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                            foto capa – escultura de Vigeland Open Air Museum
                                   zander catta preta – arte capa e miolo
                                          revisão – Gabriela Graça
Agradecimentos


À       Cata r ina     Botel ho   Cat ta   Preta     que        se      reve-


la um anjo que me renova a esperança no ser humano. Se


não por mérito (a inda), então pela presença e possibil idade.




Ag radeço também à Ma r iana Blanc pela rev isão inicia l e pelo


apoio     constante,    Luciana A r raes   que     conseg uiu        transfor-


ma r bits e by tes em átomos, ca rinho em rea l ização, Gabr iela


Graça que a rduamente rev isou os inúmeros erros desse apren-


diz aqui, Lia A mâncio que me convenceu de que eu sou capaz


de faz er ma is que caça r megatérios e, f ina lmente, à comuni-


dade de amigos, leitores e “moradores” do sítio de comunidade


Mu ltiply (www.multiply.com) que, com críticas, elogios ou sim-


ples presença, estimu la ram e impu lsiona ram essa modesta obra.
Sumário
Filosóficas
   Pale blue eyes ...........................................................................................15
   Hoje tive um sonho ruim ...................................................................... 19
   O país dos covardes ............................................................................... 21
   Somos legião ......................................................................................... 23

Infância
   E assim se passaram sete anos ...............................................................27
   Jão com medo ........................................................................................ 33
   A menina que pulava os anos ................................................................ 35
   A moça dos dentes ................................................................................ 37
   O mistério do copo vazio ......................................................................39

Tipos solares
   Sunday morning ..................................................................................... 45
   Uma crônica de Marte e Luna ............................................................. 49
   Wouldn’t it be nice ................................................................................... 53
   The ghost of you .......................................................................................59
   I’m waiting for the day ............................................................................65
   Dois velhos bêbados .............................................................................. 71

Trinca de nerds
   O sexo é o alento ...................................................................................79
   As funções da sarjeta ............................................................................. 85
   Dos problemas corporativos e das putas................................................ 91
   Como ser inconspícuo em três lições ....................................................97

Urbanóides
   Sobreviventes da maratona .................................................................. 105
   De prêmios Nobel e sonhos em azul ...................................................109
   Historinha ............................................................................................ 113
   Toes across the floor ................................................................................. 115
   The sky is a landfill .................................................................................119
   Skin and bones .......................................................................................123
   Rua Siqueira Campos, 143 ....................................................................125
   Uísque e chope .................................................................................... 129
   Ne me quite pas ......................................................................................133
The murder mystery ............................................................................... 139
Three imaginary boys ............................................................................. 143
Horizonte roubado .............................................................................. 147
That´s life ............................................................................................... 151
You little fool .......................................................................................... 155
Vernissage ............................................................................................161
Sweet little sixteen..................................................................................165
Linhas tortas ........................................................................................171
“(...)Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?(...)“

Poema em linha Reta - Fernando Pessoa
12
             foto: arte sobre foto da Máscara de Agamenon (cerca séc.XVI a.C.)




urbanóides
Filosóficas




zander catta preta   13
14   urbanóides
Pale blue eyes
– pós Velvet Underground




Diziam que ele era o rapaz perfeito: inteligente, hábil, bonito, educa-
do. Era obediente e levado, sabia instintivamente quando podia for-
çar uma situação ou quando poderia deixar o destino cuidar da si-
tuação. Era excelente na escola, notas à perfeição. Achava que tinha
o mundo em suas mãos.

De fato tinha.

Um dia, encontrou um par de olhos azuis. Eram os primeiros olhos
azuis que via. Pele branca, cabelo negro e olhos como bolas de gude.
Encantou-se por eles e decidiu que queria acordar ao seu lado o resto
de sua vida. Que queria ter filhos com esses olhos. Que envelheceriam
juntos e ficariam vendo o tempo passar quando se aposentassem. Com-
prariam um café em Paris. No primeiro piso o café, no segundo livros
e doces. E isso era bom e certo.

