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DOSSIÊ
    OSÍRIS



Péricles Prade
DOSSIÊ
           OSÍRIS

        LITERATURA




   Péricles Prade



Marco Vasques e Rubens da Cunha
     (organização e seleção)




         REDOMA EDITORA
              2011
Copyright       2011 Marco Vasques e Rubens da Cunha


                                 REVISTA OSÍRIS

                                   Editores
                        Marco Vasques e Rubens da Cuha

                                     Revisão
                                  Denize Gonzaga

                                   Diagramação
                                    Iur Gomez

                                    Fotografias
                              Iur Gomez (entrevista)
                 Priscila Prade (capa e páginas 72, 84, 106 e 137)

                             Conselho Editorial
       Marco Vasques, Rubens da Cunha, Cristiano Moreira e Iur Gomez

                                   Iconografia
                                 Rodrigo de Haro

                                     Webdesign
                                     Pedro MC

                                Endereço eletrônico
                              www.revistaosiris.com.br

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D724

Dossiê Osíris - organização e seleção Marco Vasques e Rubens da Cunha.
Florianópolis: Redoma; Navegantes: Papa-Terra, 2011.

                     160 p.

ISBN

1. Literatura crítica e interpretação, I. Osíris.


                    CDD 869.0091

Catalogação na Fonte
Bibliotecária: Eliane Espíndola Vieira – CRB/14 – 401
Bússola de Navegação


Primeira dentição .......................................................................... 7

Entrevista ....................................................................................... 9

Poemas ......................................................................................... 51

Prosa ............................................................................................. 73

Crítica ........................................................................................... 83

Obras .......................................................................................... 145

Fortuna Crítica .......................................................................... 147
Primeira dentição da REVISTA OSÍRIS



Osíris, deus da vegetação, da vida no além, carnação da costura e
caleidoscópio de vozes. Encarnação das forças da terra e das plantas.
Orfeu e Sísifo. Osíris ou Ausar como dizem os egípcios. Ausar, ousar,
saber que a literatura, o teatro, as artes visuais ainda são capazes de
ter um lugar, melhor, de abrir lugares. A Revista Osíris é a nossa
escavação de novas trincheiras, é o nosso embate. O que pauta a
nossa escolha é a ousadia e a contundência poética. É a víscera
urdida e tatuada em nossa voz. Feito Ísis, que buscou as diversas
partes do corpo de seu amado Osíris, para remontá-lo, reconstruí-
lo, retê-lo, nós agregamos neste espaço diversos pedaços do corpo
da arte. Osíris: morada dos múltiplos. Este DOSSIÊ acompanha a
primeira dentição da REVISTA OSÍRIS (www.revistaosiris.com.br).
A cada novo número da revista teremos um novo DOSSIÊ com
um artista. O primeiro revela as várias faces do poeta, contista e
crítico Péricles Prade. Ele é uma das vozes mais contundentes da
poesia brasileira na atualidade, por isso oferecemos ao leitor partes
do universo pradeano.




                                                          os Editores




                                  7
Entrevista

                                 a Marco Vasques e Rubens da Cunha



1) Paulo Leminski no poema “Limites ao Léu” reúne uma série de
definições de poesia: “permanente hesitação entre som e sentido”
(Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a
religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny). Qual a sua
definição de poesia? Para que serve a poesia?
       Parece-me, depois de Paul Valéry ter afirmado que “o
poema é a hesitação entre o som e os sentidos” (reflexão expressa
no Cahiers, 1912), ser desnecessário reconceituar a poesia (arte da
linguagem), tanto mais se — conforme registrou o poeta obsessivo,
geométrico e original, no livro Tel Quel (aforismos) — ela não é
senão a literatura reduzida ao essencial de seu princípio ativo.
Rendo-me àquele conceito, pois também me acostumei, a exemplo
do criador do famoso “Esboço...”, a pensar como Serpente. Para
que serve a poesia? Para ingressar no “reino infinito do espírito”
(Hegel) e melhor entender os mistérios do pensamento do homem
e o sentimento do mundo.


2) E como é pensar como uma serpente? Pensamos na serpente como
um híbrido entre o exato e sinuoso, o belo e o mortal, o silencioso e
o voraz.
     Quando respondi “pensar como Serpente”, lembrei-me
do Penser en Serpent de Valéry, do satã-pensamento no Jardim

                                 9
do Éden, o masculino protagonista do monólogo Ébouche d’un
Serpent. Pensar como serpente é pensar como sábio. Serpente, há
séculos, simboliza a sabedoria. Aliás, Augusto de Campos, tradutor
de Valéry, aduz que o nome serpente advém de Ophis, quase-
anagrama de Sophia (sabedoria), e a si próprio pergunta se o poeta
francês teria consciência de que a palavra penser é palíndromo
de serpent. O pensamento, tanto quanto o(a) Serpente, é sinuoso,
circular, movimenta-se, cria e recria no silêncio, mudando a pele
das ideias nas fases propícias. Só os devotos ao seu culto podem
afiançar o que digo aqui e agora.
 

3) Os poetas, quase sempre, têm o hábito de desconfiar de sua
primeira obra. Como você avalia os três primeiros livros? 
        Não se trata de desconfiança, ou mesmo insegurança, com
referência às obras inaugurais, mas de reconhecimento de uma
realidade, pelo menos no meu caso. Os três primeiros livros deixam
a desejar, se comparados com os posteriores (o que é natural), e
não só por terem sido escritos na adolescência. Afinal, nem todos
poetas nascem Rimbaud. Por ordem, os títulos das três obras são
os seguintes: Este Interior de Serpentes Alegres (1963, poesia), A
Lâmina (1963, prosa poética) e Sereia e Castiçal (1964, poesia).
O primeiro, batizado sob os auspícios mitológicos de Ouroboros
e Medusa, é ligado à memorial natureza da infância, sensível à
poética das águas (sofri um quase-afogamento). Expressa-se em
linguagem linear, discursiva, confessional (disfarçada e suspensa),
lembrando forma expandida de versos bíblicos, como constatou
Luz e Silva. O segundo, alegórico, lírico, narrativo, panteísta,
revelou inclinação ao universo esotérico, com ênfase na figura da
feiticeira. É também bestiário incipiente (outra vocação temática)
e devaneio de um menino, em crise existencial, que pretende a sua
redenção e a da humanidade. Nada tem de surreal, vislumbrando-
se somente propensão ao fantástico. Quanto ao terceiro, de tom
ainda lírico, elegíaco, movediço, conflituoso diante dos mistérios
do amor, da vida e da morte, sem imagens generosas, conquanto
pleno de metáforas insinuantes, é texto bem comportado de

                                10
extração simbólica, precipitando a eclosão da obra subsequente
(Nos Limites do Fogo).


4) O poeta Lindolf Bell, quando escreveu sobre A Lâmina, disse
que sua escritura, no conceito barthesiano, é uma violência. Claro
que não estamos aqui falando da violência propriamente dita, mas
de uma violência cuja escritura provoca no leitor uma espécie de
impacto que permanece. Como você vê essa questão?
       Tenho a impressão de que Lindolf Bell, ao se referir à
violência da escritura, foi apenas intuitivo, à margem do conceito de
Roland Barthes. Contudo, já que falamos do eminente semiólogo,
sublinho a pretensão de os meus textos serem lidos com fruição
(Jouissance, para usar palavra de sua predileção), colocando o leitor
em desconfortável estado de perda (obra aberta, plural), e, não, no
plano do simples prazer (cultural, de obra acabada). Observo, sem
receio de errar, que a violência se entremostra mais presente na
prosa, tanto em termos de impacto (linguagem), quanto em relação
à própria temática. Forneço como exemplo, além dos publicados,
o livro inédito Espelhos Gêmeos, na linha fantástico-erótica (ou
erótico-fantástica), em forma de pequeno tratado das perversões.


5) Na “Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe explica, passo a
passo, como chegou ao poema “O Corvo”. Ele, na época, já deu uma
espinafrada na chamada inspiração. Alega que a composição poética
é fruto de toda uma arquitetura. Na sua poesia encontramos indícios
de uma arquitetura ardilosa, tão ardilosa que nos confunde onde
começa a lógica e o sentido. Este Interior de Serpentes Alegres, A
Lâmina e Sereia e Castiçal são livros em que o ludus e o logos se
misturam. Por outro lado, há um silêncio poético de 12 anos, até a
chegada do livro Nos Limites do Fogo, no qual encontramos uma
ruptura de linguagem, pois o símbolo, o hermetismo, a alquimia
começam a protagonizar os poemas. Você pode falar um pouco sobre
essa mudança de rota?
      Concordo que minha obra, mormente a poética, é pautada
                                 11
pela arquitetura (carpintaria, soaria melhor) à maneira da filosofia
da composição de Edgar Allan Poe, iniciada, contudo, após o
advento de Sereia e Castiçal, sob o critério da divisão dos poemas,
tendo por parâmetro o número 5. Se há indícios de que a arquitetura
é ardilosa, não pretendo confundir os exegetas. Não é radical como
a do modus operandi propiciatório do nascimento de “O Corvo”,
que despreza a intuição extática, a inspiração fruto de incidente
contemporâneo, o frenesi sutil e o acaso, considerando dogma a
produção do efeito até o desenlace do poema, exigente de precisão
e de lógica para solucioná-lo como se fosse problema matemático.
Também coloco a “inspiração” à deriva. Todavia, valho-me da
intuição, dela partindo para organizar o sistema adrede pensado.
Em suma: concilio os extremos. Os poemas, arquitetonicamente
falando, têm concepção básica circular, ourobórica. Começaram
com Este Interior de Serpentes Alegres e terminarão com O Retorno
das Serpentes (o estágio final em que a cauda da Serpente fecha
o círculo). Com esta última obra completarei o ciclo.
       Quanto ao Nos Limites do Fogo (1976, mais logos e menos
ludus), luciferino por excelência, continua a partição do livro em
conjuntos de cinco a cinco poemas (explicarei a origem da escolha
do número 5, se houver interesse), ressalvando-se Labirintos (2008),
por compreender os vinte e dois arcanos maiores do Tarô. O fogo
convive com a água nessa liturgia-simbiose-gnóstica. Simbólico,
hermético sem ser obscuro, inicia o percurso do ocultismo, que
caracteriza o corpus reitor da obra poética. A mudança de rota
— ainda que tenha havido rompimento (relativo) da própria
linguagem — é mais espiritual e de origem herética. Tinha, então,
trinta e quatro anos. Entretanto, já havia lido tratados de Mitologia,
Cabala, Alquimia e Artes Divinatórias, cuja leitura, no âmbito da
Filosofia Oculta (inclusive obras fundadoras de Magia e Religião),
marcou e marca minha cultural visão do mundo.


6) Você pode falar mais sobre a numerologia em sua obra e por que
esta obsessão pelo número 5?
      A numerologia, denominada Aritmologia por Athanasius

                                 12
Kircher (explicação geral das propriedades secretas dos números e
de sua significação mística), e Aritmosofia por Sarane Alexandrian
(versa a simbologia dos números, das funções metafísicas e
das operações mágicas), é uma das disciplinas componentes da
Filosofia Oculta. São consideradas suas fontes a Filosofia Grega, a
Gnose, a Cabala e o Cristianismo. Com base nela, podemos explicar
o porquê da escolha do número cinco para dividir os poemas. A
partição quíntupla, em determinado momento, passou a interferir
na estrutura dos poemas. Já o 7 (o mais sagrado e venerado pelos
pitagóricos no século VI a.C., porque embute o 3 e o 4, figuras
do perfeito equilíbrio) não tem caráter estrutural, mas é referido,
por extenso, nas obras poética e ficcional, conservando o substrato
oculto. Anoto, quanto ao 5, que, além de modelo do método
estrutural, o seu uso se justifica, simbolicamente, pois representa
a cabeça comandante do corpo. É número pagão por excelência. E
não se esqueçam: os mistérios antigos eram divididos em 5 partes.


7) Para nós, o corte radical de sua linguagem se dá no livro Os
Faróis Invisíveis. Onde você sai de um texto torrencial, prosaico,
para uma linguagem exata, concisa. A expressão caput mortuum,
isto é, cabeça dos mortos, é “uma expressão de que se serviam os
alquimistas para designar o resíduo não líquido de suas análises;
eles comparavam esses resíduos a uma cabeça, da qual a operação
alquimista houvesse retirado o espírito. Resto que escapa à sucessão
ou cadeia significante; borra.” Como a alquimia é um dos pilares de
sua obra, seja ela feita em prosa ou verso, gostaríamos de saber um
pouco mais sobre o seu processo de escrita, no sentido de cortes, dos
resíduos e da morada alquímica.
      Sem dúvida, o corte radical ocorreu em Os Faróis Invisíveis.
Pela primeira vez alguns poemas mergulharam no poço do
surrealismo. Ainda assim, a obra não se conforta à pura escrita
automática, ínsita ao início do movimento bretoniano. Nesse livro
aflorou também o erotismo. Discordo da afirmação de que saí de
um texto poético anterior torrencial e prosaico. Nos Limites do
Fogo é contido, enxuto, compacto, e mesmo os precedentes, não

                                 14
obstante discursivos, não têm, salvo estridente engano, essa forma
dita caudalosa. A propósito da expressão latina caput mortuum,
apropriada por Lacan (o significante impossível, isto é, o resíduo
impossível do funcionamento da repetição), designativa da sobra
não líquida das análises dos alquimistas, levo-a em conta no leito
literário, agindo como poeta, sem tirar o espírito dessa “cabeça”,
fazendo outro tipo de destilação... Não procuro a transformação
dos metais, objetivando o ouro, ou a pedra filosofal, nos moldes
dos antigos. Logo, se a Alquimia (Arte de Hermes) era explicação
racionalista das transformações da matéria (v. Berthelot),
explorando o universo físico, a por mim utilizada é de natureza
verbal. Alquimia do verbo mediante a decantação de outra matéria
(palavra), de outra Grande Obra (dependente de três fogos) e de
outra natureza de metamorfoses/transmutações. Serve, também,
como tema condutor, com a exploração de seus elementos (ex.: o
mercúrio, feminino; o enxofre, masculino) e utensílios (Athanor,
ovo filosófico, lamparina, cuba, pares de balanças etc.). A obra
mais vinculada à simbologia alquímica, escrita por mim, chama-se
Sobre o Livro Mudo, versão poética de quinze pranchas herméticas
(imagens) de La Rochelle (1677), cognominado Mutus Liber,
em linguagem hieroglífica, périplo onírico com a finalidade de
explicar todo o procedimento técnico (gramática oculta) do adepto
iniciante, rumo à conquista do ouro, da pedra filosofal, que, para
os mais sábios, é o conhecimento em seu mais alto nível espiritual.


8) Quando nos referimos a uma poética mais caudalosa, estamos
colocando em perspectiva toda a sua obra. Claro que nos primeiros
livros conseguimos identificar a concisão, a busca pelo verso exato, o
trabalho de ourivesaria do poeta Péricles Prade. Contudo, os textos
são formalmente mais extensos. E, se compararmos Este Interior
de Serpentes Alegres com O Pequeno Tratado Poético das Asas,
podemos, de algum modo, tratar as primeiras obras sob a perspectiva
do prosaico e do torrencial. Certo?
      Não estou convencido de que assim o seja. A propósito da
perspectiva do “prosaico”, lembra-me muito a concepção hegeliana,

                                 15
que fazia distinção entre representação (arte) poética e representação
(consciência) prosaica (esta não teria, sob a óptica do filósofo
alemão, a imagem por conteúdo, mas a mera significação). Sendo
assim, se “prosaico” (o termo me desagrada) pode ser considerado o
texto de A Lâmina, tal não ocorre com os dois outros livros iniciais.
Além do mais, é inconfundível o texto discursivo dos poemas
inaugurais com o do gênero prosa (posterior) propriamente dito.
Arrematando, reacentuo que, mesmo comparado com o Pequeno
Tratado Poético das Asas (exato, conciso, descarnado, absorvido
pelo mito), não reconheço Este Interior de Serpentes Alegres, A
Lâmina e Sereia e Castiçal como expressão verbal torrencial, apesar
da forma expandida. Quem sabe vocês tenham razão e, submerso
em equívocos, não percebi.


9) Diante dessa mudança, gostaríamos de saber como surge um
poema? Existe um método interno, e ele aparece pronto, ou o poema
é reescrito até que pareça ter sido escrito uma única vez, como queria
Mario Quintana?
      Na resposta à quinta pergunta me referi ao método de
composição. Aqui, acrescento que o poema é pensado, elaborado
mentalmente, e, depois, transferido inteiro para o papel, passando
a atrair incisões, cortes e/ou eventuais mudanças de palavras.
Trata-se de pré-conceito poético pós-arrumado. O poema, até a
publicação, é reescrito várias vezes. E casos há em que, já publicado,
é polido com severidade, visando à futura edição. Todo poeta é
espécie de ourives na busca da perfeição.


10) Você encontrou na prosa uma maneira de liberar o poeta para
fazer devaneios, ressignificar mitos e executar o surrealismo irônico,
debochado?
       É de palmar reconhecimento, aos que leem minha ficção, a
existência de forte carga poética nos textos. Entretanto, é preciso
deixar bem claro que a maior parte (quase absoluta) não se afina
ao conceito de prosa poética. Mesmo os devaneios, frutos dos
                                 16
delírios (oníricos) das personagens, não fogem dos esquemas
lógicos, resguardando o sentido sob o foco narrativo. Conquanto
o mito se apresente com maior vigor na poesia, também se imiscui
na ficção, sempre subvertido, pervertido, ressignificado, reescrito
sob o pálio da imaginação fervente. Deixá-lo marginalizado, nas
narrativas, seria um insulto contra a sua natureza. Espero ter
encontrado a forma adequada para liberar o poeta incrustado na
linguagem, malgrado não veja — sem que essa afirmação contenha
viés polêmico — na ficção de linguagem afeiçoada ao fantástico, a
execução do surrealismo irônico, e, muito menos, debochado, mas
ironia e humor de polpa distinta.


11) Hilda Hilst e Roberto Piva já detectaram a ausência de uma
poesia visceral. Após o concretismo, vigora um formalismo excessivo,
predominando uma poesia fria, sem vísceras, que tenta se justificar
apenas pela forma. Como conseguir o equilíbrio entre o formal e o
visceral?
        Roberto Piva (este sim, surrealista irônico e debochado) e
Hilda Hilst, cada qual a seu modo, lavraram poesia visceral e, por
isso, estavam à vontade para detectar aquela propalada ausência.
Ocorre, porém, que a ausência não é absoluta. Outros poetas
viscerais há, e percebíveis, na atual geração. Diria que o dogma
formal é mais uma tendência, abraçando o esqueleto e despojando
a carne. Entendo ser necessário o equilíbrio. O miglior fabbro pode
conquistá-lo. E o melhor o fará, afeito à formulação de Croce,
segundo a qual o ato fundante da poesia é a aliança do sentimento
e da imagem. Sim, porque, como ensinava o filósofo italiano, só
haverá selo de totalidade, o sopro cósmico, quando for dada forma
artística ao conteúdo do sentimento. Deve-se, então, para atingir
a unitotalidade cósmica de que falava Bachelard, combinar a
imaginação formal com a imaginação material.


12) Qual o seu conceito de prosa poética?
      A prosa poética, assim já designada no século XVI (1540),
                                17
remontando à Segunda Sofística (século V a.C.), não corresponde,
a meu juízo, ainda que represente a fusão da prosa e da poesia, à
equivalência de ambas. Em que pese a confluência das respectivas
linguagens (denotativa e conotativa), justificando o nascimento
da autonomia do texto, às vezes predomina a denotação, e,
dependendo do conteúdo da obra, a conotação. E se existe a fusão,
está-se diante de uma forma híbrida. Não me atenho à típica
forma híbrida de que fala Luiz Costa Lima, quando determinado
texto perde sua fenomênica destinação original (ou inscrição
originária), deslocando a função primitiva, com a permanência da
eficácia das marcas da espessura da primeira linguagem, contígua à
presença suplementar da segunda, como ocorre em certos ensaios,
autobiografias e memórias, transmudados para o estatuto ficcional
(dupla inscrição). Entendo que prosa poética é forma híbrida
atípica — pois, nela, inexiste deslocamento de função, dada a
especificidade do gênero autônomo — em se tratando de inscrição
literária originária exclusiva, única, imutável. Digo isso, sabendo,
com esteio em Todorov, que o problema da classificação tipológica
das obras literárias suscita dificuldades. A Lâmina (1963) se afeiçoa
a esse conceito, bem como alguns poemas constantes dos livros
Além dos Símbolos (2003) e Sob a Faca Giratória (2010), ou os
“Novos Relatos de Luigi Pomeranos”, e outros, incluídos na obra
Correspondências – Narrativas Mínimas (2009).


13) Por que escrever uma obra toda cifrada, hermética, que exige
do leitor, para sua total fruição, um conhecimento incomum mesmo
entre poetas?
      Não me parece que “toda” obra seja cifrada, hermética. Boa
parte dos poemas é facilmente legível, em especial os dos livros
anteriores ao Nos Limites do Fogo (1976), e os dos posteriores,
voltados à infância, ao erotismo e às viagens. Negar não posso
que o maior volume é constituído pela poesia de matriz ocultista,
acoplada à tradição da Gnose, da Cabala, da Alquimia, da Magia, das
Artes Divinatórias e de outras vertentes do pensamento analógico.
Mesmo constituindo, no fundo e no raso, poesia para iniciados,

                                 18
os poemas valem por si sós (imagino), independentemente da
compreensão imediata, em virtude da empatia da rede sonora das
palavras, das metáforas ousadas e das imagens incandescentes,
cujo não sentido, aparente, é insólito ou incompreensível apenas
aos que não adentraram o complexo portal do imaginário, ou se
encontram no vestíbulo, inertes, à espera da senha redentora.


14) Sua fortuna crítica revela que é necessário, mesmo para os
primeiros livros, conhecimento específico para total fruição de sua
poética. Pois sua literatura já começa sob o signo da serpente com Este
Interior de Serpentes Alegres. É claro que há o ludus, o encantamento
da linguagem que faz com que o leitor comum absorva a superfície.
Contudo, temos a clareza que, para a total fruição da sua obra, faz-
se necessário um conhecimento que ultrapassa “a empatia da rede
sonora das palavras”. Você poderia apontar caminhos para os que se
encontram “no vestíbulo do portal do imaginário”? Qual é a senha?
        Já disse, alhures, que, para a fruição poética, basta a empatia
da linguagem com seus significados ambíguos e polissêmicos,
proporcionando múltiplas revelações. O que afeta determinado
leitor, não afeta aos demais. O encanto vale mais do que mil
explicações teóricas. Se ao leitor, encantado ou não, é insuficiente
o impacto da imagem, a beleza da metáfora e a impressão causada
pelas palavras, preferindo esvurmar o conhecimento da origem dos
símbolos, dos mitos, das vertentes da Filosofia Oculta subjacente
e a complexidade das hierofanias, preocupado mais com os dados
inerentes à análise literária do texto do que com a leitura epifânica,
a senha para ultrapassar os umbrais é simples: ler o que há de
melhor do acervo bibliográfico (os autores canônicos) referente ao
denominado ocultismo ou esoterismo (Cabala, Gnose, Alquimia,
Magia, Artes Divinatórias), os mais autorizados tomos de
Mitologia, Simbologia e História das Religiões, os poetas gnósticos
(antigos e modernos) e a literatura de expressão fantástica. E não
esquecer, na seara das artes plásticas, Picasso, Dalí, Van Gogh e,
com maior proeminência, Hieronymus Bosch, responsável-mor
pela “atmosfera” dos textos verbais.
 
