAS NA ARTE – UMA QUESTÃO DE FRONTEIRAS Profª Drª Ana Lúcia Montano Boessio Universidade Federal do Pampa – Jaguarão Dados pessoais: Endereço: Rua 15 de Novembro, 204, casa 4 – Jaguarão – RS – 96300-000 Fone: (51) 8114.1682 Email: aboessio@terra.com.br Mini-currículo: Professora adjunta do curso de Letras / Unipampa – Jaguarão; tradutora pública e intérprete comercial de língua inglesa e italiana; artista plástica. Graduada em Letras – Tradutor Italiano–Português pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; Mestre em Literatura Italiana pela INDIANA UNIVERSITY, Bloomington-IN / USA, especialista em
  • 2. Poéticas Visuais – gravura, fotografia, imagem digital, pela FEEVALE; Doutora em Literatura Inglesa, na linha de pesquisa Literatura e outras Linguagens, pela UFRGS. RESUMO: O objetivo deste trabalho é traçar um panorama da nossa condição pós-moderna, buscando compreender de que modo as fronteiras contemporâneas se configuram, ou desconfiguram, os processos que as constituem, assim como o modo como se refletem na arte e especialmente na literatura e na crítica, alterando também as suas fronteiras e entrecruzamentos. Palavras-chaves: pós-modernidade, fronteiras culturais, linguagens artísticas. Quando se pensa em pós-modernidade, invariavelmente temos que considerar o conceito de fronteiras, seja no âmbito político-econômico-geográfico, seja no âmbito sociocultural. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é traçar um panorama da nossa condição pós-moderna, buscando compreender de que modo as fronteiras contemporâneas se configuram, ou desconfiguram, os processos que as constituem, assim como o modo como se refletem na arte e especialmente na literatura e na crítica, alterando também as suas fronteiras e entrecruzamentos. De fato, na chamada pós-modernidade, o processo modernista de estruturas em choque levou a uma mudança profunda no que foi chamado pelos editores da revista de arquitetura PRECIS 61 de “estrutura do sentimento”, uma mudança na sensibilidade, na prática e desenvolvimento de um discurso distinto daquele do período anterior. Datas e terminologias variam de um autor para outro (alguns o chamam pós-modernidade; outros, de segunda modernidade; alguns dirão que inicia nos anos 1960; outros, nos anos 1970, ou até mesmo nos 1980), mas uma coisa é certa: desde então, as mudanças tem ocorrido e deverão ocorrer de um 1 PRECIS 6. Columbia University Graduate School of Architecture. The culture of fragments. New York, 1987.
  • 3. modo bastante seminal e interconectado. Elas refletem o que Zygmunt Bauman (2007)2, chama de passagem de uma modernidade “sólida” para a “líquida”, um período no qual as organizações sociais não mais conseguem sustentar as estruturas e, portanto, não há uma instituição capaz de definir as escolhas individuais ou assegurar a repetição dos padrões que determinam o comportamento social. Como pudemos ver no final dos anos 70, algo havia mudado radicalmente na nossa sociedade, tornando evidente que, de algum modo, o que quer que tenhamos aprendido havia se tornado inútil, colocando aquela década no cenário onde todos aqueles anos pós-guerra de esforços por desenvolvimento e reconstrução internacional estavam entrando em colapso, extinguindo antigas fronteiras e abrindo novas. A “sabedoria existencial”, como Bauman chama, parecia ter perdido o seu espaço no mundo, o qual clamava por uma revisão profunda de todos os nossos valores e práticas sociais. E esse tem sido o nosso tempo – um momento de estruturas em derretimento; um tempo marcado pela diversidade. No entanto, esse processo de derretimento não promove unidade, ele apenas continua a oferecer aos atores da arena social o espetáculo de estratégias de vida em desaparecimento, estruturas que antes eram consideradas sólidas e permanentes. E agora, depois do boom da globalização, com a nossa visão ampliada a um nível planetário, onde todas as conexões parecem possíveis, o que nos resta é o que Bauman define como “globalização negativa” (2007, p.13): uma sociedade aberta em relação à soberania territorial e ao respeito (ou falta de) a qualquer fronteira entre Estados. Mas, com uma peculiaridade: essa abertura não inclui um comércio ou distribuição de capital equânime e livre, nem o controle da violência e do terrorismo. Apesar do significado original de “abertura” dado por Karl Popper, que se referia a uma sociedade que francamente admitia a sua incompletude, para Bauman “abertura” hoje está associada a um destino irresistível, com os efeitos não planejados e imprevisíveis da “globalização negativa” acima mencionada. Agora, sem ter restado nenhum limite para nos proteger (seja físico, político ou social), enfrentamos esse sentimento aterrorizador de vulnerabilidade e o que o autor define como “cultura do medo”, não apenas do que já existe, mas também de qualquer coisa que imaginamos que exista. E em tal contexto tenebroso, o progresso tornou-se um fantasma que escapa dos labirintos do nosso porão social e nos assombra como longos e infindáveis pesadelos nos quais o tempo nos consome, o espaço 2 BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Translated by Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
