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Revista A COR
   DO BRASIL
                                    Sumário             2 Enxergar o Brasil com um novo
                                                            olhar - Esse é o desafio
                                                            Ivanir dos Santos

                                                        4 DISCRIMINAÇÃO, RACISMO,
                                                            PRECONCEITO E DESIGUALDADE
                                                            SOCIAL: ENSAIANDO UM PANFLETO
                                                            PEDAGÓGICO
                                                            Azoilda Loretto da Trindade

                                                       14 Raça, etnia e nação: a
                                                            ambigüidade dos conceitos
                                                            Jacques d’Adesky

                                                       20 A ousadia que transforma
                                                            100 anos da Revolta da Chibata

                                                       22 PARA UMA PEDAGOGIA DA
                                                            (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
                                                            ÉTNICO-RACIAIS
                                                            Alexandre do Nascimento

                                                       32 Movimento Negro Brasileiro:
                                                            uma pedagogia de exemplos e
                                                            desafios
                                                            Amauri Mendes Pereira




A lei 10.639 torna obrigatório a inclusão da história da África e da cultura negra no currículo escolar do ensino básico.
A revista A Cor do Brasil é uma contribuição ao fomento de debates sobre o tema relacionado ao concurso de redação
promovido pelo projeto Camélia da Liberdade e servirá como subsídio para alunos e professores das redes pública e
privada do Estado de Rio de Janeiro.

                 A Cor do Brasil é uma publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP
                 Rua da Lapa, 200 – gr.810 – Centro RJ – CEP: 20021-180 – Tels.: (21) 2242-0961 / 2232-7077
                 e-mail: ceap@portalceap.org.br camelia@portalceap.org.br Site: www.portalceap.org.br

                 Edição e produção: Espalhafato comunicação e produção / Programação visual: Ricardo Bogéa
                 Rio de Janeiro, 2010


                                                       Patrocínio
Ivanir dos Santos




                 2
Revista A COR DO BRASIL




                          Professores são certificados pelo Curso de             Professoras da Fundação de Ensino de Niterói,
                          Capacitação de professores da Lei 10.639/03,          recebem o livro “ Ações Afirmativas, Atitudes
                          ministrado pelo Centro de Articulação de Populações   positivas” após palestra sobre educação, ministrada
                          Marginalizadas.                                       por Ivanir dos Santos .
Enxergar o Brasil
com um novo olhar

      Nesses cinco anos em que o Centro de            efetiva. Difícil por que somos obrigados a nos
Articulação de Populações Marginalizadas              enxergar e pensar sob uma nova ótica, a partir de
(CEAP) realizou o Projeto Camélia da                  outros conceitos, que não os europeus. Pensar a
Liberdade foi possível perceber que o maior           própria realidade nos leva a crescer como povo
desafio da sociedade brasileira é se pensar            e nação. E crescer dói, causa mal-estares.
fora do contexto eurocêntrico. Os padrões
dos nossos heróis e de ícones históricos se                 A escolha do centenário da Revolta da
baseiam, fora do círculo dos profissionais de          Chibata como tema deste ano para o Prêmio e
ensino engajados nas lutas do Movimento               o Concurso de Redação Camélia da Liberdade
Negro, na perpetuação da invisibilidade               tem a finalidade de propor uma reflexão sobre
das contribuições que os descendentes                 o que nos contaram e o que é fato. Neste caso
de africanos deram ao Brasil. Enxergar a              específico, o que nos contaram é que os castigos                      3
formação social de uma nação, assim como              físicos impostos aos negros foram abolidos
já fazem países como o México e a Costa               junto com a escravidão, em 1888. Poucos são
Rica, a partir das contribuições de todos os          os livros que narram, mesmo de forma concisa,
povos que a compõem é recontar a própria              a história de João Cândido, líder da revolta, e
história e entender o papel e quinhão que             como se deu o motim. O fato é que dois mil
nos cabe.                                             marujos, negros e mulatos, quase trinta anos
                                                      após a abolição da escravatura, ainda recebiam
       A Lei 10639/03 - que instituiu o ensino        castigos físicos de superiores militares, que em
da História da África, da Cultura Afrobrasileira      sua esmagadora maioria eram de ascendência
e do papel do negro na sociedade, no ensino           européia. Foi preciso que a capital federal,
fundamental e médio das escolas públicas e            na época, fosse ameaçada por marinheiros
privadas, do país – tem pretensão muito maior         amotinados para que milhares de homens livres
que o de resgatar a dívida histórica que o Brasil     pudessem ser tratados com dignidade.
tem com os negros e negras descendentes de
africanos que vieram para cá sob o domínio do                O Brasil levou 98 anos para reconhecer
tráfico. Ela propõe uma nova perspectiva de            João Cândido como Herói Nacional. Assim
compreensão da identidade nacional e desloca          como levou 115 anos – entre a abolição da
os padrões impostos, por séculos, pelos nossos        escravatura e a confecção da Lei 10639/03
                                                                                                          Revista A COR DO BRASIL




colonizadores. O caráter democrático da Lei           – para reconhecer a importância de contar a
em questão implica um real conhecimento da            história dos descendentes de africanos que a
participação e contribuição dos afro-brasileiros      nossa história não contou. Porém, o atraso que
na formação econômica, cultural e social do           insiste em tratar negros e negras como atores
Brasil mas, sobretudo, mexe na urdidura de            invisíveis da sociedade brasileira deve servir
intolerâncias decorrentes do preconceito tão          para explicitar o que de melhor nossos ancestrais
banalizado em nossa sociedade. Intolerância           ensinaram: a capacidade de resistir na busca do
cultural, intolerância racial, intolerância           sonho e a de encarar desafios como quem grita
religiosa. Por isso é tão difícil sua implementação   por liberdade.
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                          DISCRIMINAÇÃO, RACISMO, PRECONCEITO
                          E DESIGUALDADE SOCIAL:
                          ENSAIANDO UM PANFLETO PEDAGÓGICO
                          Azoilda Loretto da Trindade*




                                 “Ser capaz de sentir indignação contra qualquer injustiça cometida
Revista A COR DO BRASIL




                                 contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a qualidade
                                 mais bela de um militante.”
                                                                                 Ernesto “Che” Guevara


                          * Pedagoga, Psicóloga, Mestre em Educação e Doutora
                          em Comunicação Social e, principalmente, ativista da
                          luta contra o racismo.
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       Diante da necessidade de escrever sobre      Reflexões
temas que me inquietam, me vi sem inspiração
para efetivamente dizer algo contundente sobre            Gostaria de pensar estes termos
questões que fazem parte de minha existência.       (Discriminação, Racismo, Preconceito e
Os prazos esgotados, as cobranças justas e o        Desigualdade Social) como amalgamados,
texto – um monte de palavras colocadas sobre        complementares. Se, inicialmente, destaco os
a tela do computador – não expressava, nem          conceitos é só como estratégia didática, pois
de longe, algo significativo e que pudesse, na       no dia-a-dia, o que vale combater são as ações
minha opinião, tocar o leitor. Pus-me a pensar,     preconceituosas, racistas, discriminatórias
buscar referências, quer em livros, quer a partir   produtoras e reprodutoras de desigualdades
de observações do cotidiano, em músicas,            sociais.
filmes,... Tentei fazer uma imersão mais                   Quero destacar, no entanto, que o
intencional na temática, partindo da premissa       caminho por mim trilhado não corresponde,
que, numa sociedade que é discriminatória,          evidentemente, a uma unanimidade. E creio
preconceituosa e racista, essa imersão já foi
                                                                                                     Revista A COR DO BRASIL




                                                    ser importante enfatizar que a necessidade
naturalizada... Esse distanciamento permitiria,     de uma definição, ainda que imprecisa, é
talvez, produzir o trabalho que pretende ser nada   apenas para que possamos ter tranqüilidade
mais do que uma reflexão a ser compartilhada         para compreender o sentido, o processo e os
com potenciais pessoas leitoras. Um texto não       engendramentos de tais ou quais conceitos em
acadêmico, mas nem por isso sem os requisitos       nossa vida cotidiana. Afinal, concordamos com
básicos necessários a um texto, temperado para      Munanga (1998) quando diz que quem define
seduzir. Espero que seja uma leitura saborosa       o racismo são os anti-racistas que, por sua
e nutritiva para alimentar os nossos ideais         vez, partem de perspectivas diversas, às vezes
libertários e libertadores.                         opostas, que dificultam a construção de uma
definição unânime. Esta falta de consenso na
                          definição do racismo faz com que os anti-racistas
                          se fixem em compreender o racismo e os racistas
                          a agirem.
                                Vamos ao trato dos conceitos, que são,
                          no meu ponto de vista, de uma certa forma,
                          polissêmicos e polêmicos.




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Revista A COR DO BRASIL
a) Discriminação                                3 - Derivação: por extensão de sentido.
                                          tratamento pior ou injusto dado a alguém por
      “Lutar pela igualdade sempre que as causa de características pessoais; intolerância,
diferenças nos discriminem;               preconceito.
      lutar pelas diferenças sempre que a       Ex.: os idosos lutam contra a d. no
igualdade nos descaracterize.”            mercado de trabalho.
                                                     4 - Rubrica: termo jurídico.
                    Boaventura de Souza Santos        Ato que quebra o princípio de igualdade,
                                               como distinção, exclusão, restrição ou
      Recentemente, fui a um encontro em que preferências, motivado por raça, cor, sexo,
uma das palestrantes fortalecia a tese de se idade, trabalho, credo religioso ou convicções
banir qualquer forma de discriminação. Ora, políticas.
como educadora, pessoa que pensa palavras,
ações, pensamentos... comecei a refletir sobre Discriminar
o tema de maneira mais crítica... Ora, na
escola, a discriminação não é algo totalmente        1 - Verbo transitivo direto e bitransitivo
ruim, ela é, por vezes, demandada. Lembram           perceber diferenças; distinguir, discernir
das classes de alfabetização e mesmo da              Ex.: <d. bem as cores> <d. o certo do
educação infantil? A criança deve ser capaz de errado> <d. entre uma cópia e o original>
“discriminar” as letras p-b-d-q, os tamanhos,        transitivo direto.
as cores, as formas... Alguns setores sociais
lutam pelo que chamam “discriminação                 2 - Colocar à parte por algum critério;
                                                                                                                             7
positiva”... – observem, por exemplo, as especificar, classificar, listar.
cotas para mulheres nos partidos políticos,          Ex.: é preciso d. os artigos em falta
as cotas para portadores de deficiências              transitivo direto e pronominal
nos concursos públicos...Afinal, como                 3 - Não (se) misturar; formar grupo à parte
perceber as diferenças, as singularidades, por alguma característica étnica, cultural, religiosa
as peculiaridades sem discriminar? Em que etc.; separar(-se), apartar(-se), afastar(-se)
consiste a discriminação? Podemos viver              Ex.: <a professora foi punida por d.
sem discriminar? Como ler este texto sem os alunos negros, colocando-os nas últimas
discriminar as letras, as palavras, os sinais? carteiras> <não se julgando igual aos demais,
E os nossos sentidos, - olfato, paladar, tato, ele mesmo se discrimina>
visão, audição-, não são discriminatórios?           transitivo direto
Então, vamos chegar num acordo? De que
                                                     4 - Derivação: por extensão de sentido.
discriminação estamos falando?
                                                        tratar mal ou de modo injusto, desigual,
      Segundo o Dicionário1:
                                               um indivíduo ou grupo de indivíduos, em razão
                                               de alguma característica pessoal, cor da pele,
 Discriminação
                                               classe social, convicções etc.
                                                     Ex.: é comum a polícia d. os pretos e
      Substantivo feminino ato ou efeito de
                                               pobres
                                                                                                            Revista A COR DO BRASIL




discriminar.
         1 - Faculdade de discriminar, distinguir;             Estas definições de dicionário, nos
discernimento.                                           revelam a complexidade dos conceitos, pelo
         2 - Ação ou efeito de separar, segregar, menos no que se refere à dinâmica escolar.
pôr à parte.                                             Pode passar despercebido o fato de, por
         Ex.: <d. racial> <os negros sofrem d.>          exemplo, ouvir educadores dizendo que nas
                                                         suas classes todos são iguais, negros, brancos,
1
  http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=discrimin pobres, ricos...Ver educadores, em legitimas
a%E7%E3o&stype=k em 20/02/2007                           discussões, negando a necessidade de se discutir
questões afro-brasileiras, em nome do direito sua cidadania, seus direitos (humanos,
                          de todas as diferenças serem retratadas na políticos, sociais,...), valorizando aquela que
                          escola, sem, muitas vezes, se dar conta de que o justamente nos possibilita, ao discriminar as
                          segmento masculino, branco e de classe sócio- diferenças, propor estratégias de se atender na
                          econômica média/alta/favorecida acaba por ter escola e na sociedade o preceito de igualdade
                          um tratamento privilegiado...Daí surge uma na diversidade.
                          indagação: Como se forjou a resistência que
                          muitos educadores e educadoras
                          têm em dar relevância aos Artigo 2
                                                                            *


                          valores da população afro- Declaração Universal dos Direitos Humanos
                          descendente/negra e à própria
                          população afro-brasileira? É tão           I) Todo o homem tem capacidade para gozar
                          evidente que vemos, em muitos        os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
                          casos, até o dia 20 de novembro Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja
                          – Dia Nacional da Consciência de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
                          Negra, ser rechaçado como algo de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
                          discriminatório, enquanto os nascimento, ou qualquer outra condição.
                          outros 199 dias letivos, estão
                          recheados de referências da * http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Em
                          cultura de matriz européia, como 25/02/2007
                          calendários de festas religiosas,
                          de feriados. Cabe analisar sobretudo os murais
                                                            udo
                 8
                          os conteúdos escolares...E muitas vezes, tudo
                          isto, vem encoberto por atos de “bondade”, de
                          “amor ao próximo”.
                                 Trago estas pontuações, ainda que de
                          maneira superficial, objetivando que, nós
                          educadoras, que trabalhamos cotidianamente
                          com conceitos, com as noções de erro e acerto,
                          com a avaliação, que implica aprovação e
                          reprovação, com experimentos, com valores,
                          percebamos a complexidade dos conceitos e a
                          utilização dos mesmos.
                                 Observem      que      contradição     ou
                          paradoxo: Se não houver discriminação não
                          podemos perceber as diferenças, respeitar
                          as singularidades e criar mecanismos,
                          instrumentos e equipamentos sociais voltados
                          para atender às especificidades, no caso, dos
                          diversos modos e maneiras de se ser humano,
Revista A COR DO BRASIL




                          criando políticas públicas que potencializem
                          e representem a Vida na sua amplitude e não
                          no restrito e excludente modelo hegemônico e
                          dominante e etnocêntrico. Ao mesmo tempo,
                          no que se refere a direitos, à humanidade, não
                          podemos discriminar ninguém. Nesse sentido,
                          rechaçamos a discriminação que subtrai a
                          humanidade do outro, das pessoas, que subtrai a
                          sua importância, visibilidade social e histórica,
Revista A COR DO BRASIL
                          9
b) Preconceito                                           E nesta? O que você responderia?