Mas ele sabia que estava escrito que não ficariam juntos. Ela lhe passa-
ria ao largo da vida. Nunca mais se lembraria do seu nome ou que sen-
tava a uma carteira na segunda série. Até porque ele adotaria um outro
nome para si quando chegasse à maioridade. Um nome mais curto que
o da chamada, um apelido mais forte. Por sua vez, ela mal se lembra-
ria do franzino de franjas que lembrava uma menina. E ele ainda usa-



zander catta preta                                                    15
va um nome curto. Não forte, nem feroz. Apenas infantil, um apeli-
do de criança.

E ele tinha lido o livro de sua própria vida várias vezes.

Numa noite acordou, vagou pela sala vazia e sentou-se no sofá. Acen-
deu um abajur e começou a ler um gibi de terror qualquer. Teve um
pouco de medo de andar descalço de volta para a cama: “A Mão vai
me pegar!” diria duas semanas mais tarde para a mãe que lhe proibiria
café, açúcar e gibis de terror.

“Não compro mais gibi de terror para você. Super-heróis pode! Môni-
ca também!” “Mônica é de menina, mãe!” “E aquele de dinossauros?”
“Esse é legal! Quero o do Tio Patinhas também!” “Tá bem!”

Mas esse diálogo se daria apenas duas semanas depois de sua primeira
virada. Leu o gibi de cabo a rabo duas vezes e só conseguiu pregar os
olhos quando o sol raiava.

Antes de amanhecer decidiu.

“Não quero ganhar a vida. Vou ser ganho por ela.”

Sempre sabia o que os outros iriam dizer, advinhava o que lhes encan-
taria mais, sabia que aos onze trocaria de escola, aos dezessete entraria
numa faculdade, aos vinte e cinco terminaria o seu mestrado, aos trin-
ta dominaria o mundo, aos noventa morreria odiado, sem filhos, sem
legado mas imprimiria a sua marca indelével na história. Cem anos de-
pois de sua morte, a humanidade encolheria para um sexto mas teria sua
expectativa de vida aumentada em quatro vezes. Teríamos Lua e Marte



16                                                              urbanóides
colonizados, andaríamos em carros voadores e trabalharíamos três horas
por dia apertando botões. Mas antes passaríamos por sua ditadura que
expurgaria as fronteiras e as liberdades. Seria um senhor terrível e po-
deroso nos sessenta anos de seu reinado mundial.

“Não quero ser rei. Quero ser um pai.” Falou para a sombra que o ze-
lava do umbral da porta.

Ela fechou os livros que carregava ao mesmo tempo em que ele se calava.

“Teu sangue herdará o mundo de uma forma que poucos jamais con-
seguiram. Serás um deus entre os deuses, uma lenda entre as lendas. O
maior dos homens.” Disse a sombra.

Decidiu que não queria o mundo mesmo. Os olhos azuis valiam mais.

Foi para a escola, olhando com cuidado para os cantos escuros do ca-
minho para ver se A Mão não aparecia para pegar a sua perna.

“Você não vai comer mais açúcar! Que é isso! Menino dessa idade vi-
rando a noite!”

Não deu bola para a vó que o levava. Parou na banca, comprou figuri-
nhas. Dividiu em dois pacotes. Uma para as repetidas e a outra com as
que não tinha colado no álbum, entregou para a vó.

“Tó!”

Esperaram o portão abrir e entrou para as aulas. Sabia o que a profes-
sora iria dizer antes mesmo de vê-la. Encontrou o Capitão Asa cantan-



zander catta preta                                                    17
do Sideral e guardou na memória a letra da música. Subiu para a sala e
sentou-se atrás dos olhos azuis que nem por relance o fitavam.

Ao chegar em casa recebeu a notícia que iriam se mudar do Méier no
meio do ano. Ele teria de sair da escola e iriam para Copacabana.

Num átimo o seu mundo caiu. Tudo aquilo que tinha lido no livro de
sua vida, todos os planos futuros, a certeza das coisas que ocorreriam,
não serviria mais de nada e agora via, ainda que desmanchando no ar,
os restos dos fios que ligavam suas mãos e pés ao nada. Ainda era uma
marionete do destino, mas não sabia mais qual o seu papel na peça.

Chorou um pouquinho.