  • 4. derrete, e somos jogados no nada. Medo é o que sobrou como a grande fonte de poder na nossa sociedade pós-moderna, e juntamente com ele vem o individualismo e a solidão. E como nos faltam as ferramentas apropriadas para reconstruir a nossa estrutura social, nesse processo de autoconsumação, temos sido forçados a encarar outro tipo de resíduo – o excesso humano, esse grupo crescente de pessoas “deslocadas” que não mais encontram um espaço onde possam ser reconhecidas como indivíduos socialmente ou até mesmo profissionalmente uteis. O fato é que, ao mesmo tempo em que discutimos e enfatizamos o respeito pela diversidade cultural, o espaço onde essa diversidade pode existir tem-se tornado cada vez menor. Como Clifford Geertz (2000)3 observou, as fronteiras sociais e culturais coincidem cada vez menos, e a pós-modernidade terá que lidar com essa quantidade de “excesso humano” – seja na figura do refugiado, seja na figura do indivíduo socialmente ou culturalmente desavantajado, e que clamam por um espaço real onde possam de fato existir. Esse excesso atingiu uma condição de impotência totalmente impensável, e que vai além de aspectos filosóficos, atingindo os extremos não apenas da fome, mas também da ausência de leis protetoras que garantam a sua existência material, especialmente no caso dos refugiados, para quem o que parecia ser uma condição temporária tornou-se um estado de longo prazo, se não permanente, de inexistência legal em “lugar nenhum” – o que Foucault chamaria de “lugar sem lugar” (1986)4. Nas comunidades imaginárias do mundo contemporâneo, esses indivíduos tornaram-se os “inimagináveis”, estratificando a sua condição de “permanentemente transitórios”. Naomi Klein (2003)5 vai mais além: num artigo para o Guardian, ela menciona os “continentes-fortalezas”, um grupo de nações que unem forças para auferir vantagens comerciais sobre outros países e, ao mesmo tempo, proteger as suas fronteiras para evitar a entrada daqueles sobre os quais elas tiram vantagens. Num certo ponto, Klein questiona como seria possível manter-se aberto para negócios e fechado para as pessoas, e a própria autora dá a resposta: primeiro, você expande o perímetro e, depois, você tranca a porta. De certo modo, a pós-modernidade parece ter criado um “entre-espaço”, não apenas para os 3 GEERTZ, Clifford. The use of diversity. In: Available light: Anthropological reflections on philosophical topics. Princeton University Press, 2000. 4 FOUCAULT, Michel. Of other spaces. In: Diacritics, 1. 1986. 5 KLEIN, Naomi. Fortress continents. In: Guardian, 16 January 2003, p. 23.
  • 5. refugiados, como Klein apontou, mas para quem quer que se sinta inadequado ou indesejado num universo social com um escopo tão claro e com um “pitch” tão forte de insegurança, tornando a vulnerabilidade humana cada vez mais evidente. Na opinião de Bauman, surgiu um novo medo – o medo da inadequação, uma doença quase universal, o medo de ser socialmente excluído. A onipresença do medo compele as pessoas a construir muros mais altos e mais fortes, e nesse processo de construir proteção, chegamos ao ponto no qual a saída de certa forma foi perdida e a referência de quem está trancado do lado de dentro e quem está fora se apagou. Este é um exemplo concreto que demonstra que o espaço, em todas as suas dimensões – metafóricas e físicas – está no âmago da condição pós-moderna e, portanto, estudá-lo e tentar compreendê-lo tornou-se crucial para a compreensão da nossa própria condição de sujeitos sociais. No dizer de Domenico De Masi, sociologista da Universidade “La Sapienza”, de Roma – Itália, em entrevista à revista brasileira Época, em 13 de Setembro de 2007, o denominador comum que caracteriza a sociedade contemporânea é “desorientação”, causada pela rapidez e multiplicidade das mudanças, e o problema de nos sentirmos desorientados é que caímos num sentimento profundo de crise, e aqueles que se sentem em crise param de planejar o futuro; e se paramos de fazer isso, alguém o fará por nós, e não será por bondade altruística, mas para o seu próprio bem. Citando Heráclito, que dizia que “é através das mudanças que as coisas se acomodam”, o autor questiona se poderíamos dizer o mesmo hoje, já que todas as mudanças ocorridas no séc. XX aconteceram num ritmo muito mais lento. Hoje, depois de poucas décadas, fomos de uma economia industrial, baseada no automóvel e equipamentos para a casa, para uma economia pós-moderna baseada em serviços, informação, símbolos, valores e estética. Essa transformação foi rápida e global, como se de repente uma imensa avalanche, uma enorme massa de água, a erupção de um vulcão e um terremoto tivessem atingido de uma só vez uma região calma, aterrorizando seus habitantes. O ponto de vista de De Masi nos leva a entender como chegamos ao ponto da “não-familiaridade”, das “entre-comunidades” mencionadas por autores como David Harvey e Zygmunt Bauman, e que tem efeitos também no campo artístico em geral, que acaba tornando-se o palco onde essas rupturas ganham forma, cor e voz – uma grande colagem de imagens, crenças e valores estéticos e ideológicos.