                                Parece simples a questão dos preconceitos:                  Sapo ou cavalo?
                          idéias preconcebidas a respeito de outrem ou
                          alguma coisa, com ou sem base real.
                                De fato, somos seres complexos. Somos
                          todos, creio, marcados por idéias preconcebidas.
                          Quantas vezes brincamos com o ditado “não vi e
                          não gostei” ou ”não sei, não quero saber e tenho
                          raiva de quem sabe” e outros ditos engraçados
                          mas que sinalizam nossa predisposição para
                          idéias preconcebidas? Temos tantos exemplos,
                          não temos?
                                Observem estas figuras e digam o que                              Figura 3
                          vêem:
                                                                                A mesma figura é a resposta.
                                                                                Poderíamos dizer, com base nestas
                                                                         imagens, que nossa resposta depende de como
                                                                         vemos a realidade, de como organizamos o que
                                                                         vemos na realidade e de como a interpretamos.
                                                                         Algumas pessoas poderão ver uma imagem,
 10                                                                      outras duas, outras três... e, muitas vezes, rechaçar
                                                                         o que o outro possa estar vendo e elas não. Muitas
                                                                         vezes, a verdade, o conceito é, simplesmente, o
                                                                         que conseguimos captar e não o que o outro vê,
                                                                         sente, percebe. Lembram, “Narciso acha feio o
                                                                         que não é espelho”?
                                                                                Nossos preconceitos não são dissociados
                                                 Figura 12               da realidade, ao contrário, estão alicerçados em
                                                                         como vemos ou lemos esta realidade e, também,
                                                                         em como os valores sociais estão sendo
                                                                         apresentados aprioristicamente a cada um de nós.
                                                                                SInalizo isto, com o intuito de dizer que
                                                                         os preconceitos não são desconectados da
                                                                         realidade, há um contexto social, histórico,
                                                                         político que favorece a emergência e o
                                                                         recrudescimento dos preconceitos, para o
                                                                         “bem” e para o “mal”, se assim tomarmos essa
                                                                         dicotomia. Já que, podemos dizer, somos uma
                                                                         sociedade de definições, de classificações, de
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                                                                         busca de explicações e respostas, de “verdades”
                                                                         e busca de “verdades”, da Ciência, das hipóteses,
                                                                         da lógica, das etiquetas, das planificações, dos
                                                 Figura 2                pressupostos, ...
                                                                                “Dessatanizar” os preconceitos, compre-
                                   Na figura 1 se apresentam um rato e um endê-los fora da lógica binária, do bem e do
                          homem idoso, na figura 2 duas mulheres, uma mal, do certo e do errado mostra-se produtivo
                          jovem e uma idosa. O que você viu?             como problematização. Uma vez que, não os
                          2
                            http://www.ceballos.ws/rat2.gif
                                                                         eliminamos com exorcismos, com sectarismos,
com fundamentalismos,mas com luta, sobre-
tudo interna, lutando com “aquela velha opi-
nião que temos sobre tudo”, com encontros,
com aproximações, com coragem. Ufa! E haja
aproximação, haja encontro! São tantos os
preconceitos: religiosos, políticos, sexuais, de
gênero, de cor/etnia, de raças, de classe. Con-
tra africanos e seus descendentes (negros), in-
dígenas, orientais, alemães, ciganos, gordos,
baixos, altos, minorias, maiorias, deficientes,
doentes... Contra quem pensa diferente de nós,
contra quem é a favor das cotas, contra quem é
contra, contra proletário, contra burguês, con-
tra os acadêmicos, contra os militantes, con-
tra, contra, preconceitos contra tantos e tantas
que parece que vivemos num mundo inviável.
       Não, não é com esta dimensão que             11
quero me aliançar. Portanto, queremos
convidar a quem é preconceituoso/a, e creio
que todos somos, numa dimensão ou outra,
a compreender que embora recebamos
um legado que nos “predetermina” a ser
preconceituosos/as, que embora tenhamos
nossas experiências que nos “determinam”
a ser preconceituosos/as, podemos deixar
de ser. Estamos diante de uma construção,
não de uma geração espontânea, universal,
eterna, imutável de idéias. Felizmente, creio,
somos sujeitos/pessoas em movimento, em
transformação, em construção e reconstrução
de saberes, de conhecimento, de conceitos,
de linguagem, de história, de vida...Somos
“metamorfoses ambulantes” e espero que a
serviço da vida, nossa e do outro, sobretudo do
outro muitas vezes diferente de nós, que nos
                                                   Revista A COR DO BRASIL




inquieta, nos leva a indagar, a perder o chão,
a buscar novas respostas, a sair da “segurança
do já dito, sabido, feito”.
c) Racismo                                           de “considerar o racismo não só um fator
                                                                               poderoso na produção da exclusão social, mas
                                Aqui, não vou me furtar a colocar algumas      principalmente o mecanismo civilizatório
                          definições de racismo, não de dicionários, mas        (portanto ocidental e cristão) de rejeição
                          de ativistas negros da luta contra o racismo.        existencial, ou seja, consciente e subconsciente,
                                                                               da alteridade”.
                                     [...] designa um comportamento                  Esta concepção nos ajuda a pensar o
                               de hostilidade e menosprezo em relação          racismo como alicerce da sociedade ocidental,
                               a pessoas ou grupos humanos cujas               na medida em que              engendra-se numa
                               características intelectuais ou morais,         “hiperracionalização sistemática dos juízos de
                               consideradas      ‘inferiores’,      estariam   valor positivos sobre a civilização ocidental, que
                               diretamente      relacionadas      a     suas   se reforça na medida em que se fortalecem os
                               características ‘raciais’, isto é, físicas ou   seus mecanismos racionalizantes (tecnologia,
                               biológicas                                      ciências), essencializando ou naturalizando a
                               (BORGES, MEDEIROS E D’ADESKY;                   cultura” (SODRÉ: op. cit, p.259).
                               2002, p. 48-49).
                                                                               d) <->Discriminação <->
                                       O racismo é um sistema de opressão      Racismo <-> Preconceito <->
                               da diferença marginalizada. Nesse               Desigualdades Sociais <->
                               sistema cada etapa se apóia, se nutre e se
                               sustenta na outra. Trata-se da opressão de
                               (...) tipos físicos ou grupos étnicos, por
 12
                               serem diferentes do modelo estabelecido
                               pelo opressor como padrão ideal. O ideal
                               de beleza física, de cultura, o modelo
                               padrão, é definido e estabelecido pelas
                               elites dominantes
                               (TEORORO, 1999, p. 98).

                                     Uma ideologia que defende
                               a hierarquia entre grupos humanos,                    Em síntese, há uma interação entre esses
                               classificando-os em raças inferiores e           termos sobretudo no que se refere a produção de
                               superiores.                                     exclusão social, subjugação e subalternização
                                                                               de segmentos significativos da sociedade.
                                    [...] a ideologia racista é um                   Cabe ressaltar, antes de finalizar este
                               conjunto de idéias utilizado para explicar      escrito, tendo em vista a Lei nº 10.639/03
                               determinada realidade, no caso, as              que, embora tenha destacado o caráter geral
                               desvantagens dos negros em relação aos          do preconceito e da discriminação, pensar na
                               brancos                                         situação dos negros, afro-brasileiros, que de
                               (BENTO,1998, p. 25).                            acordo com dados oficiais, constituem cerca de
Revista A COR DO BRASIL




                                                                               50% da população brasileira é um convite que
                                 O racismo é uma construção sócio-             se impõe.
                          histórica tecida ao longo dos séculos, na                  Compartilho com vocês a percepção,
                          perspectiva da exclusão, da dominação, na            oriunda de análises e observações do que
                          justificativa da apartação e hierarquização           acontece na sociedade, no que se refere ao
                          humana. O racismo não é natural, não é               tratamento dado à população negra afro-
                          intrínseco ao ser humano, às pessoas.                brasileira. Ou seja, quero evidenciar a
                                 Compactuamos com o destaque de Sodré          insensibilidade freqüente em relação ao seu
                          (1999, p. 258) que nos sinaliza a possibilidade      sofrimento e ao aviltamento da sua cidadania, o
silêncio quase cúmplice com o que acontece, em              SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros:
termos de desumanização, com esta população,          identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis,
em níveis micro e macro político. Por quê? Será             RJ: Editora Vozes, 1999.
racismo? O que você acha?                                   TRINDADE, Azoilda L. da. O racismo
      Finalizo este texto com reticências, texto      no cotidiano escolar. 1994. Dissertação
inconcluso como um ensaio e, ainda mais,                    (Mestrado em Educação) - IESAE/
de caráter panfletário. Espero, que soe como           FGV, Rio de Janeiro, 1994.
um convite ao seu envolvimento visceral no                  ______________________Reinventando
processo de construção de uma educação de             A Roda: Experiências multiculturais de uma
fato para todos/todas, que contemple, atendendo       educação para todos – Boletim do Programa
às diferenças e à rica diversidade da nossa           Salto Para O Futuro, TVESCOLA - 2002.
sociedade, sem hierarquizações das diferenças.
Proponho um olhar sobre a escola em que o
machismo, racismo, elitismo não encontrem
solo para florescer e reflorescer. É possível uma
sociedade melhor para todos e todas e a escola/
educação, creio, tem uma enorme e significativa
contribuição a dar nessa direção.

Referências

     BENTO, Maria Aparecida da Silva.
                                                                                                         13
Cidadania em preto e branco: discutindo as
     relações raciais. São Paulo: Ática, 1998.
     BORGES, Edson; MEDEIROS, Carlos
Alberto e d’ADESKY, Jacques. Racismo,
       preconceito e intolerância. São Paulo: Atual
Editora, 2002.
      MUNANGA, Kabengele. “Teorias sobre
o racismo”. In. HASENBALG, Carlos.
      Racismo: perspectivas para um estudo
contextualizado da sociedade brasileira.
Niterói: EDUFF, 1998.
      MUNANGA, Kabengele. Superando o
racismo na escola. Brasília-DF: Ministério
      da Educação, Secretaria de Educação
Fundamental, 2000.
                                                                                                        Revista A COR DO BRASIL
Raça, etnia e nação:
                          a ambigüidade dos
                          conceitos
                          Jacques d’Adesky

                          Doutor em Ciência Social / Antropologia,
                          Professor Titular da Universidade Cândido
                          Mendes.




 14                              As noções de raça, etnia e
                          nação não se deixam captar com
                          facilidade. Todas são de uso no
                          campo das ciências humanas e
                          utilizadas na língua corrente. São
                          noções que chegam a se entrelaçar.
                          Em certas circunstâncias, é usada
                          indiferentemente uma pela outra.
                          Em razão que estes termos encontram-
                          se no vocabulário político e no discurso
                          ideológico, convém esclarecer os seus sentidos.

                                A antropologia ajuda a compreender melhor essas duas
                          noções. Mostra que o significado do termo raça vem evoluindo
                          com o decorrer do tempo. Baseando-se nos estudos da genética,
                          aponta a ambigüidade que cerca a noção de raça. Em relação
                          à etnia, a antropologia analisa a idéia da nação moderna para
                          diferenciar claramente o que é etnia e o que é nação.
Revista A COR DO BRASIL




                                 Antigamente a palavra raça era de uso restrito. Referia-se
                          à família, a uma filiação, à nobreza. Não era usado para identificar
                          grupos humanos. Será necessário esperar para que o termo venha
                          designar um grupo de pessoas aparentadas (ou supostamente aparentadas) por
                          características físicas comuns. Mais tardar, no decorrer da primeira metade do
                          século XIX, o termo raça vem a incorporar além dos traços físicos, características
                          de outra natureza, como os elementos culturais, sociais, de modo que chegará a se
                          falar de raça indo-européia, raça semita, etc.
Durante o século XIX a
                                                      antropologia tenta classificar
                                                        as pessoas com base em di-
                                                         ferenças de natureza exis-
                                                            tentes entre os grupos.
                                                             A característica que se
                                                              impõem naturalmente é
                                                              a cor da pele que permi-
                                                              tirá definir as três raças
                                                              negra, branca e amare-
                                                              la. Mas as imprecisões
                                                              desta classificação não
                                                              podiam ser definitivas.
                                                              Não havia como agru-
                                                              par numa mesma raça
                                                              os habitantes da África
                                                              Central, os do Sul da
                                                               Índia e os que mora-
                                                                      vam na Mela-         15
                                                                        nésia. Todos
                                                                        tinham a pele
                                                                        muito escura,
                                                                       mas além deste
                                                                    traço, tudo os di-
                                                                ferenciava. Isto levou
                                                          a incluir outras caracterís-
                                                   ticas como a textura dos cabelos,
                                               o formato do crânio, etc.

                                                  Diante dos progressos da
                                               genética no século XX, renovou-
                                                       se a problemática das
                                                        raças. Não se tratava mais
                                                       de diferenciar os grupos
                                                      de indivíduos segundo os
                                                    seus caracteres aparentes
                                                                                          Revista A COR DO BRASIL




                                                (os fenótipos), mas segundo os
                                              conteúdos de seus patrimônios
                                            genéticos. Chega-se até mesmo a uma
                                          definição da raça que encontrou uma
                                        aprovação unânime e que é formulada
da seguinte maneira: uma raça é um conjunto de indivíduos que tem uma parte
importante de seus genes em comum e que pode ser diferenciado das outras raças em
função destes genes.
Quando se tratou de dar um conteúdo a esta definição, ao tentar
                                  precisar quais eram os genes que distinguiam os conjuntos de
                                      indivíduos, observou-se que o conjunto das semelhanças
                                             e das diferenças era tão complexo que mesmo com
                                                      a acumulação de novos dados genéticos
                                                             cada vez mais precisos, tornava-se
                                                                      mais difícil a classificação
                                                                               das diversas po-
                                                                                pulações com-
                                                                                 pondo a espécie
                                                                                 humana.

                                                                                       Em      face
                                                                               desta realidade os
                                                                            geneticistas tiveram
                                                                            que admitir que não
                                                                            era possível classificar
                                                                            as diversas populações
                                                                           humanas segundo as
                                                                           freqüências dos diver-
                                                                          sos genes contidos nos
                                                                        patrimônios       genéticos
 16
                                                                       destas populações. Se era
                                                                   possível, na base de caracteres
                                                             bem definidos, comparar as popu-
                                                        lações, analisar as distâncias observadas,
                                                     contudo estes trabalhos não permitiam che-
                                                    gar a uma classificação em raças. Concluí-
                                                   ram, portanto que a raça não era um fato, mas
                                                   um conceito. Não correspondia na espécie
                                                 humana a nenhuma realidade que pudesse ser
                                               definida de maneira objetiva.