                                  20
15) A infância, a memória e o mundo aquático presentes em suas
primeiras obras, conforme você mesmo apontou, retornam com
o livro Sob a Faca Giratória. É a serpente retornando ao ponto de
origem?
       Realmente, essas instâncias sempre retornam. É a
sobrevivência do mito do Eterno Retorno, dos arquétipos sagrados
e profanos, da repetição das cosmogonias, da regeneração contínua
do tempo (in illo tempore), da transformação do Caos, tão bem
retratados por Mircea Eliade quando trata do simbolismo da água e
do fogo, das hierogamias e hierofanias, e, como não poderia deixar
de fazê-lo, da Serpente (ouroboros: solve et coagula!) no combate
com o herói, tudo para chegar ao Centro, ao território esotérico da
iniciação. A Serpente, pelo menos no meu caso, sempre retorna ao
ninho. É na origem que se consagra. Meu voo poético também é
circular.


16) Você diz que “a serpente sempre retorna ao ninho. É na origem
que se consagra.” Como você encara as teorias pós-estruturalistas
(Derrida, Nancy) que afirmam não existir centro, não existir origem?
       Como sou atraído pelos ensinamentos da Filosofia Oculta
e da Mitologia (esta geralmente sob o ângulo invertido), pouco
me importam os ditames da Filosofia Crítica para o fazer poético.
Assim, coloco à sombra, quando escrevo, o que pensam Jacques
Derrida (tão influenciado por Nietzsche e Heidegger...) e seus
seguidores Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe e Helène
Cixous acerca da descentralização da consciência humana e
da desconstrução da noção do sujeito (a partir do conceito de
différance), ainda que reconheça, tanto no estruturalismo quanto
no pós-estruturalismo (ainda com ressonâncias de Saussure), a
pertinência da justificativa segundo a qual a língua é a chave do
conhecimento. Daí a minha indiferença ao que Derrida sustenta
(apesar de concordar com a ambiguidade de todo texto e da
relatividade do significado), quando, na Gramatologia, esmiúça
a charada e a cumplicidade das origens, a inscrição da origem, a
metáfora originária e o suplemento de origem. Improcede essa

                                21
história de que a origem não existe. Ora, também para ele a fala
(verdade, natureza) é a origem da língua, sendo a linguagem escrita
uma imagem duplicada do privilegiado significante fônico. Toda
desconstrução remonta à origem, aos pressupostos. No mínimo,
há origem suposta, como admitiam os estruturalistas. Origem não
é necessariamente centro. Não se confunde origem (eliminação de
sua necessidade, calcada na ideia de estrutura), com centralidade,
levada ao logocentrismo. Tanto que se discute a centralidade do
problema da origem. Não quer dizer que há desprezo absoluto pelas
teorias de Foucault, Deleuze, Barthes, Guattari, Lyotard, Derrida e
Lacan. Instigante é, v.g., o lacaniano argumento do “imaginário”
(o simbólico, estruturando-o). Dito isso, vamos ao ponto em que
vocês, para polemizar, contrapõem as teorias pós-estruturalistas à
minha observação de que a Serpente se consagra na origem. Não
existiria esta, por inexistir o centro. Pois bem. Desconsideradas
essas teorias, resultado da imantação “literária” da Filosofia Oculta,
gostaria de assinalar que Mircea Eliade, há tempo, em seu livro O
Sagrado e o Profano — após justificar o axis mundi (a imagem é a
de uma coluna cósmica, eixo-pilar, elo entre o Céu e a Terra, com a
base cravada nos infernos, situada no centro/umbigo do Universo),
articulado como sistema — lembra, invocando certa cultura
indiana, ser o mundo sustentado pela Serpente (símbolo do Caos),
com a cabeça fixada por uma estaca e sobre ela colocada a pedra
angular. Portanto, a morada (imago mundi) da cobra imemorial
situa-se no Centro do Mundo. Se ela deve estar lá, sua sacralidade
hierofânica também deve retornar, sempre, quando foge de seu
habitat natural, no altiplano da imaginação criadora, para que o
universo não se destrua por falta de apoio. Aqui, simbolicamente,
centro (ponto fixo) e origem são a mesma coisa. Por essa razão
as Serpentes alegres de meu primeiro livro, filhas diletas da serpe
originária, voltam ao ninho sagrado, cumprindo o ritual.


17) Alguns de seus livros de poemas (Tríplice Viagem ao Interior
da Bota, Ciranda Andaluz) são escritos a partir de uma viagem. As
obras surgem porque você viajou a esses lugares, ou viajou a esses

                                 22
lugares já no interesse de fazer um livro? Foram apenas algumas
viagens que geraram poemas, ou todas?
       Jamais viajei ou viajarei a qualquer lugar (sítio, país,
continente) com o objetivo de escrever poesia ou ficção. Ocorre o
contrário: se estou fora do meu espaço natural, onde resido, viajo
no tempo e retorno à infância, embalado pela memória persistente.
É um chamado, estranho chamado, a que não posso resistir.
Quando esse estado de excitação criativa nasce, sou impactado/
imantado pelas forças telúricas de onde me encontro. Aí, surgem
as remissões às paisagens, às pessoas, aos animais e aos objetos
circundantes. Constituem mero leitmotiv, pretexto para a realização
da obra porvindoura. Preponderam as emoções, as sensações,
impulsionadas pelos sentidos que se fazem mais salientes. Tudo o
que vejo e tateio tem cheiro, som e sabor. Ciranda Andaluz (2003) e
Tríplice Viagem ao Interior da Bota (2007) são livros que se remetem
aos deslocamentos feitos à Espanha (Andaluzia) e à Itália (Roma,
Florença, Veneza), respectivamente. Tratam só de viagens (sem
deslumbramentos turísticos...) físicas, mentais, astrais e culturais
(históricas, artísticas, filosóficas), como os ainda inéditos Olho
Gótico (Sul da Alemanha, Áustria, Suíça) e Memória Grega e outros
Poemas Viajantes (Atenas, Alexandria, Paris, Praga, Viena), mas
há poemas esparsos desse naipe, encartados em obras pretéritas
(Jaula Amorosa, 1995; Além dos Símbolos, 2003). Não constituem
novidade, já que muitos ficcionistas e poetas viajaram pelo mundo,
deixando aos presentes e aos pósteros memoráveis impressões. A
expectativa, humilde, é que as minhas também permaneçam.


18) Sua última viagem ao Caribe rendeu algum livro?
      No Caribe (penúltima viagem) escrevi alguns poemas,
evocando famosos piratas e outras figuras/eventos eminentes
que excitaram o imaginário da época com as suas extraordinárias
aventuras. Refiro-me a uma das partes do livro Memória Grega e
outros Poemas Viajantes, intitulada “No Arquipélago do Caribe”.
A epígrafe desse quíntuplo conjunto é de Luigi Pomeranos: “Se
não fosse poeta, seria pirata”. Não me afetou o tempo presente,
                                24
representado pelo mar brilhante, visto da sacada do quarto de
um navio gigante. A paisagem, rápida, conduziu-me ao passado,
à captura de César, no retorno a Roma (após ter sido hóspede de
Nicomedes, Rei de Bitínia), às aventuras de William Kidd (jovem
capitão da Marinha Real Inglesa), aos disfarces de Mary Read e
Anne Bonny (mulheres piratas criadas como meninos), à conversão
de um ladrão de joias e ao espetáculo das esquadras flibusteiras
de orgulho predador. Quando viajo é o tempo distante que, sem
limites, governa meus sonhos e vigílias. Reencarno, convertido em
máquina criadora recompondo os séculos.


19) Em Pantera em Movimento, você se afasta do caminho seguido
até então e entra na seara explicitamente erótica, já presente
implicitamente em outros livros. Os poemas são menos fechados
em símbolos, ocultismos, hermetismos. Como você avalia esta obra?
Uma licença poética dentro da sua poética?
       O fervor erótico tem, há tempo, me acompanhado no curso/
percurso poético, às vezes de forma implícita, às vezes de forma
explícita, esta notadamente em Os Faróis Invisíveis (v. a parte
“Eros no Poço das Sedas”) e Pantera em Movimento (todo o livro).
Também na prosa se evidencia, sendo exemplo marcante a obra
inédita Espelhos Gêmeos. Não configura mera licença poética, mas
opção de natureza amorosa (numa fase de ostensiva felicidade),
exigente de linguagem linear, de legibilidade nada crepuscular, em
que o simbólico cifrado e as armaduras herméticas cedem espaço
às metáforas de clara plumagem para provocar a relação libidinal
do leitor com o corpo dos poemas e o da amada. Avalio-a como
espécie de ponto de fuga, se comparada com as demais, anteriores
ou não, despojando-me dos elementos de estranhamento, das
envolventes cinzas do Oculto, de tudo quanto se desvia do eleito
foco de atração.


20) Pode falar um pouco sobre a infância, sobre o contexto familiar?
Existe algum fato daquele período que determinou o surgimento do

                                25
escritor, do poeta?
       A infância está entranhada em minha poética. Talvez, por
isso mesmo, escolhi a conhecida epígrafe de Baudelaire — “La
poésie c’est l’enfance retrouvée” — para o primeiro livro, Este
Interior de Serpentes Alegres. Vários fatos daquele período e da
puberdade precipitaram o nascimento do poeta e do narrador: a
leitura cativante de “gibis”; a visão do pai (Erwin) ao compulsar
jornais na varanda da casa; o estímulo da mãe (Áurea), que contava
histórias de ingênuo humor; a irrupção do poema a ela dedicado
aos nove anos; a novela de rádio “Jerônimo, o herói do Sertão”.
A emersão criadora ocorreu na adolescência, impulsionada pelo
crescimento do germe quando frequentei o Ginásio Rui Barbosa,
em Tïmbó, sob a influência do prof. Gelindo Buzzi, declamador
obsessivo dos românticos Castro Alves e Victor Hugo. Estou
ciente de que outros fatos, não literários, têm características de
fonte, entre os quais ressalto: o cortejo de diabinhos vermelhos
que vi, em Rodeio/SC, saindo de um poço, atrás da casa; o quase-
afogamento (salvei-me por pouco, após submergir três vezes);
a fuga de casa com dois irmãos aventureiros (com arco e flecha
atirei na empregada assustada que nos flagrou, prendendo-a pela
blusa numa árvore); o confinamento a contragosto no Seminário
Marcelino Champagnat/PR (fui expulso, graças a Deus), por
ter pecado contra a castidade; a injusta punição, no Colégio dos
Irmãos Maristas, por ter mijado no colchão, à noite, obrigando-me
o padre-prefeito a atravessar o pátio com o troféu molhado nos
ombros; o furto de patos distraídos numa lagoa, e o de melancias
nas roças dos vizinhos tolerantes; a morte de pombos indefesos,
com espingarda de pressão, nos telhados da casa do Sr. Draeger; a
pichação de poemas obscenos nas paredes da escola; a compra de
mantimentos, na mercearia de Horst Domning, com uma pedra
sobre a cabeça, coroada com boné de pelúcia; a primeira relação
sexual, com uma empregada rechonchuda, na cama de seus patrões
(donos do Cine Mock), e por aí vai, que a memória não é de ferro.


21) Depois das peripécias da adolescência, vai surgir o advogado

                               26
renomado. Como isso aconteceu?
        A palavra “peripécia” foi usada de forma correta, se,
etimologicamente (peripetia), compreende a passagem repentina
de um estado ao outro, segundo a lição de Massaud Moisés,
ancorado em Aristóteles. Foi, confesso, após a adolescência, que
passei a me preocupar mais com a cidadania, os olhos dirigidos
ao próximo, aos interesses da comunidade em que vivo. Por isso,
atraiu-me o Direito. Lecionei em várias universidades brasileiras,
pertenço a inúmeras entidades, no país e no exterior, escrevi vários
livros jurídicos, exerci a Magistratura Federal e exerço a advocacia
com dedicação em Santa Catarina, São Paulo e Brasília. Assumi e
assumo a responsabilidade de grandes questões, algumas de vultosa
expressão pecuniária, mas jamais deixei de atender aos menos
favorecidos. O mundo e o submundo desse segmento profissional
fornecem fartos subsídios para a fatura de obras literárias, mesmo
quando o onírico não pede licença para se intrometer nos territórios
do verso, anverso, reverso e/ou perverso.


22) Nós já apontamos a possibilidade de se fazer uma leitura de
sua obra à luz das hierofanias (sobretudo as celestes e as terrenas)
conceituadas por Mircea Eliade no livro Tratado da História das
Religiões. Como você avalia essa perspectiva na sua obra?
       Recordo-me muito bem que Marco Vasques, há mais de um
ano, impressionado com a leitura do excepcional tratado de Mircea
Eliade, disse ter encontrado, nele, elementos para estudar minha
poesia à luz das hierofanias. De imediato concordei com a análise
nessa perspectiva, até porque, inclusive no livro O Sagrado e o
Profano (introdução geral à História das Religiões), as hierofanias
também são abordadas pelo mitólogo com verticalidade. É nessa
obra que Eliade melhor conceituou e de modo mais simples a
hierofania, considerando-a ato da manifestação do sagrado (obs.:
quando algo de sagrado se nos mostra). Em verdade, tais hierofanias
são tríplices: cósmicas, biológicas e tópicas. Na poesia que escrevo
se entremostram mais as cósmicas, também tríplices: celestes,
aquáticas e terrestres. Entre as cósmicas, salvo engano, diria que
                                27
nos poemas se expandem as aquáticas (algumas subliminares),
sem prejuízo da incidência das hierofanias celestes e telúricas. O
simbolismo aquático é forte, devido às inamovíveis lembranças
da infância. Nas biológicas, vislumbro o erotismo contido, e, nas
tópicas, o fascínio pelas viagens. Tudo, nessa complexidade dialético-
labiríntica das revelações, está vinculado ao campo morfológico
dos mitos, ritos e símbolos, sobrelevando-se a Serpente, epifania
lunar e síntese da multiplicidade das hierofanias.


23) Como equilibrar as diferenças de ofício? De um lado, temos o
poeta do oculto, o poeta do imaginário, hermético. De outro, o
advogado, o empresário, o político?
       Volta e meia fazem perguntas dessa natureza. Não há
incompatibilidade alguma. São dois continentes que se completam.
Goethe e Gabriel García Márquez, por exemplo, estudaram Direito
e o abandonaram, mas Franz Kafka, além de formar-se e ter
estagiado no escritório de advocacia do tio Richard Löwy (1906),
atuou como advogado na filial da Assicurazioni Generali de Praga
(1907-8), e na Arbeiter-Unfall-Versicherungs-Anssalt (Instituto de
Seguros de Acidentes do Trabalhador), de 1908 a 1922, quando
se aposentou para tratamento da tuberculose. A profissão jamais
atrapalhou sua literatura (a única e verdadeira paixão). Pelo
contrário: o conhecimento das leis e dos meandros do Tribunal
fez com que produzisse obras prodigiosas de cunho fantástico,
iluminando futuras gerações de escritores. Quanto a mim, é a
diferença dos ofícios que possibilita o necessário equilíbrio mental.
Tenho dito, com certa dose de humor, que, se não fosse a advocacia,
teria enlouquecido. A lógica cartesiana, exposta nas peças jurídicas,
contrapõe-se ao ilógico, ao nonsense, ao onírico, ao imaginário solto,
aos enigmas que povoam o clima fantástico dos textos literários.
Afirmo o mesmo em relação à Política. Candidatei-me a prefeito
de Florianópolis (perdi a eleição), fui, depois, eleito vice-prefeito,
e tentei a Câmara Federal, alcançando a primeira suplência. Pois
é: dessa água bebi e receio bebê-la. Extraio elementos/temas desse
universo (paralelo?), ainda que muitas vezes de forma inconsciente.

                                 28
Quanto às atividades empresariais, não levo jeito, como ocorreu
com Kafka (a mil léguas a comparação), na Fábrica de Amianto
de Praga, sociedade comanditária de posse (nominal) do genro de
Hermann Kafka (o autoritário pai), casado com sua filha Elli. Hoje,
sou espécie de editor bissexto, colaborador intermitente do escritor
Fábio Brüggemann na sede da Letras Contemporâneas.


24) Jayro Schmidt e Álvaro Cardoso Gomes estão trabalhando novas
leituras sobre sua obra, a exemplo do que já o fez a ensaísta Mirian
de Carvalho. Como é o seu diálogo com a crítica? Como você vê essas
leituras mais aprofundadas de sua obra?
       Ambos redigiram alentados ensaios, a serem publicados
ainda neste ano (ou no próximo) por editoras paulistas. Jayro
Schmidt é o crítico literário que, pela primeira vez, enfrentou
específicas questões de linguagem, examinando-as na poesia e
na ficção. Álvaro Cardoso Gomes, que escreveu as abas do livro
Além dos Símbolos, acabou de redigir exegese de toda ficção
até o momento publicada. Destaco o enfoque por ele dado à
écfrase (descrição/representação verbal da representação visual),
conhecida, no passado, pela fórmula horaciana ut pictura poesis.
Outro crítico que, com exemplar rigor, interpreta minha obra
(poesia) é o poeta Dennis Radünz. Escreveu o posfácio de Ciranda
Andaluz. Olho Gótico (sul da Alemanha e Tirol austríaco-suiço)
receberá o posfácio de Andrés Alberto Heller, que está redigindo
ensaio em torno dos componentes musicais, tanto na poesia quanto
na prosa. Intenso trabalho, há décadas, realiza o escritor e crítico
Benedicto Luz e Silva, compreensivo de toda obra poética (obs.:
publicou, em 1999, O Cão e o Alçapão, que versa a interpretação
das duas primeiras narrativas). Já redigiu os livros Mitopoética
de Péricles Prade, O Unicórnio Segundo Péricles Prade, e está na
fase final da redação de O Erotismo na Poesia de Péricles Prade,
todos ainda no aguardo de publicação. É estranho que, até hoje,
nenhum crítico tenha focado a sombra gnóstica de Alfred Jarry na
poesia (C. Ronald apenas a vislumbrou na prosa, e de igual modo
Jayro Schmidt, depois dele), a aura do lado esotérico de Christian

                                30
Morgenstern (escrita humorístico-fantástica na prosa), bem como
a leveza de Aloysius Bertrand na prosa poética.


25) Já aconteceu uma leitura de sua poética da qual você discordasse?
Qual?
        Não há discordâncias flagrantes. Apenas me indisponho,
sem sobressaltos, aos que insistem em me filiar à escola de vocação
surrealista. Lindolf Bell era um deles. Lauro Junkes é outro que
assim pensava. Do mesmo estofo é o ponto de vista da crítica
italiana Maria Del Giudice, que introduziu Os Milagres do Cão
Jerônimo no escaninho do surrealismo paradossale. Entendo,
salvo equívoco, que somente parte de Os Faróis Invisíveis, e alguns
poemas constantes de outras obras, podem justificar essa pretensa
classificação. Jamais utilizei a radical escrita automática e não
adiro a outros métodos adotados pelos surrealistas. Inclino-me ao
cubismo literário (quando encadeio fragmentos), ao simbolismo
insólito de subjacência mitológica (inversões criativas e novas
mitologias), ao endobarroco e seus afluentes, conforme ensinou a
contento Mirian de Carvalho.


26) Mirian de Carvalho afirma que “A partir da obra Em Forma
de Chama: Variações sobre o Unicórnio, localiza-se na produção
poética de Péricles Prade singularmente afeita às imagens e ao
logos poético em esquiva do signo e da cultura, uma perspectiva
do Endobarroco. Porém, não se trata de retomada do Barroco nem
de um “eterno barroco” de expressão universal. Ao Endobarroco
relacionam-se contrastes implícitos às imagens, que, insurgindo-se
na Literatura desde os alvores da Cultura Moderna, chegam aos
nossos dias, traduzindo-se como desvio do princípio de identidade.”
Como você encara a teoria do endobarroco e como a relaciona com
sua obra?
      Partindo do conceito de “pambarroco”, formulado por
Ivan Cavalcanti Proença (ênfase na transgressão da ordem direta
do discurso, nos traços formais, morfossintáticos, sonoros e

                                 31
imagísticos, mediante o uso de jogos antitéticos,
oximoros, paradoxos, inversões etc.), amparada nas
teorias de Eugenio d´Ors (Eterno Barroco), Heinrich
Wölfflin (perspectiva cíclica), Helmut Hatzfeld
(instâncias morfológicas e ideativas), com valimento,
ainda, no critério de desconstrução de Jacques Derrida
(em acepção diversa quanto ao processo criativo) e no
sistema de Gaston Bachelard (desvio do signo e da
cultura, salientadas as noções de imagem, imaginação,
espaço/tempo e matérias, nestas com relevo nos
arquétipos águas e fogo), Mirian de Carvalho justifica
— sem retomar o Barroco tradicional pelo Neobarroco
— a presença de características do endobarroco (cuja
dinâmica é impulsionada por um logos referendador
da base imagético-semântica), na obra Em Forma
de Chama - Variações sobre o Unicórnio, forte no
enlace (jogo) do pensar (ideia) e do dizer (palavras).
Sua exegese sustentou a existência heteróclita desse
notável animal mítico, versando o fusionismo
(harmonia) dos sentimentos paradoxais (oposições
e diferenças) em desvio/esquiva do princípio da
identidade (força movente e intrínseca à imagem),
cifrando-se ao reinado do encantatório. É estudo
de alto nível, redigido por conceituada professora
de Estética e Filosofia, que, além de explicar os
fundamentos reitores da generosa análise, questiona
dois aspectos que considero relevantes: meus poemas
apenas tangenciam o nonsense e não se coadunam com
os postulados e as técnicas surrealistas (é ressabido
não ser a escrita automática a única regra, admitida
mais tarde pelo próprio Breton como insuficiente),
em regime radical, já que, neles, inexistem captações/
registros de temas ou motivos opostos à razão
cognoscitiva, bem como a recorrência frequente
ao irracionalismo, muito embora esteja presente a
mesma atitude espiritual na procura e revelação do

                   32
lado secreto das coisas, do aprofundamento da síntese dos sonhos/
devaneios e da realidade sensorial, visando à libertação de todos
os dogmatismos (v. Enrique Molina). Há, reconheço, incursões
endobarrocas na linha apontada, mas a obra sob análise, aberta por
excelência, de substrato mitológico-simbólico-esotérico, oferece
fértil terreno (estou certo?) para outras abordagens analíticas.


27) Pode falar um pouco mais sobre o diálogo que você mantém com
as novas gerações?
       Tocante aos poetas da geração 1960, na província de Santa
Catarina (obs.: em São Paulo minha convivência literária era com
Cláudio Willer, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés e Benedicto
Luz e Silva, entre outros), mantive ótimo relacionamento com
os falecidos Lindolf Bell e Osmar Pisani, e continuo mantendo
contatos frequentes com C. Ronald, Rodrigo de Haro e Ricardo
Hoffmann. O diálogo maior e profícuo, sem desabono àquela
geração, é o realizado com os poetas e ficcionistas das Gerações
1980/90. Destaco Fábio Brüggemann, Marco Vasques, Dennis
Radünz, Fernando Karl e Rubens da Cunha, estes dois últimos em
datas recentes. Intercâmbio intelectual e afetivo. Troca de ideias,
informações e leituras. Tenho aprendido muito com o grupo,
atualizando-me, renovando-me, na real expectativa de melhorar
a qualidade do que escrevo, sempre à procura incessante da
inatingível perfeição da escritura. Esse vínculo é gratificante nos
âmbitos da criação e da amizade. Sei que perdurará, pelo menos
até o momento da passagem ao departamento de cima...