  • 6. Nesse processo de deslocamentos constantes, está inserido também o deslocamento do Sujeito moderno, como afirma Stuart Hall (2006)6, provocado por uma serie de eventos, tais como a descoberta do Inconsciente por Freud, que destruiu o conceito de cognoscenti e do Sujeito racional dotado de uma identidade fixa e unificada; a Linguística Estrutural, que afirma que não somos os autores da nossa própria língua, mas que, ao contrário, a linguagem é um sistema social e não individual; os trabalhos de Michel Foucault sobre a genealogia do Sujeito moderno, no qual ele enfatiza outro tipo de poder – o poder disciplinar – focado, primeiramente, na regulação, no governo da espécie humana, e em segundo lugar no indivíduo, para produzir um homem que possa ser tratado como um corpus obediente. (DREYFUS and RABINOW apud BAUMAN, 2001)7. Em suma, esses movimentos, entre outros, podem ser vistos como elementos-chave que transformaram o Sujeito da era Iluminista, com uma identidade fixa e estável, em um Sujeito pós-moderno, deslocado, aberto, contraditório, incompleto e fragmentado. E para aliviar essa condição, apesar da mobilidade global ter tornado impossível considerar uma nação como uma identidade cultural unificada, culturas nacionais com ênfase na tradição e na continuidade vem ao encontro para apoiar essa ideia, mesmo que elas existam, como Homi Bhabha (1990)8 diria, apenas na imaginação do indivíduo, pois, independentemente do quão diferentes os membros da nação sejam, ou quão violentamente forçado esse processo seja, essas representações podem dar a eles o sentimento de estarem unificados em uma identidade cultural. Eis por que, para muitos, a globalização é o pior fantasma criado pela pós- modernidade: ao mesmo tempo em que pasteuriza o modus vivendi e cria uma aura social de igualdade, ela também torna mais evidente as diferenças e as lutas dentro do corpus social para preservar identidades étnicas – ao mesmo tempo em que há o desejo de assimilação universal, há também a vontade de manter o privado, o local. Como afirma Hall, o discurso da cultural nacional constroi identidades ambiguamente colocadas entre o passado e o futuro, e a globalização é o elemento principal causando o deslocamento das identidades culturais nacionais, à medida que conecta comunidades e organizações através de novas combinações fragmentadas de tempo-espaço, comprimindo distâncias, escalas temporais e identidades. 6 HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Translated by Tomaz T. da Silva and Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 7 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 8 BHABHA, Homi. (org.) Narrating the nation. London: Routledge, 1990.
  • 7. Como resultado, os conflitos entre nacional e local causados pela globalização estão originando outro tipo de identidade nacional – o tipo híbrido – com ênfase na impermanência, diferença e pluralidade cultural. Desse modo, a Tradição, a principal fonte do nosso conforto cultural, tem sido desafiada pela necessidade de constantemente reinterpretar a si mesma, contrastando ao mesmo tempo com outro conceito centrado não na permanência e continuidade, mas na impermanência e diferença – o conceito de “Tradução”, apresentado por Bhabha (1990). Esse conceito descreve aquelas identidades formadas através de intersecções espaciais, históricas e culturais, e compostas por pessoas que estavam dispersas da sua terra natal e forçadas a negociar com novas culturas sem serem totalmente absorvidas ou terem perdido totalmente as suas velhas identidades. Unificação cultural nesse novo mundo perdeu o seu significado, pois esses indivíduos serão irrevogavelmente o produto da diversidade, para sempre habitando pelo menos duas culturas, tendo duas identidades nunca unificadas, sendo para sempre o que Salman Rushdie (1991)9 chamou de “homens traduzidos”, filhos de um tempo e espaço comprimidos, existindo em um “entre-tempo”, entre o passado e o futuro que, entretanto, não é o presente – uma espécie de “entre-identidade” pós-moderna. Na realidade, esses Sujeitos são como entre-personagens de uma peça de Samuel Beckett, vivendo em entre-tempos e espaços, presos uns aos outros pelo tênue fio de palavras que não revelam, que não significam. Uma condição que torna evidente a diferença crescente entre espaço e lugar, uma vez que reforça as relações entre “outros” ausentes, distantes de qualquer tipo de interação face a face, diferentemente das sociedades pré-modernas, nas quais espaço e lugar eram amplamente coincidentes. Agora, nos deparamos com o que Harvey chama de “destruição do espaço através do tempo” (HARVEY, 1989, p. 205), o que salienta essa diferença entre espaço e lugar: ao mesmo tempo em que lugares nos dão raízes, tendo em vista que permanecem fixos, o espaço pode ser rapidamente cruzado, pois a estrutura social é atomizada por redes de linguagem flexíveis que permitem ao indivíduo acessar diferentes grupos de códigos, de acordo com o papel social que está representando no momento (político, religioso, cultural, etc.). Sendo assim, se há muitos jogos diferentes sendo jogados ao mesmo tempo, segundo Jean F. Lyotard (1984)10, a consequência que podemos esperar é o nascimento de 9 RUSHDIE, Salman. Imaginary homelands. Essays and criticism 1981-1991. London: GRANTA Books, 1991. 10 LYOTARD, J. The postmodern condition. Minneapolis: University of Minnesota, 1984.