                                                 Em conseqüência disto, será então necessário
                                          abandonar a idéia de raça? A nossa resposta é
                                         negativa. Pois o termo raça representa nos dias de
                                     hoje algo mais que uma simples classificação entre grupos
                                    de indivíduos. Pode apresentar dentro de certos contextos
                                 um significado ideológico quando afirma a existência de uma
                                hierarquia entre os grupos classificados. Além disto, ela é um
Revista A COR DO BRASIL




                          dado espontâneo da percepção. Por isso torna-se uma idéia construída
                          socialmente. E por ser construída, pode ter um impacto extremamente
                          grande nas sociedades dominadas pelo(s) racismo(s). Pois falar de
                           racismo(s) nessas sociedades, significa também falar sobre exclusão
                             e a marginalização de grupos ou populações menosprezadas em
                             virtude da raça. Possibilita, portanto discernir o(s) racismo(s) que
                             permeia(m) estas sociedades, mas também discutir as suas causas,
                            debater os seus efeitos assim como propor políticas públicas e ações
                          concretas de luta anti-racista.
Em relação à indeterminabilidade do            A coexistência desses
conceito de raça do ponto de vista de seu
uso corrente pela população, Pierre-André             dois conceitos que parecem
Taguieff 1 lembra que o homem comum tem
formas de percepção que nada têm a ver com            antinômicos deve compreender-se
os complexos modelos teóricos dos geneticistas
                                                      histórica e teoricamente.
contemporâneos. Ele não percebe seus vizinhos
com os olhos do espírito científico, pois ele
entende o discurso cientificamente autorizado          será a solução. O apelo a corrigir as palavras para
dos geneticistas anti-racistas como algo              melhorar as coisas é uma tentação permanente
distante, abstrato, angelical, sustentado pelas       do politicamente correto, alerta ele. A eliminação
elites do saber e desprovido do conhecimento          no vocabulário da palavra raça como prescrição
corriqueiro das raças socialmente percebidas.         da ação anti-racista remete, escreve ele, a uma
                                                      eugenia lexical negativa que crê matar o racismo
       O homem comum, continua Taguieff, não          eliminando a palavra. Tal supressão, segundo
vendo continuidade genética nem a diversidade         Taguieff, teria conseqüências contrárias ao
genética que torna os geneticistas tão otimistas,     efeito imaginado, pois reforçaria os mecanismos
continuará a tipificar e a classificar os indivíduos    racistas do “querer dizer”, favorecendo, assim,
segundo suas características perceptíveis e,          a normalização do racismo simbólico.
mais particularmente, visíveis. A desconstrução
científica da raça biológica, observa ele, não faz           A classificação do conceito de etnia é
desaparecer a evidência da raça simbólica, da         também necessária. É de grande importância
raça percebida e, invariavelmente, interpretada.      na medida em que a maioria das nações no               17

Acima de tudo o imaginário racista alimenta-          mundo atual são pluriétnicas. Além disso, a
se das semelhanças e das diferenças fenotípicas       etnia tornou-se para as minorias uma fonte de
da cor da pele até diversas características           solidariedade e, ao mesmo tempo, um espaço
morfológicas. Portanto, se para a biologia a          de afirmação de identidade no seio da nação.
noção de raça coloca problemas insolúveis             Tornaram-se também nos dias de hoje uma
de definição que a tornam ultrapassada, sua            referência crescente no cenário internacional
importância, indubitavelmente, não pode               quando se destaca, por exemplo, as lutas étnicas
ser negada. Porque a raça, queira-se ou não,          na África ou o genocídio e a limpeza étnica na
permanece sendo um elemento maior da                  antiga Iugoslávia.
realidade social, na medida em que emprega, a
partir das características físicas visíveis, formas          Como escrito no início, sabemos da
coletivas de diferenciação classificatória e           dificuldade de apreender a noção de etnia. Uma
hierárquica que podem engendrar, às vezes,            das fontes dessa situação provém do fato que
comportamentos discriminatórios individuais           até o nascimento da nação moderna, chamava-
ou coletivos.                                         se nação o que qualificamos hoje de etnia. Pois
                                                      etimologicamente, natio, nationis, refere-se não
      Em relação às propostas de certos               só àqueles que nascem no mesmo local, mas
                                                                                                            Revista A COR DO BRASIL




geneticistas e intelectuais que advogam a             também à família, à cidade, ao sangue, ao solo,
supressão da palavra raça, porque, segundo eles,      à época, à geração. Assim, a nação remete a
a idéia de raça só aparece como sobrevivência         etnia, dela nutrindo-se, principalmente quando
científica ultrapassada que traz em si o risco de      prevalece o conceito de nação baseado na raça
manter os preconceitos entre os leigos, Taguieff      e na língua.
ressalta que tirar da língua essa palavra, visando
apagar o racismo do espaço mental, também não              A coexistência desses dois conceitos
1
                                                      que parecem antinômicos deve compreender-
  TAGUIEFF, Pierre-André, Les fins de l’antiracisme,
Paris, Editions Michalon, 1995                        se histórica e teoricamente. De fato o
O critério de base territorial ajuda vezes que, devido às vicissitudes da guerra ou
                                                                             às conseqüências de migrações, as fronteiras
                             também a distinguir a nação da etnia, nacionais sejam fluidas e se sobreponham
                                                                             às de um outro grupo nacional efetivamente
                              se levarmos em conta que a idéia do reconhecido ou que aspire a sê-lo.
                           território é necessariamente inclusa no                 Portanto, podemos dizer que são as
                                                  conceito de nação...       características político-jurídicas, às quais se
                                                                             junta à existência de uma base territorial, que
                          processo histórico da construção dos Estados       afirmam o predomínio da nação moderna sobre
                          europeus modernos comporta dois aspectos           as etnias que asseguram a clara separação
                          complementares: a unificação cultural da            entre identidade nacional e identidade étnica,
                          população e a criação de estruturas políticas      uma vez que não somente o Estado se atribui
                          capazes de sustentar o desaparecimento da          o monopólio da coação orgânica, mas lhe cabe
                          sociedade feudal.                                  também, por direito, a necessária organização
                                                                             das aspirações de uma comunidade nacional
                                Em muitos países europeus, a construção      num território claramente delimitado, cuja
                          da nação e a unificação cultural realizaram-se      soberania é reconhecida por outros Estados.
                          paralelamente, sob o mando de um grupo étnico
                          dominante. Este modo de construção nacional              É essa clivagem que pressupõe o Estado-
                          influenciou profundamente os Estados da             nação como quadro político de referência e
                          periferia que surgem depois da descolonização.     permite colocar a etnia em segundo plano.
 18
                          Assim, por exemplo, vale relembrar nos países      O Estado-nação apresenta-se, assim, como o
                          africanos o papel assumido tanto pelo partido      espaço no interior do qual progressivamente
                          único quanto pelo exército em vista a integração   se atenua o predomínio da etnicidade em
                          de populações etnicamente fragmentadas em          favor da nacionalidade. É essa passagem de
                          uma nação pós-colonial.                            etnia para a nação que assegura ao conceito da
                                                                             cidadania a guarda de direitos civis e políticos
                                 Portanto, parece claro que a concepção      que só podem ser apanágio daqueles que uma
                          da etnia entendida como um conjunto de             identidade nacional designa, por toda parte,
                          indivíduos que partilham um certo número           como membros da comunidade nacional
                          de características, nomeadamente raciais,          dotados de plenos direitos. Portanto, a cidadania
                          lingüísticas, desatrela-se formalmente do          não está diretamente ligada à etnicidade. Não se
                          sentido moderno da nação, porque esta última       é cidadão de uma etnia, mas cidadão de uma
                          é relacionada a uma certa forma de Estado          nação. A cidadania indica o pertencimento ao
                          territorial, o Estado-nação, e ao privilégio de    povo soberano do Estado, segundo os princípios
                          soberania que lhe é concedido. Estas duas          dos modernos Estados-nações.
                          características político-jurídicas, a do Estado e
                          a da soberania, diferenciam sem ambigüidade a            Mas, se é necessário reconhecer que a et-
                          nação moderna e a etnia.                           nicidade implica um diferencial comunitário,
Revista A COR DO BRASIL




                                                                             ela não afirma, necessariamente, um antinacio-
                                 O critério de base territorial ajuda também nalismo. O que contribui para o dilaceramento
                          a distinguir a nação da etnia, se levarmos em entre o nacionalismo e o particularismo étnico
                          conta que a idéia do território é necessariamente são as antinomias e os dilemas vividos a partir
                          inclusa no conceito de nação, embora não seja das tentativas de homogeneização e de unifor-
                          um requisito imprescindível à existência de mização que negam o direito de cada um a uma
                          grupos étnicos. A referência histórica com um identidade cultural e a um enraizamento comu-
                          lugar (território) preciso é uma condição sine nitário diferente.
                          qua non da nação, podendo até acontecer às
A antinomia entre a naciona-         19
lidade e o particularismo identifi-
cador é marcante quando a política
do Estado é a de um represamento
dos pluralismos étnicos, podendo
então traduzir-se pela depreciação
dos particularismos em benefício da
promoção da identidade comum acima
das diferenças culturais.

       É o caso, em especial, dos
nacionalismos dos Estados multirraciais
ou multiétnicos que constroem políticas
assimilacionalistas     privilegiando
a matriz cultural dominante. Na
medida em que esses nacionalismos
defendem uma homogeneidade
cultural,   um      pertencimento
religioso ou histórico comum,
                                          Revista A COR DO BRASIL




eles podem impor, pelo recurso
a veleidades totalitárias, modelos
normativos que excluem os que são
diferentes. O nacionalismo torna-se
então um movimento voltado para
desenraizar e homogeneizar, impondo
àqueles que vivem no mesmo território
um modelo normativo do humano.
A ousadia que
                          transforma
                          100 anos da
                          Revolta da Chibata
                                Em novembro de 2010, o país      undo maior navio da Armada) e
                          rende justas homenagens à valentia     de mais seis embarcações meno-
                          e coragem de homens que oferece-       res ancoradas na baía. Foi en-
                          ram suas próprias vidas para mudar     tão emitido um ultimato no qual
                          a dura realidade da Marinha do         ameaçavam abrir fogo sobre a en-
                          Brasil, que impunha castigos físicos   tão Capital Federal. Eles exigiam
                          aos marinheiros de patentes inferi-    o fim das chibatadas e a anistia a to-
                          ores. Há 100 anos, João Cândido –      dos os revoltosos que se entregassem.
                          o Almirante Negro – coordenava a       A Marinha chegou a esboçar um ataque,
                          revolta que parou a então capital da   mas além de rechaçada, ainda sofreu um
 20                       República e garantiu, por decreto      bombardeio às instalações na ilha das Cobras.
                          presidencial, tratamento digno para
                          todos.                                       A cidade estupefata parou. Muitos
                                                                 curiosos se aglomeravam ás mar-
                                A Revolta da Chibata acon-       gens da Baía de Guanabara
                          teceu entre 22 e 27 de novembro        para acompanhar a
                          de 1910, no Rio de Janeiro, na         movimentação dos
                          época Capital da República. Dois       revoltosos. Uma
                          mil marinheiros se rebelaram con-      forte     pressão
                          tra a aplicação de castigos físicos,   popular pedia o
                          ameaçando bombardear o entorno         fim da revolta, que
                          da Baía de Guanabara. O estopim        era bravamente conduzida
                          da revolta foi a punição (com 250      com o mínimo de condições. Havia
                          chibatadas) aplicada ao marinheiro     pouca comida e a munição era escassa.
                          Marcelino Rodrigues Menezes,
                          do Encouraçado Minas Gerais.                 Em 26 de novembro, já sem al-
                          Por ter ferido um cabo com uma         ternativa, o então presidente Hermes da
                          navalha, ele recebeu o castigo na      Fonseca, determinou o fim dos castigos e
                          presença da tropa formada, ao som      garantiu a anistia dos revoltosos. Porém, sua
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                          de tambores. O rigor dessa punição,    promessa não foi cumprida. Os revoltosos fo-
                          considerada desumana, provo-           ram detidos com requinte de crueldade na Ilha das
                          cou a indignação da tripulação.        Cobras. Outros, após serem expulsos de seus navios,
                                                                 acabaram assassinados. Dos dois mil homens que se atrev-
                                Na noite de 22 de novembro,      eram a clamar por liberdade, menos de cem ficaram vivos.
                          os marinheiros do Encouraçado Mi-
                          nas Gerais se amotinaram, mataram            João Cândido, líder da rebelião e que sobreviveu a
                          quatro oficiais, obtiveram a adesão     todos os martírios, foi internado como louco e indigente
                          do Encouraçado São Paulo (o seg-       no Hospital dos Alienados, em 1911. Sua absolvição - e
A COR
                                                                            Revista

                                                                            DO BRASIL




                                    a de outros sobreviv-          do delegado da Capitania dos Por-
                                    entes - só aconteceu em        tos de Porto Alegre. O apoio foi
                                    1913. Somente em 2008          dado pelo Almirante Alexandrino
                                    ele e seus companheiros        de Alencar, ex-ministro da Mar-
                                   seriam reconhecidos como        inha que conhecia a família do
                                                                   menino.
                                  Heróis Nacionais. Foi a
                                  menos de dois anos que um                João Cândido conheceu os
                                 estátua de bronze daquele         quatro continentes navegando pela
                                que liderou a revolta foi er-      Marinha, o que lhe deu uma nova
                               guido na Praça XV.                  concepção de mundo. Foi nestas
                                                                   viagens que percebeu a diferença          21
                          Memória e homenagem                      com que os marujos da Europa e
                                                                   de outros lugares eram tratados.
                                        É em homenagem             Ele se perguntava por que apenas
                                      à valentia daqueles          a Marinha do Brasil ainda impunha
                                        que ofereceram             castigos físicos aos seus subordina-
                                                                   dos. Apesar de não ter sido alvo das
                                          suas próprias vi-
                                                                   chibatas, o marinheiro negro sofria
                                           das para mudar          com o que via à sua frente: vários
                                           a história da           homens sendo submetidos a casti-
                                          Marinha e do             gos cruéis impostos pelas chibatas
                                      Brasil que o Centro          - feitas com pregos nas pontas que
                               de Articulações de Popu-            rasgavam a pele e faziam escorrer
                           lações Marginalizadas (CEAP)            sangue e dor.
                       escolheu o tema “João Cândido, o
                                                                   Fonte: Projeto Memória Banco do Brasil
                    Marinheiro da Liberdade - 100 anos
                da Revolta da Chibata” para edição do
              Prêmio Camélia da Liberdade e de seu
            Concurso de Redação. O prêmio, patrocinado
         pela Petrobras e que já está na sua quinta edição,
                                                                                                            Revista A COR DO BRASIL




      pretende resgatar a memória de homens e mul-
    heres negros que fizeram a diferença na história do país.

Almirante Negro

       João Cândido nasceu nas serras gaúchas em 1880, oito
   anos antes da abolição da escravatura. Filho de escravos, aos
  13 anos lutou na Revolta Federalista. Aos 15, foi enviado por
 seus pais para o Rio de Janeiro com uma carta de recomendação
Alexandre do Nascimento

                           Doutorando em Serviço Social (UFRJ),
                            Mestre em Educação (UERJ), Profes-
                           sor e Integrante do Núcleo de Estudos
                            Étnico-Raciais e Ações Afirmativas da
                          Fundação de Apoio à Escola Técnica do
                           Rio de Janeiro (Faetec) e Professor do
                          Movimento Pré-Vestibular para Negros e
                                               Carentes (PVNC).