“Não quero ir para a outra escola.” “Mas lá tem praia, dá para catar ta-
tuí e você gosta tanto.” “Quero ficar na vila com as amendoeiras e a
pipa e o jogo de bolinhas de gude.” “A escola de lá é melhor.” “Eu que-
ro essa aqui!” “Não tem jeito, filhinho.”

Chorou mais um bocado.

As férias o fizeram esquecer as aulas e mudou-se no meio de julho. Ao
entrar na nova escola não sabia o que a professora lhe diria mas encon-
trou um par de olhos verdes sentados na segunda fila.

Sorriu por fim.




18                                                              urbanóides
Hoje tive um sonho ruim




Achei que não via mais caminhos à minha frente, que não havia mais
motivos de caminhar. Queria me entregar ao tempo, envelher cem anos
por hora, me tornar pó antes do meu tempo.

Ser passado, nem presente nem futuro.

Queria que todos me esquecessem, os bancos, os cobradores, a família,
os amigos, os inimigos… Queria me tornar uma coluna, dórica ou jôni-
ca, vertebral ou não… apenas servir de decoração à paisagem da vida.

E aí você me veio.

Aliás, nessas horas de tristeza, de verdades absolutas, quando o uni-
verso resolve mostrar ao homem o quão pequeno ele é, nessas horas em
que o desespero se senta na cadeira atrás de você, quando as cores per-
dem intensidade e o gris parece atraente, você vem, sem vir, aparece,
sem se mostrar e abre as janelas da minha manhã mal dormida.

Quase como se cantasse um blues, eu resolvo escrever por ti, apenas por
ti. Pequena, dos cabelos descacheados. Você é a minha pequena musa,
é o meu rumo de cada manhã, as outras pessoas da minha vida são só
um complemento da minha rotina. E tenho a certeza que acordarei



zander catta preta                                                   19
amanhã, ainda triste, pois a maldade dos adultos ainda dói o meu co-
ração de criança, mas certo que viverei o dia.

Ainda sou um garoto aprendendo a usar os óculos…

Queria ter aprendido nesses trinta e poucos anos a ser um homem me-
lhor e maior. Talvez você me ensine isso.




20                                                          urbanóides
O país dos covardes




Não abro mais a minha porta sem olhar pela câmera, falar pelo interfo-
ne e pedir RG e CPF. Não olho as pessoas na minha rua, no meu pré-
dio, sequer encaro meu filho adolescente. Não compro uma arma por-
que ela pode se voltar contra mim. Não ligo para a polícia porque pos-
so “me sujar com o movimento”. Fico amigo dos bandidos para que eles
não me batam muito.

Não voto. Não dou esmola. Não ajudo. Não ligo, nem retorno as liga-
ções. Não namoro mais. Não trepo. Não saio. Não peço pizza, DVDs,
água ou comida. Sou um escravo do meu medo. E pior, não estou só.

Que tipo de humano me torno quando opto por morar perto dos meus
iguais, mas distante do meu próximo?

Que tipo de vida eu pretendo ter, que tipo de cidade eu quero para mim?

Isto era para ser um texto curto sobre a revolta que eu sinto, de como
nos transformamos em números, deixamos de ser pessoas para sermos
coisificados, mas hoje, já não sei se me importo mais.

Todas as vezes que tentei fazer algo diferente e achava que era digno e
justo, ganhei a alcunha de otário. Me sentia um estranho, alienígena,



zander catta preta                                                    21
um estrangeiro no meu próprio país. Se defendo o que é justo, me cha-
mam de sonhador, se brigo pelo que é certo, me chamam de baguncei-
ro, se cobro de quem tem de tomar atitudes, me mandam calar. Eis a
expressão de quem se instala no poder, no poder de fazer calar.

Mas ainda tenho um sonho: não sou o único aqui que acha que esse
chão é para mim e meus filhos e os filhos destes; que acha que a me-
lhor forma de viver é em cooperação com os outros, sem me aprovei-
tar das fraquezas alheias; que existem outros como eu e que esses que
me mandam calar são apenas invasores, eles alienígenas de um passa-
do que deveria já ter morrido.

Mas creio que a minha nação é de covardes.