  • 8. instituições quebradas, o que o autor chama de “determinismos locais”, entendidos como comunidades interpretativas formadas por “produtores-consumidores” de conhecimentos específicos, que atuam em contextos culturais igualmente específicos (acadêmicos, religiosos, políticos, comunitários, etc.) A importância dessa variedade de redes de linguagem atuando ao mesmo tempo está no fato que tornam evidente um dos aspectos mais fortes do pós-modernismo: a alteridade, a idéia de que cada grupo é capaz e tem o direito de falar por si mesmo e ser respeitado e aceito como uma voz legítima. A pós-modernidade nos tornou conscientes da pluralidade de mundos, e esse efeito pode ser sentido não somente do ponto de vista sociológico, mas em todas as formas de expressão – no mundo tecnológico, tanto quanto nos universos acadêmico e artístico, e em especial na ficção literária. Na realidade, isso é o que Foucault chama de “heterotopia”, a coexistência de um vasto número de mundos fragmentados possíveis num “espaço impossível”; lugares que tem a curiosa propriedade de estar em relação com todos os outros lugares, mas de tal modo que eles suspendem, neutralizam ou invertem o conjunto de relações que são designadas, espelhadas ou refletidas por eles. E, entre utopias e heterotopias, Foucault acreditava que havia um tipo de experiência mista, conjunta, que seria o espelho – ao mesmo tempo uma utopia e uma heterotopia, pois o espelho é um lugar sem lugar; no espelho eu vejo a mim mesma lá onde não estou, num espaço irreal, virtual que rompe atrás da superfície, uma espécie de sombra que me permite ver a mim mesma onde estou ausente. O espelho, quando reflete a nossa imagem, torna o espaço refletido completamente real, conectado com todo o espaço que o circunda, e totalmente irreal, uma vez que para ser percebido ele tem que passar por esse ponto virtual que está lá, do outro lado. Esses imensuráveis espaços superpostos criam para o personagem pós-moderno diferentes novos enigmas a serem decifrados: “Que mundo é este?” “O que devo fazer aqui?” “Que persona devo usar?” Essas são algumas das questões colocadas por Harvey para entender os novos dilemas enfrentados pelo personagem pós-moderno – processos de espelhamento que nos forçam a olhar para trás, para os conflitos e contradições vividas no modernismo, especialmente se considerarmos a definição de modernidade dada por Baudelaire: in The painter of modern life, publicado em 186311, ele a define como “o transiente, o fugaz, o contingente; é metade arte e a outra metade é o eterno e o imóvel”. E esse conflito entre efêmero e eterno parece permear o que Marshall Berman chama de uma modalidade de 11 BAUDELAIRE, Charles. The painter of modern life. http://www.idehist.uu.se/distans/ilmh/pm/baudelaire- painter.htm. 20/09/2010.