 22
Revista A COR DO BRASIL
PARA UMA PEDAGOGIA
DA (RE)EDUCAÇÃO DAS
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

              Na sociedade e na educação, uma nova demanda se coloca a
      partir da promulgação da Lei Federal 10.639/03 e do Parecer 003/04
      e Resolução 01/04, ambos do Conselho Nacional de Educação que,
      como já sabemos, instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e
      cultura afro-brasileira e africana e as diretrizes gerais deste ensino.
      Trata-se, de um modo geral, da concretização de uma das propostas
      e exigências mais importantes da luta histórica do Movimento Social
      Negro1, que se insere no campo da educação e, pois, da produção                        23
      de uma nova consciência social-histórica e uma nova cultura. Esta
      demanda se coloca para o currículo escolar e para a pedagogia, que
      necessariamente, devem passar por uma reestruturação, sobretudo nas
      disciplinas de história, literatura e educação artística, como diz a Lei,
      e por uma revisão de práticas tradicionais.

               Estamos, dessa forma, diante de um novo desafio colocado para
      os educadores pela exigência social de democratização das relações
      sociais, que no Brasil passa indispensavelmente pela superação do
      racismo, dos preconceitos e discriminações contra os descendentes
      de africanos, sua história, valores e produções culturais. Como essa
      exigência social não diz respeito somente ao combate às desigualdades
      raciais, o currículo e a pedagogia se tornaram parte dessa perspectiva,
      pois o conceito de democracia propõe igualdade e não uniformidade.
                                                                                            Revista A COR DO BRASIL




             Neste sentido, além da igualdade de condições socioeconômicas,
      a democracia proposta que a multiplicidade de movimentos sociais
      requer que todas as pessoas, como são, sejam reconhecidas, visíveis
      e tenham as mesmas oportunidades de participação na sociedade,

      1
        Para os organizadores do I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em
      1991 na cidade de São Paulo, “o Movimento Negro se define como o conjunto de
      entidades e grupos, de maioria negra, que têm o objetivo específico de combater o
      racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes africanas e que não são vincu-
      lados a estruturas governamentais e partidárias” ( D’Adesky, 2001).
na economia e na política, respeitando-se                  possuem a disciplina Cultura e Cidadania,
                          suas singularidades e as dimensões culturais               entre outros cursos pré-vestibulares que atuam
                          e raciais que as compõe. Os movimentos                     contra as discriminações e desigualdades
                          sociais, principalmente aqueles que lutam pelo             raciais na educação, são outros exemplos de
                          reconhecimento dos direitos de cidadania,                  movimentos que possuem propostas e práticas
                          dos direitos culturais e dos chamados direitos             pedagógicas preocupadas com a superação do
                          humanos para os grupos sociais estigmatizados              racismo e com a produção de uma nova cultura
                          e discriminados por preconceitos e racismos,               de relações étnico-raciais.
                          ocupam uma posição chave nesse projeto de
                                                                                             A Lei nº 10.639/03 tornou uma das
                          democracia, pois além de atores necessários
                                                                                     principais reivindicações do movimento negro
                          ao processo de produção/universalização de
                                                                                     em um direito da sociedade e um dever para
                          direitos são, num sentido amplo, movimentos
                                                                                     a educação formal. Ou seja, os sistemas de
                          que contribuem para a educação geral da
                                                                                     ensino devem incluir o ensino de história e
                          sociedade. No caso da luta anti-racista, tendo
                                                                                     cultura afro-brasileira e africana e a educação
                          em vista uma mudança cultural e simbólica
                                                                                     das relações raciais em seu trabalho. E os
                          não estereotipada e baseada no reconhecimento
                                                                                     educadores e educadoras, como agentes
                          positivo das heranças históricas e culturais de
                                                                                     principais desse processo, devem rever suas
 24                       origem africana, setores do movimento social
                                                                                     práticas pedagógicas e incluir o debate sobre
                          chegaram a desenvolver propostas pedagógicas
                                                                                     relações raciais e o legado histórico-cultural de
                          bem elaboradas e direcionadas à educação
                                                                                     origem africana no Brasil.
                          escolar.
                                                                                             Como trabalhar esses conteúdos em
                                  No movimento negro, por exemplo,
                                                                                     sala de aula? Em que consiste o que a Lei
                          podemos citar as propostas de Pedagogia
                                                                                     denomina de “educação das relações étnico-
                          Interétnica2 e de Pedagogia Multirracial3.
                                                                                     raciais”? Como criar formas de dialogar com
                          Além dessas, muitas outras propostas foram
                                                                                     alunos e alunas sobre racismo, preconceito,
                          e continuam sendo criadas por militantes,
                                                                                     discriminação e intolerâncias em relação a
                          educadores e pesquisadores negros e negras,
                                                                                     negros, homossexuais, mulheres, deficientes
                          tendo sempre como objetivo a superação do
                                                                                     e outros grupos sociais historicamente
                          racismo, dos preconceitos e das discriminações
                                                                                     discriminados? Eis alguns dos desafios que
                          raciais. O movimento dos cursos pré-
                                                                                     educadores e educadoras devem enfrentar.
                          vestibulares para negros, com destaque para o
                                                                                     E nesse enfrentamento o ponto de partida
                          Curso Pré-Vestibular do Instituto Steve Biko,
Revista A COR DO BRASIL




                                                                                     é, conscientemente, fazer a opção ética pela
                          que possui a disciplina Cultura e Consciência
                                                                                     igualdade de tratamento e de reconhecimento,
                          Negra, para o Pré-Vestibular para Negros e
                                                                                     pelo respeito às diferenças, pela multiplicidade
                          Carentes (PVNC) e o Instituto Educafro, que
                                                                                     e, pois, por uma educação democrática e cidadã.
                          2
                            Essa proposta pedagógica foi desenvolvida pelo profes-
                          sor Manoel de Almeida Cruz, em Salvador-BA.Ver LIMA               Porém, considerando o movimento
                          (2007).                                                    negro como o principal produtor de práticas
                          3
                            Maria José Lopes. Pedagogia Multirracial em contra-
                          posição à ideologia do branqueamento na Educação. In:      e conteúdos para a educação, o currículo e a
                          Núcleos de Estudos Negros (1997, p. 23-37).
25




No movimento negro, por
 exemplo, podemos citar as
  propostas de Pedagogia
Interétnica e de Pedagogia
                             Revista A COR DO BRASIL




      Multirracial.
(re)Educação das
                                                              Relações
                          pedagogia, podemos partir concretamente da         movimento negro constituem um terceiro
                          seguinte questão: O que os educadores podem        elemento de análise e aprendizado que
                          apreender e aprender dessas lutas e das práticas   educadores e educadoras podem tomar como
                          produzidas por elas?                               referência para pensarmos e experimentarmos
                                                                             novos conteúdos e formas anti-racistas e
                                  A primeira coisa que podemos aprender
                                                                             multirraciais, no currículo escolar e no fazer
                          com essa luta histórica é que a educação escolar
                                                                             pedagógico. Como já dissemos, a perspectiva
                          é parte de uma cultura racista, preconceituosa
                                                                             anti-racista, a valorização das diferenças
                          e discriminatória que estabelece hierarquias e
                                                                             étnico-raciais e de reconhecimento das histórias
                          desigualdades entre os diversos grupos sociais,
 26                                                                          e produções sócio-culturais de africanos e afro-
                          seus valores e aspectos culturais. Não são
                                                                             descendentes, são fundamentais no Brasil para
                          poucas as pesquisas e análises que comprovam
                                                                             um processo social mais amplo de constituição
                          e concluem que a escola e as suas práticas
                                                                             das condições objetivas e subjetivas de
                          educacionais são, também, reprodutoras e
                                                                             igualdade, autonomia e, pois, de democracia.
                          produtoras de preconceitos, discriminações,
                                                                             A educação (e, obviamente, os educadores e
                          hierarquias e desigualdades raciais.
                                                                             educadoras) tem uma importante e indispensável
                                  O segundo aprendizado é que as             contribuição nessa perspectiva, a partir do
                          propostas de promoção de igualdade racial e        momento em que se inicie uma reestruturação
                          de reconhecimento histórico, social, cultural      curricular que incorpore de forma consciente
                          e estético positivo, bem como a valorização        e positivamente, os princípios de Consciência
                          da multiplicidade étnica e cultural inserem-se     Política e Histórica da Diversidade, de
                          num processo democrático. E também não são         Fortalecimento de Identidades e de Direitos e
                          poucas as pesquisas e análises que mostram         de Ações Educativas de Combate ao Racismo e
                          que as imensas desigualdades socioeconômicas       às Discriminações4.
Revista A COR DO BRASIL




                          do Brasil e, portanto, a falta de democracia
                          material, tem no racismo um dos principais
                          determinantes.

                                  A observância das relações entre
                          educação, preconceitos e discriminações
                                                                             4
                                                                              Esses princípios constam das Diretrizes Curriculares
                          raciais, bem como de propostas e experiências      Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
                                                                             e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
                          pedagógicas desenvolvidas no âmbito do             Africana. In: MEC/Secad (2006).
Étnico-Raciais
                                                     sentido, alguns conceitos ajudam na construção
                                                     de perspectivas, projetos e ações político-
                                                     pedagógicas. Destaco o conceito Diversidade
                                                     como sendo a perspectiva que deve assumir
                                                     uma proposta para a (re)educação das relações
                                                     étnico-raciais.

                                                             Primeiramente, podemos definir Diver-
                                                     sidade, do ponto de vista sócio-cultural, como
        Propostas para uma                           o conjunto das diversas formas de vida, estilos,
               Pedagogia da                          valores, visões de mundo. A diversidade é uma        27
                                                     multiplicidade de sujeitos sociais singulares que
           (re)Educação das
                                                     possuem história e cultura. “Essa constatação
     Relações Étnico-Raciais                         indica que é necessário repensar a nossa escola
                                                     e os processos de formação docente, rompendo
         Assim como tem sido até então reprodutora   com as práticas seletivas, fragmentadas, corpo-
 e produtora de preconceitos, discriminações,        rativistas, sexistas e racistas ainda existentes”
 depreciações e hierarquias étnico-raciais, a        (Sodré apud MEC/Secad, 2006, p. 218). Porém,
 educação escolar pode passar a ser o oposto,        “Assumir a diversidade cultural significa muito
 ou seja, uma atividade de reconhecimento e          mais do que um elogio às diferenças. Represen-
 valorização da multiplicidade e das diferenças      ta não somente fazer uma reflexão mais densa
 étnico-raciais, de produção de uma consciência      sobre as particularidades dos grupos sociais,
 política e histórica da diversidade e de crítica    mas, também, implementar políticas públicas,
 ao racismo e qualquer forma de discriminação e      alterar relações de poder, redefinir escolhas, to-
 intolerância, e já começa a sê-lo pelo menos nas    mar novos rumos e questionar a nossa visão de
                                                                                                         Revista A COR DO BRASIL




 suas diretrizes, nas políticas educacionais do      democracia” (Gomes apud MEC/Secad, 2006,
 Ministério da Educação e algumas Secretarias        p. 218).
 Estaduais e Municipais e nas preocupações dos               Na educação escolar, assumir a
 educadores, que cada vez em maior número            diversidade significa reconhecer e valorizar
 mobilizam esforços de pesquisa, aquisição           as diferenças étnico-raciais e, para isso, deve-
 de conhecimentos e seleção de material para         se fazer escolas curriculares e pedagógicas
 dar conta da questão em sala de aula. Nesse         coerentes com essa perspectiva, o que mais que
explicitar diferenças é colocar em discussão as
                          relações de poder e criar condições de troca,
                          reciprocidade, reconhecimento e respeito ao
                          outro. Portanto, como perspectiva e como
                          conceito, a diversidade pode servir como
                          base e objetivo geral de um projeto político-
                          pedagógico cujo principio seja uma aposta
                          na multiplicidade, o que quer dizer que a
                          pedagogia passa a ser não apenas uma ação
 28                       de explicitação, mas fundamentalmente uma
                          ação de produção de singularidades. Porém,
                          isso não se faz sem um permanente diálogo
                          sobre os preconceitos e discriminações, sobre
                          as dimensões raciais da desigualdade social
                          e as relações de poder estabelecidas, sempre
                          na perspectiva na superação do racismo e          valorização da história, cultura, cidadania e
                          do etnocentrismo. Trata-se, então, de uma         reconstrução da auto-estima dos integrantes
                          pedagogia militante e constituinte, na medida     desses grupos sociais.
                          em que pretende explicitamente produzir uma
                                                                                    Isso conduz ao segundo elemento
                          nova cultura, um novo jeito de ser, uma nova
                                                                            do projeto, que é trabalhar com as noções de
                          visão estética e de relações sócio-culturais.
                                                                            multiplicidade, diferenças e identidade. Essas
                                  O primeiro elemento desse projeto         noções são importantes às práticas que visam
                          é colocar no centro os grupos sociais             ajudar os educandos a desenvolverem as
                          estigmatizados e discriminados (raça/etnia,       dimensões que os compõe, a compreenderem
Revista A COR DO BRASIL




                          gênero, orientação sexual), propondo conteúdos    que as diferenças étnico-raciais, culturais e
                          e atividades coerentes com essa opção, ou seja,   religiosas não são desigualdades e, portanto, não
                          um conjunto de conteúdos, leituras e debates      comprometem o ideal de igualdade de direitos,
                          que explicitem e discutam as relações de poder    oportunidades, tratamento e reconhecimento, e
                          que se estabeleceram entre as raças, culturas     que a multiplicidade é uma relação aberta das
                          e gêneros, sempre no sentido de superação         identidades singulares, que em cooperação
                          da discriminação e que avance no sentido da       constituem o comum. É afirmando-se como
multiplicidade, ou seja, como singularidades
que cooperam que se mantém como tais, que as
novas lutas contra o racismo, cujas principais
expressões são os movimentos culturais das
favelas e periferias e os cursos pré-vestibulares    Desenvolvimento         de     atividades
para negros, produzem direitos, estilos,               culturais, artísticas e musicais, não
diversidade e o desmoronamento definitivo da            apenas aquelas que resgatam a história,
hibridação freyreana.                                  mas que fundamentalmente incorporem
                                                       elementos da cultura de origem africana
        Esses elementos - colocar no centro os
                                                       e produzam estilos e formas singulares
grupos sociais estigmatizados e discriminados
                                                       de estéticas, de linguagem, de expressão,
e as trabalhar com as noções de multiplicidade,
                                                       etc. O hip-hop, por exemplo, é uma
diferenças e identidade - são pontos básicos de
                                                       dessas produções;
um novo projeto político-pedagógico e, dentro
dele, pode-se propor e produzir ações e práticas     Mobilização das diversas disciplinas
concretas, tais como:                                  em projetos comuns. Um projeto sobre
                                                       África, por exemplo, pode mobilizar
    Uma postura crítica dos educadores,
                                                       diversas áreas, como história, literatura,
      independente da disciplina que
                                                       redação,      geografia,       matemática      29
      leciona, em face de manifestações
                                                       (no trabalho com as estatísticas da
      preconceituosas e racistas entre
                                                       desigualdade racial, por exemplo),
      estudantes,    entre   professores    e
                                                       ciências (na discussão da biodiversidade,
      estudantes e no âmbito geral da escola.
                                                       das produções científicas), informática
      Isso é muito importante, pois não é
                                                       (na sistematização de dados, produção
      incomum na escola as atitudes de
                                                       de hipertextos, etc.), arte e educação
      desprezo, depreciação e desrespeito em
                                                       física (danças, teatro, capoeira etc.). Um
      relação a estudantes negros(as), muitas
                                                       projeto deste tipo pelo menos uma vez
       vezes em forma de “brincadeiras” em
                                                       ao ano, com apresentações na semana
       relação à cor da pele e ao cabelo. Tal
                                                       do 20 de novembro, por exemplo, ajuda
       postura deve mobilizar não apenas os
                                                       a mobilizar esforços em pesquisa e
       professores, mas os diversos setores da
                                                       produção de materiais informativos.
       escola, como diretores, supervisores,
                                                       O trabalho pedagógico por projetos é
       orientadores    e    inspetores.    Os
                                                       uma das dimensões mais importantes
                                                                                                    Revista A COR DO BRASIL




       orientadores educacionais, em especial,
                                                       dessa pedagogia da (re)educação das
       devem buscar entender o impacto
                                                       relações raciais com foco no anti-
       das depreciações na auto-estima e no
                                                       racismo, na produção de multiplicidade
       desempenho escolar dos estudantes;
                                                       e singularidades étnico-raciais;