28) A plaqueta Guardião dos Sete Sons, publicada em 1987, parece-
nos ter sido pensada como conjunto. Ocorre que os poemas dessa
obra começam a aparecer em outros livros. Há alguma justificativa
para esse procedimento?
     Foi pensada como coletânea mirim, pois não corresponde a
uma separata musculosa ou a um livro de maior lombada. Reuni
7 poemas, exigidos pelos escritores Flávio José Cardoso e Silveira
                                33
de Souza, editores passageiros na época, para compor a sanfona
(lembra sua forma prazerosa), nome escolhido para esse tipo
de edição em papel dobrado. Tendo-os retirado de vários livros
inéditos (minha gaveta é extravagante horta literária), desfalcando-
os, a fim de atender a essa convocação, entendi que, mais tarde,
deveriam retornar à origem. E assim o fiz. Exemplificando: o
poema “O que se vê” está em Sob a Faca Giratória (2010), e “O Som
mais Simples”, “O Real também é belo às vezes”, entre outros, foram
encartados no livro Além dos Símbolos (2003). Eu os relacionei
dessa forma como obra autônoma, apesar de magra, justamente
por ser seleta mirrada que – mesmo contendo poemas inéditos
extraídos de acervos posteriores – representa seleção de textos de
interna coerência (estrutura) nos planos simbólico e formal.


29) Por que a crítica literária, sobretudo a exercida em Santa Catarina,
é sempre dócil e não faz distinção entre poéticas abissalmente
diferentes?
       Como também faço crítica literária e de artes plásticas, fico
à vontade para responder às indagações. Elucido que, quando
ajo nessa condição, não perco tempo em desancar obras fracas,
até para não possibilitar a instantânea saída delas do anonimato,
preferindo deixá-las solitárias onde se encontram hibernadas.
Destarte, ao exercer a crítica, é para arrolar as qualidades do
texto, sem prejuízo da indicação de eventuais defeitos, vícios ou
equívocos. Poupo-me, poupando os leitores, sabendo também que,
por razões indiossincráticas, posso me enganar. Inclusive quando
faço autocrítica favorável... Quanto à exercida em Santa Catarina
(a prática é ocorrente também fora de nossas fronteiras), salvo
honrosas exceções, não é incomum a louvação, o viés laudatório,
transformando medíocres de plantão em gênios estelares. E
quando isso sucede, quem perde é a literatura, de um lado, devido à
redução do sumo qualitativo, e, de outro, os autores de significativa
linguagem, sem falar nos leitores desavisados, que, na ausência de
paladar literário (saber também é sabor), comem gato por lebre e
acham tudo maravilhoso.

                                  34
30) Em entrevista para o livro Diálogos com a Literatura Brasileira –
volume II, você afirma que “vivemos num mundo desmitologizado”.
Sua obra é uma tentativa de enfrentar esse mundo desmitologizado
e ressignificá-lo? 
       A resposta está contida na pergunta. Não recuei o meu ponto
de vista a respeito dessa questão de fundo antropológico, refletindo
a visão da humanidade noutro período da história. Ocorreu a
desmitologização em contraponto à forma e ao modo como o mito
é considerado na atualidade, resultado — repito aqui a afirmação
proferida na mencionada entrevista — da gradativa e crescente
mudança do pensamento, que passou de mágico (in illo tempore) a
tecnológico e artificial. Criadas foram novas mitologias, é verdade.
Atente-se, porém, para o fato de prevalecer outros tipos de pensar
o mundo (quanto ao homem, animais, objetos etc.), próprios da
modernidade e pós-modernidade. Cabe ao escritor não deixar que
o(s) mito(s) desapareça(m), sob pena de empobrecer a qualidade
da língua e das obras literárias. Procuro, com significância maior
na poesia, resgatá-los, ainda que a ressignificação parta de ângulos
distintos e alveje metamorfoses fundadas na inversão ou outras
categorias na esfera da criatividade. O resgate poderá, na poesia, ser
realizado por força do pensamento metafórico, já que a metáfora,
conceituada por Ernst Cassirer, é o vínculo intelectual entre a
linguagem e o mito. E por quê? Porque o mundo, como assegura
Roberto Calasso, não tem nenhuma intenção de desencantar-se.


31) Quando nos referimos ao surrealismo não o vemos apenas como
“escrita automática” e seus “métodos radicais”. Na representação
visual de Relatos de um Corvo Sedutor encontramos alguns aspectos
surreais.  Por que sua indisposição com as relações que fazem de sua
obra com o surrealismo? Se olharmos sob a óptica da écfrase, isto é,
“descrição/representação verbal da representação visual”, você não
admitiria uma aproximação?
      Sei, perfeitamente, que vocês não veem, como eu não vejo,
o surrealismo apenas sob essa óptica. Minha inconformidade
é em relação aos que me nomeiam surrealista típico, adstrito
                                 36
à escritura automática (que, diga-se de passagem, antecede
ao movimento de 1924, pois Breton e Soupault utilizaram o
método das correspondências aleatórias já em 1919, no livro
comum Les Champs Magnétiques), ao acaso objetivo e aos demais
procedimentos conhecidos. O fato de aspirar mais realidade
para reencontrar a unidade perdida do ser, visando à resolução
das antinomias, ao adentrar a órbita do maravilhoso, pleno de
desejo e humor, projetado pelo inconsciente e pelo subconsciente
nos sonhos (freudianos ou não), não me torna surrealista de
carteirinha, inclusive na obra anárquica Relatos de um Corvo
Sedutor. Aproximações, claro, existem, sendo simples dados/fontes
(a exemplo de Jaula Amorosa) identificadores de certa eleição
espiritual. O que não gosto é do carimbo. Minha poética é mais
voltada aos predecessores do surrealismo, os poetas gnósticos
Blake, Rimbaud e Lautréamont.


32) O humor é um dos princípios de sua obra em prosa e também
está presente em seus poemas. Temos a curiosidade de saber como o
misticismo, magia, alquimia, gnose, cabala e as artes divinatórias,
áreas do ocultismo que perpassam sua obra, veem a questão do
humor?
       Esses ensinamentos não propõem e não se preocupam com a
questão do humor, per se, que sequer constitui gênero literário, mas
tipo de metábole, uma qualidade de expressão, sem equivalência
com a intuição, como propõem Pirandello e Bakhtin. Pode ocorrer
situação de humor, no âmago dessas categorias do Oculto, quando
se pretende escrever algo, tomando-as como pontos de referência
para criar, explicar ou ensinar. Gershon Scholem, por exemplo, ao
comentar as inter-relações entre Cabala e Mito, conta a anedota
envolvendo um jovem desejoso de manter contato com cabalistas
de tradição esotérica, que, tendo encontrado o mestre disposto a
ensinar, o mesmo lhe disse poder atendê-lo se satisfizesse a sua
condição de não fazer pergunta alguma. Ele glosa esse fenômeno
estranho, pois os judeus são considerados os mais apaixonados
questionadores do mundo... Diria que, se fosse em busca dessa

                                37
possibilidade, ou seja, a da revelação do humor, é encontrável na
mitologia primitiva, no grotesco das metamorfoses das divindades
(v. Basch). Sim, porque o Mito (v. Lévi-Strauss) é, simultaneamente,
produção estética e intelectual, cujo discurso, simbólico, por ser
também produção coletiva, representa sempre o social, no qual o
humor pode emergir pela eficácia (simbólica) do mito (v. Mauss).
Diz-se o mesmo em relação à Magia (objeto de crenças), fundada
na emoção, que, se tiver origem coletiva, desafia o exame crítico
e a dúvida (v. Paula Monteiro, com decalque em Mauss). Tanto
a crítica quanto a dúvida atraem o humor pelos mecanismos de
suas características, entre as quais se distinguem a indiferença e
o disfarce (v. Bergson), que não seguem as leis da razão. E, por
mencionar Bergson, olvidar não se deve sua máxima: não há
comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Nesse
contexto, reporto-me ao Ocultismo, no qual o demônio tem o seu
lugar reservado. Bem por isso, Baudelaire, no terceiro capítulo de
seu conhecido e aplaudido ensaio, anotou que o cômico é um dos
mais claros signos satânicos do homem. Daí que, mesmo sem se
filiar a Bergson, confirma: o riso é satânico, logo é profundamente
humano. E assim o é, por ser o homem resultado da ideia de sua
própria superioridade contraditória. O humor (palavra intraduzível
– v. Valéry) de minha simpatia, objetivo (v. Hegel) ou não, é o
negro, que utilizo sem a desejada frequência. Entre os autores
que o expressam, prefiro Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire, na
poesia, e Jarry, Huysmans, Borges e Kafka, na prosa, devido a certas
afinidades de concepção.


33) Como é a sua relação com as outras línguas. Esse conhecimento
afeta de alguma maneira a sua obra? Você acompanha as traduções
de sua obra?
       Leio, falo e escrevo francês, italiano e espanhol. Leio e
compreendo latim e inglês (sofrível). Estudei grego, um ano, sem
maiores progressos. Achtung: arranho o alemão (ninguém consegue
falar mal de quem quer que seja na minha presença), por ter vivido
grande parte da infância e da juventude em Timbó, na região do

                                38
Vale do Itajaí. Poderia tê-lo dominado, se eu não sofresse o assédio
sexual de uma professora (quando era jovem, em Florianópolis),
cujo cheiro desagradável fez correr o aluno atordoado. A leitura
no original tem outra dimensão. No que tange à tradução, o livro
Os Milagres do Cão Jerônimo foi traduzido para o italiano, francês,
inglês e espanhol. Os tradutores foram, respectivamente, Renzo
Mazzone (I Miracoli del Cane Geronimo), sob o pseudônimo de
Salvator d´Anna; Andriette Lenard (preferiu o título de um dos
contos – “Le Heros qui Sauve la Ville dans une Chaussure”); Joe
F. Randolph o traduziu com o título Devil Dog Doings, tendo Juan
Carlos Rochieri traduzido também as narrativas de Trampa para
Gigantes e os livros de poesia En los Limites del Fuego, Los Faroles
Invisibles, Jaula Amorosa bem como os ensaios Galileo Galilei –
Poder y Ciencia, Paracelso y Bruno, e Vesalius, Paré y Harvey). E
Alexis Levitin (tradutor de Leonor Scliar-Cabral) traduziu para
o inglês o conto “Miracles of the Dog Jeronimo”, publicado no
Mundus Artrium. Acompanhamento? Dei palpites às traduções de
Andriette Lenard e Juan Rochieri. Anoto que, do francês, traduzi
Apollinaire (antologia sob o título O Besouro que Dorme no Coração
da Rosa, extraído de um dos poemas), Aimé Césaire (Antologia,
em coautoria com Edson Nelson Ubaldo), Saint-John Perse
(Anábase e poemas esparsos) e Lautréamont (Poesias I e II, antes de
Cláudio Willer, mas que não as publiquei por ter ele se antecipado,
sem saber dessa minha aventura). Do italiano, traduzi poemas
de Montale, Quasimodo e Ungaretti. Do espanhol, narrativas de
Borges e poemas de Antonio Machado e Lezama Lima.


34) Já houve alguma adaptação de sua obra para cinema, teatro,
música? Como você vê esse trânsito/diálogo entre as artes? Já pensou
em criar outra arte que não a escrita?
      O conto “O Monge Astheros”, encartado em Os Milagres
do Cão Jerônimo, foi adaptado para o cinema (curta). Trata-se de
Astheros, produzido por Isabela Hoffmann e dirigido por Ronaldo
dos Anjos, autor do roteiro, lançado em 2011. Para o cinema está
sendo adaptado o livro Espelhos Gêmeos (narrativas). O roteiro e a

                                39
direção são de Fábio Brüggemann. O título provisório do filme é
Pequeno Tratado das Perversões (subtítulo da obra). Lembrei-me,
agora, que, sob a supervisão de Dennis Radünz, a artista argentina
Yannet Briggiler está ultimando os desenhos animados de
“Mirsânia, a Estrategista”, conto incluído em Alçapão para Gigantes.
No que se refere à música, o pianista Alberto Andrés Heller a
compôs para um poema gravado. E o maestro Gustavo Lange
Fontes (da Orquestra Filarmonia de Santa Catarina) criou, em data
recente, composição para a narrativa poética “Preso na Garganta”,
inserida em Ao Som do Realejo. Meu filho Alexandre (conhecido
como Alê Prade), músico e artista plástico, está criando as trilhas
musicais da “Antologia de poemas gravados”, com a finalidade de
futura publicação. Quanto ao teatro, escrevi, há muitos anos, O
Reino ou a Paralisia, anunciada (1963) em Este Interior de Serpentes
Alegres. Perdi os originais. Nunca mais me atrevi a reescrevê-la,
ou a escrever outra, muito embora uma ideia (já incrustada num
conto inédito) venha perseguindo o dramaturgo e ator frustrado.
Não sei se vocês sabem, mas fui um dos atores da peça Como ele
mentiu ao marido dela, de Bernard Shaw, dirigida por Aníbal
Nunes Pires. Contracenei com Aparecida Dutra e C. Ronald
Schmidt. Percorremos o interior do estado de Santa Catarina com
a mesma dignidade dos que acompanharam a trupe de William
Shakespeare. Estou, no momento, orientando um grupo teatral de
São Paulo, que pretende apresentar peça em torno da vida e obra de
Hilda Hilst. Se sobrar tempo, pretendo redigir uma peça acerca dos
contatos dessa escritora com os mortos, utilizando-se de gravadores
e outros expedientes técnicos. Ah, ia esquecendo de responder: (a)
o diálogo entre as artes é estimulante (toda arte é dialética), mas o
trânsito entre elas não constitui irremovível exigência (valem por
si sós); (b) pensei em ser pintor (usando colagens), mas a inibição
(reconhecimento introspectivo da falta de talento) é maior que a
pretensão; (c) tenho fotografado coisas abstratas (diminutas).


35) A indagação poética contida na primeira das elegias de Duíno,
que você faz referência numa entrevista para o DC Cultura, tem esta

                                 40
dicção: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos anjos me ouviria?”
Por que é a preferida?
        Sempre me agradaram as hierofanias poéticas. Entre elas,
sobreleva essa, de raiz celeste, do aristocrata e místico Rainer Maria
Rilke, poeta que li com devoção no início de minhas atividades
literárias. Não fiz a escolha desses versos misteriosos apenas por
gostar de Elegias de Duíno, seu melhor livro ao lado de Sonetos a
Orfeu, mas porque, ao contrário do suposto por muitos exegetas
distraídos, o Anjo, nele, como deduz com percuciência Otto Maria
Carpeaux, não é um símbolo religioso (o conformado espiritualismo
rilkiano sempre foi questionado). É símbolo estético, perfeita Obra
de Arte, encarnação da beleza, ideia inacessível que, ao mesmo
tempo, torna o homem consciente de sua imperfeição. Talvez assim
discorra por reconhecer no espelho o homo aestheticus, impactado
ao saber, lendo a “Segunda Elegia”, que todo Anjo é terrível. Isso
não quer dizer que ponho à esquerda o Angelus Novus de Paul Klee,
ou outro ser angelical, se o Anjo, como alertou Rouanet, lembrado
por Merquior, prossegue o trabalho que Édipo deixou de concluir.
 

36) Na mesma entrevista, afirma que o livro mais lido por você é a
Bíblia, com ênfase no Apocalipse? Você vê o Apocalipse para além do
cunho mitológico e literário?
       Leio a Bíblia desde jovem. É o melhor livro dos prodígios,
metáfora delirante do Juízo Final, a mais rica expressão universal da
Mitologia. Nela, encanta-me, até às lágrimas e ao riso (dependendo
das passagens de humor nem sempre branco), o “Apocalipse de
São João”, o mais notável precursor da literatura fantástica. É a
fonte bíblica por excelência da novela Relatos de um Corvo Sedutor,
catapulta de imagens, subvertida ao extremo (não obstante a
estrutura linear com o encaixe rigoroso dos breves capítulos), tipo
de pletora de milagres sucessivos às avessas, armazém literário
aproximado ao do imaginário violento da escatologia católica
apostólica romana. São inúmeros os Apocalipses (vários apócrifos)
e textos escatológicos análogos. Nada me interessam fora dos
eventos mitológicos e do substrato poético/ficcional. Não ando por
                                 41
aí à procura do Anticristo (ou dos anticristos menores), com terço
nas mãos.


37) Após nosso longo diálogo, percebemos que você reconhece que
há em sua obra “fértil terreno” para abordagens analíticas. Como se
sente tendo tanta consciência de seu labor?
       Faço tal afirmação porque, além de poeta e ficcionista, tenho
praticado crítica literária e de artes plásticas. Por essa razão, acho
fundamental a autocrítica. Conheço minhas limitações e eventuais
virtudes literárias. Abstraio, quando leio o que escrevi e escrevo,
supondo-me outro escritor. Nesses estágios de leitura, percebo
determinados aspectos, e imagino que algum intérprete possa
analisar pontos ainda não aflorados ou aprofundados. Exemplifico:
nenhum crítico fez análise vertical e exclusiva de temas em torno
do humor (a poeta Maria José Giglio foi a primeira, en passant,
a aflorá-lo num comentário); da écfrase (Álvaro Cardoso Gomes
abordou-a em breve ensaio alusivo só à ficção); das hierofanias
(Marco Vasques detectou-as, lendo texto canônico de Mircea
Eliade); do ocultismo (alguns analistas o exploraram, em artigos,
mas sem notável aprofundamento); do cubismo literário (como o da
linhagem de Murilo Mendes); das viagens (por ora, Dennis Radünz
redigiu posfácio ao livro Ciranda Andaluz e Abelardo Arantes Jr. o
posfácio ao Tríplice Viagem ao Interior da Bota); da comparação
com os universos dos pintores Bosch e Brueghel, o Velho (são
mínimas as referências); das raízes filosóficas (Wittgenstein,
Nietzsche, Hegel); fenomenológicas (Merleau-Ponty, Husserl) e
psicanalíticas (Jung, Lacan); dos fetiches (enrustidos ou explícitos);
dos aforismos (embutidos), e, de forma mais abrangente e enfática,
da Gnose. Convém consignar que Álvaro Cardoso Gomes escreveu
recente obra analisando toda ficção; Benedicto Luz e Silva fez, em
livros distintos, abordagem devotada à mitopoética (do primeiro
até Além dos Símbolos), ao misticismo, ao esoterismo e ao erotismo,
compreendendo os textos poéticos posteriores; Jayro Schmidt
debruçou-se sobre a linguagem; Mirian de Carvalho mergulhou
nas vertentes do barroco e Franzina Ancona tratou do mito e do

                                 42
rito na escritura. O que falta, pelo visto, é o número bem maior de
leitores.


38) Se você tiver que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira
de Rilke, o que você diria?
       Já respondi a essa pergunta, ao ser entrevistado, em 2007,
encontrando-se a resposta no livro Diálogos com a Literatura
Brasileira – II, de Marco Vasques. Reproduzo o seu inteiro teor.
Resposta: depende. Se o destinatário for um poeta medíocre
como Franz Xaver Kappus (a prova é o soneto de pé quebrado que
suponho ter sido escolhido por Rainer Maria Rilke por piedade),
de nada adianta dizer algo prestável, inclusive a sugestão contida na
primeira das cartas a ele enviadas (a única com originalidade, pois as
posteriores constituem orientação tautológica), quando, insistindo
na necessidade de voltar-se ao íntimo do ser, aconselhou-o, além
de aproximar-se da natureza, a confessar a si mesmo “se morreria
caso fosse proibido de escrever”. Contudo, se o jovem pretendente a
poeta tiver talento e vocação, deve buscar a sua própria identidade
(marca, para não dizer estilo), como o fez Flaubert até chegar à
obra-prima Madame Bovary, submetendo os textos das criações
ao teste da gritaria (gueulade) para encontrar o som/significado
da mot just. E ler, ler muito, à exaustão, os melhores do gênero,
vivendo a poesia. Afinal, como disse Dufrenne, não me lembro
em que livro o li, a virtude da poesia é um hábito. Tal leitura, é
claro, não deve ser dispersa. O ideal é fazer uma lista (dirijo-me aos
iniciantes) como Pound o fez, escolhendo os canônicos. E lembrado
seja que paideuma tem função pedagógica (vem do grego paidos,
criança). Aliás, o termo não foi criado por Pound, ainda que, antes
de seu advento, tenha se referido à organização do conhecimento,
contemplando-se o passado, o presente e principalmente a geração
futura. Ele, na verdade, ressuscitou-o do antropólogo Frobenius
e com vantagem pragmática. Quanto ao ensinamento de W. H.
Auden, ele também sugeria a procura da companhia dos poetas de
excelência, os bons, no mínimo, mas não muito além do próprio
nível do interessado. E propunha, recordo-me, num texto tratando

                                 43
das relações do poeta com a cidade, a universidade de poesia de
seus sonhos, onde o aluno, a par da memorização de versos, estudo
de línguas, biblioteca sem livros de críticos, deveria cuidar de
um animal doméstico e cultivar um pequeno jardim. Tudo bem,
mas receio que o jovem, querendo ser poeta, acabe se tornando
veterinário, ou apenas jardineiro, sem, antes, como Wittgenstein,
ter possuído o necessário conhecimento.


39) Você disse,  ao jornalista Dorva Resende,  que Cantos de Maldoror
foi o livro que mais o perturbou. Por quê? E por que você queria ter
escrito Uma Estação no Inferno de Rimbaud?
       Perturbou-me a violência literária (transgressora e selvagem)
do texto em movimento, sua adesão à crueldade e ao domínio das
perversões de todo gênero, além da fenomenologia da agressão
constatada por Bachelard. Atraíram-me, também, o corpo febril
e atemporal das metamorfoses, a lógica dos avessos dialéticos, a
atmosfera luciferina, a celebração do Caos ordenado, a construção
delirante, o mundo-ponta-cabeça, a escritura das negações
superpostas, o pensamento analógico, o pendor antropofágico,
a naturalidade do absurdo, o versátil regime da ambivalência, os
reflexos dos sentidos ocultos, os luminosos excessos da linguagem,
a paródia abusada, a subversão da lógica tradicional, a afeição pelos
paradoxos e contrastes, os reinos mesclados, o humor cáustico, o
jogo labiríntico dos espelhos, os rosários de blasfêmias, a gnose
do mal, a alteridade consentida (homenagem ao duplo), enfim, o
complexo processo de criação. Processo que implica aproximações
com o meu modo de ver, sentir e escrever, guardadas as devidas
proporções. No que alude à obra Iluminações - Uma Cerveja no
Inferno (na tradução provocante de Mário Cesariny) ou Estação
no Inferno (o título inicial era Livro Pagão ou Livro Negro, redigido
num paiol, em Roche, Charleville), de Rimbaud, a resposta é
simples. Não me impressionaram, apenas, o caráter confessional,
a explosão criativa, a estridência vocabular, a nostalgia da infância
(retorno à felicidade perdida), a obscuridade carregada de sentidos,
a catarse purificadora, as expressões irônicas, o tom crepuscular

                                 45
do estilo, o virtuosismo, a brutalidade e a inocência irmanadas, a
conjuração de Satã querido (identificado com Verlaine), os mitos
do paganismo, o estranhamento das alusões, a adoção do conceito
nietzschiano “mais além do bem e do mal”, os saltos temporais,
o triunfo do espírito sobre a matéria, a capacidade profética e as
tentativas de vidência, as imagens insólitas e alucinadas (em que
pese a precisão imagística), o crime como meio de autodestruição,
as paródias sublevadas, a energia vulcânica, a reinvenção do
amor, a preferência pelo Oriente, as incursões cabalísticas, a
rebelião contra o destino, mas, sobretudo, gostaria de tê-la escrito
(destacando os trechos de Alquimia do Verbo – Delírios II) por ter
Rimbaud criado nova estética, inovado a linguagem ao dissolver
a versificação clássica e ao remagnetizar as palavras comuns, vale
dizer, ao inaugurar a prosa poética sem precedentes na câmara da
imaginação.