  • 9. experiência vital, um experiência de espaço e tempo para o indivíduo e para os outros, uma experiência de possibilidades e perigos de vida, como se houvesse um constante conflito entre um mundo de aventuras, poder, alegria e sucesso, e a ameaça de uma destruição total, provocada pelo derretimento dos limites geográficos, culturais, ideológicos e religiosos, o que não traz mais do que uma unidade paradoxal – uma unidade na “desunidade”. Na opinião de Berman, a modernidade nos joga num redemoinho de desintegração e renovação perpétuas, de luta e contradição, de ambiguidade e ansiedade, o que nos leva a crer que para muitos escritores modernos a única coisa da qual eles poderiam ter certeza na modernidade era a sua insegurança e até mesmo a sua tendência ao “caos totalizante” (BERMAN apud HARVEY, 2004, p.21). Desse modo, o chamado pós-modernismo emergiu de um espectro antimoderno para firmar-se como uma estética cultural; uma estética de uma nova ordem de espaço e, consequentemente, de uma nova ordem de tempo. De acordo com Terry Eagleton (1997)12, a relação pós-moderna com a tradição cultural configura-se como um pastiche, intencionalmente carecendo de profundidade, fazendo uso de uma estética brutal de sordidez e choque. Mais uma vez, como no teatro, a máscara ganha o papel principal, pois ela incorpora o aspecto fugaz da pós-modernidade, um tempo e um espaço que valorizam heterogeneidade e diferença como forças liberadoras na redefinição do discurso cultural – fragmentação, indeterminação e intensa desconfiança em relação aos discursos universais tornaram-se a marca registrada do pensamento pós-moderno. Novas abordagens para velhos e novos conceitos surgem em todas as áreas, sejam humanas ou científicas, principalmente a ênfase dada por Foucault na descontinuidade e diferença na historia, reforçando a idéia de fim das “metanarrativas” como ferramenta legitimadora da ilusão de uma historia humana “universal”. A modernidade não envolve apenas uma ruptura implacável com toda condição histórica previa, mas é também caracterizada por um processo sem fim de rupturas e fragmentações internas, e apesar de ter estado sempre focada na descoberta do “caráter essencial do acidental”, como Paul Klee costumava dizer, ela agora precisava fazê-lo num campo de sentidos em constante mudanças. O séc. XX, com os seus campos de exterminação, o seu militarismo, as duas grandes guerras mundiais e a possibilidade devastadora de uma destruição total, põe abaixo o otimismo e leva o projeto iluminista à autodestruição. E nesse projeto modernista, que abraçou o progresso e a roda da mudança, tendo o transiente, o fugidio e o fragmentário como condição necessária para a sua 12 EAGLETON, Terry. Teoria da literatura – uma introdução. São Paulo: UNESP, 1997.
  • 10. realização, foi dado um papel especial à definição da essência da humanidade aos artistas, escritores, arquitetos, compositores, poetas e filósofos. O artista, de acordo com Frank Lloyd Wright, um dos maiores arquitetos modernistas, deve não apenas entender o espírito do seu tempo, mas também iniciar o seu processo de mudança. Consequentemente, a definição de uma estética modernista dependia crucialmente do tratamento dado pelo artista a esses processos de mudança, fragmentação e efemeridade; independente da posição que eles tomassem, eles iriam interferir no modo como os produtores culturais consideravam o fluxo e a mudança. O pintor, o arquiteto, o escritor, artistas em geral, deveriam encontrar modos de representar essa condição eterna e imutável, e eles o encontraram através da estratégia de chocar e violar a continuidade esperada. James Joyce e Marcel Proust, Stéphane Mallarmé e Louis Aragon, Édouard Manet, Camille Pissarro e Jackson Pollock são exemplos dessa estratégia em ação. Samuel Beckett, especificamente in Dante… Bruno, Vico… Joyce (COHN, 1984)13, ao analisar o papel revolucionário da escrita de Joyce, numa dimensão literária e política, defende as suas escolhas linguísticas autônomas, estabelecendo uma relação com Dante, que preferiu vários dialetos italianos ao latim e sem priorizar ou privilegiar o seu próprio – o toscano – como um discurso em defesa da autonomia literária e contra a sujeição ao nacionalismo literário. E muito mais tarde, Samuel Beckett, comparando-se com Joyce, em relação ao seu processo criativo e a quão inovador e revolucionário o seu papel era, afirma: A diferença em relação a Joyce é que Joyce era um magnífico manipulador de matéria, talvez o maior. Fazia com que as palavras rendessem o máximo; não há sequer uma sílaba a mais. O gênero de trabalho que faço é um trabalho no qual não sou o senhor de minha matéria [...] Joyce tende para a onisciência e a onipotência enquanto artista. Eu trabalho com impotência, com ignorância. [...] não creio que a impotência tenha sido explorada no passado. Parece que há uma espécie de axioma estético que diz que a expressão é uma realização (êxito), deve ser um êxito. Para mim, o que me esforço por explorar é toda essa gama do ser que foi sempre negligenciada pelos artistas como alguma coisa de inutilizável ou por definição incompatível com a arte. 13 COHN, Ruby (Ed.). Recent Irish Poetry. In: Disjecta – Samuel Beckett. Miscellaneous Writings and a Dramatic Fragment. New York: Grove Press, 1984.