                                                     Criação de grupos ou círculos de leitura
                                                       de textos da literatura brasileira e
                                                       africana;
 Debates a partir de palestras de militantes         Outro elemento, não menos importante,
                             do movimento negro, pesquisadores e é o da luta pela constituição material de direitos.
                             artistas que trabalham com a temática Neste ponto, a compreensão do conceito de
                             ou a partir de filmes, leituras de textos; ação afirmativa e as políticas concretas que
                                                                         são propostas a partir dele é muito importante.
                           Incorporação da temática pelas
                                                                         Inicialmente é preciso que os educadores
                             disciplinas     em     seus     conteúdos
                                                                         debatam as políticas em discussão que se
                             programáticos. Além das disciplinas
                                                                         apresentam na sociedade, como a proposta de
                             de História, Literatura e Educação
                                                                         cotas raciais e outras, no contexto do debate
                             Artística, que são os lugares principais
                                                                         teórico e político sobre ações afirmativas,
                             em que, segundo a Lei nº 10.639/03,
                                                                         observando na realidade social concreta as
                             deve se desenvolver de forma
                                                                         desigualdades e as barreiras raciais impostas aos
                             sistemática o ensino de história e cultura
                                                                         afro-descendentes e não um moralismo abstrato
                             africana e afro-brasileira, conteúdos
                                                                         segundo o qual todos devem ter os mesmos
                             sobre África, história e produções dos
                                                                         direitos e possibilidades. A perspectiva do
                             afro-brasileiros e de uma (re)educação
                                                                         conceito de ação afirmativa insere num projeto
                             das relações étnico-raciais podem ser
                                                                         de democratização dos direitos, de distribuição
                             trabalhados pelas outras disciplinas.
 30                                                                      de renda, de reconhecimento e, portanto, de
                             Língua Portuguesa, Redação, Geografia,
                                                                         produção de condições objetivas e subjetivas de
                             Sociologia, Ciências, Matemática e
                                                                         igualdade e autonomia. Cabe aos educadores,
                             Educação Física, levando para seus
                                                                         além da compreensão teórica e política do
                             currículos, por exemplo, discussões
                                                                         conceito de ação afirmativa, a explicitação de
                             sobre a influência dos idiomas de
                                                                         todas as dimensões desse conceito e os motivos
                             origem africana em nosso universo
                                                                         que levaram o movimento negro a se tornar o
                             lingüístico, temas a serem explorados na
                                                                         protagonista intelectual e militantes das ações
                             produção de textos, informações sobre
                                                                         afirmativas no Brasil. Mesmo porque a Lei nº
                             características físicas, populacionais
                                                                         10.639/03, as Diretrizes Nacionais Curriculares
                             e culturais do continente africano,
                                                                         para e Educação das Relações Étnico-Raciais
                             textos e debates sobre relações raciais
                                                                         e para o Ensino de História e Cultura Afro-
                             e desigualdades, o debate sobre raça do
                                                                         brasileira e Africana e a pedagogia que estamos
                             ponto de vista biológico e sociológico,
                                                                         discutindo e propondo, inclusive neste texto,
                             tabelas e gráficos estatísticos, as danças,
                                                                         são também ações afirmativas, ou seja, inserem-
                             o samba, a capoeira, tudo isso situado
Revista A COR DO BRASIL




                                                                         se numa perspectiva de afirmação de identidade
                             no tempo e no espaço. Até mesmo a
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                             de textos, planilhas, banco de dados, de valorização da diversidade étnico-racial pelos
                             hipertextos e softwares.                    educadores que ainda não se mobilizaram para
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Revista a cor_brasil_2010
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Revista a cor_brasil_2010