         
40) O livro que mais o perturba é o de um jovem que morreu obscuro
aos vinte e quatro anos. O livro que você gostaria de ter escrito é de um
jovem que abandonou a literatura. Como você chega à maturidade
com tanta vitalidade literária?
       A paixão pela literatura é a responsável pela atribuída
vitalidade. Sou leitor voraz, compulsivo. Acho que a leitura diária
contribui de modo e forma intensos para estimular a memória.
Aprende-se a escrever lendo, e lendo muito. E o tempo disponível
para esse mister é vital. Sendo maior, e bem aproveitado, fermenta
a criatividade literária.
  

41) Existe a possibilidade de Péricles Prade escrever um romance?
      Escrevo um romance, há dez anos, intitulado O Alquimista
Sonolento. Está inacabado porque empaquei no 13.º capítulo. Brinco
com os amigos, alegando ter estacionado porque a décima terceira
carta do Tarô (um dos arcanos maiores) é a da Morte. Preciso
remover essa existencial resistência. Pretendo escrever outro
romance, acerca da visão de Hermann Kafka sobre as conturbadas
                                   46
relações com o seu genial filho escritor. E se porventura as
atividades profissionais permitirem, desejo redigir, após concluir
os contos projetados, duas novelas: uma atinente às desventuras
do poeta Fernando Pessoa, devido à chegada, em Lisboa, do mago
Aleister Crowley com sua amante predileta, e, outra, sobre um
circo fantástico (nem sempre o é), a partir das memórias de um
velho Leão Pensador.


42) Seus filhos Priscila e Alexandre Prade estão envolvidos com
atividades artísticas, mas não a escrita propriamente dita. Existiu
alguma vontade que eles continuassem o seu legado de escritor?
       Priscila é respeitada fotógrafa e produtora de teatro (junto
com Andrea Francez). Como fotógrafa faz, em seu estúdio, ensaios
com celebridades, além de fotografar filmes e peças teatrais, a
pedido de vários diretores. Alexandre é músico (integra a banda
acompanhante de Marisa Orth) e compositor de talento, além de
premiado artista plástico e poeta. Ele tem intimidade com a escrita.
Escreveu o livro Pólen de Timbres (poesia), publicou crítica musical
em revistas especializadas e concluiu a obra teórica Poética da
Escuta. Tenho mais três filhas: Luana, produtora de moda; Camila
(palestrante) e Giovanna (professora), psicólogas, ambas com obras
escritas sobre a especialidade. Todos, com devoção, cumprem
o que o destino lhes reservou. Se não os pressionei para serem
advogado(as), agi e ajo do mesmo modo no que toca às respectivas
opções profissionais. E se o caminho for o dos escritores, aplaudirei
de pé.


43) Qual o significado da escritura para você? Conseguiria se
imaginar sem escrever?
     Não chego ao exagero de dizer, na esteira de Rilke, que
morreria caso fosse proibido de escrever. Para mim, maior
do que o ato de escrever, é o prazer a priori da escritura, a fase
embrionária do processo criativo, espécie aproximada da cosa
mentale leonardiana. Se proibido fosse, escreveria tudo na mente,
                                 48
compondo particularíssima biblioteca interior, guardada na
memória. Sou cerebral por natureza. Se isso ocorresse, a angústia
por certo seria inevitável. Tornar-me-ia doente sem cura. O
fato é que não me imagino nessa negativa condição existencial,
problemática ao máximo. De toda sorte, a escritura tem profundo e
marcante significado espiritual (construída na mente ou transposta
ao exterior), a ponto de ser imprescindível para o exercício do labor
literário, tanto na poesia quanto na ficção. Pensar de outro modo é
endossar a possibilidade dessa intolerável punição. A escritura é a
própria vida que se move, impulsionada pela irreprimível força das
palavras.
 

44) Por que e para que você escreve?
       Depois da resposta que William Faulkner deu em uma de
suas entrevistas, entre as raras lembradas por Bella Josef, ele, aqui
e agora, com ou sem permissão, responderá por mim à costumeira
pergunta: “A finalidade de todo artista é deter o movimento, que é
vida, por meios artificiais e mantê-lo fixo, de modo que, cem anos
depois, quando um estranho o contemple, volte a mover-se. Já que
o homem é mortal, a única imortalidade que lhe é possível é deixar
atrás de si algo que seja imortal (...). Essa é a maneira que tem o
artista de escrever”. É preciso dizer mais? Claro que não.
 

45) Gostaria de abordar algum tema, falar sobre algo ou alguma
coisa que não mencionamos sobre seu trabalho ou sobre sua vida?
      Se tudo fosse respondido haveria, neste instante capitoso,
congelamento da obra e da vida. As lacunas, necessárias, são
espécies latentes de lanternas mágicas que propiciam o nascimento
de novas criações no espaço vital desse vazio. O relevante é que
sempre terá alguém, no futuro próximo ou distante, disposto a
colmatá-las.




                                 49
POEMAS
A PERSEGUIDA


      A estrábica conduzida
pela gôndola voraz
é puro êxtase.
      Faz complicados sinais
com a cruz de chumbo
pendurada no pescoço.
      Treme várias vezes
      na Piazza San Marco
quando o mendigo
aponta o único dedo
marcado por 7 pombas formosas.
      E assim vai
entre canais,
pedindo aos remos mais rapidez
até que seja ela mesma
parte da ancestral paisagem.



       (Tríplice Viagem ao Interior da Bota, Letras Contemporâneas, 2007)




                                   53
ALUSÕES



A cruz na cabeça
do Unicórnio resplandece
Corno do Cristo – Aura do Touro
             a beleza
de ambos governa meu espírito nos abismos


O sol é medalha
ou glória quando selvagem é a alegoria
no céu primitivo, pasto seminal
da nação de estrelas escravas


Sou rinoceronte feliz
circulando pelo campo. O phalos solitário
na testa reproduz a tarde angular
se a força do Abençoado sobre as qualidades
recai como pedra unigênita




                                  54
A selva não se reduz à coroa de espinhos
Oh monge austero de mansa rebeldia,
meu juiz, guardião, filho dileto, criatura
prenha pelo mistério



    (Em Forma de Chama – Variações sobre o Unicórnio, Quaisquer, 2005)




                                  55
EXPLICAÇÃO



Porque na paisagem
a lâmina esconde
as fezes do suicida.


                       (Além dos Símbolos, Letras Contemporâneas, 2003)




                                   56
LEÃO CRESCENTE


Os olhos de Rimbaud, pingentes azuis
sobre os sete abismos deste fardo.


Temporada no Limbo, um passo à direita,
outro à esquerda, quando o chicote escarlate
do algoz subtrai uma geração de lâminas.


Frota de lanças brasantes, navio
de espasmos, motor de músculos
em direção de armada lâmpada.


Crinas de talhos luzentes, asas trançadas
de espumas, o Céu assim é mais feroz
que o leão crescente, morcego
das estrelas, animal amado como o ventre.

                          Paris, 4.7.82



                        (Jaula Amorosa, Letras Contemporâneas, 1995)




                                   57
DRAGÃOZINHO DE TRÊS CABEÇAS


Peço perdão, oh Maria,
por assim ter nascido.
Uma cabeça bastaria
para ser dragão querido.


Também a José peço perdão
por essa grande desgraça.
Ah! se pudesse ter a graça
do anjo sobre um portão.


Peço perdão a Picasso
que desenha sob medida
qualquer cabeça perdida
e faz o que eu não faço.




                             58
Também a Lorca peço perdão
pelo desenho tão engraçado
em que o rabo desarrumado
parece cauda de escorpião.

                  Granada, 7.1.98



                     (Ciranda Andaluz, Letras Contemporâneas, 2003)




                                59
PERDIÇÃO


Perco-me na selva doce
   desses pelos.


 E se me perco,
         levito
entre um gozo e outro.


      Vê-la,
         revê-la,
 muda caverna
que às vezes canta.



                    (Pantera em Movimento, Letras Contemporâneas, 2006)




                                    60
COM SEU ALFANJE ESCARLATE


Não digo teu nome, inimiga
de ossos moventes, hábil foice rubra, caçadora
gigante de pés e mãos, estas generosas
plantas de cor dupla.


E de quem é a coroa
na cabeça? É a de outro
Rei decepado, aquele
que não resistiu ao
rodopio do dervixe.


Vejo o rosto sedutor, o olhar
oblíquo do esqueleto, o sorriso galopante
do Quarto Cavaleiro.


Hoje sou Montezuma.
De azeviche e turquesa
é teu crânio adornado
na véspera do grande sono.


                                61
Vem, espelho de luto, diagrama
absoluto do eu, colmeia de opostos,
negro sol mutante, relógio
sem teu número sob o tapete
escondido, Judas andrógino
que não posso tocar.


Escravo de armadilhas
ainda te quero, Buda
arrependido de pele metálica.


Vem, máscara do tempo, sábio rio
sem retornos, triunfo
de Petrarca, solitário dedo
apontado, pêndulo gêmeo de Saturno
em Samarra, lua crescente
na hora do encontro
quando outro avarento
assobia no escuro.



                (Labirintos – Variações sobre os Arcanos Maiores do Tarô,
                                          Letras Contemporâneas, 2008)

                                  62
PORTAS


Na quinta porta
os ossos lacrados pela peste


Na quarta
o odor do voo
em desalinho


Na terceira
as vestes de escama falsa


Na segunda
o santo próspero
e seus crimes


Na primeira
os olhos do guerreiro albino



                               (Os Faróis Invisíveis, Massao Ohno, 1980)




                                  63
ESTRELA MARINHA


Descer é mais simples.
Mergulho no óleo, o corpo resignado
detesta a superfície.


A ciranda na água
lembra o brinquedo.


As mãos no fundo são lâminas,
reservado ritmo dos que convivem
com o outro lado do rio.


A ciranda na água
lembra o brinquedo.


Subir não é simples
O corpo do geômetra é estrela
entre as folhas que optou.




                             (Nos Limites do Fogo, Massao Ohno, 1979)

                                64
COMÉDIA


Uma comédia, esta em que a faca
penetra a seda e faz na terra
uma colheita de segredos.
Uma comédia, esta em que a seda
cobre de verde o ritmo das montanhas
e a umidade cansada das charnecas.
Uma comédia, esta em que o campo
é espaço onde crescem esperanças
e capins de qualquer estação.
Uma comédia, esta em que os segredos
ficam pendurados no esqueleto do tempo
à espera de novo conflito brotando.
O que é drama senão a melodia da faca,
a melodia da seda, a melodia das folhas
e todos os segredos com cheiro de antigas vassouras?
- Sei, drama é desconhecer a profundidade do corte,
não saber o ponto frágil e audacioso da seda,
ter certeza de que na selva crescem armadilhas
e que a todo momento é mais forte o sal do mistério
nesta comédia que é a vida em moldura de febre e dor.


                         (Este Interior de Serpentes Alegres, Roteiro, 1963)

                                  65
DECLARAÇÃO


    Sou a outra mancha
    na imagem, o avesso
     da fera, o espelho
    partido, o princípio
           e o fim.


         Sou o som
        da memória
    aquela que provoca
   os animais no paraíso
    sob a faca giratória.



(Sob a Faca Giratória, Letras Contemporâneas, 2010)




              66
PRIMEIRO PECADO


O que mais detesto é germinar no campo antigo
estas pupilas, hoje mortas de ver as espigas
apenas como floração sem mistérios.
Sou o pesado poeta urdido pela infância,
este caminho de sal onde fui o afogado
e a criança de entusiasmados segredos.
De todas as meninas, a que não conheceu
moinhos de vento, nem pirâmides sagradas,
deixou em mim um sabor de umidade nos rios.
Não sei, mas os fantasmas são formas idôneas
daquilo que fui, colecionador de cigarros,
colegial de repetidas piadas ou mesmo
o conquistador de madrugadas impossíveis.
Cresço em meu primeiro pecado,
o mais autêntico, o mais puro,
tão esquecido nestes dias
de cansada salvação.



                                      (Sereia e Castiçal, Roteiro, 1964)


                                 68
TEORIA DO CRIME


O pássaro assassino
é. Mata a sangue frio
              o próprio sonho


O anjo
se vinga
de outro anjo – a criança
              voadora – um pássaro
                                    cruel
                                        e
                               protetor



         (Pequeno Tratado Poético das Asas, Letras Contemporâneas, 1999)




                                   69
SEI QUE ESTOU SÓ


                    Sei que estou só, não há luas nem serenatas e os
olhos da tarde estão secos.
                    Vejo somente meus dedos desenhando aves
malditas na água.
                    Rasgo as folhas da árvore mística e sonolenta
e fabrico o navio infantil mais veloz do mundo. Sigo sua trajetória
rumo ao desconhecido. Também sou navio neste momento de
espumas quentes. Gosto dele porque tem uma lagartixa tranquila
como passageira sem segredos. Gosto porque é somente navio sem
ilusões e esperanças, soberano à margem do sol que se aproxima da
morte.
                  Cresce o crepúsculo e não diviso mais a figura
tragicômica de meu herói verde, eterno navio.
                    Minha casa é longa e se assemelha a um quarto
cor de bronze.
                   Moro com alguém que possui olhos de gato
e ama a noite. Seus cabelos de feiticeira percorrem o universo
em chagas de seu corpo de subterrâneos e cansaços. Odeio seus
mascotes: escorpião de porcelana e chocalho de zinco.
                    Minha casa é longa e se assemelha a um quarto
cor de bronze.
                Preciso voltar e meus pés murchos procuram o
caminho. Conhecem todos os arbustos e todas as passagens.


                          (A Lâmina, Literatura Contemporânea, 1963)

                                70
AVENTAL ANDALUZ


O corpo do pátio
reduz as pálpebras
Como fruta cigana
sobre o mármore sadio


Não é simples a imagem
do que digo e agora:
carne viva da memória


A mão solteira é gozosa
Flor do prazer sorvente


Nem tudo é segredo sob o avental andaluz


                     (Guardião dos Sete Sons, Sanfona, 1987)




                                    71
PROSA
CÁRCERE MARINHO


     Ninguém entendeu a razão do anúncio. Por que somente
marinheiros anões seriam contratados, se o navio era enorme?
      Mil e quinhentos se apresentarem no dia marcado, mas,
como apenas trinta e cinco tinham comprovada experiência,
foram eles os contemplados para, a partir de 18 de agosto de 1917,
embarcar rumo a um país desconhecido.
       O comandante, corcunda, de traços mouros, tem cabelos
fulvos. É gago e anda com dificuldade. Fuma cachimbo, usa seboso
rabo de cavalo, e na testa franzida exibe, tatuada, a imagem de
Santa Catarina de Alexandria. Come feito leões famintos, à noite,
após colocar os anões, um por um, dentro do caixão de madeira
feito sob medida, com dois furos na parte de cima, e quatro nos
lados, para facilitar a respiração orquestrada.
      Os novos marinheiros, no começo da viagem, estranharam
esse comportamento. Como ganhavam muito bem, fora dos
padrões da época, não se importavam com a mania, se é que se
pode considerar o fato de encaixotá-los com tanta perfeição,
técnica e solenidade.
      Com o tempo (trinta anos fluíram), alguns anões
manifestaram intranquilidade. Perceberam que, apesar de ricos,
a vida célere passava, limitando-se a maioria a puxar cordas e a
enfunar velas até parar de cansaço.
      Noves deles (os outros, convém registrar, haviam morrido)
procuraram o capitão. Contrafeito, mostrou os contratos assinados
e de prazo indeterminado. Com pose aristocrática, arremessou os
recibos sobre o banco, localizado no convés, prova de que pagava

                               75
em dia os valores dos salários combinados.
      Acrescentou, com empostada voz militar, que a alegria de
todos era por ele também compartilhada.
      - Alegria?, disseram ao mesmo tempo, e com justificada
indignação.
     - Sim, a alegria de pertencerem a uma linhagem de animais
marinhos que optaram pela castidade, até o dia da morte, no fundo
do mar.



                               (Correspondências, Movimento, 2009)




                               76
O TIGRE


1
      O tigre dança sobre enorme e quente chapa de ferro. Os gritos
explodem na floresta. Após, com as pernas queimadas, o corpo do
animal tomba ao chão. Recolhido por monstros verdes é levado
para uma jaula luminosa, onde, prisioneiro, vê com surpresa sete
lâminas sagradas curtirem o belo couro de manchas selvagens.


2
       O tigre enfia o pescoço na boca da serpente de ouro. Ouve-
se à distância o veneno escorrer pelas veias, mas o animal, afeito a
torturas, resiste com resignação. As mordidas continuam, os finos
dentes quase rompendo a jugular.
      Sem se preocupar, com tranquilidade sopra dentro da
serpente que, aos poucos, converte-se em balão.


3
       O tigre salta ao fundo do poço, num mergulho que ultrapassa
a cinco minutos, procurando em vão encontrar a arca de fogo
furtada do altar do Rei Anthenor. Repete o mergulho diversas
vezes, espetado, sempre, por uma afiada espada de prata que sai da
bainha conduzida pelo escravo branco.
      Aberta a arca, ao acaso, a água corrompe o símbolo.



                  (Alçapão para Gigantes, Letras Contemporâneas, 1999)

                                 78
NO HIPÓDROMO


       Com o demônio nos olhos, a magra mulher lança-me
um olhar guerreiro. Começo a percorrer as arquibancadas,
impressionado, irritando-me com o vendedor de agulhas que
insistia na leitura de um poema imoral. Na corrida, imprimindo
incrível velocidade, esbarro numa velha senhora que, perto do poço
localizado à entrada do túnel, com fino chicote bate nas costas de
um belo animal. O sangue colore os azulejos e eu me sinto feliz.
      Na décima quinta volta, o cavalo de crinas verdes levanta
voo, planando alegre e descrevendo nos céus complicada lição de
alquimia.
       Um senhor baixo, que se encontra sentado, retirou de uma
pasta negra vincado papiro, anotando apressadamente as fórmulas.
Levanta-se e antes de se perder na multidão, diz com estranha
simplicidade:
      - Não autorizei a exibição. Hoje haverá no meu exército de
cavalos.



            (Os Milagres do Cão Jerônimo, Letras Contemporâneas, 1999)




                                 79
RIO D´ORO [1441]


       Não foi Henrique, o navegador, príncipe de Portugal, quem
me autorizou o tráfico de escravas. A verdade é que sempre tive
fascínio pela escravidão.
       No período em que Rio D´Oro ainda era colônia espanhola,
uma negra retinta, chamada Mãe Joana, foi engravidada por um
espírito que não era santo.
      Um dia, surpreendendo até os mais íntimos, vomitou fios
de ouro numa bacia, enrolando-os, para, depois, formar novelo de
brilhante consistência.
       Tomei conhecimento, mais tarde, de que o próprio Henrique,
o navegador, príncipe de Portugal, manejava ágil maquininha no
útero dela, como se fosse fiandeiro servil, para espantar vício típico
da terceira estação do ano.



              (Ao Som do Realejo – Narrativas Profanas, Nauemblu, 2008)




                                  80
EM FORMA DE GUITARRA
E ANTES DO SALTO DO LOBO CULTO


      Num lugarejo ainda inóspito, denominado Campeche, com
o arco-íris preso entre os dedos do pé enluvado, John Lennon,
no trono em forma de guitarra, distribuía esmeraldas polidas e
outras pedras preciosas às gangues de adolescentes imantados pelo
esplendor do número 333, nascido no meio de relâmpagos dos
céus do aviador Saint-Exupéry.
      Ele assim continuou, sem cerimônia, encostado ao mar
lembrando vidro estilhaçado, envolto pelas lâmpadas de fogo
brando, encaixadas com perfeição nas nucas de seres indecisos que
passeavam, sem receio, nas franjas das sombras vadias emanadas
do pôr do sol.
      Um leão castrado aproximou-se do cadafalso, onde o músico
se encontrava, e rugiu, com eficiência, diante do plenário de vozes
excitadas pelo formidável odor da fêmea de juba grisalha.
       Calado, noutra ponta do espaço a ele reservado, o graúdo
touro manco se inclinou, pondo as patas traseiras sobre o labirinto
construído com fios invisíveis por um odiado enxadrista de nobre
estirpe helênica.
       Depois, aguardando o dono, fabricante de torresmos
crocantes na Dinamarca, um cão persa com cara de homem
malvado, pairando sobre a árvore secular, esboçou formidável
latido com dentes esmaltados à luz da manhã de maio.
       Atrás dele, uma águia revoltada furou os próprios olhos com
dois ouriços caçados, recompondo-os à tarde sobre 8 bandejas de
ferro fundido.

                                81
Vendo tudo isso com certa melancolia, o futuro assassinado
retirou o arco-íris do pé, e tocou, sem parar, na elétrica madrugada,
que, aos soluços, resistia à mudança do próximo dia.
       A guitarra ao longe ainda era ouvida, quando, dentro do
livro virgem, sentados sobre as ilustrações de Lewis Carroll, um
lobo esquizofrênico de orelhas vazadas saltou, proclamando-se
pequeno príncipe dos mundos, após rasgar, com as suas garras
atrofiadas, as páginas em branco e lacradas com uma cruz vermelha
por desconhecida entidade filatélica.
      Para desorientá-lo, um perfumado historiador de Jazz,
servo paralítico em outra encarnação, sem sucesso ofereceu, como
testamento e prova de fidelidade, o pistom que um sábio havia
adquirido em Constantinopla, na verdade herança de divorciados
esposos afegãos.
      De nada adiantou a pretendida armadilha, pois o artista,
jogando com força e para trás o instrumento musical, preferiu, em
vez de tocar, ouvir o tropel que vinha em sua direção.