  • 11. Creio que hoje qualquer pessoa que preste a mais leve atenção à sua própria experiência se dá conta de que é a experiência de alguém que não sabe, de alguém que não pode. (BECKETT apud MALÉSÈ apud BERRETTINI, 2004, p. xx) 14. Como foi dito antes, a pós-modernidade tornou-se a era da colagem, de experiências, tempos e linguagens superpostos, textos se entrecruzando com outros e produzindo mais textos, um fato que enfatiza o problema da comunicação que estamos enfrentando: cada intersecção de textos necessariamente irá gerar um novo grupo de significados possíveis, independentemente do que o autor pretendia dar. De fato, o conceito de colagem está na raiz do desconstrutivismo de Derrida, e é apresentado como a base do discurso pós-moderno. É importante considerar, porém, que a condição pós-moderna tem as suas raízes muito anteriores à revolução cultural dos anos 1960. Na verdade, ela tem acompanhado em paralelo todo o processo de capitalismo e a sua relação com o Mercado, a sua busca constante de novos meios de produção e troca, seguindo não apenas as tendências econômicas, mas também as sociais e culturais, incluindo todo tipo de expressão artística, o que culminou com o desenvolvimento do mercado de arte nos anos 1960. A transformação da experiência de espaço e lugar que resulta desses vários movimentos é seguida por outras revoluções na dimensão do tempo, tendo em vista que os capitalistas visam reduzir o tempo de circulação do seu capital a um piscar de olhos. Assim, o próprio capitalismo torna-se uma força permanentemente revolucionária e desintegradora e, portanto, uma fonte permanente de insegurança. Autores como B. Ollman (1971)15, B. Taylor (1987)16 e Walter Benjamin17, analisando o capitalismo, tentam capturar o modo como política, economia e cultura se relacionam num sistema multifacetado e fragmentado, no qual alguns dos termos usados por Marx, como “valor”, “trabalho” e “capital” constantemente se separam e reintegram em novas combinações, como uma oposição às práticas totalizadoras do capitalismo. Portanto, não é possível esperar uma representação unificada do mundo, pois, segundo Harvey, essa seria repressiva e delirante. 14 BERRETTINI, Célia. Samuel Beckett: escritor plural. São Paulo: Perspectiva, 2004. 15 OLLMAN, B. Alienation. Massachussets: Cambridge, 1971. 16 TAYLOR, B. Modernism, post-modernism: a critical perspective for art. Southampton: Winchester, 1987. 17 BENJAMIN, Walter. Illuminations. New York: Schoken Books, 1969.
  • 12. Em relação a essa impossibilidade, Frederick Jameson (1984)18, estabelece uma relação entre o conceito de esquizofrenia apresentado por Lacan, não em termos clínicos, mas como uma desordem lingüística, com a impossibilidade sociológica e cultural de unificar passado, presente e futuro da nossa própria experiência biográfica ou psicológica. Neste caso, ela representaria um processo desintegrador composto por diferentes elementos significativos que não se relacionam entre si numa linha de tempo, como aconteceria numa mente normal, e assim são incapazes de unificar passado, presente e futuro. Consequentemente, o efeito seria o colapso dos horizontes temporais e a redução da nossa experiência a uma série de tempos presentes não-relacionados. Jameson acredita que essa intensa experiência fragmentada, focada exclusivamente no tempo presente, por ser devastadoramente vívida e material, desloca o Sujeito e ativa a alienação do Self na estética pós-moderna (JAMESON, 1984). A produção cultural contemporânea, enraizada na experiência da vida quotidiana, acabou juntando-se ao frenético processo capitalista e, especialmente depois dos anos 1960, foi forçada a produzir não apenas bens de consumo, mas também desejos, a necessidade por mais, por algo diferente. Esse processo pode ser facilmente identificado na estética pósmoderna, centrada em objetos de arte temporários, incompletos, tais como as performances e happenings, além da já mencionada colagem, onde toda espécie de confisco, citação, acumulação e repetição de imagens já existentes é permitida, como podemos ver, por exemplo, na obra de Robert Rauschenberg, considerado um dos pioneiros do pós- modernismo. Tais práticas, baseadas na instantaneidade e explorando os recursos dos media, aproximam cultura popular e produção cultural, reforçando os aspectos transitórios da vida contemporânea, ao mesmo tempo em que levantam outra questão importante no movimento pós-moderno, que é o modo como essas duas expressões culturais se relacionam. As imagens instantâneas trazidas pela televisão e todos os outros media tem uma consequência direta no conceito e compreensão do espaço contemporâneo que, inclusive na arquitetura, desconsidera a profundidade. O que vemos atualmente é uma intervenção estética até mesmo na política e na economia, e não apenas na vida cultural e social – como Harvey aponta, uma conjugação entre mimesis e intervenção estética, uma ênfase na efemeridade da juissance, uma insistência na impenetrabilidade do “outro”, uma tendência à desconstrução beirando o niilismo; ou seja, uma preferência pela estética ao invés da ética. O pós-modernismo clama pela necessidade de aceitar e render-se às fragmentações e cacofonias de vozes através das quais os dilemas 18 JAMESON, Frederick. Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism. New Left Review, n° 146, pp. 53-92, 1984.