  • 1.
  • 2. Revista A COR DO BRASIL Sumário 2 Enxergar o Brasil com um novo olhar - Esse é o desafio Ivanir dos Santos 4 DISCRIMINAÇÃO, RACISMO, PRECONCEITO E DESIGUALDADE SOCIAL: ENSAIANDO UM PANFLETO PEDAGÓGICO Azoilda Loretto da Trindade 14 Raça, etnia e nação: a ambigüidade dos conceitos Jacques d’Adesky 20 A ousadia que transforma 100 anos da Revolta da Chibata 22 PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Alexandre do Nascimento 32 Movimento Negro Brasileiro: uma pedagogia de exemplos e desafios Amauri Mendes Pereira A lei 10.639 torna obrigatório a inclusão da história da África e da cultura negra no currículo escolar do ensino básico. A revista A Cor do Brasil é uma contribuição ao fomento de debates sobre o tema relacionado ao concurso de redação promovido pelo projeto Camélia da Liberdade e servirá como subsídio para alunos e professores das redes pública e privada do Estado de Rio de Janeiro. A Cor do Brasil é uma publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP Rua da Lapa, 200 – gr.810 – Centro RJ – CEP: 20021-180 – Tels.: (21) 2242-0961 / 2232-7077 e-mail: ceap@portalceap.org.br camelia@portalceap.org.br Site: www.portalceap.org.br Edição e produção: Espalhafato comunicação e produção / Programação visual: Ricardo Bogéa Rio de Janeiro, 2010 Patrocínio
  • 3. Ivanir dos Santos 2 Revista A COR DO BRASIL Professores são certificados pelo Curso de Professoras da Fundação de Ensino de Niterói, Capacitação de professores da Lei 10.639/03, recebem o livro “ Ações Afirmativas, Atitudes ministrado pelo Centro de Articulação de Populações positivas” após palestra sobre educação, ministrada Marginalizadas. por Ivanir dos Santos .
  • 4. Enxergar o Brasil com um novo olhar Nesses cinco anos em que o Centro de efetiva. Difícil por que somos obrigados a nos Articulação de Populações Marginalizadas enxergar e pensar sob uma nova ótica, a partir de (CEAP) realizou o Projeto Camélia da outros conceitos, que não os europeus. Pensar a Liberdade foi possível perceber que o maior própria realidade nos leva a crescer como povo desafio da sociedade brasileira é se pensar e nação. E crescer dói, causa mal-estares. fora do contexto eurocêntrico. Os padrões dos nossos heróis e de ícones históricos se A escolha do centenário da Revolta da baseiam, fora do círculo dos profissionais de Chibata como tema deste ano para o Prêmio e ensino engajados nas lutas do Movimento o Concurso de Redação Camélia da Liberdade Negro, na perpetuação da invisibilidade tem a finalidade de propor uma reflexão sobre das contribuições que os descendentes o que nos contaram e o que é fato. Neste caso de africanos deram ao Brasil. Enxergar a específico, o que nos contaram é que os castigos 3 formação social de uma nação, assim como físicos impostos aos negros foram abolidos já fazem países como o México e a Costa junto com a escravidão, em 1888. Poucos são Rica, a partir das contribuições de todos os os livros que narram, mesmo de forma concisa, povos que a compõem é recontar a própria a história de João Cândido, líder da revolta, e história e entender o papel e quinhão que como se deu o motim. O fato é que dois mil nos cabe. marujos, negros e mulatos, quase trinta anos após a abolição da escravatura, ainda recebiam A Lei 10639/03 - que instituiu o ensino castigos físicos de superiores militares, que em da História da África, da Cultura Afrobrasileira sua esmagadora maioria eram de ascendência e do papel do negro na sociedade, no ensino européia. Foi preciso que a capital federal, fundamental e médio das escolas públicas e na época, fosse ameaçada por marinheiros privadas, do país – tem pretensão muito maior amotinados para que milhares de homens livres que o de resgatar a dívida histórica que o Brasil pudessem ser tratados com dignidade. tem com os negros e negras descendentes de africanos que vieram para cá sob o domínio do O Brasil levou 98 anos para reconhecer tráfico. Ela propõe uma nova perspectiva de João Cândido como Herói Nacional. Assim compreensão da identidade nacional e desloca como levou 115 anos – entre a abolição da os padrões impostos, por séculos, pelos nossos escravatura e a confecção da Lei 10639/03 Revista A COR DO BRASIL colonizadores. O caráter democrático da Lei – para reconhecer a importância de contar a em questão implica um real conhecimento da história dos descendentes de africanos que a participação e contribuição dos afro-brasileiros nossa história não contou. Porém, o atraso que na formação econômica, cultural e social do insiste em tratar negros e negras como atores Brasil mas, sobretudo, mexe na urdidura de invisíveis da sociedade brasileira deve servir intolerâncias decorrentes do preconceito tão para explicitar o que de melhor nossos ancestrais banalizado em nossa sociedade. Intolerância ensinaram: a capacidade de resistir na busca do cultural, intolerância racial, intolerância sonho e a de encarar desafios como quem grita religiosa. Por isso é tão difícil sua implementação por liberdade.
  • 5. 4 DISCRIMINAÇÃO, RACISMO, PRECONCEITO E DESIGUALDADE SOCIAL: ENSAIANDO UM PANFLETO PEDAGÓGICO Azoilda Loretto da Trindade* “Ser capaz de sentir indignação contra qualquer injustiça cometida Revista A COR DO BRASIL contra qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais bela de um militante.” Ernesto “Che” Guevara * Pedagoga, Psicóloga, Mestre em Educação e Doutora em Comunicação Social e, principalmente, ativista da luta contra o racismo.
  • 6. 5 Diante da necessidade de escrever sobre Reflexões temas que me inquietam, me vi sem inspiração para efetivamente dizer algo contundente sobre Gostaria de pensar estes termos questões que fazem parte de minha existência. (Discriminação, Racismo, Preconceito e Os prazos esgotados, as cobranças justas e o Desigualdade Social) como amalgamados, texto – um monte de palavras colocadas sobre complementares. Se, inicialmente, destaco os a tela do computador – não expressava, nem conceitos é só como estratégia didática, pois de longe, algo significativo e que pudesse, na no dia-a-dia, o que vale combater são as ações minha opinião, tocar o leitor. Pus-me a pensar, preconceituosas, racistas, discriminatórias buscar referências, quer em livros, quer a partir produtoras e reprodutoras de desigualdades de observações do cotidiano, em músicas, sociais. filmes,... Tentei fazer uma imersão mais Quero destacar, no entanto, que o intencional na temática, partindo da premissa caminho por mim trilhado não corresponde, que, numa sociedade que é discriminatória, evidentemente, a uma unanimidade. E creio preconceituosa e racista, essa imersão já foi Revista A COR DO BRASIL ser importante enfatizar que a necessidade naturalizada... Esse distanciamento permitiria, de uma definição, ainda que imprecisa, é talvez, produzir o trabalho que pretende ser nada apenas para que possamos ter tranqüilidade mais do que uma reflexão a ser compartilhada para compreender o sentido, o processo e os com potenciais pessoas leitoras. Um texto não engendramentos de tais ou quais conceitos em acadêmico, mas nem por isso sem os requisitos nossa vida cotidiana. Afinal, concordamos com básicos necessários a um texto, temperado para Munanga (1998) quando diz que quem define seduzir. Espero que seja uma leitura saborosa o racismo são os anti-racistas que, por sua e nutritiva para alimentar os nossos ideais vez, partem de perspectivas diversas, às vezes libertários e libertadores. opostas, que dificultam a construção de uma
  • 7. definição unânime. Esta falta de consenso na definição do racismo faz com que os anti-racistas se fixem em compreender o racismo e os racistas a agirem. Vamos ao trato dos conceitos, que são, no meu ponto de vista, de uma certa forma, polissêmicos e polêmicos. 6 Revista A COR DO BRASIL
  • 8. a) Discriminação 3 - Derivação: por extensão de sentido. tratamento pior ou injusto dado a alguém por “Lutar pela igualdade sempre que as causa de características pessoais; intolerância, diferenças nos discriminem; preconceito. lutar pelas diferenças sempre que a Ex.: os idosos lutam contra a d. no igualdade nos descaracterize.” mercado de trabalho. 4 - Rubrica: termo jurídico. Boaventura de Souza Santos Ato que quebra o princípio de igualdade, como distinção, exclusão, restrição ou Recentemente, fui a um encontro em que preferências, motivado por raça, cor, sexo, uma das palestrantes fortalecia a tese de se idade, trabalho, credo religioso ou convicções banir qualquer forma de discriminação. Ora, políticas. como educadora, pessoa que pensa palavras, ações, pensamentos... comecei a refletir sobre Discriminar o tema de maneira mais crítica... Ora, na escola, a discriminação não é algo totalmente 1 - Verbo transitivo direto e bitransitivo ruim, ela é, por vezes, demandada. Lembram perceber diferenças; distinguir, discernir das classes de alfabetização e mesmo da Ex.: <d. bem as cores> <d. o certo do educação infantil? A criança deve ser capaz de errado> <d. entre uma cópia e o original> “discriminar” as letras p-b-d-q, os tamanhos, transitivo direto. as cores, as formas... Alguns setores sociais lutam pelo que chamam “discriminação 2 - Colocar à parte por algum critério; 7 positiva”... – observem, por exemplo, as especificar, classificar, listar. cotas para mulheres nos partidos políticos, Ex.: é preciso d. os artigos em falta as cotas para portadores de deficiências transitivo direto e pronominal nos concursos públicos...Afinal, como 3 - Não (se) misturar; formar grupo à parte perceber as diferenças, as singularidades, por alguma característica étnica, cultural, religiosa as peculiaridades sem discriminar? Em que etc.; separar(-se), apartar(-se), afastar(-se) consiste a discriminação? Podemos viver Ex.: <a professora foi punida por d. sem discriminar? Como ler este texto sem os alunos negros, colocando-os nas últimas discriminar as letras, as palavras, os sinais? carteiras> <não se julgando igual aos demais, E os nossos sentidos, - olfato, paladar, tato, ele mesmo se discrimina> visão, audição-, não são discriminatórios? transitivo direto Então, vamos chegar num acordo? De que 4 - Derivação: por extensão de sentido. discriminação estamos falando? tratar mal ou de modo injusto, desigual, Segundo o Dicionário1: um indivíduo ou grupo de indivíduos, em razão de alguma característica pessoal, cor da pele, Discriminação classe social, convicções etc. Ex.: é comum a polícia d. os pretos e Substantivo feminino ato ou efeito de pobres Revista A COR DO BRASIL discriminar. 1 - Faculdade de discriminar, distinguir; Estas definições de dicionário, nos discernimento. revelam a complexidade dos conceitos, pelo 2 - Ação ou efeito de separar, segregar, menos no que se refere à dinâmica escolar. pôr à parte. Pode passar despercebido o fato de, por Ex.: <d. racial> <os negros sofrem d.> exemplo, ouvir educadores dizendo que nas suas classes todos são iguais, negros, brancos, 1 http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=discrimin pobres, ricos...Ver educadores, em legitimas a%E7%E3o&stype=k em 20/02/2007 discussões, negando a necessidade de se discutir
  • 9. questões afro-brasileiras, em nome do direito sua cidadania, seus direitos (humanos, de todas as diferenças serem retratadas na políticos, sociais,...), valorizando aquela que escola, sem, muitas vezes, se dar conta de que o justamente nos possibilita, ao discriminar as segmento masculino, branco e de classe sócio- diferenças, propor estratégias de se atender na econômica média/alta/favorecida acaba por ter escola e na sociedade o preceito de igualdade um tratamento privilegiado...Daí surge uma na diversidade. indagação: Como se forjou a resistência que muitos educadores e educadoras têm em dar relevância aos Artigo 2 * valores da população afro- Declaração Universal dos Direitos Humanos descendente/negra e à própria população afro-brasileira? É tão I) Todo o homem tem capacidade para gozar evidente que vemos, em muitos os direitos e as liberdades estabelecidos nesta casos, até o dia 20 de novembro Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja – Dia Nacional da Consciência de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou Negra, ser rechaçado como algo de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, discriminatório, enquanto os nascimento, ou qualquer outra condição. outros 199 dias letivos, estão recheados de referências da * http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm. Em cultura de matriz européia, como 25/02/2007 calendários de festas religiosas, de feriados. Cabe analisar sobretudo os murais udo 8 os conteúdos escolares...E muitas vezes, tudo isto, vem encoberto por atos de “bondade”, de “amor ao próximo”. Trago estas pontuações, ainda que de maneira superficial, objetivando que, nós educadoras, que trabalhamos cotidianamente com conceitos, com as noções de erro e acerto, com a avaliação, que implica aprovação e reprovação, com experimentos, com valores, percebamos a complexidade dos conceitos e a utilização dos mesmos. Observem que contradição ou paradoxo: Se não houver discriminação não podemos perceber as diferenças, respeitar as singularidades e criar mecanismos, instrumentos e equipamentos sociais voltados para atender às especificidades, no caso, dos diversos modos e maneiras de se ser humano, Revista A COR DO BRASIL criando políticas públicas que potencializem e representem a Vida na sua amplitude e não no restrito e excludente modelo hegemônico e dominante e etnocêntrico. Ao mesmo tempo, no que se refere a direitos, à humanidade, não podemos discriminar ninguém. Nesse sentido, rechaçamos a discriminação que subtrai a humanidade do outro, das pessoas, que subtrai a sua importância, visibilidade social e histórica,
  • 10. Revista A COR DO BRASIL 9
  • 11. b) Preconceito E nesta? O que você responderia? Parece simples a questão dos preconceitos: Sapo ou cavalo? idéias preconcebidas a respeito de outrem ou alguma coisa, com ou sem base real. De fato, somos seres complexos. Somos todos, creio, marcados por idéias preconcebidas. Quantas vezes brincamos com o ditado “não vi e não gostei” ou ”não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe” e outros ditos engraçados mas que sinalizam nossa predisposição para idéias preconcebidas? Temos tantos exemplos, não temos? Observem estas figuras e digam o que Figura 3 vêem: A mesma figura é a resposta. Poderíamos dizer, com base nestas imagens, que nossa resposta depende de como vemos a realidade, de como organizamos o que vemos na realidade e de como a interpretamos. Algumas pessoas poderão ver uma imagem, 10 outras duas, outras três... e, muitas vezes, rechaçar o que o outro possa estar vendo e elas não. Muitas vezes, a verdade, o conceito é, simplesmente, o que conseguimos captar e não o que o outro vê, sente, percebe. Lembram, “Narciso acha feio o que não é espelho”? Nossos preconceitos não são dissociados Figura 12 da realidade, ao contrário, estão alicerçados em como vemos ou lemos esta realidade e, também, em como os valores sociais estão sendo apresentados aprioristicamente a cada um de nós. SInalizo isto, com o intuito de dizer que os preconceitos não são desconectados da realidade, há um contexto social, histórico, político que favorece a emergência e o recrudescimento dos preconceitos, para o “bem” e para o “mal”, se assim tomarmos essa dicotomia. Já que, podemos dizer, somos uma sociedade de definições, de classificações, de Revista A COR DO BRASIL busca de explicações e respostas, de “verdades” e busca de “verdades”, da Ciência, das hipóteses, da lógica, das etiquetas, das planificações, dos Figura 2 pressupostos, ... “Dessatanizar” os preconceitos, compre- Na figura 1 se apresentam um rato e um endê-los fora da lógica binária, do bem e do homem idoso, na figura 2 duas mulheres, uma mal, do certo e do errado mostra-se produtivo jovem e uma idosa. O que você viu? como problematização. Uma vez que, não os 2 http://www.ceballos.ws/rat2.gif eliminamos com exorcismos, com sectarismos,
  • 12. com fundamentalismos,mas com luta, sobre- tudo interna, lutando com “aquela velha opi- nião que temos sobre tudo”, com encontros, com aproximações, com coragem. Ufa! E haja aproximação, haja encontro! São tantos os preconceitos: religiosos, políticos, sexuais, de gênero, de cor/etnia, de raças, de classe. Con- tra africanos e seus descendentes (negros), in- dígenas, orientais, alemães, ciganos, gordos, baixos, altos, minorias, maiorias, deficientes, doentes... Contra quem pensa diferente de nós, contra quem é a favor das cotas, contra quem é contra, contra proletário, contra burguês, con- tra os acadêmicos, contra os militantes, con- tra, contra, preconceitos contra tantos e tantas que parece que vivemos num mundo inviável. Não, não é com esta dimensão que 11 quero me aliançar. Portanto, queremos convidar a quem é preconceituoso/a, e creio que todos somos, numa dimensão ou outra, a compreender que embora recebamos um legado que nos “predetermina” a ser preconceituosos/as, que embora tenhamos nossas experiências que nos “determinam” a ser preconceituosos/as, podemos deixar de ser. Estamos diante de uma construção, não de uma geração espontânea, universal, eterna, imutável de idéias. Felizmente, creio, somos sujeitos/pessoas em movimento, em transformação, em construção e reconstrução de saberes, de conhecimento, de conceitos, de linguagem, de história, de vida...Somos “metamorfoses ambulantes” e espero que a serviço da vida, nossa e do outro, sobretudo do outro muitas vezes diferente de nós, que nos Revista A COR DO BRASIL inquieta, nos leva a indagar, a perder o chão, a buscar novas respostas, a sair da “segurança do já dito, sabido, feito”.
  • 13. c) Racismo de “considerar o racismo não só um fator poderoso na produção da exclusão social, mas Aqui, não vou me furtar a colocar algumas principalmente o mecanismo civilizatório definições de racismo, não de dicionários, mas (portanto ocidental e cristão) de rejeição de ativistas negros da luta contra o racismo. existencial, ou seja, consciente e subconsciente, da alteridade”. [...] designa um comportamento Esta concepção nos ajuda a pensar o de hostilidade e menosprezo em relação racismo como alicerce da sociedade ocidental, a pessoas ou grupos humanos cujas na medida em que engendra-se numa características intelectuais ou morais, “hiperracionalização sistemática dos juízos de consideradas ‘inferiores’, estariam valor positivos sobre a civilização ocidental, que diretamente relacionadas a suas se reforça na medida em que se fortalecem os características ‘raciais’, isto é, físicas ou seus mecanismos racionalizantes (tecnologia, biológicas ciências), essencializando ou naturalizando a (BORGES, MEDEIROS E D’ADESKY; cultura” (SODRÉ: op. cit, p.259). 2002, p. 48-49). d) <->Discriminação <-> O racismo é um sistema de opressão Racismo <-> Preconceito <-> da diferença marginalizada. Nesse Desigualdades Sociais <-> sistema cada etapa se apóia, se nutre e se sustenta na outra. Trata-se da opressão de (...) tipos físicos ou grupos étnicos, por 12 serem diferentes do modelo estabelecido pelo opressor como padrão ideal. O ideal de beleza física, de cultura, o modelo padrão, é definido e estabelecido pelas elites dominantes (TEORORO, 1999, p. 98). Uma ideologia que defende a hierarquia entre grupos humanos, Em síntese, há uma interação entre esses classificando-os em raças inferiores e termos sobretudo no que se refere a produção de superiores. exclusão social, subjugação e subalternização de segmentos significativos da sociedade. [...] a ideologia racista é um Cabe ressaltar, antes de finalizar este conjunto de idéias utilizado para explicar escrito, tendo em vista a Lei nº 10.639/03 determinada realidade, no caso, as que, embora tenha destacado o caráter geral desvantagens dos negros em relação aos do preconceito e da discriminação, pensar na brancos situação dos negros, afro-brasileiros, que de (BENTO,1998, p. 25). acordo com dados oficiais, constituem cerca de Revista A COR DO BRASIL 50% da população brasileira é um convite que O racismo é uma construção sócio- se impõe. histórica tecida ao longo dos séculos, na Compartilho com vocês a percepção, perspectiva da exclusão, da dominação, na oriunda de análises e observações do que justificativa da apartação e hierarquização acontece na sociedade, no que se refere ao humana. O racismo não é natural, não é tratamento dado à população negra afro- intrínseco ao ser humano, às pessoas. brasileira. Ou seja, quero evidenciar a Compactuamos com o destaque de Sodré insensibilidade freqüente em relação ao seu (1999, p. 258) que nos sinaliza a possibilidade sofrimento e ao aviltamento da sua cidadania, o