            (Relatos de um Corvo Sedutor, Letras Contemporâneas, 2008)




                                 82
CRÍTICA
Terno sobre o simbolismo
               bauhaus de Péricles Prade
                                                    Ronald Augusto

I
A divisa carrolliana segundo a qual, no que toca à poesia, “a questão
é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”,
preside a gestalt esotérica, ou o hermetismo compositivo de Péricles
Prade. E em favor do que acabo de afirmar, servem de exemplo
tanto os livros anteriores (não importando, inclusive, o gênero)
deste polígrafo de imaginário radical, como as obras que agora
serão objeto do breve comentário, a saber, Sob a Faca Giratória
(poesia), Relatos de um Corvo Sedutor (prosa) e, finalmente, Casa
de Máscaras (poesia).
       Sem perder de vista a relação por isomorfia que a abordagem
crítica deve manter com a obra poética analisada — isto é, a flexão
metalinguística se converte num espelhamento expandido do seu
objeto —, começo minha interpretação figural pelo compósito
em oximoro presente no título deste texto: o simbolismo bauhaus
de Prade. Proponho essa tensão antitética entre simbolismo
(precipitações sugestivas, ambiguidades, incomunicabilidades etc.)
e bauhaus (pelo que o movimento contém de apetite construtivo,
rigor liminar, estilemas precursores etc.), porque no título mesmo
do conjunto de poemas de Sob a Faca Giratória vislumbro essa
conjunção-disjunção virtuosa e paradigmática que me permite
detectar nas poéticas vertiginosas e transversas de Péricles Prade
o enlace erotizado desse giro em abismo, o discurso criador
de mundos alternativos, com a faca que delimita as margens do
constructo verbal nas mãos de uma espécie de alucinado designer
lingual.
                                 85
Então, por um momento, e pela via do contraste, submeto
Sob a Faca Giratória a um jogo de plano e contraplano com o
hermetismo lato sensu da poesia de Orides Fontela (1940-1998).
Para ser mais preciso, antes opaca do que hermética, a linguagem
de Orides também se impõe desafiadora, metálica. Seus poemas
compõem um tipo de tratactus analógico acerca dos fenômenos, e
estes acabam por ser representados como sombras luminosas que
se descolam dos nomes que lhes designam. A poeta nos oferece
essa sensação de hermetismo pela elisão e pela rarefação dos
cortes solares que opera; o idioma estético resultante é esturricado
e masculino em suas sugestões. De outra parte, o hermetismo de
Péricles Prade se projeta em fulgurações lunares; o texto revém
sempre proliferante e fêmeo. Seu hermetismo é voluptuoso e,
portanto, não faz o elogio à esterilidade de consistência mallarmaica.
Metonímia ou duplo microestrutural do conjunto da produção de
Prade (pois o escritor reitera valências em seu nomadismo), Sob
a Faca Giratória se remorde em torções e texturas à maneira de
Gaudí. Subjaz ao apetite de linguagem do poeta a ideia de que cada
poema engendra o seu próprio dicionário, bem como a sua própria
gramática, que tem mais de anômala do que daquela “verdadeira
ars obligatoria” referida e saudada pelos escolásticos.
       Desse modo, em Sob a Faca Giratória gozamos uma
poesia a contrapelo do “automatismo psíquico”, um processo
de fatura verbal na véspera de conceder crédito ao signatum (o
“artista na véspera do desenho”, corajosamente ambíguo frente
ao aspecto inteligível do signo verbal); o sentido como um vir-a-
ser; uma hesitação. Wittgenstein, a propósito, metaforiza assim a
impossibilidade de uma “última” explicação a respeito do que quer
que seja: “É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última
casa; pode-se sempre construir uma nova.” Sob a Faca Giratória:
o percurso inacabado, e, mesmo, a contragosto, do subjetivo em
direção à objetividade plana do senso comum. E esta, por sua vez,
perturbada ou tornada irrelevante no deparar-se com unicórnios,
serpentes, livros mudos, dorsos inquietos, enfim, diante dos sistemas
imaginários plasmados por Péricles, cujo escopo pulsional captura
suas forças, inapelavelmente, no interior da linguagem, entendida