  • 13. contemporâneos são compreendidos, à celebração da máscara, simulação e todo tipo de fetichismo. Assim, ao mesmo tempo em que ele cria espaço para uma variedade de vozes, também evita que estas tenham acesso à fonte, criando um gueto opaco de alteridade e destituindo essas vozes de poder. Desse modo, no ponto de vista de Harvey, a superposição de mundos diferentes em tantas novelas pós-modernas, nas quais prevalece uma alteridade que não se comunica num espaço de coexistência, pode ser lida como um corte transversal metafórico da paisagem social num processo de fragmentação, de subculturas e modos locais de comunicação, pois elas tem uma relação com a perda de poder das minorias nos grandes centros, o que vai inevitavelmente levar a questões de identidade. Nessa moldura social, falar e escrever sobre solidão torna-se uma demanda cultural, um tema recorrente; e as palavras, esvaziadas na sua função de significar, repetitivas, como podemos ver, por exemplo, em Esperando Godot, de Samuel Beckett, revelam-se como um esforço que torna ainda mais evidente a impossibilidade de superar a solidão; um refúgio contra o nada – lá, o trágico e o ridículo unem-se em modos agressivos, cínicos, e até amargos, para pintar o absurdo da condição humana, atacando os valores humanos primários, tais como religião e amor, brincando com clichés e lugares-comuns – uma espécie de grande farsa metafísica. Nesse cenário de contraposições e entrecruzamentos, ao analisar o papel da crítica desde a Antiguidade até os nossos dias, André Richard, in A Crítica de Arte (1989)19, aponta a crise na crítica como parte da crise da nossa civilização. De acordo com o autor, ao contrário de outros tempos, quando os críticos inescrupulosamente faziam uso do julgamento canônico, atualmente, os historiadores da arte e literatura experimentam a necessidade de confessar as suas intenções, de especificar a natureza e o valor dos seus critérios. No campo da crítica literária, é somente no final do séc. XX que podemos identificar a reconfiguração do conceito de intertextualidade, que adquire um efeito de ressonância, atingindo o interdiscursivo e identificando elementos de outros campos. É também o momento de uma compreensão mais profunda do espaço ilimitado, transgressor da própria linguagem, já que, como afirma Bella Jozef (2006)20, literatura é uma questão de linguagem; e linguagem é o sujeito, que é a “base” 19 RICHARD, André. A crítica de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 20 JOZEF, Bella. A máscara e o enigma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 2006.
  • 14. da obra, isto é, uma ausência: qualquer metáfora é um signo sem base; o crítico pode seguir as metáforas na obra, mas não reduzi-las. Hoje, a sua função não é mais apenas organizar didaticamente a informação para outro leitor, mas materializar transparências, agregar formas, memórias, saberes aparentemente invisíveis. É claro que, para fazer isso, uma nova ordem terá que surgir em novos espaços, ou melhor, espaços trans-historizados. É esse movimento que leva à substituição da noção de “fato comparativo” pela de “estratégia”, a qual relaciona textos aparentemente não-comparáveis; ou seja, a comparação se dá pela diferença. Agora, apesar da literatura comparada não ignorar o trabalho do autor, o foco está na passagem, transgressão, superação de limites, na eliminação das margens – ser capaz de agregar, eis a estratégia da forma. As fronteiras tornaram-se casas mal-assombradas, labirintos, sótãos – nas palavras de Gaston Bachelard (2003)21, “espaços de devaneio”. Entendendo o crítico como co-escritor, encontrar esses espaços, as vozes e monstros que os habitam, construir pontes onde não havia comunicação, criar espaços de transparências através das quais o espectador possa encontrar memórias e o conhecimento, ou parte dele, que sustentou a construção da obra tornou-se o grande desafio. Igualmente, em relação à criação artística, Edith Derdyk (SOUSA et al., 2001)22 afirma que pensar sobre a criação é um ponto de partida e também de chegada, pois, muito mais que pensar e escrever sobre criação, esse ato provoca uma demanda de tempo para reconstituir os pensamentos e sensações que o ato criativo gera por si só. O ato criativo é um campo de força convergindo para a construção de uma forma inaugural, uma vez que causa o derretimento da experiência singular e de conjunções culturais, ativando repertórios pertinentes ao visível, à memória e ao imaginário. O ato de criação, diz Derdyk, cria um “corte” no tempo e no espaço, ressignificando experiências, trazendo à tona um sentimento de eterno continuum no aqui e agora, como se a ambição poética do ato criativo residisse na imersão da nossa subjetividade na matéria desejosa de ser linguagem. Aqui, como no processo de criação, o crítico-espectador está diante do espaço aberto da imaginação, que será preenchido, transformado, completado com o seu próprio repertório. O espaço da obra-de- arte, da imagem pós-moderna não se desdobra mais em correlação com a forma e a matéria; ele existe somente porque há um algo a mais, que é a dimensão que contem o tempo – o 21 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 22 DERDYK, Edith. Linha de horizonte por uma poética do ato criador. São Paulo: Escuta, 2001.