  • 14. silêncio quase cúmplice com o que acontece, em SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: termos de desumanização, com esta população, identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, em níveis micro e macro político. Por quê? Será RJ: Editora Vozes, 1999. racismo? O que você acha? TRINDADE, Azoilda L. da. O racismo Finalizo este texto com reticências, texto no cotidiano escolar. 1994. Dissertação inconcluso como um ensaio e, ainda mais, (Mestrado em Educação) - IESAE/ de caráter panfletário. Espero, que soe como FGV, Rio de Janeiro, 1994. um convite ao seu envolvimento visceral no ______________________Reinventando processo de construção de uma educação de A Roda: Experiências multiculturais de uma fato para todos/todas, que contemple, atendendo educação para todos – Boletim do Programa às diferenças e à rica diversidade da nossa Salto Para O Futuro, TVESCOLA - 2002. sociedade, sem hierarquizações das diferenças. Proponho um olhar sobre a escola em que o machismo, racismo, elitismo não encontrem solo para florescer e reflorescer. É possível uma sociedade melhor para todos e todas e a escola/ educação, creio, tem uma enorme e significativa contribuição a dar nessa direção. Referências BENTO, Maria Aparecida da Silva. 13 Cidadania em preto e branco: discutindo as relações raciais. São Paulo: Ática, 1998. BORGES, Edson; MEDEIROS, Carlos Alberto e d’ADESKY, Jacques. Racismo, preconceito e intolerância. São Paulo: Atual Editora, 2002. MUNANGA, Kabengele. “Teorias sobre o racismo”. In. HASENBALG, Carlos. Racismo: perspectivas para um estudo contextualizado da sociedade brasileira. Niterói: EDUFF, 1998. MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília-DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2000. Revista A COR DO BRASIL
  • 15. Raça, etnia e nação: a ambigüidade dos conceitos Jacques d’Adesky Doutor em Ciência Social / Antropologia, Professor Titular da Universidade Cândido Mendes. 14 As noções de raça, etnia e nação não se deixam captar com facilidade. Todas são de uso no campo das ciências humanas e utilizadas na língua corrente. São noções que chegam a se entrelaçar. Em certas circunstâncias, é usada indiferentemente uma pela outra. Em razão que estes termos encontram- se no vocabulário político e no discurso ideológico, convém esclarecer os seus sentidos. A antropologia ajuda a compreender melhor essas duas noções. Mostra que o significado do termo raça vem evoluindo com o decorrer do tempo. Baseando-se nos estudos da genética, aponta a ambigüidade que cerca a noção de raça. Em relação à etnia, a antropologia analisa a idéia da nação moderna para diferenciar claramente o que é etnia e o que é nação. Revista A COR DO BRASIL Antigamente a palavra raça era de uso restrito. Referia-se à família, a uma filiação, à nobreza. Não era usado para identificar grupos humanos. Será necessário esperar para que o termo venha designar um grupo de pessoas aparentadas (ou supostamente aparentadas) por características físicas comuns. Mais tardar, no decorrer da primeira metade do século XIX, o termo raça vem a incorporar além dos traços físicos, características de outra natureza, como os elementos culturais, sociais, de modo que chegará a se falar de raça indo-européia, raça semita, etc.
  • 16. Durante o século XIX a antropologia tenta classificar as pessoas com base em di- ferenças de natureza exis- tentes entre os grupos. A característica que se impõem naturalmente é a cor da pele que permi- tirá definir as três raças negra, branca e amare- la. Mas as imprecisões desta classificação não podiam ser definitivas. Não havia como agru- par numa mesma raça os habitantes da África Central, os do Sul da Índia e os que mora- vam na Mela- 15 nésia. Todos tinham a pele muito escura, mas além deste traço, tudo os di- ferenciava. Isto levou a incluir outras caracterís- ticas como a textura dos cabelos, o formato do crânio, etc. Diante dos progressos da genética no século XX, renovou- se a problemática das raças. Não se tratava mais de diferenciar os grupos de indivíduos segundo os seus caracteres aparentes Revista A COR DO BRASIL (os fenótipos), mas segundo os conteúdos de seus patrimônios genéticos. Chega-se até mesmo a uma definição da raça que encontrou uma aprovação unânime e que é formulada da seguinte maneira: uma raça é um conjunto de indivíduos que tem uma parte importante de seus genes em comum e que pode ser diferenciado das outras raças em função destes genes.
  • 17. Quando se tratou de dar um conteúdo a esta definição, ao tentar precisar quais eram os genes que distinguiam os conjuntos de indivíduos, observou-se que o conjunto das semelhanças e das diferenças era tão complexo que mesmo com a acumulação de novos dados genéticos cada vez mais precisos, tornava-se mais difícil a classificação das diversas po- pulações com- pondo a espécie humana. Em face desta realidade os geneticistas tiveram que admitir que não era possível classificar as diversas populações humanas segundo as freqüências dos diver- sos genes contidos nos patrimônios genéticos 16 destas populações. Se era possível, na base de caracteres bem definidos, comparar as popu- lações, analisar as distâncias observadas, contudo estes trabalhos não permitiam che- gar a uma classificação em raças. Concluí- ram, portanto que a raça não era um fato, mas um conceito. Não correspondia na espécie humana a nenhuma realidade que pudesse ser definida de maneira objetiva. Em conseqüência disto, será então necessário abandonar a idéia de raça? A nossa resposta é negativa. Pois o termo raça representa nos dias de hoje algo mais que uma simples classificação entre grupos de indivíduos. Pode apresentar dentro de certos contextos um significado ideológico quando afirma a existência de uma hierarquia entre os grupos classificados. Além disto, ela é um Revista A COR DO BRASIL dado espontâneo da percepção. Por isso torna-se uma idéia construída socialmente. E por ser construída, pode ter um impacto extremamente grande nas sociedades dominadas pelo(s) racismo(s). Pois falar de racismo(s) nessas sociedades, significa também falar sobre exclusão e a marginalização de grupos ou populações menosprezadas em virtude da raça. Possibilita, portanto discernir o(s) racismo(s) que permeia(m) estas sociedades, mas também discutir as suas causas, debater os seus efeitos assim como propor políticas públicas e ações concretas de luta anti-racista.
  • 18. Em relação à indeterminabilidade do A coexistência desses conceito de raça do ponto de vista de seu uso corrente pela população, Pierre-André dois conceitos que parecem Taguieff 1 lembra que o homem comum tem formas de percepção que nada têm a ver com antinômicos deve compreender-se os complexos modelos teóricos dos geneticistas histórica e teoricamente. contemporâneos. Ele não percebe seus vizinhos com os olhos do espírito científico, pois ele entende o discurso cientificamente autorizado será a solução. O apelo a corrigir as palavras para dos geneticistas anti-racistas como algo melhorar as coisas é uma tentação permanente distante, abstrato, angelical, sustentado pelas do politicamente correto, alerta ele. A eliminação elites do saber e desprovido do conhecimento no vocabulário da palavra raça como prescrição corriqueiro das raças socialmente percebidas. da ação anti-racista remete, escreve ele, a uma eugenia lexical negativa que crê matar o racismo O homem comum, continua Taguieff, não eliminando a palavra. Tal supressão, segundo vendo continuidade genética nem a diversidade Taguieff, teria conseqüências contrárias ao genética que torna os geneticistas tão otimistas, efeito imaginado, pois reforçaria os mecanismos continuará a tipificar e a classificar os indivíduos racistas do “querer dizer”, favorecendo, assim, segundo suas características perceptíveis e, a normalização do racismo simbólico. mais particularmente, visíveis. A desconstrução científica da raça biológica, observa ele, não faz A classificação do conceito de etnia é desaparecer a evidência da raça simbólica, da também necessária. É de grande importância raça percebida e, invariavelmente, interpretada. na medida em que a maioria das nações no 17 Acima de tudo o imaginário racista alimenta- mundo atual são pluriétnicas. Além disso, a se das semelhanças e das diferenças fenotípicas etnia tornou-se para as minorias uma fonte de da cor da pele até diversas características solidariedade e, ao mesmo tempo, um espaço morfológicas. Portanto, se para a biologia a de afirmação de identidade no seio da nação. noção de raça coloca problemas insolúveis Tornaram-se também nos dias de hoje uma de definição que a tornam ultrapassada, sua referência crescente no cenário internacional importância, indubitavelmente, não pode quando se destaca, por exemplo, as lutas étnicas ser negada. Porque a raça, queira-se ou não, na África ou o genocídio e a limpeza étnica na permanece sendo um elemento maior da antiga Iugoslávia. realidade social, na medida em que emprega, a partir das características físicas visíveis, formas Como escrito no início, sabemos da coletivas de diferenciação classificatória e dificuldade de apreender a noção de etnia. Uma hierárquica que podem engendrar, às vezes, das fontes dessa situação provém do fato que comportamentos discriminatórios individuais até o nascimento da nação moderna, chamava- ou coletivos. se nação o que qualificamos hoje de etnia. Pois etimologicamente, natio, nationis, refere-se não Em relação às propostas de certos só àqueles que nascem no mesmo local, mas Revista A COR DO BRASIL geneticistas e intelectuais que advogam a também à família, à cidade, ao sangue, ao solo, supressão da palavra raça, porque, segundo eles, à época, à geração. Assim, a nação remete a a idéia de raça só aparece como sobrevivência etnia, dela nutrindo-se, principalmente quando científica ultrapassada que traz em si o risco de prevalece o conceito de nação baseado na raça manter os preconceitos entre os leigos, Taguieff e na língua. ressalta que tirar da língua essa palavra, visando apagar o racismo do espaço mental, também não A coexistência desses dois conceitos 1 que parecem antinômicos deve compreender- TAGUIEFF, Pierre-André, Les fins de l’antiracisme, Paris, Editions Michalon, 1995 se histórica e teoricamente. De fato o
  • 19. O critério de base territorial ajuda vezes que, devido às vicissitudes da guerra ou às conseqüências de migrações, as fronteiras também a distinguir a nação da etnia, nacionais sejam fluidas e se sobreponham às de um outro grupo nacional efetivamente se levarmos em conta que a idéia do reconhecido ou que aspire a sê-lo. território é necessariamente inclusa no Portanto, podemos dizer que são as conceito de nação... características político-jurídicas, às quais se junta à existência de uma base territorial, que processo histórico da construção dos Estados afirmam o predomínio da nação moderna sobre europeus modernos comporta dois aspectos as etnias que asseguram a clara separação complementares: a unificação cultural da entre identidade nacional e identidade étnica, população e a criação de estruturas políticas uma vez que não somente o Estado se atribui capazes de sustentar o desaparecimento da o monopólio da coação orgânica, mas lhe cabe sociedade feudal. também, por direito, a necessária organização das aspirações de uma comunidade nacional Em muitos países europeus, a construção num território claramente delimitado, cuja da nação e a unificação cultural realizaram-se soberania é reconhecida por outros Estados. paralelamente, sob o mando de um grupo étnico dominante. Este modo de construção nacional É essa clivagem que pressupõe o Estado- influenciou profundamente os Estados da nação como quadro político de referência e periferia que surgem depois da descolonização. permite colocar a etnia em segundo plano. 18 Assim, por exemplo, vale relembrar nos países O Estado-nação apresenta-se, assim, como o africanos o papel assumido tanto pelo partido espaço no interior do qual progressivamente único quanto pelo exército em vista a integração se atenua o predomínio da etnicidade em de populações etnicamente fragmentadas em favor da nacionalidade. É essa passagem de uma nação pós-colonial. etnia para a nação que assegura ao conceito da cidadania a guarda de direitos civis e políticos Portanto, parece claro que a concepção que só podem ser apanágio daqueles que uma da etnia entendida como um conjunto de identidade nacional designa, por toda parte, indivíduos que partilham um certo número como membros da comunidade nacional de características, nomeadamente raciais, dotados de plenos direitos. Portanto, a cidadania lingüísticas, desatrela-se formalmente do não está diretamente ligada à etnicidade. Não se sentido moderno da nação, porque esta última é cidadão de uma etnia, mas cidadão de uma é relacionada a uma certa forma de Estado nação. A cidadania indica o pertencimento ao territorial, o Estado-nação, e ao privilégio de povo soberano do Estado, segundo os princípios soberania que lhe é concedido. Estas duas dos modernos Estados-nações. características político-jurídicas, a do Estado e a da soberania, diferenciam sem ambigüidade a Mas, se é necessário reconhecer que a et- nação moderna e a etnia. nicidade implica um diferencial comunitário, Revista A COR DO BRASIL ela não afirma, necessariamente, um antinacio- O critério de base territorial ajuda também nalismo. O que contribui para o dilaceramento a distinguir a nação da etnia, se levarmos em entre o nacionalismo e o particularismo étnico conta que a idéia do território é necessariamente são as antinomias e os dilemas vividos a partir inclusa no conceito de nação, embora não seja das tentativas de homogeneização e de unifor- um requisito imprescindível à existência de mização que negam o direito de cada um a uma grupos étnicos. A referência histórica com um identidade cultural e a um enraizamento comu- lugar (território) preciso é uma condição sine nitário diferente. qua non da nação, podendo até acontecer às
  • 20. A antinomia entre a naciona- 19 lidade e o particularismo identifi- cador é marcante quando a política do Estado é a de um represamento dos pluralismos étnicos, podendo então traduzir-se pela depreciação dos particularismos em benefício da promoção da identidade comum acima das diferenças culturais. É o caso, em especial, dos nacionalismos dos Estados multirraciais ou multiétnicos que constroem políticas assimilacionalistas privilegiando a matriz cultural dominante. Na medida em que esses nacionalismos defendem uma homogeneidade cultural, um pertencimento religioso ou histórico comum, Revista A COR DO BRASIL eles podem impor, pelo recurso a veleidades totalitárias, modelos normativos que excluem os que são diferentes. O nacionalismo torna-se então um movimento voltado para desenraizar e homogeneizar, impondo àqueles que vivem no mesmo território um modelo normativo do humano.
  • 21. A ousadia que transforma 100 anos da Revolta da Chibata Em novembro de 2010, o país undo maior navio da Armada) e rende justas homenagens à valentia de mais seis embarcações meno- e coragem de homens que oferece- res ancoradas na baía. Foi en- ram suas próprias vidas para mudar tão emitido um ultimato no qual a dura realidade da Marinha do ameaçavam abrir fogo sobre a en- Brasil, que impunha castigos físicos tão Capital Federal. Eles exigiam aos marinheiros de patentes inferi- o fim das chibatadas e a anistia a to- ores. Há 100 anos, João Cândido – dos os revoltosos que se entregassem. o Almirante Negro – coordenava a A Marinha chegou a esboçar um ataque, revolta que parou a então capital da mas além de rechaçada, ainda sofreu um 20 República e garantiu, por decreto bombardeio às instalações na ilha das Cobras. presidencial, tratamento digno para todos. A cidade estupefata parou. Muitos curiosos se aglomeravam ás mar- A Revolta da Chibata acon- gens da Baía de Guanabara teceu entre 22 e 27 de novembro para acompanhar a de 1910, no Rio de Janeiro, na movimentação dos época Capital da República. Dois revoltosos. Uma mil marinheiros se rebelaram con- forte pressão tra a aplicação de castigos físicos, popular pedia o ameaçando bombardear o entorno fim da revolta, que da Baía de Guanabara. O estopim era bravamente conduzida da revolta foi a punição (com 250 com o mínimo de condições. Havia chibatadas) aplicada ao marinheiro pouca comida e a munição era escassa. Marcelino Rodrigues Menezes, do Encouraçado Minas Gerais. Em 26 de novembro, já sem al- Por ter ferido um cabo com uma ternativa, o então presidente Hermes da navalha, ele recebeu o castigo na Fonseca, determinou o fim dos castigos e presença da tropa formada, ao som garantiu a anistia dos revoltosos. Porém, sua Revista A COR DO BRASIL de tambores. O rigor dessa punição, promessa não foi cumprida. Os revoltosos fo- considerada desumana, provo- ram detidos com requinte de crueldade na Ilha das cou a indignação da tripulação. Cobras. Outros, após serem expulsos de seus navios, acabaram assassinados. Dos dois mil homens que se atrev- Na noite de 22 de novembro, eram a clamar por liberdade, menos de cem ficaram vivos. os marinheiros do Encouraçado Mi- nas Gerais se amotinaram, mataram João Cândido, líder da rebelião e que sobreviveu a quatro oficiais, obtiveram a adesão todos os martírios, foi internado como louco e indigente do Encouraçado São Paulo (o seg- no Hospital dos Alienados, em 1911. Sua absolvição - e
  • 22. A COR Revista DO BRASIL a de outros sobreviv- do delegado da Capitania dos Por- entes - só aconteceu em tos de Porto Alegre. O apoio foi 1913. Somente em 2008 dado pelo Almirante Alexandrino ele e seus companheiros de Alencar, ex-ministro da Mar- seriam reconhecidos como inha que conhecia a família do menino. Heróis Nacionais. Foi a menos de dois anos que um João Cândido conheceu os estátua de bronze daquele quatro continentes navegando pela que liderou a revolta foi er- Marinha, o que lhe deu uma nova guido na Praça XV. concepção de mundo. Foi nestas viagens que percebeu a diferença 21 Memória e homenagem com que os marujos da Europa e de outros lugares eram tratados. É em homenagem Ele se perguntava por que apenas à valentia daqueles a Marinha do Brasil ainda impunha que ofereceram castigos físicos aos seus subordina- dos. Apesar de não ter sido alvo das suas próprias vi- chibatas, o marinheiro negro sofria das para mudar com o que via à sua frente: vários a história da homens sendo submetidos a casti- Marinha e do gos cruéis impostos pelas chibatas Brasil que o Centro - feitas com pregos nas pontas que de Articulações de Popu- rasgavam a pele e faziam escorrer lações Marginalizadas (CEAP) sangue e dor. escolheu o tema “João Cândido, o Fonte: Projeto Memória Banco do Brasil Marinheiro da Liberdade - 100 anos da Revolta da Chibata” para edição do Prêmio Camélia da Liberdade e de seu Concurso de Redação. O prêmio, patrocinado pela Petrobras e que já está na sua quinta edição, Revista A COR DO BRASIL pretende resgatar a memória de homens e mul- heres negros que fizeram a diferença na história do país. Almirante Negro João Cândido nasceu nas serras gaúchas em 1880, oito anos antes da abolição da escravatura. Filho de escravos, aos 13 anos lutou na Revolta Federalista. Aos 15, foi enviado por seus pais para o Rio de Janeiro com uma carta de recomendação