                                 86
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Osiris dossie pericles

  • 1. DOSSIÊ OSÍRIS Péricles Prade
  • 2.
  • 3. DOSSIÊ OSÍRIS LITERATURA Péricles Prade Marco Vasques e Rubens da Cunha (organização e seleção) REDOMA EDITORA 2011
  • 4. Copyright 2011 Marco Vasques e Rubens da Cunha REVISTA OSÍRIS Editores Marco Vasques e Rubens da Cuha Revisão Denize Gonzaga Diagramação Iur Gomez Fotografias Iur Gomez (entrevista) Priscila Prade (capa e páginas 72, 84, 106 e 137) Conselho Editorial Marco Vasques, Rubens da Cunha, Cristiano Moreira e Iur Gomez Iconografia Rodrigo de Haro Webdesign Pedro MC Endereço eletrônico www.revistaosiris.com.br Blogs revistaosiris.wordpress.com revistaosirisliteratura.wordpress.com revistaosirisartesvisuais.wordpress.com D724 Dossiê Osíris - organização e seleção Marco Vasques e Rubens da Cunha. Florianópolis: Redoma; Navegantes: Papa-Terra, 2011. 160 p. ISBN 1. Literatura crítica e interpretação, I. Osíris. CDD 869.0091 Catalogação na Fonte Bibliotecária: Eliane Espíndola Vieira – CRB/14 – 401
  • 5. Bússola de Navegação Primeira dentição .......................................................................... 7 Entrevista ....................................................................................... 9 Poemas ......................................................................................... 51 Prosa ............................................................................................. 73 Crítica ........................................................................................... 83 Obras .......................................................................................... 145 Fortuna Crítica .......................................................................... 147
  • 6.
  • 7. Primeira dentição da REVISTA OSÍRIS Osíris, deus da vegetação, da vida no além, carnação da costura e caleidoscópio de vozes. Encarnação das forças da terra e das plantas. Orfeu e Sísifo. Osíris ou Ausar como dizem os egípcios. Ausar, ousar, saber que a literatura, o teatro, as artes visuais ainda são capazes de ter um lugar, melhor, de abrir lugares. A Revista Osíris é a nossa escavação de novas trincheiras, é o nosso embate. O que pauta a nossa escolha é a ousadia e a contundência poética. É a víscera urdida e tatuada em nossa voz. Feito Ísis, que buscou as diversas partes do corpo de seu amado Osíris, para remontá-lo, reconstruí- lo, retê-lo, nós agregamos neste espaço diversos pedaços do corpo da arte. Osíris: morada dos múltiplos. Este DOSSIÊ acompanha a primeira dentição da REVISTA OSÍRIS (www.revistaosiris.com.br). A cada novo número da revista teremos um novo DOSSIÊ com um artista. O primeiro revela as várias faces do poeta, contista e crítico Péricles Prade. Ele é uma das vozes mais contundentes da poesia brasileira na atualidade, por isso oferecemos ao leitor partes do universo pradeano. os Editores 7
  • 8.
  • 9. Entrevista a Marco Vasques e Rubens da Cunha 1) Paulo Leminski no poema “Limites ao Léu” reúne uma série de definições de poesia: “permanente hesitação entre som e sentido” (Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny). Qual a sua definição de poesia? Para que serve a poesia? Parece-me, depois de Paul Valéry ter afirmado que “o poema é a hesitação entre o som e os sentidos” (reflexão expressa no Cahiers, 1912), ser desnecessário reconceituar a poesia (arte da linguagem), tanto mais se — conforme registrou o poeta obsessivo, geométrico e original, no livro Tel Quel (aforismos) — ela não é senão a literatura reduzida ao essencial de seu princípio ativo. Rendo-me àquele conceito, pois também me acostumei, a exemplo do criador do famoso “Esboço...”, a pensar como Serpente. Para que serve a poesia? Para ingressar no “reino infinito do espírito” (Hegel) e melhor entender os mistérios do pensamento do homem e o sentimento do mundo. 2) E como é pensar como uma serpente? Pensamos na serpente como um híbrido entre o exato e sinuoso, o belo e o mortal, o silencioso e o voraz. Quando respondi “pensar como Serpente”, lembrei-me do Penser en Serpent de Valéry, do satã-pensamento no Jardim 9
  • 10. do Éden, o masculino protagonista do monólogo Ébouche d’un Serpent. Pensar como serpente é pensar como sábio. Serpente, há séculos, simboliza a sabedoria. Aliás, Augusto de Campos, tradutor de Valéry, aduz que o nome serpente advém de Ophis, quase- anagrama de Sophia (sabedoria), e a si próprio pergunta se o poeta francês teria consciência de que a palavra penser é palíndromo de serpent. O pensamento, tanto quanto o(a) Serpente, é sinuoso, circular, movimenta-se, cria e recria no silêncio, mudando a pele das ideias nas fases propícias. Só os devotos ao seu culto podem afiançar o que digo aqui e agora.   3) Os poetas, quase sempre, têm o hábito de desconfiar de sua primeira obra. Como você avalia os três primeiros livros?  Não se trata de desconfiança, ou mesmo insegurança, com referência às obras inaugurais, mas de reconhecimento de uma realidade, pelo menos no meu caso. Os três primeiros livros deixam a desejar, se comparados com os posteriores (o que é natural), e não só por terem sido escritos na adolescência. Afinal, nem todos poetas nascem Rimbaud. Por ordem, os títulos das três obras são os seguintes: Este Interior de Serpentes Alegres (1963, poesia), A Lâmina (1963, prosa poética) e Sereia e Castiçal (1964, poesia). O primeiro, batizado sob os auspícios mitológicos de Ouroboros e Medusa, é ligado à memorial natureza da infância, sensível à poética das águas (sofri um quase-afogamento). Expressa-se em linguagem linear, discursiva, confessional (disfarçada e suspensa), lembrando forma expandida de versos bíblicos, como constatou Luz e Silva. O segundo, alegórico, lírico, narrativo, panteísta, revelou inclinação ao universo esotérico, com ênfase na figura da feiticeira. É também bestiário incipiente (outra vocação temática) e devaneio de um menino, em crise existencial, que pretende a sua redenção e a da humanidade. Nada tem de surreal, vislumbrando- se somente propensão ao fantástico. Quanto ao terceiro, de tom ainda lírico, elegíaco, movediço, conflituoso diante dos mistérios do amor, da vida e da morte, sem imagens generosas, conquanto pleno de metáforas insinuantes, é texto bem comportado de 10
  • 11. extração simbólica, precipitando a eclosão da obra subsequente (Nos Limites do Fogo). 4) O poeta Lindolf Bell, quando escreveu sobre A Lâmina, disse que sua escritura, no conceito barthesiano, é uma violência. Claro que não estamos aqui falando da violência propriamente dita, mas de uma violência cuja escritura provoca no leitor uma espécie de impacto que permanece. Como você vê essa questão? Tenho a impressão de que Lindolf Bell, ao se referir à violência da escritura, foi apenas intuitivo, à margem do conceito de Roland Barthes. Contudo, já que falamos do eminente semiólogo, sublinho a pretensão de os meus textos serem lidos com fruição (Jouissance, para usar palavra de sua predileção), colocando o leitor em desconfortável estado de perda (obra aberta, plural), e, não, no plano do simples prazer (cultural, de obra acabada). Observo, sem receio de errar, que a violência se entremostra mais presente na prosa, tanto em termos de impacto (linguagem), quanto em relação à própria temática. Forneço como exemplo, além dos publicados, o livro inédito Espelhos Gêmeos, na linha fantástico-erótica (ou erótico-fantástica), em forma de pequeno tratado das perversões. 5) Na “Filosofia da Composição”, Edgar Allan Poe explica, passo a passo, como chegou ao poema “O Corvo”. Ele, na época, já deu uma espinafrada na chamada inspiração. Alega que a composição poética é fruto de toda uma arquitetura. Na sua poesia encontramos indícios de uma arquitetura ardilosa, tão ardilosa que nos confunde onde começa a lógica e o sentido. Este Interior de Serpentes Alegres, A Lâmina e Sereia e Castiçal são livros em que o ludus e o logos se misturam. Por outro lado, há um silêncio poético de 12 anos, até a chegada do livro Nos Limites do Fogo, no qual encontramos uma ruptura de linguagem, pois o símbolo, o hermetismo, a alquimia começam a protagonizar os poemas. Você pode falar um pouco sobre essa mudança de rota? Concordo que minha obra, mormente a poética, é pautada 11
  • 12. pela arquitetura (carpintaria, soaria melhor) à maneira da filosofia da composição de Edgar Allan Poe, iniciada, contudo, após o advento de Sereia e Castiçal, sob o critério da divisão dos poemas, tendo por parâmetro o número 5. Se há indícios de que a arquitetura é ardilosa, não pretendo confundir os exegetas. Não é radical como a do modus operandi propiciatório do nascimento de “O Corvo”, que despreza a intuição extática, a inspiração fruto de incidente contemporâneo, o frenesi sutil e o acaso, considerando dogma a produção do efeito até o desenlace do poema, exigente de precisão e de lógica para solucioná-lo como se fosse problema matemático. Também coloco a “inspiração” à deriva. Todavia, valho-me da intuição, dela partindo para organizar o sistema adrede pensado. Em suma: concilio os extremos. Os poemas, arquitetonicamente falando, têm concepção básica circular, ourobórica. Começaram com Este Interior de Serpentes Alegres e terminarão com O Retorno das Serpentes (o estágio final em que a cauda da Serpente fecha o círculo). Com esta última obra completarei o ciclo. Quanto ao Nos Limites do Fogo (1976, mais logos e menos ludus), luciferino por excelência, continua a partição do livro em conjuntos de cinco a cinco poemas (explicarei a origem da escolha do número 5, se houver interesse), ressalvando-se Labirintos (2008), por compreender os vinte e dois arcanos maiores do Tarô. O fogo convive com a água nessa liturgia-simbiose-gnóstica. Simbólico, hermético sem ser obscuro, inicia o percurso do ocultismo, que caracteriza o corpus reitor da obra poética. A mudança de rota — ainda que tenha havido rompimento (relativo) da própria linguagem — é mais espiritual e de origem herética. Tinha, então, trinta e quatro anos. Entretanto, já havia lido tratados de Mitologia, Cabala, Alquimia e Artes Divinatórias, cuja leitura, no âmbito da Filosofia Oculta (inclusive obras fundadoras de Magia e Religião), marcou e marca minha cultural visão do mundo. 6) Você pode falar mais sobre a numerologia em sua obra e por que esta obsessão pelo número 5? A numerologia, denominada Aritmologia por Athanasius 12
  • 13.
  • 14. Kircher (explicação geral das propriedades secretas dos números e de sua significação mística), e Aritmosofia por Sarane Alexandrian (versa a simbologia dos números, das funções metafísicas e das operações mágicas), é uma das disciplinas componentes da Filosofia Oculta. São consideradas suas fontes a Filosofia Grega, a Gnose, a Cabala e o Cristianismo. Com base nela, podemos explicar o porquê da escolha do número cinco para dividir os poemas. A partição quíntupla, em determinado momento, passou a interferir na estrutura dos poemas. Já o 7 (o mais sagrado e venerado pelos pitagóricos no século VI a.C., porque embute o 3 e o 4, figuras do perfeito equilíbrio) não tem caráter estrutural, mas é referido, por extenso, nas obras poética e ficcional, conservando o substrato oculto. Anoto, quanto ao 5, que, além de modelo do método estrutural, o seu uso se justifica, simbolicamente, pois representa a cabeça comandante do corpo. É número pagão por excelência. E não se esqueçam: os mistérios antigos eram divididos em 5 partes. 7) Para nós, o corte radical de sua linguagem se dá no livro Os Faróis Invisíveis. Onde você sai de um texto torrencial, prosaico, para uma linguagem exata, concisa. A expressão caput mortuum, isto é, cabeça dos mortos, é “uma expressão de que se serviam os alquimistas para designar o resíduo não líquido de suas análises; eles comparavam esses resíduos a uma cabeça, da qual a operação alquimista houvesse retirado o espírito. Resto que escapa à sucessão ou cadeia significante; borra.” Como a alquimia é um dos pilares de sua obra, seja ela feita em prosa ou verso, gostaríamos de saber um pouco mais sobre o seu processo de escrita, no sentido de cortes, dos resíduos e da morada alquímica. Sem dúvida, o corte radical ocorreu em Os Faróis Invisíveis. Pela primeira vez alguns poemas mergulharam no poço do surrealismo. Ainda assim, a obra não se conforta à pura escrita automática, ínsita ao início do movimento bretoniano. Nesse livro aflorou também o erotismo. Discordo da afirmação de que saí de um texto poético anterior torrencial e prosaico. Nos Limites do Fogo é contido, enxuto, compacto, e mesmo os precedentes, não 14
  • 15. obstante discursivos, não têm, salvo estridente engano, essa forma dita caudalosa. A propósito da expressão latina caput mortuum, apropriada por Lacan (o significante impossível, isto é, o resíduo impossível do funcionamento da repetição), designativa da sobra não líquida das análises dos alquimistas, levo-a em conta no leito literário, agindo como poeta, sem tirar o espírito dessa “cabeça”, fazendo outro tipo de destilação... Não procuro a transformação dos metais, objetivando o ouro, ou a pedra filosofal, nos moldes dos antigos. Logo, se a Alquimia (Arte de Hermes) era explicação racionalista das transformações da matéria (v. Berthelot), explorando o universo físico, a por mim utilizada é de natureza verbal. Alquimia do verbo mediante a decantação de outra matéria (palavra), de outra Grande Obra (dependente de três fogos) e de outra natureza de metamorfoses/transmutações. Serve, também, como tema condutor, com a exploração de seus elementos (ex.: o mercúrio, feminino; o enxofre, masculino) e utensílios (Athanor, ovo filosófico, lamparina, cuba, pares de balanças etc.). A obra mais vinculada à simbologia alquímica, escrita por mim, chama-se Sobre o Livro Mudo, versão poética de quinze pranchas herméticas (imagens) de La Rochelle (1677), cognominado Mutus Liber, em linguagem hieroglífica, périplo onírico com a finalidade de explicar todo o procedimento técnico (gramática oculta) do adepto iniciante, rumo à conquista do ouro, da pedra filosofal, que, para os mais sábios, é o conhecimento em seu mais alto nível espiritual. 8) Quando nos referimos a uma poética mais caudalosa, estamos colocando em perspectiva toda a sua obra. Claro que nos primeiros livros conseguimos identificar a concisão, a busca pelo verso exato, o trabalho de ourivesaria do poeta Péricles Prade. Contudo, os textos são formalmente mais extensos. E, se compararmos Este Interior de Serpentes Alegres com O Pequeno Tratado Poético das Asas, podemos, de algum modo, tratar as primeiras obras sob a perspectiva do prosaico e do torrencial. Certo? Não estou convencido de que assim o seja. A propósito da perspectiva do “prosaico”, lembra-me muito a concepção hegeliana, 15
  • 16. que fazia distinção entre representação (arte) poética e representação (consciência) prosaica (esta não teria, sob a óptica do filósofo alemão, a imagem por conteúdo, mas a mera significação). Sendo assim, se “prosaico” (o termo me desagrada) pode ser considerado o texto de A Lâmina, tal não ocorre com os dois outros livros iniciais. Além do mais, é inconfundível o texto discursivo dos poemas inaugurais com o do gênero prosa (posterior) propriamente dito. Arrematando, reacentuo que, mesmo comparado com o Pequeno Tratado Poético das Asas (exato, conciso, descarnado, absorvido pelo mito), não reconheço Este Interior de Serpentes Alegres, A Lâmina e Sereia e Castiçal como expressão verbal torrencial, apesar da forma expandida. Quem sabe vocês tenham razão e, submerso em equívocos, não percebi. 9) Diante dessa mudança, gostaríamos de saber como surge um poema? Existe um método interno, e ele aparece pronto, ou o poema é reescrito até que pareça ter sido escrito uma única vez, como queria Mario Quintana? Na resposta à quinta pergunta me referi ao método de composição. Aqui, acrescento que o poema é pensado, elaborado mentalmente, e, depois, transferido inteiro para o papel, passando a atrair incisões, cortes e/ou eventuais mudanças de palavras. Trata-se de pré-conceito poético pós-arrumado. O poema, até a publicação, é reescrito várias vezes. E casos há em que, já publicado, é polido com severidade, visando à futura edição. Todo poeta é espécie de ourives na busca da perfeição. 10) Você encontrou na prosa uma maneira de liberar o poeta para fazer devaneios, ressignificar mitos e executar o surrealismo irônico, debochado? É de palmar reconhecimento, aos que leem minha ficção, a existência de forte carga poética nos textos. Entretanto, é preciso deixar bem claro que a maior parte (quase absoluta) não se afina ao conceito de prosa poética. Mesmo os devaneios, frutos dos 16
  • 17. delírios (oníricos) das personagens, não fogem dos esquemas lógicos, resguardando o sentido sob o foco narrativo. Conquanto o mito se apresente com maior vigor na poesia, também se imiscui na ficção, sempre subvertido, pervertido, ressignificado, reescrito sob o pálio da imaginação fervente. Deixá-lo marginalizado, nas narrativas, seria um insulto contra a sua natureza. Espero ter encontrado a forma adequada para liberar o poeta incrustado na linguagem, malgrado não veja — sem que essa afirmação contenha viés polêmico — na ficção de linguagem afeiçoada ao fantástico, a execução do surrealismo irônico, e, muito menos, debochado, mas ironia e humor de polpa distinta. 11) Hilda Hilst e Roberto Piva já detectaram a ausência de uma poesia visceral. Após o concretismo, vigora um formalismo excessivo, predominando uma poesia fria, sem vísceras, que tenta se justificar apenas pela forma. Como conseguir o equilíbrio entre o formal e o visceral? Roberto Piva (este sim, surrealista irônico e debochado) e Hilda Hilst, cada qual a seu modo, lavraram poesia visceral e, por isso, estavam à vontade para detectar aquela propalada ausência. Ocorre, porém, que a ausência não é absoluta. Outros poetas viscerais há, e percebíveis, na atual geração. Diria que o dogma formal é mais uma tendência, abraçando o esqueleto e despojando a carne. Entendo ser necessário o equilíbrio. O miglior fabbro pode conquistá-lo. E o melhor o fará, afeito à formulação de Croce, segundo a qual o ato fundante da poesia é a aliança do sentimento e da imagem. Sim, porque, como ensinava o filósofo italiano, só haverá selo de totalidade, o sopro cósmico, quando for dada forma artística ao conteúdo do sentimento. Deve-se, então, para atingir a unitotalidade cósmica de que falava Bachelard, combinar a imaginação formal com a imaginação material. 12) Qual o seu conceito de prosa poética? A prosa poética, assim já designada no século XVI (1540), 17
  • 18. remontando à Segunda Sofística (século V a.C.), não corresponde, a meu juízo, ainda que represente a fusão da prosa e da poesia, à equivalência de ambas. Em que pese a confluência das respectivas linguagens (denotativa e conotativa), justificando o nascimento da autonomia do texto, às vezes predomina a denotação, e, dependendo do conteúdo da obra, a conotação. E se existe a fusão, está-se diante de uma forma híbrida. Não me atenho à típica forma híbrida de que fala Luiz Costa Lima, quando determinado texto perde sua fenomênica destinação original (ou inscrição originária), deslocando a função primitiva, com a permanência da eficácia das marcas da espessura da primeira linguagem, contígua à presença suplementar da segunda, como ocorre em certos ensaios, autobiografias e memórias, transmudados para o estatuto ficcional (dupla inscrição). Entendo que prosa poética é forma híbrida atípica — pois, nela, inexiste deslocamento de função, dada a especificidade do gênero autônomo — em se tratando de inscrição literária originária exclusiva, única, imutável. Digo isso, sabendo, com esteio em Todorov, que o problema da classificação tipológica das obras literárias suscita dificuldades. A Lâmina (1963) se afeiçoa a esse conceito, bem como alguns poemas constantes dos livros Além dos Símbolos (2003) e Sob a Faca Giratória (2010), ou os “Novos Relatos de Luigi Pomeranos”, e outros, incluídos na obra Correspondências – Narrativas Mínimas (2009). 13) Por que escrever uma obra toda cifrada, hermética, que exige do leitor, para sua total fruição, um conhecimento incomum mesmo entre poetas? Não me parece que “toda” obra seja cifrada, hermética. Boa parte dos poemas é facilmente legível, em especial os dos livros anteriores ao Nos Limites do Fogo (1976), e os dos posteriores, voltados à infância, ao erotismo e às viagens. Negar não posso que o maior volume é constituído pela poesia de matriz ocultista, acoplada à tradição da Gnose, da Cabala, da Alquimia, da Magia, das Artes Divinatórias e de outras vertentes do pensamento analógico. Mesmo constituindo, no fundo e no raso, poesia para iniciados, 18
  • 19.
  • 20. os poemas valem por si sós (imagino), independentemente da compreensão imediata, em virtude da empatia da rede sonora das palavras, das metáforas ousadas e das imagens incandescentes, cujo não sentido, aparente, é insólito ou incompreensível apenas aos que não adentraram o complexo portal do imaginário, ou se encontram no vestíbulo, inertes, à espera da senha redentora. 14) Sua fortuna crítica revela que é necessário, mesmo para os primeiros livros, conhecimento específico para total fruição de sua poética. Pois sua literatura já começa sob o signo da serpente com Este Interior de Serpentes Alegres. É claro que há o ludus, o encantamento da linguagem que faz com que o leitor comum absorva a superfície. Contudo, temos a clareza que, para a total fruição da sua obra, faz- se necessário um conhecimento que ultrapassa “a empatia da rede sonora das palavras”. Você poderia apontar caminhos para os que se encontram “no vestíbulo do portal do imaginário”? Qual é a senha? Já disse, alhures, que, para a fruição poética, basta a empatia da linguagem com seus significados ambíguos e polissêmicos, proporcionando múltiplas revelações. O que afeta determinado leitor, não afeta aos demais. O encanto vale mais do que mil explicações teóricas. Se ao leitor, encantado ou não, é insuficiente o impacto da imagem, a beleza da metáfora e a impressão causada pelas palavras, preferindo esvurmar o conhecimento da origem dos símbolos, dos mitos, das vertentes da Filosofia Oculta subjacente e a complexidade das hierofanias, preocupado mais com os dados inerentes à análise literária do texto do que com a leitura epifânica, a senha para ultrapassar os umbrais é simples: ler o que há de melhor do acervo bibliográfico (os autores canônicos) referente ao denominado ocultismo ou esoterismo (Cabala, Gnose, Alquimia, Magia, Artes Divinatórias), os mais autorizados tomos de Mitologia, Simbologia e História das Religiões, os poetas gnósticos (antigos e modernos) e a literatura de expressão fantástica. E não esquecer, na seara das artes plásticas, Picasso, Dalí, Van Gogh e, com maior proeminência, Hieronymus Bosch, responsável-mor pela “atmosfera” dos textos verbais.   20
  • 21. 15) A infância, a memória e o mundo aquático presentes em suas primeiras obras, conforme você mesmo apontou, retornam com o livro Sob a Faca Giratória. É a serpente retornando ao ponto de origem? Realmente, essas instâncias sempre retornam. É a sobrevivência do mito do Eterno Retorno, dos arquétipos sagrados e profanos, da repetição das cosmogonias, da regeneração contínua do tempo (in illo tempore), da transformação do Caos, tão bem retratados por Mircea Eliade quando trata do simbolismo da água e do fogo, das hierogamias e hierofanias, e, como não poderia deixar de fazê-lo, da Serpente (ouroboros: solve et coagula!) no combate com o herói, tudo para chegar ao Centro, ao território esotérico da iniciação. A Serpente, pelo menos no meu caso, sempre retorna ao ninho. É na origem que se consagra. Meu voo poético também é circular. 16) Você diz que “a serpente sempre retorna ao ninho. É na origem que se consagra.” Como você encara as teorias pós-estruturalistas (Derrida, Nancy) que afirmam não existir centro, não existir origem? Como sou atraído pelos ensinamentos da Filosofia Oculta e da Mitologia (esta geralmente sob o ângulo invertido), pouco me importam os ditames da Filosofia Crítica para o fazer poético. Assim, coloco à sombra, quando escrevo, o que pensam Jacques Derrida (tão influenciado por Nietzsche e Heidegger...) e seus seguidores Jean-Luc Nancy, Philippe Lacoue-Labarthe e Helène Cixous acerca da descentralização da consciência humana e da desconstrução da noção do sujeito (a partir do conceito de différance), ainda que reconheça, tanto no estruturalismo quanto no pós-estruturalismo (ainda com ressonâncias de Saussure), a pertinência da justificativa segundo a qual a língua é a chave do conhecimento. Daí a minha indiferença ao que Derrida sustenta (apesar de concordar com a ambiguidade de todo texto e da relatividade do significado), quando, na Gramatologia, esmiúça a charada e a cumplicidade das origens, a inscrição da origem, a metáfora originária e o suplemento de origem. Improcede essa 21
  • 22. história de que a origem não existe. Ora, também para ele a fala (verdade, natureza) é a origem da língua, sendo a linguagem escrita uma imagem duplicada do privilegiado significante fônico. Toda desconstrução remonta à origem, aos pressupostos. No mínimo, há origem suposta, como admitiam os estruturalistas. Origem não é necessariamente centro. Não se confunde origem (eliminação de sua necessidade, calcada na ideia de estrutura), com centralidade, levada ao logocentrismo. Tanto que se discute a centralidade do problema da origem. Não quer dizer que há desprezo absoluto pelas teorias de Foucault, Deleuze, Barthes, Guattari, Lyotard, Derrida e Lacan. Instigante é, v.g., o lacaniano argumento do “imaginário” (o simbólico, estruturando-o). Dito isso, vamos ao ponto em que vocês, para polemizar, contrapõem as teorias pós-estruturalistas à minha observação de que a Serpente se consagra na origem. Não existiria esta, por inexistir o centro. Pois bem. Desconsideradas essas teorias, resultado da imantação “literária” da Filosofia Oculta, gostaria de assinalar que Mircea Eliade, há tempo, em seu livro O Sagrado e o Profano — após justificar o axis mundi (a imagem é a de uma coluna cósmica, eixo-pilar, elo entre o Céu e a Terra, com a base cravada nos infernos, situada no centro/umbigo do Universo), articulado como sistema — lembra, invocando certa cultura indiana, ser o mundo sustentado pela Serpente (símbolo do Caos), com a cabeça fixada por uma estaca e sobre ela colocada a pedra angular. Portanto, a morada (imago mundi) da cobra imemorial situa-se no Centro do Mundo. Se ela deve estar lá, sua sacralidade hierofânica também deve retornar, sempre, quando foge de seu habitat natural, no altiplano da imaginação criadora, para que o universo não se destrua por falta de apoio. Aqui, simbolicamente, centro (ponto fixo) e origem são a mesma coisa. Por essa razão as Serpentes alegres de meu primeiro livro, filhas diletas da serpe originária, voltam ao ninho sagrado, cumprindo o ritual. 17) Alguns de seus livros de poemas (Tríplice Viagem ao Interior da Bota, Ciranda Andaluz) são escritos a partir de uma viagem. As obras surgem porque você viajou a esses lugares, ou viajou a esses 22
  • 23.
  • 24. lugares já no interesse de fazer um livro? Foram apenas algumas viagens que geraram poemas, ou todas? Jamais viajei ou viajarei a qualquer lugar (sítio, país, continente) com o objetivo de escrever poesia ou ficção. Ocorre o contrário: se estou fora do meu espaço natural, onde resido, viajo no tempo e retorno à infância, embalado pela memória persistente. É um chamado, estranho chamado, a que não posso resistir. Quando esse estado de excitação criativa nasce, sou impactado/ imantado pelas forças telúricas de onde me encontro. Aí, surgem as remissões às paisagens, às pessoas, aos animais e aos objetos circundantes. Constituem mero leitmotiv, pretexto para a realização da obra porvindoura. Preponderam as emoções, as sensações, impulsionadas pelos sentidos que se fazem mais salientes. Tudo o que vejo e tateio tem cheiro, som e sabor. Ciranda Andaluz (2003) e Tríplice Viagem ao Interior da Bota (2007) são livros que se remetem aos deslocamentos feitos à Espanha (Andaluzia) e à Itália (Roma, Florença, Veneza), respectivamente. Tratam só de viagens (sem deslumbramentos turísticos...) físicas, mentais, astrais e culturais (históricas, artísticas, filosóficas), como os ainda inéditos Olho Gótico (Sul da Alemanha, Áustria, Suíça) e Memória Grega e outros Poemas Viajantes (Atenas, Alexandria, Paris, Praga, Viena), mas há poemas esparsos desse naipe, encartados em obras pretéritas (Jaula Amorosa, 1995; Além dos Símbolos, 2003). Não constituem novidade, já que muitos ficcionistas e poetas viajaram pelo mundo, deixando aos presentes e aos pósteros memoráveis impressões. A expectativa, humilde, é que as minhas também permaneçam. 18) Sua última viagem ao Caribe rendeu algum livro? No Caribe (penúltima viagem) escrevi alguns poemas, evocando famosos piratas e outras figuras/eventos eminentes que excitaram o imaginário da época com as suas extraordinárias aventuras. Refiro-me a uma das partes do livro Memória Grega e outros Poemas Viajantes, intitulada “No Arquipélago do Caribe”. A epígrafe desse quíntuplo conjunto é de Luigi Pomeranos: “Se não fosse poeta, seria pirata”. Não me afetou o tempo presente, 24
  • 25. representado pelo mar brilhante, visto da sacada do quarto de um navio gigante. A paisagem, rápida, conduziu-me ao passado, à captura de César, no retorno a Roma (após ter sido hóspede de Nicomedes, Rei de Bitínia), às aventuras de William Kidd (jovem capitão da Marinha Real Inglesa), aos disfarces de Mary Read e Anne Bonny (mulheres piratas criadas como meninos), à conversão de um ladrão de joias e ao espetáculo das esquadras flibusteiras de orgulho predador. Quando viajo é o tempo distante que, sem limites, governa meus sonhos e vigílias. Reencarno, convertido em máquina criadora recompondo os séculos. 19) Em Pantera em Movimento, você se afasta do caminho seguido até então e entra na seara explicitamente erótica, já presente implicitamente em outros livros. Os poemas são menos fechados em símbolos, ocultismos, hermetismos. Como você avalia esta obra? Uma licença poética dentro da sua poética? O fervor erótico tem, há tempo, me acompanhado no curso/ percurso poético, às vezes de forma implícita, às vezes de forma explícita, esta notadamente em Os Faróis Invisíveis (v. a parte “Eros no Poço das Sedas”) e Pantera em Movimento (todo o livro). Também na prosa se evidencia, sendo exemplo marcante a obra inédita Espelhos Gêmeos. Não configura mera licença poética, mas opção de natureza amorosa (numa fase de ostensiva felicidade), exigente de linguagem linear, de legibilidade nada crepuscular, em que o simbólico cifrado e as armaduras herméticas cedem espaço às metáforas de clara plumagem para provocar a relação libidinal do leitor com o corpo dos poemas e o da amada. Avalio-a como espécie de ponto de fuga, se comparada com as demais, anteriores ou não, despojando-me dos elementos de estranhamento, das envolventes cinzas do Oculto, de tudo quanto se desvia do eleito foco de atração. 20) Pode falar um pouco sobre a infância, sobre o contexto familiar? Existe algum fato daquele período que determinou o surgimento do 25