  • 15. tempo dentro da imagem imóvel, estagnada, como diz Bardonnèche. Esse tempo, no entanto, transforma-se em outra coisa: o espaço da preguiça, que é o espaço do jogo, do desejo, o espaço de deus; como no espaço vazio do jogo, o seu tempo é “um tempo em parêntesis” – é o universo lúdico que nos faz esquecer o tempo e onde a atividade é permitida numa espécie de apropriação de um tempo abandonado (BARDONNÈCHE apud DOMINGUES, 1997)23. O espaço contemporâneo é o cenário para uma arte que constantemente é solicitada a romper com a tradição, inovando permanentemente, e é esse apelo por um gênio eterno que causa uma dessincronização e ruptura cada vez mais evidente entre arte, as suas vanguardas e o público. E para minimizar esse efeito, a segunda metade do séc. XX presenciou uma abordagem na arte que visava ao estabelecimento de uma relação mais imediata entre arte e seu público, através da sua participação no próprio processo de feitura da obra e, consequentemente, dividindo com ele o tempo da criação. A forma mais simples disso se dar é através da “instalação” que, de acordo com Edmond Couchot (COUCHOT apud DOMINGUES, 1997) permite que o artista instale o espectador no centro da obra, convidando-o a adotar uma atitude diferente em relação a ela. Este processo foi usado também na Land Art, onde o corpo inteiro do observador está inscrito na arte; mais drasticamente, temos a arte cinética, que aproxima ainda mais o espectador através de retroações: a obra é sensível a diferentes solicitações, manipulações, operações, acionadas pelo deslocamento do observador, seu contato, o som da sua voz, o calor do seu corpo, seu batimento cardíaco, etc. Ou seja, estamos diante de uma estética da participação, onde o essencial deixou de ser o objeto de arte e, sim, a confrontação do espectador com uma situação perceptiva (POPPER apud DOMINGUES, 1997, p. 137). Nessa forma de arte, a existência e significação da obra dependem da intervenção do espectador. Atualmente, o espectador foi convidado a dar um passo adiante em direção à arte interativa, através de dispositivos abertos (online) ou fechados (offline). Um exemplo desta última é o trabalho de Jeffrey Shaw, que nos convida a visitar uma cidade, criada com letras que compõem um texto, ao pedalarmos uma bicicleta real – ele nos faz ver com os nossos pés e as nossas pernas tanto quanto com os nossos olhos. Um dispositivo artístico aberto, por outro lado, é uma rede interconectada: muitas pessoas podem entrar juntas no jogo da interatividade, e o espectador participa através de gestos, textos, imagens, às vezes sons, os 23 DOMINGUES, Diana (org.). A arte no séc. XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: UNESP, 1997.
  • 16. quais são inscritos na memória da obra cuja identidade muda constantemente e evolui ao redor de um núcleo preconcebido pelo autor, que assegura a sua continuidade e coerência. Os primeiros experimentos aconteceram nos anos 1980 e desde então esses trabalhos tem apresentado uma forte vocação transcultural; mas, em paralelo, há também aqueles trabalhos que visam a uma espécie de reterritorialização monocultural, ou seja, ações que exigem, por exemplo, o uso de uma língua ou cultura específica. Para esse tipo de trabalho, o material usado pelo artista não é físico ou energético, mas simbólico: são materiais abstratos, altamente formalizados, constituídos por programas de computador. A obra não é exclusivamente fruto da autoridade do artista; ela se produz através de um diálogo quase instantâneo (em tempo real) com o espectador, que não está mais limitado a simplesmente olhar; ele tem a possibilidade de atuar sobre o trabalho e modificá-lo, tornando-se, assim, seu coautor. Portanto, olhando para todo esse cenário, o que vemos mais fortemente é, de fato, uma quebra, um deslocamento, muitas vezes um derretimento total das fronteiras entre os vários campos de expressão de um sujeito que leva para as suas construções, tanto materiais quanto simbólicas, a sua condição temporária, fragmentada, incompleta, aberta; um sujeito que está aprendendo a viver e a se constituir num tempo esquizofrênico, num espaço descontínuo, em meio a experiências líquidas, e que tem na colagem (de materiais, filosofias, espaços e até mesmo técnicas artísticas) a sua perfeita representação. Um sujeito que busca, nas grandes manifestações coletivas, dissolver as fronteiras da incomunicabilidade e do medo, como se elas fossem uma espécie de grande shopping center onde ele se dissolve e mistura, construindo para si uma idéia, ou uma colagem, de pertencimento e permanência num tempo e num espaço em constante deslocamento. ABSTRACT: The aim of this paper is to draw an overview of our postmodern condition, in order to understand the way the contemporary frontiers are configured, or disconfigured, the processes that constitute them, and how they reflect on art, especially on literature and criticism, altering their borders and intersections. Keywords: postmodernity, cultural borders, artistic languages.