  • 23. Alexandre do Nascimento Doutorando em Serviço Social (UFRJ), Mestre em Educação (UERJ), Profes- sor e Integrante do Núcleo de Estudos Étnico-Raciais e Ações Afirmativas da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro (Faetec) e Professor do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC). 22 Revista A COR DO BRASIL
  • 24. PARA UMA PEDAGOGIA DA (RE)EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Na sociedade e na educação, uma nova demanda se coloca a partir da promulgação da Lei Federal 10.639/03 e do Parecer 003/04 e Resolução 01/04, ambos do Conselho Nacional de Educação que, como já sabemos, instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e as diretrizes gerais deste ensino. Trata-se, de um modo geral, da concretização de uma das propostas e exigências mais importantes da luta histórica do Movimento Social Negro1, que se insere no campo da educação e, pois, da produção 23 de uma nova consciência social-histórica e uma nova cultura. Esta demanda se coloca para o currículo escolar e para a pedagogia, que necessariamente, devem passar por uma reestruturação, sobretudo nas disciplinas de história, literatura e educação artística, como diz a Lei, e por uma revisão de práticas tradicionais. Estamos, dessa forma, diante de um novo desafio colocado para os educadores pela exigência social de democratização das relações sociais, que no Brasil passa indispensavelmente pela superação do racismo, dos preconceitos e discriminações contra os descendentes de africanos, sua história, valores e produções culturais. Como essa exigência social não diz respeito somente ao combate às desigualdades raciais, o currículo e a pedagogia se tornaram parte dessa perspectiva, pois o conceito de democracia propõe igualdade e não uniformidade. Revista A COR DO BRASIL Neste sentido, além da igualdade de condições socioeconômicas, a democracia proposta que a multiplicidade de movimentos sociais requer que todas as pessoas, como são, sejam reconhecidas, visíveis e tenham as mesmas oportunidades de participação na sociedade, 1 Para os organizadores do I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 na cidade de São Paulo, “o Movimento Negro se define como o conjunto de entidades e grupos, de maioria negra, que têm o objetivo específico de combater o racismo e/ou expressar valores culturais de matrizes africanas e que não são vincu- lados a estruturas governamentais e partidárias” ( D’Adesky, 2001).
  • 25. na economia e na política, respeitando-se possuem a disciplina Cultura e Cidadania, suas singularidades e as dimensões culturais entre outros cursos pré-vestibulares que atuam e raciais que as compõe. Os movimentos contra as discriminações e desigualdades sociais, principalmente aqueles que lutam pelo raciais na educação, são outros exemplos de reconhecimento dos direitos de cidadania, movimentos que possuem propostas e práticas dos direitos culturais e dos chamados direitos pedagógicas preocupadas com a superação do humanos para os grupos sociais estigmatizados racismo e com a produção de uma nova cultura e discriminados por preconceitos e racismos, de relações étnico-raciais. ocupam uma posição chave nesse projeto de A Lei nº 10.639/03 tornou uma das democracia, pois além de atores necessários principais reivindicações do movimento negro ao processo de produção/universalização de em um direito da sociedade e um dever para direitos são, num sentido amplo, movimentos a educação formal. Ou seja, os sistemas de que contribuem para a educação geral da ensino devem incluir o ensino de história e sociedade. No caso da luta anti-racista, tendo cultura afro-brasileira e africana e a educação em vista uma mudança cultural e simbólica das relações raciais em seu trabalho. E os não estereotipada e baseada no reconhecimento educadores e educadoras, como agentes positivo das heranças históricas e culturais de principais desse processo, devem rever suas 24 origem africana, setores do movimento social práticas pedagógicas e incluir o debate sobre chegaram a desenvolver propostas pedagógicas relações raciais e o legado histórico-cultural de bem elaboradas e direcionadas à educação origem africana no Brasil. escolar. Como trabalhar esses conteúdos em No movimento negro, por exemplo, sala de aula? Em que consiste o que a Lei podemos citar as propostas de Pedagogia denomina de “educação das relações étnico- Interétnica2 e de Pedagogia Multirracial3. raciais”? Como criar formas de dialogar com Além dessas, muitas outras propostas foram alunos e alunas sobre racismo, preconceito, e continuam sendo criadas por militantes, discriminação e intolerâncias em relação a educadores e pesquisadores negros e negras, negros, homossexuais, mulheres, deficientes tendo sempre como objetivo a superação do e outros grupos sociais historicamente racismo, dos preconceitos e das discriminações discriminados? Eis alguns dos desafios que raciais. O movimento dos cursos pré- educadores e educadoras devem enfrentar. vestibulares para negros, com destaque para o E nesse enfrentamento o ponto de partida Curso Pré-Vestibular do Instituto Steve Biko, Revista A COR DO BRASIL é, conscientemente, fazer a opção ética pela que possui a disciplina Cultura e Consciência igualdade de tratamento e de reconhecimento, Negra, para o Pré-Vestibular para Negros e pelo respeito às diferenças, pela multiplicidade Carentes (PVNC) e o Instituto Educafro, que e, pois, por uma educação democrática e cidadã. 2 Essa proposta pedagógica foi desenvolvida pelo profes- sor Manoel de Almeida Cruz, em Salvador-BA.Ver LIMA Porém, considerando o movimento (2007). negro como o principal produtor de práticas 3 Maria José Lopes. Pedagogia Multirracial em contra- posição à ideologia do branqueamento na Educação. In: e conteúdos para a educação, o currículo e a Núcleos de Estudos Negros (1997, p. 23-37).
  • 26. 25 No movimento negro, por exemplo, podemos citar as propostas de Pedagogia Interétnica e de Pedagogia Revista A COR DO BRASIL Multirracial.
  • 27. (re)Educação das Relações pedagogia, podemos partir concretamente da movimento negro constituem um terceiro seguinte questão: O que os educadores podem elemento de análise e aprendizado que apreender e aprender dessas lutas e das práticas educadores e educadoras podem tomar como produzidas por elas? referência para pensarmos e experimentarmos novos conteúdos e formas anti-racistas e A primeira coisa que podemos aprender multirraciais, no currículo escolar e no fazer com essa luta histórica é que a educação escolar pedagógico. Como já dissemos, a perspectiva é parte de uma cultura racista, preconceituosa anti-racista, a valorização das diferenças e discriminatória que estabelece hierarquias e étnico-raciais e de reconhecimento das histórias desigualdades entre os diversos grupos sociais, 26 e produções sócio-culturais de africanos e afro- seus valores e aspectos culturais. Não são descendentes, são fundamentais no Brasil para poucas as pesquisas e análises que comprovam um processo social mais amplo de constituição e concluem que a escola e as suas práticas das condições objetivas e subjetivas de educacionais são, também, reprodutoras e igualdade, autonomia e, pois, de democracia. produtoras de preconceitos, discriminações, A educação (e, obviamente, os educadores e hierarquias e desigualdades raciais. educadoras) tem uma importante e indispensável O segundo aprendizado é que as contribuição nessa perspectiva, a partir do propostas de promoção de igualdade racial e momento em que se inicie uma reestruturação de reconhecimento histórico, social, cultural curricular que incorpore de forma consciente e estético positivo, bem como a valorização e positivamente, os princípios de Consciência da multiplicidade étnica e cultural inserem-se Política e Histórica da Diversidade, de num processo democrático. E também não são Fortalecimento de Identidades e de Direitos e poucas as pesquisas e análises que mostram de Ações Educativas de Combate ao Racismo e que as imensas desigualdades socioeconômicas às Discriminações4. Revista A COR DO BRASIL do Brasil e, portanto, a falta de democracia material, tem no racismo um dos principais determinantes. A observância das relações entre educação, preconceitos e discriminações 4 Esses princípios constam das Diretrizes Curriculares raciais, bem como de propostas e experiências Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e pedagógicas desenvolvidas no âmbito do Africana. In: MEC/Secad (2006).
  • 28. Étnico-Raciais sentido, alguns conceitos ajudam na construção de perspectivas, projetos e ações político- pedagógicas. Destaco o conceito Diversidade como sendo a perspectiva que deve assumir uma proposta para a (re)educação das relações étnico-raciais. Primeiramente, podemos definir Diver- sidade, do ponto de vista sócio-cultural, como Propostas para uma o conjunto das diversas formas de vida, estilos, Pedagogia da valores, visões de mundo. A diversidade é uma 27 multiplicidade de sujeitos sociais singulares que (re)Educação das possuem história e cultura. “Essa constatação Relações Étnico-Raciais indica que é necessário repensar a nossa escola e os processos de formação docente, rompendo Assim como tem sido até então reprodutora com as práticas seletivas, fragmentadas, corpo- e produtora de preconceitos, discriminações, rativistas, sexistas e racistas ainda existentes” depreciações e hierarquias étnico-raciais, a (Sodré apud MEC/Secad, 2006, p. 218). Porém, educação escolar pode passar a ser o oposto, “Assumir a diversidade cultural significa muito ou seja, uma atividade de reconhecimento e mais do que um elogio às diferenças. Represen- valorização da multiplicidade e das diferenças ta não somente fazer uma reflexão mais densa étnico-raciais, de produção de uma consciência sobre as particularidades dos grupos sociais, política e histórica da diversidade e de crítica mas, também, implementar políticas públicas, ao racismo e qualquer forma de discriminação e alterar relações de poder, redefinir escolhas, to- intolerância, e já começa a sê-lo pelo menos nas mar novos rumos e questionar a nossa visão de Revista A COR DO BRASIL suas diretrizes, nas políticas educacionais do democracia” (Gomes apud MEC/Secad, 2006, Ministério da Educação e algumas Secretarias p. 218). Estaduais e Municipais e nas preocupações dos Na educação escolar, assumir a educadores, que cada vez em maior número diversidade significa reconhecer e valorizar mobilizam esforços de pesquisa, aquisição as diferenças étnico-raciais e, para isso, deve- de conhecimentos e seleção de material para se fazer escolas curriculares e pedagógicas dar conta da questão em sala de aula. Nesse coerentes com essa perspectiva, o que mais que
  • 29. explicitar diferenças é colocar em discussão as relações de poder e criar condições de troca, reciprocidade, reconhecimento e respeito ao outro. Portanto, como perspectiva e como conceito, a diversidade pode servir como base e objetivo geral de um projeto político- pedagógico cujo principio seja uma aposta na multiplicidade, o que quer dizer que a pedagogia passa a ser não apenas uma ação 28 de explicitação, mas fundamentalmente uma ação de produção de singularidades. Porém, isso não se faz sem um permanente diálogo sobre os preconceitos e discriminações, sobre as dimensões raciais da desigualdade social e as relações de poder estabelecidas, sempre na perspectiva na superação do racismo e valorização da história, cultura, cidadania e do etnocentrismo. Trata-se, então, de uma reconstrução da auto-estima dos integrantes pedagogia militante e constituinte, na medida desses grupos sociais. em que pretende explicitamente produzir uma Isso conduz ao segundo elemento nova cultura, um novo jeito de ser, uma nova do projeto, que é trabalhar com as noções de visão estética e de relações sócio-culturais. multiplicidade, diferenças e identidade. Essas O primeiro elemento desse projeto noções são importantes às práticas que visam é colocar no centro os grupos sociais ajudar os educandos a desenvolverem as estigmatizados e discriminados (raça/etnia, dimensões que os compõe, a compreenderem Revista A COR DO BRASIL gênero, orientação sexual), propondo conteúdos que as diferenças étnico-raciais, culturais e e atividades coerentes com essa opção, ou seja, religiosas não são desigualdades e, portanto, não um conjunto de conteúdos, leituras e debates comprometem o ideal de igualdade de direitos, que explicitem e discutam as relações de poder oportunidades, tratamento e reconhecimento, e que se estabeleceram entre as raças, culturas que a multiplicidade é uma relação aberta das e gêneros, sempre no sentido de superação identidades singulares, que em cooperação da discriminação e que avance no sentido da constituem o comum. É afirmando-se como
  • 30. multiplicidade, ou seja, como singularidades que cooperam que se mantém como tais, que as novas lutas contra o racismo, cujas principais expressões são os movimentos culturais das favelas e periferias e os cursos pré-vestibulares  Desenvolvimento de atividades para negros, produzem direitos, estilos, culturais, artísticas e musicais, não diversidade e o desmoronamento definitivo da apenas aquelas que resgatam a história, hibridação freyreana. mas que fundamentalmente incorporem elementos da cultura de origem africana Esses elementos - colocar no centro os e produzam estilos e formas singulares grupos sociais estigmatizados e discriminados de estéticas, de linguagem, de expressão, e as trabalhar com as noções de multiplicidade, etc. O hip-hop, por exemplo, é uma diferenças e identidade - são pontos básicos de dessas produções; um novo projeto político-pedagógico e, dentro dele, pode-se propor e produzir ações e práticas  Mobilização das diversas disciplinas concretas, tais como: em projetos comuns. Um projeto sobre África, por exemplo, pode mobilizar  Uma postura crítica dos educadores, diversas áreas, como história, literatura, independente da disciplina que redação, geografia, matemática 29 leciona, em face de manifestações (no trabalho com as estatísticas da preconceituosas e racistas entre desigualdade racial, por exemplo), estudantes, entre professores e ciências (na discussão da biodiversidade, estudantes e no âmbito geral da escola. das produções científicas), informática Isso é muito importante, pois não é (na sistematização de dados, produção incomum na escola as atitudes de de hipertextos, etc.), arte e educação desprezo, depreciação e desrespeito em física (danças, teatro, capoeira etc.). Um relação a estudantes negros(as), muitas projeto deste tipo pelo menos uma vez vezes em forma de “brincadeiras” em ao ano, com apresentações na semana relação à cor da pele e ao cabelo. Tal do 20 de novembro, por exemplo, ajuda postura deve mobilizar não apenas os a mobilizar esforços em pesquisa e professores, mas os diversos setores da produção de materiais informativos. escola, como diretores, supervisores, O trabalho pedagógico por projetos é orientadores e inspetores. Os uma das dimensões mais importantes Revista A COR DO BRASIL orientadores educacionais, em especial, dessa pedagogia da (re)educação das devem buscar entender o impacto relações raciais com foco no anti- das depreciações na auto-estima e no racismo, na produção de multiplicidade desempenho escolar dos estudantes; e singularidades étnico-raciais;  Criação de grupos ou círculos de leitura de textos da literatura brasileira e africana;
  • 31.  Debates a partir de palestras de militantes Outro elemento, não menos importante, do movimento negro, pesquisadores e é o da luta pela constituição material de direitos. artistas que trabalham com a temática Neste ponto, a compreensão do conceito de ou a partir de filmes, leituras de textos; ação afirmativa e as políticas concretas que são propostas a partir dele é muito importante.  Incorporação da temática pelas Inicialmente é preciso que os educadores disciplinas em seus conteúdos debatam as políticas em discussão que se programáticos. Além das disciplinas apresentam na sociedade, como a proposta de de História, Literatura e Educação cotas raciais e outras, no contexto do debate Artística, que são os lugares principais teórico e político sobre ações afirmativas, em que, segundo a Lei nº 10.639/03, observando na realidade social concreta as deve se desenvolver de forma desigualdades e as barreiras raciais impostas aos sistemática o ensino de história e cultura afro-descendentes e não um moralismo abstrato africana e afro-brasileira, conteúdos segundo o qual todos devem ter os mesmos sobre África, história e produções dos direitos e possibilidades. A perspectiva do afro-brasileiros e de uma (re)educação conceito de ação afirmativa insere num projeto das relações étnico-raciais podem ser de democratização dos direitos, de distribuição trabalhados pelas outras disciplinas. 30 de renda, de reconhecimento e, portanto, de Língua Portuguesa, Redação, Geografia, produção de condições objetivas e subjetivas de Sociologia, Ciências, Matemática e igualdade e autonomia. Cabe aos educadores, Educação Física, levando para seus além da compreensão teórica e política do currículos, por exemplo, discussões conceito de ação afirmativa, a explicitação de sobre a influência dos idiomas de todas as dimensões desse conceito e os motivos origem africana em nosso universo que levaram o movimento negro a se tornar o lingüístico, temas a serem explorados na protagonista intelectual e militantes das ações produção de textos, informações sobre afirmativas no Brasil. Mesmo porque a Lei nº características físicas, populacionais 10.639/03, as Diretrizes Nacionais Curriculares e culturais do continente africano, para e Educação das Relações Étnico-Raciais textos e debates sobre relações raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- e desigualdades, o debate sobre raça do brasileira e Africana e a pedagogia que estamos ponto de vista biológico e sociológico, discutindo e propondo, inclusive neste texto, tabelas e gráficos estatísticos, as danças, são também ações afirmativas, ou seja, inserem- o samba, a capoeira, tudo isso situado Revista A COR DO BRASIL se numa perspectiva de afirmação de identidade no tempo e no espaço. Até mesmo a e direitos. disciplina de Informática pode dar sua contribuição, utilizando dados, imagens Por fim, e para início de um processo de e pesquisas para o desenvolvimento criação de práticas pedagógicas anti-racistas e de textos, planilhas, banco de dados, de valorização da diversidade étnico-racial pelos hipertextos e softwares. educadores que ainda não se mobilizaram para tal, podemos dizer que a proposta educacional