  • 26. escritor, do poeta? A infância está entranhada em minha poética. Talvez, por isso mesmo, escolhi a conhecida epígrafe de Baudelaire — “La poésie c’est l’enfance retrouvée” — para o primeiro livro, Este Interior de Serpentes Alegres. Vários fatos daquele período e da puberdade precipitaram o nascimento do poeta e do narrador: a leitura cativante de “gibis”; a visão do pai (Erwin) ao compulsar jornais na varanda da casa; o estímulo da mãe (Áurea), que contava histórias de ingênuo humor; a irrupção do poema a ela dedicado aos nove anos; a novela de rádio “Jerônimo, o herói do Sertão”. A emersão criadora ocorreu na adolescência, impulsionada pelo crescimento do germe quando frequentei o Ginásio Rui Barbosa, em Tïmbó, sob a influência do prof. Gelindo Buzzi, declamador obsessivo dos românticos Castro Alves e Victor Hugo. Estou ciente de que outros fatos, não literários, têm características de fonte, entre os quais ressalto: o cortejo de diabinhos vermelhos que vi, em Rodeio/SC, saindo de um poço, atrás da casa; o quase- afogamento (salvei-me por pouco, após submergir três vezes); a fuga de casa com dois irmãos aventureiros (com arco e flecha atirei na empregada assustada que nos flagrou, prendendo-a pela blusa numa árvore); o confinamento a contragosto no Seminário Marcelino Champagnat/PR (fui expulso, graças a Deus), por ter pecado contra a castidade; a injusta punição, no Colégio dos Irmãos Maristas, por ter mijado no colchão, à noite, obrigando-me o padre-prefeito a atravessar o pátio com o troféu molhado nos ombros; o furto de patos distraídos numa lagoa, e o de melancias nas roças dos vizinhos tolerantes; a morte de pombos indefesos, com espingarda de pressão, nos telhados da casa do Sr. Draeger; a pichação de poemas obscenos nas paredes da escola; a compra de mantimentos, na mercearia de Horst Domning, com uma pedra sobre a cabeça, coroada com boné de pelúcia; a primeira relação sexual, com uma empregada rechonchuda, na cama de seus patrões (donos do Cine Mock), e por aí vai, que a memória não é de ferro. 21) Depois das peripécias da adolescência, vai surgir o advogado 26
  • 27. renomado. Como isso aconteceu? A palavra “peripécia” foi usada de forma correta, se, etimologicamente (peripetia), compreende a passagem repentina de um estado ao outro, segundo a lição de Massaud Moisés, ancorado em Aristóteles. Foi, confesso, após a adolescência, que passei a me preocupar mais com a cidadania, os olhos dirigidos ao próximo, aos interesses da comunidade em que vivo. Por isso, atraiu-me o Direito. Lecionei em várias universidades brasileiras, pertenço a inúmeras entidades, no país e no exterior, escrevi vários livros jurídicos, exerci a Magistratura Federal e exerço a advocacia com dedicação em Santa Catarina, São Paulo e Brasília. Assumi e assumo a responsabilidade de grandes questões, algumas de vultosa expressão pecuniária, mas jamais deixei de atender aos menos favorecidos. O mundo e o submundo desse segmento profissional fornecem fartos subsídios para a fatura de obras literárias, mesmo quando o onírico não pede licença para se intrometer nos territórios do verso, anverso, reverso e/ou perverso. 22) Nós já apontamos a possibilidade de se fazer uma leitura de sua obra à luz das hierofanias (sobretudo as celestes e as terrenas) conceituadas por Mircea Eliade no livro Tratado da História das Religiões. Como você avalia essa perspectiva na sua obra? Recordo-me muito bem que Marco Vasques, há mais de um ano, impressionado com a leitura do excepcional tratado de Mircea Eliade, disse ter encontrado, nele, elementos para estudar minha poesia à luz das hierofanias. De imediato concordei com a análise nessa perspectiva, até porque, inclusive no livro O Sagrado e o Profano (introdução geral à História das Religiões), as hierofanias também são abordadas pelo mitólogo com verticalidade. É nessa obra que Eliade melhor conceituou e de modo mais simples a hierofania, considerando-a ato da manifestação do sagrado (obs.: quando algo de sagrado se nos mostra). Em verdade, tais hierofanias são tríplices: cósmicas, biológicas e tópicas. Na poesia que escrevo se entremostram mais as cósmicas, também tríplices: celestes, aquáticas e terrestres. Entre as cósmicas, salvo engano, diria que 27
  • 28. nos poemas se expandem as aquáticas (algumas subliminares), sem prejuízo da incidência das hierofanias celestes e telúricas. O simbolismo aquático é forte, devido às inamovíveis lembranças da infância. Nas biológicas, vislumbro o erotismo contido, e, nas tópicas, o fascínio pelas viagens. Tudo, nessa complexidade dialético- labiríntica das revelações, está vinculado ao campo morfológico dos mitos, ritos e símbolos, sobrelevando-se a Serpente, epifania lunar e síntese da multiplicidade das hierofanias. 23) Como equilibrar as diferenças de ofício? De um lado, temos o poeta do oculto, o poeta do imaginário, hermético. De outro, o advogado, o empresário, o político? Volta e meia fazem perguntas dessa natureza. Não há incompatibilidade alguma. São dois continentes que se completam. Goethe e Gabriel García Márquez, por exemplo, estudaram Direito e o abandonaram, mas Franz Kafka, além de formar-se e ter estagiado no escritório de advocacia do tio Richard Löwy (1906), atuou como advogado na filial da Assicurazioni Generali de Praga (1907-8), e na Arbeiter-Unfall-Versicherungs-Anssalt (Instituto de Seguros de Acidentes do Trabalhador), de 1908 a 1922, quando se aposentou para tratamento da tuberculose. A profissão jamais atrapalhou sua literatura (a única e verdadeira paixão). Pelo contrário: o conhecimento das leis e dos meandros do Tribunal fez com que produzisse obras prodigiosas de cunho fantástico, iluminando futuras gerações de escritores. Quanto a mim, é a diferença dos ofícios que possibilita o necessário equilíbrio mental. Tenho dito, com certa dose de humor, que, se não fosse a advocacia, teria enlouquecido. A lógica cartesiana, exposta nas peças jurídicas, contrapõe-se ao ilógico, ao nonsense, ao onírico, ao imaginário solto, aos enigmas que povoam o clima fantástico dos textos literários. Afirmo o mesmo em relação à Política. Candidatei-me a prefeito de Florianópolis (perdi a eleição), fui, depois, eleito vice-prefeito, e tentei a Câmara Federal, alcançando a primeira suplência. Pois é: dessa água bebi e receio bebê-la. Extraio elementos/temas desse universo (paralelo?), ainda que muitas vezes de forma inconsciente. 28
  • 29.
  • 30. Quanto às atividades empresariais, não levo jeito, como ocorreu com Kafka (a mil léguas a comparação), na Fábrica de Amianto de Praga, sociedade comanditária de posse (nominal) do genro de Hermann Kafka (o autoritário pai), casado com sua filha Elli. Hoje, sou espécie de editor bissexto, colaborador intermitente do escritor Fábio Brüggemann na sede da Letras Contemporâneas. 24) Jayro Schmidt e Álvaro Cardoso Gomes estão trabalhando novas leituras sobre sua obra, a exemplo do que já o fez a ensaísta Mirian de Carvalho. Como é o seu diálogo com a crítica? Como você vê essas leituras mais aprofundadas de sua obra? Ambos redigiram alentados ensaios, a serem publicados ainda neste ano (ou no próximo) por editoras paulistas. Jayro Schmidt é o crítico literário que, pela primeira vez, enfrentou específicas questões de linguagem, examinando-as na poesia e na ficção. Álvaro Cardoso Gomes, que escreveu as abas do livro Além dos Símbolos, acabou de redigir exegese de toda ficção até o momento publicada. Destaco o enfoque por ele dado à écfrase (descrição/representação verbal da representação visual), conhecida, no passado, pela fórmula horaciana ut pictura poesis. Outro crítico que, com exemplar rigor, interpreta minha obra (poesia) é o poeta Dennis Radünz. Escreveu o posfácio de Ciranda Andaluz. Olho Gótico (sul da Alemanha e Tirol austríaco-suiço) receberá o posfácio de Andrés Alberto Heller, que está redigindo ensaio em torno dos componentes musicais, tanto na poesia quanto na prosa. Intenso trabalho, há décadas, realiza o escritor e crítico Benedicto Luz e Silva, compreensivo de toda obra poética (obs.: publicou, em 1999, O Cão e o Alçapão, que versa a interpretação das duas primeiras narrativas). Já redigiu os livros Mitopoética de Péricles Prade, O Unicórnio Segundo Péricles Prade, e está na fase final da redação de O Erotismo na Poesia de Péricles Prade, todos ainda no aguardo de publicação. É estranho que, até hoje, nenhum crítico tenha focado a sombra gnóstica de Alfred Jarry na poesia (C. Ronald apenas a vislumbrou na prosa, e de igual modo Jayro Schmidt, depois dele), a aura do lado esotérico de Christian 30
  • 31. Morgenstern (escrita humorístico-fantástica na prosa), bem como a leveza de Aloysius Bertrand na prosa poética. 25) Já aconteceu uma leitura de sua poética da qual você discordasse? Qual? Não há discordâncias flagrantes. Apenas me indisponho, sem sobressaltos, aos que insistem em me filiar à escola de vocação surrealista. Lindolf Bell era um deles. Lauro Junkes é outro que assim pensava. Do mesmo estofo é o ponto de vista da crítica italiana Maria Del Giudice, que introduziu Os Milagres do Cão Jerônimo no escaninho do surrealismo paradossale. Entendo, salvo equívoco, que somente parte de Os Faróis Invisíveis, e alguns poemas constantes de outras obras, podem justificar essa pretensa classificação. Jamais utilizei a radical escrita automática e não adiro a outros métodos adotados pelos surrealistas. Inclino-me ao cubismo literário (quando encadeio fragmentos), ao simbolismo insólito de subjacência mitológica (inversões criativas e novas mitologias), ao endobarroco e seus afluentes, conforme ensinou a contento Mirian de Carvalho. 26) Mirian de Carvalho afirma que “A partir da obra Em Forma de Chama: Variações sobre o Unicórnio, localiza-se na produção poética de Péricles Prade singularmente afeita às imagens e ao logos poético em esquiva do signo e da cultura, uma perspectiva do Endobarroco. Porém, não se trata de retomada do Barroco nem de um “eterno barroco” de expressão universal. Ao Endobarroco relacionam-se contrastes implícitos às imagens, que, insurgindo-se na Literatura desde os alvores da Cultura Moderna, chegam aos nossos dias, traduzindo-se como desvio do princípio de identidade.” Como você encara a teoria do endobarroco e como a relaciona com sua obra? Partindo do conceito de “pambarroco”, formulado por Ivan Cavalcanti Proença (ênfase na transgressão da ordem direta do discurso, nos traços formais, morfossintáticos, sonoros e 31
  • 32. imagísticos, mediante o uso de jogos antitéticos, oximoros, paradoxos, inversões etc.), amparada nas teorias de Eugenio d´Ors (Eterno Barroco), Heinrich Wölfflin (perspectiva cíclica), Helmut Hatzfeld (instâncias morfológicas e ideativas), com valimento, ainda, no critério de desconstrução de Jacques Derrida (em acepção diversa quanto ao processo criativo) e no sistema de Gaston Bachelard (desvio do signo e da cultura, salientadas as noções de imagem, imaginação, espaço/tempo e matérias, nestas com relevo nos arquétipos águas e fogo), Mirian de Carvalho justifica — sem retomar o Barroco tradicional pelo Neobarroco — a presença de características do endobarroco (cuja dinâmica é impulsionada por um logos referendador da base imagético-semântica), na obra Em Forma de Chama - Variações sobre o Unicórnio, forte no enlace (jogo) do pensar (ideia) e do dizer (palavras). Sua exegese sustentou a existência heteróclita desse notável animal mítico, versando o fusionismo (harmonia) dos sentimentos paradoxais (oposições e diferenças) em desvio/esquiva do princípio da identidade (força movente e intrínseca à imagem), cifrando-se ao reinado do encantatório. É estudo de alto nível, redigido por conceituada professora de Estética e Filosofia, que, além de explicar os fundamentos reitores da generosa análise, questiona dois aspectos que considero relevantes: meus poemas apenas tangenciam o nonsense e não se coadunam com os postulados e as técnicas surrealistas (é ressabido não ser a escrita automática a única regra, admitida mais tarde pelo próprio Breton como insuficiente), em regime radical, já que, neles, inexistem captações/ registros de temas ou motivos opostos à razão cognoscitiva, bem como a recorrência frequente ao irracionalismo, muito embora esteja presente a mesma atitude espiritual na procura e revelação do 32
  • 33. lado secreto das coisas, do aprofundamento da síntese dos sonhos/ devaneios e da realidade sensorial, visando à libertação de todos os dogmatismos (v. Enrique Molina). Há, reconheço, incursões endobarrocas na linha apontada, mas a obra sob análise, aberta por excelência, de substrato mitológico-simbólico-esotérico, oferece fértil terreno (estou certo?) para outras abordagens analíticas. 27) Pode falar um pouco mais sobre o diálogo que você mantém com as novas gerações? Tocante aos poetas da geração 1960, na província de Santa Catarina (obs.: em São Paulo minha convivência literária era com Cláudio Willer, Roberto Piva, Carlos Felipe Moisés e Benedicto Luz e Silva, entre outros), mantive ótimo relacionamento com os falecidos Lindolf Bell e Osmar Pisani, e continuo mantendo contatos frequentes com C. Ronald, Rodrigo de Haro e Ricardo Hoffmann. O diálogo maior e profícuo, sem desabono àquela geração, é o realizado com os poetas e ficcionistas das Gerações 1980/90. Destaco Fábio Brüggemann, Marco Vasques, Dennis Radünz, Fernando Karl e Rubens da Cunha, estes dois últimos em datas recentes. Intercâmbio intelectual e afetivo. Troca de ideias, informações e leituras. Tenho aprendido muito com o grupo, atualizando-me, renovando-me, na real expectativa de melhorar a qualidade do que escrevo, sempre à procura incessante da inatingível perfeição da escritura. Esse vínculo é gratificante nos âmbitos da criação e da amizade. Sei que perdurará, pelo menos até o momento da passagem ao departamento de cima... 28) A plaqueta Guardião dos Sete Sons, publicada em 1987, parece- nos ter sido pensada como conjunto. Ocorre que os poemas dessa obra começam a aparecer em outros livros. Há alguma justificativa para esse procedimento? Foi pensada como coletânea mirim, pois não corresponde a uma separata musculosa ou a um livro de maior lombada. Reuni 7 poemas, exigidos pelos escritores Flávio José Cardoso e Silveira 33
  • 34. de Souza, editores passageiros na época, para compor a sanfona (lembra sua forma prazerosa), nome escolhido para esse tipo de edição em papel dobrado. Tendo-os retirado de vários livros inéditos (minha gaveta é extravagante horta literária), desfalcando- os, a fim de atender a essa convocação, entendi que, mais tarde, deveriam retornar à origem. E assim o fiz. Exemplificando: o poema “O que se vê” está em Sob a Faca Giratória (2010), e “O Som mais Simples”, “O Real também é belo às vezes”, entre outros, foram encartados no livro Além dos Símbolos (2003). Eu os relacionei dessa forma como obra autônoma, apesar de magra, justamente por ser seleta mirrada que – mesmo contendo poemas inéditos extraídos de acervos posteriores – representa seleção de textos de interna coerência (estrutura) nos planos simbólico e formal. 29) Por que a crítica literária, sobretudo a exercida em Santa Catarina, é sempre dócil e não faz distinção entre poéticas abissalmente diferentes? Como também faço crítica literária e de artes plásticas, fico à vontade para responder às indagações. Elucido que, quando ajo nessa condição, não perco tempo em desancar obras fracas, até para não possibilitar a instantânea saída delas do anonimato, preferindo deixá-las solitárias onde se encontram hibernadas. Destarte, ao exercer a crítica, é para arrolar as qualidades do texto, sem prejuízo da indicação de eventuais defeitos, vícios ou equívocos. Poupo-me, poupando os leitores, sabendo também que, por razões indiossincráticas, posso me enganar. Inclusive quando faço autocrítica favorável... Quanto à exercida em Santa Catarina (a prática é ocorrente também fora de nossas fronteiras), salvo honrosas exceções, não é incomum a louvação, o viés laudatório, transformando medíocres de plantão em gênios estelares. E quando isso sucede, quem perde é a literatura, de um lado, devido à redução do sumo qualitativo, e, de outro, os autores de significativa linguagem, sem falar nos leitores desavisados, que, na ausência de paladar literário (saber também é sabor), comem gato por lebre e acham tudo maravilhoso. 34
  • 35.
  • 36. 30) Em entrevista para o livro Diálogos com a Literatura Brasileira – volume II, você afirma que “vivemos num mundo desmitologizado”. Sua obra é uma tentativa de enfrentar esse mundo desmitologizado e ressignificá-lo?  A resposta está contida na pergunta. Não recuei o meu ponto de vista a respeito dessa questão de fundo antropológico, refletindo a visão da humanidade noutro período da história. Ocorreu a desmitologização em contraponto à forma e ao modo como o mito é considerado na atualidade, resultado — repito aqui a afirmação proferida na mencionada entrevista — da gradativa e crescente mudança do pensamento, que passou de mágico (in illo tempore) a tecnológico e artificial. Criadas foram novas mitologias, é verdade. Atente-se, porém, para o fato de prevalecer outros tipos de pensar o mundo (quanto ao homem, animais, objetos etc.), próprios da modernidade e pós-modernidade. Cabe ao escritor não deixar que o(s) mito(s) desapareça(m), sob pena de empobrecer a qualidade da língua e das obras literárias. Procuro, com significância maior na poesia, resgatá-los, ainda que a ressignificação parta de ângulos distintos e alveje metamorfoses fundadas na inversão ou outras categorias na esfera da criatividade. O resgate poderá, na poesia, ser realizado por força do pensamento metafórico, já que a metáfora, conceituada por Ernst Cassirer, é o vínculo intelectual entre a linguagem e o mito. E por quê? Porque o mundo, como assegura Roberto Calasso, não tem nenhuma intenção de desencantar-se. 31) Quando nos referimos ao surrealismo não o vemos apenas como “escrita automática” e seus “métodos radicais”. Na representação visual de Relatos de um Corvo Sedutor encontramos alguns aspectos surreais.  Por que sua indisposição com as relações que fazem de sua obra com o surrealismo? Se olharmos sob a óptica da écfrase, isto é, “descrição/representação verbal da representação visual”, você não admitiria uma aproximação? Sei, perfeitamente, que vocês não veem, como eu não vejo, o surrealismo apenas sob essa óptica. Minha inconformidade é em relação aos que me nomeiam surrealista típico, adstrito 36
  • 37. à escritura automática (que, diga-se de passagem, antecede ao movimento de 1924, pois Breton e Soupault utilizaram o método das correspondências aleatórias já em 1919, no livro comum Les Champs Magnétiques), ao acaso objetivo e aos demais procedimentos conhecidos. O fato de aspirar mais realidade para reencontrar a unidade perdida do ser, visando à resolução das antinomias, ao adentrar a órbita do maravilhoso, pleno de desejo e humor, projetado pelo inconsciente e pelo subconsciente nos sonhos (freudianos ou não), não me torna surrealista de carteirinha, inclusive na obra anárquica Relatos de um Corvo Sedutor. Aproximações, claro, existem, sendo simples dados/fontes (a exemplo de Jaula Amorosa) identificadores de certa eleição espiritual. O que não gosto é do carimbo. Minha poética é mais voltada aos predecessores do surrealismo, os poetas gnósticos Blake, Rimbaud e Lautréamont. 32) O humor é um dos princípios de sua obra em prosa e também está presente em seus poemas. Temos a curiosidade de saber como o misticismo, magia, alquimia, gnose, cabala e as artes divinatórias, áreas do ocultismo que perpassam sua obra, veem a questão do humor? Esses ensinamentos não propõem e não se preocupam com a questão do humor, per se, que sequer constitui gênero literário, mas tipo de metábole, uma qualidade de expressão, sem equivalência com a intuição, como propõem Pirandello e Bakhtin. Pode ocorrer situação de humor, no âmago dessas categorias do Oculto, quando se pretende escrever algo, tomando-as como pontos de referência para criar, explicar ou ensinar. Gershon Scholem, por exemplo, ao comentar as inter-relações entre Cabala e Mito, conta a anedota envolvendo um jovem desejoso de manter contato com cabalistas de tradição esotérica, que, tendo encontrado o mestre disposto a ensinar, o mesmo lhe disse poder atendê-lo se satisfizesse a sua condição de não fazer pergunta alguma. Ele glosa esse fenômeno estranho, pois os judeus são considerados os mais apaixonados questionadores do mundo... Diria que, se fosse em busca dessa 37
  • 38. possibilidade, ou seja, a da revelação do humor, é encontrável na mitologia primitiva, no grotesco das metamorfoses das divindades (v. Basch). Sim, porque o Mito (v. Lévi-Strauss) é, simultaneamente, produção estética e intelectual, cujo discurso, simbólico, por ser também produção coletiva, representa sempre o social, no qual o humor pode emergir pela eficácia (simbólica) do mito (v. Mauss). Diz-se o mesmo em relação à Magia (objeto de crenças), fundada na emoção, que, se tiver origem coletiva, desafia o exame crítico e a dúvida (v. Paula Monteiro, com decalque em Mauss). Tanto a crítica quanto a dúvida atraem o humor pelos mecanismos de suas características, entre as quais se distinguem a indiferença e o disfarce (v. Bergson), que não seguem as leis da razão. E, por mencionar Bergson, olvidar não se deve sua máxima: não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano. Nesse contexto, reporto-me ao Ocultismo, no qual o demônio tem o seu lugar reservado. Bem por isso, Baudelaire, no terceiro capítulo de seu conhecido e aplaudido ensaio, anotou que o cômico é um dos mais claros signos satânicos do homem. Daí que, mesmo sem se filiar a Bergson, confirma: o riso é satânico, logo é profundamente humano. E assim o é, por ser o homem resultado da ideia de sua própria superioridade contraditória. O humor (palavra intraduzível – v. Valéry) de minha simpatia, objetivo (v. Hegel) ou não, é o negro, que utilizo sem a desejada frequência. Entre os autores que o expressam, prefiro Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire, na poesia, e Jarry, Huysmans, Borges e Kafka, na prosa, devido a certas afinidades de concepção. 33) Como é a sua relação com as outras línguas. Esse conhecimento afeta de alguma maneira a sua obra? Você acompanha as traduções de sua obra? Leio, falo e escrevo francês, italiano e espanhol. Leio e compreendo latim e inglês (sofrível). Estudei grego, um ano, sem maiores progressos. Achtung: arranho o alemão (ninguém consegue falar mal de quem quer que seja na minha presença), por ter vivido grande parte da infância e da juventude em Timbó, na região do 38
  • 39. Vale do Itajaí. Poderia tê-lo dominado, se eu não sofresse o assédio sexual de uma professora (quando era jovem, em Florianópolis), cujo cheiro desagradável fez correr o aluno atordoado. A leitura no original tem outra dimensão. No que tange à tradução, o livro Os Milagres do Cão Jerônimo foi traduzido para o italiano, francês, inglês e espanhol. Os tradutores foram, respectivamente, Renzo Mazzone (I Miracoli del Cane Geronimo), sob o pseudônimo de Salvator d´Anna; Andriette Lenard (preferiu o título de um dos contos – “Le Heros qui Sauve la Ville dans une Chaussure”); Joe F. Randolph o traduziu com o título Devil Dog Doings, tendo Juan Carlos Rochieri traduzido também as narrativas de Trampa para Gigantes e os livros de poesia En los Limites del Fuego, Los Faroles Invisibles, Jaula Amorosa bem como os ensaios Galileo Galilei – Poder y Ciencia, Paracelso y Bruno, e Vesalius, Paré y Harvey). E Alexis Levitin (tradutor de Leonor Scliar-Cabral) traduziu para o inglês o conto “Miracles of the Dog Jeronimo”, publicado no Mundus Artrium. Acompanhamento? Dei palpites às traduções de Andriette Lenard e Juan Rochieri. Anoto que, do francês, traduzi Apollinaire (antologia sob o título O Besouro que Dorme no Coração da Rosa, extraído de um dos poemas), Aimé Césaire (Antologia, em coautoria com Edson Nelson Ubaldo), Saint-John Perse (Anábase e poemas esparsos) e Lautréamont (Poesias I e II, antes de Cláudio Willer, mas que não as publiquei por ter ele se antecipado, sem saber dessa minha aventura). Do italiano, traduzi poemas de Montale, Quasimodo e Ungaretti. Do espanhol, narrativas de Borges e poemas de Antonio Machado e Lezama Lima. 34) Já houve alguma adaptação de sua obra para cinema, teatro, música? Como você vê esse trânsito/diálogo entre as artes? Já pensou em criar outra arte que não a escrita? O conto “O Monge Astheros”, encartado em Os Milagres do Cão Jerônimo, foi adaptado para o cinema (curta). Trata-se de Astheros, produzido por Isabela Hoffmann e dirigido por Ronaldo dos Anjos, autor do roteiro, lançado em 2011. Para o cinema está sendo adaptado o livro Espelhos Gêmeos (narrativas). O roteiro e a 39
  • 40. direção são de Fábio Brüggemann. O título provisório do filme é Pequeno Tratado das Perversões (subtítulo da obra). Lembrei-me, agora, que, sob a supervisão de Dennis Radünz, a artista argentina Yannet Briggiler está ultimando os desenhos animados de “Mirsânia, a Estrategista”, conto incluído em Alçapão para Gigantes. No que se refere à música, o pianista Alberto Andrés Heller a compôs para um poema gravado. E o maestro Gustavo Lange Fontes (da Orquestra Filarmonia de Santa Catarina) criou, em data recente, composição para a narrativa poética “Preso na Garganta”, inserida em Ao Som do Realejo. Meu filho Alexandre (conhecido como Alê Prade), músico e artista plástico, está criando as trilhas musicais da “Antologia de poemas gravados”, com a finalidade de futura publicação. Quanto ao teatro, escrevi, há muitos anos, O Reino ou a Paralisia, anunciada (1963) em Este Interior de Serpentes Alegres. Perdi os originais. Nunca mais me atrevi a reescrevê-la, ou a escrever outra, muito embora uma ideia (já incrustada num conto inédito) venha perseguindo o dramaturgo e ator frustrado. Não sei se vocês sabem, mas fui um dos atores da peça Como ele mentiu ao marido dela, de Bernard Shaw, dirigida por Aníbal Nunes Pires. Contracenei com Aparecida Dutra e C. Ronald Schmidt. Percorremos o interior do estado de Santa Catarina com a mesma dignidade dos que acompanharam a trupe de William Shakespeare. Estou, no momento, orientando um grupo teatral de São Paulo, que pretende apresentar peça em torno da vida e obra de Hilda Hilst. Se sobrar tempo, pretendo redigir uma peça acerca dos contatos dessa escritora com os mortos, utilizando-se de gravadores e outros expedientes técnicos. Ah, ia esquecendo de responder: (a) o diálogo entre as artes é estimulante (toda arte é dialética), mas o trânsito entre elas não constitui irremovível exigência (valem por si sós); (b) pensei em ser pintor (usando colagens), mas a inibição (reconhecimento introspectivo da falta de talento) é maior que a pretensão; (c) tenho fotografado coisas abstratas (diminutas). 35) A indagação poética contida na primeira das elegias de Duíno, que você faz referência numa entrevista para o DC Cultura, tem esta 40
  • 41. dicção: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos anjos me ouviria?” Por que é a preferida? Sempre me agradaram as hierofanias poéticas. Entre elas, sobreleva essa, de raiz celeste, do aristocrata e místico Rainer Maria Rilke, poeta que li com devoção no início de minhas atividades literárias. Não fiz a escolha desses versos misteriosos apenas por gostar de Elegias de Duíno, seu melhor livro ao lado de Sonetos a Orfeu, mas porque, ao contrário do suposto por muitos exegetas distraídos, o Anjo, nele, como deduz com percuciência Otto Maria Carpeaux, não é um símbolo religioso (o conformado espiritualismo rilkiano sempre foi questionado). É símbolo estético, perfeita Obra de Arte, encarnação da beleza, ideia inacessível que, ao mesmo tempo, torna o homem consciente de sua imperfeição. Talvez assim discorra por reconhecer no espelho o homo aestheticus, impactado ao saber, lendo a “Segunda Elegia”, que todo Anjo é terrível. Isso não quer dizer que ponho à esquerda o Angelus Novus de Paul Klee, ou outro ser angelical, se o Anjo, como alertou Rouanet, lembrado por Merquior, prossegue o trabalho que Édipo deixou de concluir.   36) Na mesma entrevista, afirma que o livro mais lido por você é a Bíblia, com ênfase no Apocalipse? Você vê o Apocalipse para além do cunho mitológico e literário? Leio a Bíblia desde jovem. É o melhor livro dos prodígios, metáfora delirante do Juízo Final, a mais rica expressão universal da Mitologia. Nela, encanta-me, até às lágrimas e ao riso (dependendo das passagens de humor nem sempre branco), o “Apocalipse de São João”, o mais notável precursor da literatura fantástica. É a fonte bíblica por excelência da novela Relatos de um Corvo Sedutor, catapulta de imagens, subvertida ao extremo (não obstante a estrutura linear com o encaixe rigoroso dos breves capítulos), tipo de pletora de milagres sucessivos às avessas, armazém literário aproximado ao do imaginário violento da escatologia católica apostólica romana. São inúmeros os Apocalipses (vários apócrifos) e textos escatológicos análogos. Nada me interessam fora dos eventos mitológicos e do substrato poético/ficcional. Não ando por 41
  • 42. aí à procura do Anticristo (ou dos anticristos menores), com terço nas mãos. 37) Após nosso longo diálogo, percebemos que você reconhece que há em sua obra “fértil terreno” para abordagens analíticas. Como se sente tendo tanta consciência de seu labor? Faço tal afirmação porque, além de poeta e ficcionista, tenho praticado crítica literária e de artes plásticas. Por essa razão, acho fundamental a autocrítica. Conheço minhas limitações e eventuais virtudes literárias. Abstraio, quando leio o que escrevi e escrevo, supondo-me outro escritor. Nesses estágios de leitura, percebo determinados aspectos, e imagino que algum intérprete possa analisar pontos ainda não aflorados ou aprofundados. Exemplifico: nenhum crítico fez análise vertical e exclusiva de temas em torno do humor (a poeta Maria José Giglio foi a primeira, en passant, a aflorá-lo num comentário); da écfrase (Álvaro Cardoso Gomes abordou-a em breve ensaio alusivo só à ficção); das hierofanias (Marco Vasques detectou-as, lendo texto canônico de Mircea Eliade); do ocultismo (alguns analistas o exploraram, em artigos, mas sem notável aprofundamento); do cubismo literário (como o da linhagem de Murilo Mendes); das viagens (por ora, Dennis Radünz redigiu posfácio ao livro Ciranda Andaluz e Abelardo Arantes Jr. o posfácio ao Tríplice Viagem ao Interior da Bota); da comparação com os universos dos pintores Bosch e Brueghel, o Velho (são mínimas as referências); das raízes filosóficas (Wittgenstein, Nietzsche, Hegel); fenomenológicas (Merleau-Ponty, Husserl) e psicanalíticas (Jung, Lacan); dos fetiches (enrustidos ou explícitos); dos aforismos (embutidos), e, de forma mais abrangente e enfática, da Gnose. Convém consignar que Álvaro Cardoso Gomes escreveu recente obra analisando toda ficção; Benedicto Luz e Silva fez, em livros distintos, abordagem devotada à mitopoética (do primeiro até Além dos Símbolos), ao misticismo, ao esoterismo e ao erotismo, compreendendo os textos poéticos posteriores; Jayro Schmidt debruçou-se sobre a linguagem; Mirian de Carvalho mergulhou nas vertentes do barroco e Franzina Ancona tratou do mito e do 42
  • 43. rito na escritura. O que falta, pelo visto, é o número bem maior de leitores. 38) Se você tiver que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira de Rilke, o que você diria? Já respondi a essa pergunta, ao ser entrevistado, em 2007, encontrando-se a resposta no livro Diálogos com a Literatura Brasileira – II, de Marco Vasques. Reproduzo o seu inteiro teor. Resposta: depende. Se o destinatário for um poeta medíocre como Franz Xaver Kappus (a prova é o soneto de pé quebrado que suponho ter sido escolhido por Rainer Maria Rilke por piedade), de nada adianta dizer algo prestável, inclusive a sugestão contida na primeira das cartas a ele enviadas (a única com originalidade, pois as posteriores constituem orientação tautológica), quando, insistindo na necessidade de voltar-se ao íntimo do ser, aconselhou-o, além de aproximar-se da natureza, a confessar a si mesmo “se morreria caso fosse proibido de escrever”. Contudo, se o jovem pretendente a poeta tiver talento e vocação, deve buscar a sua própria identidade (marca, para não dizer estilo), como o fez Flaubert até chegar à obra-prima Madame Bovary, submetendo os textos das criações ao teste da gritaria (gueulade) para encontrar o som/significado da mot just. E ler, ler muito, à exaustão, os melhores do gênero, vivendo a poesia. Afinal, como disse Dufrenne, não me lembro em que livro o li, a virtude da poesia é um hábito. Tal leitura, é claro, não deve ser dispersa. O ideal é fazer uma lista (dirijo-me aos iniciantes) como Pound o fez, escolhendo os canônicos. E lembrado seja que paideuma tem função pedagógica (vem do grego paidos, criança). Aliás, o termo não foi criado por Pound, ainda que, antes de seu advento, tenha se referido à organização do conhecimento, contemplando-se o passado, o presente e principalmente a geração futura. Ele, na verdade, ressuscitou-o do antropólogo Frobenius e com vantagem pragmática. Quanto ao ensinamento de W. H. Auden, ele também sugeria a procura da companhia dos poetas de excelência, os bons, no mínimo, mas não muito além do próprio nível do interessado. E propunha, recordo-me, num texto tratando 43
  • 44.
  • 45. das relações do poeta com a cidade, a universidade de poesia de seus sonhos, onde o aluno, a par da memorização de versos, estudo de línguas, biblioteca sem livros de críticos, deveria cuidar de um animal doméstico e cultivar um pequeno jardim. Tudo bem, mas receio que o jovem, querendo ser poeta, acabe se tornando veterinário, ou apenas jardineiro, sem, antes, como Wittgenstein, ter possuído o necessário conhecimento. 39) Você disse,  ao jornalista Dorva Resende,  que Cantos de Maldoror foi o livro que mais o perturbou. Por quê? E por que você queria ter escrito Uma Estação no Inferno de Rimbaud? Perturbou-me a violência literária (transgressora e selvagem) do texto em movimento, sua adesão à crueldade e ao domínio das perversões de todo gênero, além da fenomenologia da agressão constatada por Bachelard. Atraíram-me, também, o corpo febril e atemporal das metamorfoses, a lógica dos avessos dialéticos, a atmosfera luciferina, a celebração do Caos ordenado, a construção delirante, o mundo-ponta-cabeça, a escritura das negações superpostas, o pensamento analógico, o pendor antropofágico, a naturalidade do absurdo, o versátil regime da ambivalência, os reflexos dos sentidos ocultos, os luminosos excessos da linguagem, a paródia abusada, a subversão da lógica tradicional, a afeição pelos paradoxos e contrastes, os reinos mesclados, o humor cáustico, o jogo labiríntico dos espelhos, os rosários de blasfêmias, a gnose do mal, a alteridade consentida (homenagem ao duplo), enfim, o complexo processo de criação. Processo que implica aproximações com o meu modo de ver, sentir e escrever, guardadas as devidas proporções. No que alude à obra Iluminações - Uma Cerveja no Inferno (na tradução provocante de Mário Cesariny) ou Estação no Inferno (o título inicial era Livro Pagão ou Livro Negro, redigido num paiol, em Roche, Charleville), de Rimbaud, a resposta é simples. Não me impressionaram, apenas, o caráter confessional, a explosão criativa, a estridência vocabular, a nostalgia da infância (retorno à felicidade perdida), a obscuridade carregada de sentidos, a catarse purificadora, as expressões irônicas, o tom crepuscular 45
  • 46. do estilo, o virtuosismo, a brutalidade e a inocência irmanadas, a conjuração de Satã querido (identificado com Verlaine), os mitos do paganismo, o estranhamento das alusões, a adoção do conceito nietzschiano “mais além do bem e do mal”, os saltos temporais, o triunfo do espírito sobre a matéria, a capacidade profética e as tentativas de vidência, as imagens insólitas e alucinadas (em que pese a precisão imagística), o crime como meio de autodestruição, as paródias sublevadas, a energia vulcânica, a reinvenção do amor, a preferência pelo Oriente, as incursões cabalísticas, a rebelião contra o destino, mas, sobretudo, gostaria de tê-la escrito (destacando os trechos de Alquimia do Verbo – Delírios II) por ter Rimbaud criado nova estética, inovado a linguagem ao dissolver a versificação clássica e ao remagnetizar as palavras comuns, vale dizer, ao inaugurar a prosa poética sem precedentes na câmara da imaginação.    40) O livro que mais o perturba é o de um jovem que morreu obscuro aos vinte e quatro anos. O livro que você gostaria de ter escrito é de um jovem que abandonou a literatura. Como você chega à maturidade com tanta vitalidade literária? A paixão pela literatura é a responsável pela atribuída vitalidade. Sou leitor voraz, compulsivo. Acho que a leitura diária contribui de modo e forma intensos para estimular a memória. Aprende-se a escrever lendo, e lendo muito. E o tempo disponível para esse mister é vital. Sendo maior, e bem aproveitado, fermenta a criatividade literária.    41) Existe a possibilidade de Péricles Prade escrever um romance? Escrevo um romance, há dez anos, intitulado O Alquimista Sonolento. Está inacabado porque empaquei no 13.º capítulo. Brinco com os amigos, alegando ter estacionado porque a décima terceira carta do Tarô (um dos arcanos maiores) é a da Morte. Preciso remover essa existencial resistência. Pretendo escrever outro romance, acerca da visão de Hermann Kafka sobre as conturbadas 46
  • 47.
  • 48. relações com o seu genial filho escritor. E se porventura as atividades profissionais permitirem, desejo redigir, após concluir os contos projetados, duas novelas: uma atinente às desventuras do poeta Fernando Pessoa, devido à chegada, em Lisboa, do mago Aleister Crowley com sua amante predileta, e, outra, sobre um circo fantástico (nem sempre o é), a partir das memórias de um velho Leão Pensador. 42) Seus filhos Priscila e Alexandre Prade estão envolvidos com atividades artísticas, mas não a escrita propriamente dita. Existiu alguma vontade que eles continuassem o seu legado de escritor? Priscila é respeitada fotógrafa e produtora de teatro (junto com Andrea Francez). Como fotógrafa faz, em seu estúdio, ensaios com celebridades, além de fotografar filmes e peças teatrais, a pedido de vários diretores. Alexandre é músico (integra a banda acompanhante de Marisa Orth) e compositor de talento, além de premiado artista plástico e poeta. Ele tem intimidade com a escrita. Escreveu o livro Pólen de Timbres (poesia), publicou crítica musical em revistas especializadas e concluiu a obra teórica Poética da Escuta. Tenho mais três filhas: Luana, produtora de moda; Camila (palestrante) e Giovanna (professora), psicólogas, ambas com obras escritas sobre a especialidade. Todos, com devoção, cumprem o que o destino lhes reservou. Se não os pressionei para serem advogado(as), agi e ajo do mesmo modo no que toca às respectivas opções profissionais. E se o caminho for o dos escritores, aplaudirei de pé. 43) Qual o significado da escritura para você? Conseguiria se imaginar sem escrever? Não chego ao exagero de dizer, na esteira de Rilke, que morreria caso fosse proibido de escrever. Para mim, maior do que o ato de escrever, é o prazer a priori da escritura, a fase embrionária do processo criativo, espécie aproximada da cosa mentale leonardiana. Se proibido fosse, escreveria tudo na mente, 48
  • 49. compondo particularíssima biblioteca interior, guardada na memória. Sou cerebral por natureza. Se isso ocorresse, a angústia por certo seria inevitável. Tornar-me-ia doente sem cura. O fato é que não me imagino nessa negativa condição existencial, problemática ao máximo. De toda sorte, a escritura tem profundo e marcante significado espiritual (construída na mente ou transposta ao exterior), a ponto de ser imprescindível para o exercício do labor literário, tanto na poesia quanto na ficção. Pensar de outro modo é endossar a possibilidade dessa intolerável punição. A escritura é a própria vida que se move, impulsionada pela irreprimível força das palavras.   44) Por que e para que você escreve? Depois da resposta que William Faulkner deu em uma de suas entrevistas, entre as raras lembradas por Bella Josef, ele, aqui e agora, com ou sem permissão, responderá por mim à costumeira pergunta: “A finalidade de todo artista é deter o movimento, que é vida, por meios artificiais e mantê-lo fixo, de modo que, cem anos depois, quando um estranho o contemple, volte a mover-se. Já que o homem é mortal, a única imortalidade que lhe é possível é deixar atrás de si algo que seja imortal (...). Essa é a maneira que tem o artista de escrever”. É preciso dizer mais? Claro que não.   45) Gostaria de abordar algum tema, falar sobre algo ou alguma coisa que não mencionamos sobre seu trabalho ou sobre sua vida? Se tudo fosse respondido haveria, neste instante capitoso, congelamento da obra e da vida. As lacunas, necessárias, são espécies latentes de lanternas mágicas que propiciam o nascimento de novas criações no espaço vital desse vazio. O relevante é que sempre terá alguém, no futuro próximo ou distante, disposto a colmatá-las. 49
  • 50.
  • 52.
  • 53. A PERSEGUIDA A estrábica conduzida pela gôndola voraz é puro êxtase. Faz complicados sinais com a cruz de chumbo pendurada no pescoço. Treme várias vezes na Piazza San Marco quando o mendigo aponta o único dedo marcado por 7 pombas formosas. E assim vai entre canais, pedindo aos remos mais rapidez até que seja ela mesma parte da ancestral paisagem. (Tríplice Viagem ao Interior da Bota, Letras Contemporâneas, 2007) 53
  • 54. ALUSÕES A cruz na cabeça do Unicórnio resplandece Corno do Cristo – Aura do Touro a beleza de ambos governa meu espírito nos abismos O sol é medalha ou glória quando selvagem é a alegoria no céu primitivo, pasto seminal da nação de estrelas escravas Sou rinoceronte feliz circulando pelo campo. O phalos solitário na testa reproduz a tarde angular se a força do Abençoado sobre as qualidades recai como pedra unigênita 54
  • 55. A selva não se reduz à coroa de espinhos Oh monge austero de mansa rebeldia, meu juiz, guardião, filho dileto, criatura prenha pelo mistério (Em Forma de Chama – Variações sobre o Unicórnio, Quaisquer, 2005) 55
  • 56. EXPLICAÇÃO Porque na paisagem a lâmina esconde as fezes do suicida. (Além dos Símbolos, Letras Contemporâneas, 2003) 56
  • 57. LEÃO CRESCENTE Os olhos de Rimbaud, pingentes azuis sobre os sete abismos deste fardo. Temporada no Limbo, um passo à direita, outro à esquerda, quando o chicote escarlate do algoz subtrai uma geração de lâminas. Frota de lanças brasantes, navio de espasmos, motor de músculos em direção de armada lâmpada. Crinas de talhos luzentes, asas trançadas de espumas, o Céu assim é mais feroz que o leão crescente, morcego das estrelas, animal amado como o ventre. Paris, 4.7.82 (Jaula Amorosa, Letras Contemporâneas, 1995) 57
  • 58. DRAGÃOZINHO DE TRÊS CABEÇAS Peço perdão, oh Maria, por assim ter nascido. Uma cabeça bastaria para ser dragão querido. Também a José peço perdão por essa grande desgraça. Ah! se pudesse ter a graça do anjo sobre um portão. Peço perdão a Picasso que desenha sob medida qualquer cabeça perdida e faz o que eu não faço. 58
  • 59. Também a Lorca peço perdão pelo desenho tão engraçado em que o rabo desarrumado parece cauda de escorpião. Granada, 7.1.98 (Ciranda Andaluz, Letras Contemporâneas, 2003) 59
  • 60. PERDIÇÃO Perco-me na selva doce desses pelos. E se me perco, levito entre um gozo e outro. Vê-la, revê-la, muda caverna que às vezes canta. (Pantera em Movimento, Letras Contemporâneas, 2006) 60
  • 61. COM SEU ALFANJE ESCARLATE Não digo teu nome, inimiga de ossos moventes, hábil foice rubra, caçadora gigante de pés e mãos, estas generosas plantas de cor dupla. E de quem é a coroa na cabeça? É a de outro Rei decepado, aquele que não resistiu ao rodopio do dervixe. Vejo o rosto sedutor, o olhar oblíquo do esqueleto, o sorriso galopante do Quarto Cavaleiro. Hoje sou Montezuma. De azeviche e turquesa é teu crânio adornado na véspera do grande sono. 61
  • 62. Vem, espelho de luto, diagrama absoluto do eu, colmeia de opostos, negro sol mutante, relógio sem teu número sob o tapete escondido, Judas andrógino que não posso tocar. Escravo de armadilhas ainda te quero, Buda arrependido de pele metálica. Vem, máscara do tempo, sábio rio sem retornos, triunfo de Petrarca, solitário dedo apontado, pêndulo gêmeo de Saturno em Samarra, lua crescente na hora do encontro quando outro avarento assobia no escuro. (Labirintos – Variações sobre os Arcanos Maiores do Tarô, Letras Contemporâneas, 2008) 62
  • 63. PORTAS Na quinta porta os ossos lacrados pela peste Na quarta o odor do voo em desalinho Na terceira as vestes de escama falsa Na segunda o santo próspero e seus crimes Na primeira os olhos do guerreiro albino (Os Faróis Invisíveis, Massao Ohno, 1980) 63
  • 64. ESTRELA MARINHA Descer é mais simples. Mergulho no óleo, o corpo resignado detesta a superfície. A ciranda na água lembra o brinquedo. As mãos no fundo são lâminas, reservado ritmo dos que convivem com o outro lado do rio. A ciranda na água lembra o brinquedo. Subir não é simples O corpo do geômetra é estrela entre as folhas que optou. (Nos Limites do Fogo, Massao Ohno, 1979) 64
  • 65. COMÉDIA Uma comédia, esta em que a faca penetra a seda e faz na terra uma colheita de segredos. Uma comédia, esta em que a seda cobre de verde o ritmo das montanhas e a umidade cansada das charnecas. Uma comédia, esta em que o campo é espaço onde crescem esperanças e capins de qualquer estação. Uma comédia, esta em que os segredos ficam pendurados no esqueleto do tempo à espera de novo conflito brotando. O que é drama senão a melodia da faca, a melodia da seda, a melodia das folhas e todos os segredos com cheiro de antigas vassouras? - Sei, drama é desconhecer a profundidade do corte, não saber o ponto frágil e audacioso da seda, ter certeza de que na selva crescem armadilhas e que a todo momento é mais forte o sal do mistério nesta comédia que é a vida em moldura de febre e dor. (Este Interior de Serpentes Alegres, Roteiro, 1963) 65
  • 66. DECLARAÇÃO Sou a outra mancha na imagem, o avesso da fera, o espelho partido, o princípio e o fim. Sou o som da memória aquela que provoca os animais no paraíso sob a faca giratória. (Sob a Faca Giratória, Letras Contemporâneas, 2010) 66
  • 67.
  • 68. PRIMEIRO PECADO O que mais detesto é germinar no campo antigo estas pupilas, hoje mortas de ver as espigas apenas como floração sem mistérios. Sou o pesado poeta urdido pela infância, este caminho de sal onde fui o afogado e a criança de entusiasmados segredos. De todas as meninas, a que não conheceu moinhos de vento, nem pirâmides sagradas, deixou em mim um sabor de umidade nos rios. Não sei, mas os fantasmas são formas idôneas daquilo que fui, colecionador de cigarros, colegial de repetidas piadas ou mesmo o conquistador de madrugadas impossíveis. Cresço em meu primeiro pecado, o mais autêntico, o mais puro, tão esquecido nestes dias de cansada salvação. (Sereia e Castiçal, Roteiro, 1964) 68
  • 69. TEORIA DO CRIME O pássaro assassino é. Mata a sangue frio o próprio sonho O anjo se vinga de outro anjo – a criança voadora – um pássaro cruel e protetor (Pequeno Tratado Poético das Asas, Letras Contemporâneas, 1999) 69
  • 70. SEI QUE ESTOU SÓ Sei que estou só, não há luas nem serenatas e os olhos da tarde estão secos. Vejo somente meus dedos desenhando aves malditas na água. Rasgo as folhas da árvore mística e sonolenta e fabrico o navio infantil mais veloz do mundo. Sigo sua trajetória rumo ao desconhecido. Também sou navio neste momento de espumas quentes. Gosto dele porque tem uma lagartixa tranquila como passageira sem segredos. Gosto porque é somente navio sem ilusões e esperanças, soberano à margem do sol que se aproxima da morte. Cresce o crepúsculo e não diviso mais a figura tragicômica de meu herói verde, eterno navio. Minha casa é longa e se assemelha a um quarto cor de bronze. Moro com alguém que possui olhos de gato e ama a noite. Seus cabelos de feiticeira percorrem o universo em chagas de seu corpo de subterrâneos e cansaços. Odeio seus mascotes: escorpião de porcelana e chocalho de zinco. Minha casa é longa e se assemelha a um quarto cor de bronze. Preciso voltar e meus pés murchos procuram o caminho. Conhecem todos os arbustos e todas as passagens. (A Lâmina, Literatura Contemporânea, 1963) 70
  • 71. AVENTAL ANDALUZ O corpo do pátio reduz as pálpebras Como fruta cigana sobre o mármore sadio Não é simples a imagem do que digo e agora: carne viva da memória A mão solteira é gozosa Flor do prazer sorvente Nem tudo é segredo sob o avental andaluz (Guardião dos Sete Sons, Sanfona, 1987) 71
  • 72.
  • 73. PROSA
  • 74.
  • 75. CÁRCERE MARINHO Ninguém entendeu a razão do anúncio. Por que somente marinheiros anões seriam contratados, se o navio era enorme? Mil e quinhentos se apresentarem no dia marcado, mas, como apenas trinta e cinco tinham comprovada experiência, foram eles os contemplados para, a partir de 18 de agosto de 1917, embarcar rumo a um país desconhecido. O comandante, corcunda, de traços mouros, tem cabelos fulvos. É gago e anda com dificuldade. Fuma cachimbo, usa seboso rabo de cavalo, e na testa franzida exibe, tatuada, a imagem de Santa Catarina de Alexandria. Come feito leões famintos, à noite, após colocar os anões, um por um, dentro do caixão de madeira feito sob medida, com dois furos na parte de cima, e quatro nos lados, para facilitar a respiração orquestrada. Os novos marinheiros, no começo da viagem, estranharam esse comportamento. Como ganhavam muito bem, fora dos padrões da época, não se importavam com a mania, se é que se pode considerar o fato de encaixotá-los com tanta perfeição, técnica e solenidade. Com o tempo (trinta anos fluíram), alguns anões manifestaram intranquilidade. Perceberam que, apesar de ricos, a vida célere passava, limitando-se a maioria a puxar cordas e a enfunar velas até parar de cansaço. Noves deles (os outros, convém registrar, haviam morrido) procuraram o capitão. Contrafeito, mostrou os contratos assinados e de prazo indeterminado. Com pose aristocrática, arremessou os recibos sobre o banco, localizado no convés, prova de que pagava 75
  • 76. em dia os valores dos salários combinados. Acrescentou, com empostada voz militar, que a alegria de todos era por ele também compartilhada. - Alegria?, disseram ao mesmo tempo, e com justificada indignação. - Sim, a alegria de pertencerem a uma linhagem de animais marinhos que optaram pela castidade, até o dia da morte, no fundo do mar. (Correspondências, Movimento, 2009) 76
  • 77.
  • 78. O TIGRE 1 O tigre dança sobre enorme e quente chapa de ferro. Os gritos explodem na floresta. Após, com as pernas queimadas, o corpo do animal tomba ao chão. Recolhido por monstros verdes é levado para uma jaula luminosa, onde, prisioneiro, vê com surpresa sete lâminas sagradas curtirem o belo couro de manchas selvagens. 2 O tigre enfia o pescoço na boca da serpente de ouro. Ouve- se à distância o veneno escorrer pelas veias, mas o animal, afeito a torturas, resiste com resignação. As mordidas continuam, os finos dentes quase rompendo a jugular. Sem se preocupar, com tranquilidade sopra dentro da serpente que, aos poucos, converte-se em balão. 3 O tigre salta ao fundo do poço, num mergulho que ultrapassa a cinco minutos, procurando em vão encontrar a arca de fogo furtada do altar do Rei Anthenor. Repete o mergulho diversas vezes, espetado, sempre, por uma afiada espada de prata que sai da bainha conduzida pelo escravo branco. Aberta a arca, ao acaso, a água corrompe o símbolo. (Alçapão para Gigantes, Letras Contemporâneas, 1999) 78
  • 79. NO HIPÓDROMO Com o demônio nos olhos, a magra mulher lança-me um olhar guerreiro. Começo a percorrer as arquibancadas, impressionado, irritando-me com o vendedor de agulhas que insistia na leitura de um poema imoral. Na corrida, imprimindo incrível velocidade, esbarro numa velha senhora que, perto do poço localizado à entrada do túnel, com fino chicote bate nas costas de um belo animal. O sangue colore os azulejos e eu me sinto feliz. Na décima quinta volta, o cavalo de crinas verdes levanta voo, planando alegre e descrevendo nos céus complicada lição de alquimia. Um senhor baixo, que se encontra sentado, retirou de uma pasta negra vincado papiro, anotando apressadamente as fórmulas. Levanta-se e antes de se perder na multidão, diz com estranha simplicidade: - Não autorizei a exibição. Hoje haverá no meu exército de cavalos. (Os Milagres do Cão Jerônimo, Letras Contemporâneas, 1999) 79
  • 80. RIO D´ORO [1441] Não foi Henrique, o navegador, príncipe de Portugal, quem me autorizou o tráfico de escravas. A verdade é que sempre tive fascínio pela escravidão. No período em que Rio D´Oro ainda era colônia espanhola, uma negra retinta, chamada Mãe Joana, foi engravidada por um espírito que não era santo. Um dia, surpreendendo até os mais íntimos, vomitou fios de ouro numa bacia, enrolando-os, para, depois, formar novelo de brilhante consistência. Tomei conhecimento, mais tarde, de que o próprio Henrique, o navegador, príncipe de Portugal, manejava ágil maquininha no útero dela, como se fosse fiandeiro servil, para espantar vício típico da terceira estação do ano. (Ao Som do Realejo – Narrativas Profanas, Nauemblu, 2008) 80
  • 81. EM FORMA DE GUITARRA E ANTES DO SALTO DO LOBO CULTO Num lugarejo ainda inóspito, denominado Campeche, com o arco-íris preso entre os dedos do pé enluvado, John Lennon, no trono em forma de guitarra, distribuía esmeraldas polidas e outras pedras preciosas às gangues de adolescentes imantados pelo esplendor do número 333, nascido no meio de relâmpagos dos céus do aviador Saint-Exupéry. Ele assim continuou, sem cerimônia, encostado ao mar lembrando vidro estilhaçado, envolto pelas lâmpadas de fogo brando, encaixadas com perfeição nas nucas de seres indecisos que passeavam, sem receio, nas franjas das sombras vadias emanadas do pôr do sol. Um leão castrado aproximou-se do cadafalso, onde o músico se encontrava, e rugiu, com eficiência, diante do plenário de vozes excitadas pelo formidável odor da fêmea de juba grisalha. Calado, noutra ponta do espaço a ele reservado, o graúdo touro manco se inclinou, pondo as patas traseiras sobre o labirinto construído com fios invisíveis por um odiado enxadrista de nobre estirpe helênica. Depois, aguardando o dono, fabricante de torresmos crocantes na Dinamarca, um cão persa com cara de homem malvado, pairando sobre a árvore secular, esboçou formidável latido com dentes esmaltados à luz da manhã de maio. Atrás dele, uma águia revoltada furou os próprios olhos com dois ouriços caçados, recompondo-os à tarde sobre 8 bandejas de ferro fundido. 81
  • 82. Vendo tudo isso com certa melancolia, o futuro assassinado retirou o arco-íris do pé, e tocou, sem parar, na elétrica madrugada, que, aos soluços, resistia à mudança do próximo dia. A guitarra ao longe ainda era ouvida, quando, dentro do livro virgem, sentados sobre as ilustrações de Lewis Carroll, um lobo esquizofrênico de orelhas vazadas saltou, proclamando-se pequeno príncipe dos mundos, após rasgar, com as suas garras atrofiadas, as páginas em branco e lacradas com uma cruz vermelha por desconhecida entidade filatélica. Para desorientá-lo, um perfumado historiador de Jazz, servo paralítico em outra encarnação, sem sucesso ofereceu, como testamento e prova de fidelidade, o pistom que um sábio havia adquirido em Constantinopla, na verdade herança de divorciados esposos afegãos. De nada adiantou a pretendida armadilha, pois o artista, jogando com força e para trás o instrumento musical, preferiu, em vez de tocar, ouvir o tropel que vinha em sua direção. (Relatos de um Corvo Sedutor, Letras Contemporâneas, 2008) 82
  • 84.
  • 85. Terno sobre o simbolismo bauhaus de Péricles Prade Ronald Augusto I A divisa carrolliana segundo a qual, no que toca à poesia, “a questão é fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes”, preside a gestalt esotérica, ou o hermetismo compositivo de Péricles Prade. E em favor do que acabo de afirmar, servem de exemplo tanto os livros anteriores (não importando, inclusive, o gênero) deste polígrafo de imaginário radical, como as obras que agora serão objeto do breve comentário, a saber, Sob a Faca Giratória (poesia), Relatos de um Corvo Sedutor (prosa) e, finalmente, Casa de Máscaras (poesia). Sem perder de vista a relação por isomorfia que a abordagem crítica deve manter com a obra poética analisada — isto é, a flexão metalinguística se converte num espelhamento expandido do seu objeto —, começo minha interpretação figural pelo compósito em oximoro presente no título deste texto: o simbolismo bauhaus de Prade. Proponho essa tensão antitética entre simbolismo (precipitações sugestivas, ambiguidades, incomunicabilidades etc.) e bauhaus (pelo que o movimento contém de apetite construtivo, rigor liminar, estilemas precursores etc.), porque no título mesmo do conjunto de poemas de Sob a Faca Giratória vislumbro essa conjunção-disjunção virtuosa e paradigmática que me permite detectar nas poéticas vertiginosas e transversas de Péricles Prade o enlace erotizado desse giro em abismo, o discurso criador de mundos alternativos, com a faca que delimita as margens do constructo verbal nas mãos de uma espécie de alucinado designer lingual. 85
  • 86. Então, por um momento, e pela via do contraste, submeto Sob a Faca Giratória a um jogo de plano e contraplano com o hermetismo lato sensu da poesia de Orides Fontela (1940-1998). Para ser mais preciso, antes opaca do que hermética, a linguagem de Orides também se impõe desafiadora, metálica. Seus poemas compõem um tipo de tratactus analógico acerca dos fenômenos, e estes acabam por ser representados como sombras luminosas que se descolam dos nomes que lhes designam. A poeta nos oferece essa sensação de hermetismo pela elisão e pela rarefação dos cortes solares que opera; o idioma estético resultante é esturricado e masculino em suas sugestões. De outra parte, o hermetismo de Péricles Prade se projeta em fulgurações lunares; o texto revém sempre proliferante e fêmeo. Seu hermetismo é voluptuoso e, portanto, não faz o elogio à esterilidade de consistência mallarmaica. Metonímia ou duplo microestrutural do conjunto da produção de Prade (pois o escritor reitera valências em seu nomadismo), Sob a Faca Giratória se remorde em torções e texturas à maneira de Gaudí. Subjaz ao apetite de linguagem do poeta a ideia de que cada poema engendra o seu próprio dicionário, bem como a sua própria gramática, que tem mais de anômala do que daquela “verdadeira ars obligatoria” referida e saudada pelos escolásticos. Desse modo, em Sob a Faca Giratória gozamos uma poesia a contrapelo do “automatismo psíquico”, um processo de fatura verbal na véspera de conceder crédito ao signatum (o “artista na véspera do desenho”, corajosamente ambíguo frente ao aspecto inteligível do signo verbal); o sentido como um vir-a- ser; uma hesitação. Wittgenstein, a propósito, metaforiza assim a impossibilidade de uma “última” explicação a respeito do que quer que seja: “É o mesmo que dizer: nesta rua não existe uma última casa; pode-se sempre construir uma nova.” Sob a Faca Giratória: o percurso inacabado, e, mesmo, a contragosto, do subjetivo em direção à objetividade plana do senso comum. E esta, por sua vez, perturbada ou tornada irrelevante no deparar-se com unicórnios, serpentes, livros mudos, dorsos inquietos, enfim, diante dos sistemas imaginários plasmados por Péricles, cujo escopo pulsional captura suas forças, inapelavelmente, no interior da linguagem, entendida 86