Covardes porque não berram, como berram esses fanfarrões; covardes
porque não lutam, não matam, como fazem esses assassinos, bárbaros;
covardes porque não cobram, com medo.

Creio que sou mais um desses.

Nas lendas que aprendi a gostar e escutava desde pequeno, sempre havia
alguém que vestia as roupas de guerra de seu povo e lutava pelos choros
mudos, pelos gritos calados, pelas liberdades básicas negadas. E a esse
chamávamos de herói. Mas somos adultos, e sabemos que heróis não
existem, a Terra dos Bravos é uma bazófia. Que faremos então? Não sou
herói, nem o seu bardo, nem vou vestir as armas de quem me oprime.

Só estou cansado de ter medo.




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Somos legião




Eu sou de uma força de resistênca de poucos (talvez de apenas um). Sou
de uma cepa que se recusa a admitir que somos apenas bundas, risos,
pratos rasos, suor, números e dívidas em bancos ou cartões de crédito.

Acho que sou mais que minha refeição diária, que minha luta eter-
na em sobreviver e garantir que minha linhagem permaneça, mais que
um propagador de um gene.

Penso que sou maior que os meus atos, menor que minhas consequên-
cias, tão grande quanto o meu querer.

Mas o cansaço me drena o querer, sobreviver é mais difícil que nos meus
sonhos, minha linhagem pode me trair, negando minhas essências, e os
números que resumem minha alma, cada vez mais se avermelham.

Então, como cidadão escarlate, quero me divorciar do casamento com
o estado. Pois este não me quer, e como amante não compreendido,
quero achar um novo parceiro.

Quero querer mais, me livrar do desejo do sono e do descanso da mente.




zander catta preta                                                   23
24
             ilustração: Catarina Catta Preta




urbanóides
Infância




zander catta preta   25
26   urbanóides
E assim se passaram sete anos




“Sobe que tem recado para você!”

Subi as escadas correndo do subsolo onde tomava um café expresso, no
esquema 0800 da Chefia, no restaurante japonês até a sobreloja onde
trabalhava no Bureau. Estava na minha hora de almoço. Evento por si
só bem raro dada a natureza caótica e feroz do meu antigo emprego.

“Tua mulher ligou, disse que está com quatro centímetros de dilatação e
a médica já a encaminhou para o hospital.” “Ela está no consultório? Já
pegou um táxi? O que mais ela disse?” “Ainda está no consultório, mas
disse para você ficar tranqüilo, ela está bem e indo para a maternidade.”

Desci pro subsolo, avisei ao chefe que chegara a hora da Mãe pocar a
Catarina. Parti, correndo, para a Avenida Rio Branco e peguei o pri-
meiro táxi que passava. Besteira minha. Melhor ter pego o metrô. Eu
saltaria a quatro quadras do consultório e a doze do hospital.

Toca o celular (emprestado, é claro! Celular era coisa cara. Aliás, ainda é!).

“Cheguei no hospital, vou para o quarto…” Interrompo-a. “Me espe-
re aí! Não ouse subir sem mim.” “Não, mané! Passa em casa e pega as
coisas da Catarina. Trouxe algumas roupas tuas já esperando a inter-



zander catta preta                                                               27
nação, mas deixei as dela lá.” “Ok. Péra! Ok não! Vou para aí. O negó-
cio deve demorar um bocado, então peço à minha mãe para pegar as
bolsas. Além disso, é ela quem vai ver o parto mesmo. Você sabe que
eu desmaio nessas horas…” “É. Eu sei. Então vem prá cá que a Médi-
ca está ‘dando entrada’ aqui.” “Ok, ok e ok.”

O carro se move com a letargia típica de uma quarta-feira, meio-dia,
no centro do Rio de Janeiro. Parece que nunca vai sair da… Opa! ga-
nhamos o Aterro do Flamengo e partimos para Botafogo. Puta que
pariu! Botafogo engarrafa sempre. Que merda! Não vai dar tempo! que
bosta… Opa! Chegamos na Mena Barreto! Agora é só um pulo.

Pago. Saio. Desço. Encontro.

“OI!!! VOCÊ TÁ LEGAL?” “Calma. Tô bem sim.” “E as contra-
ções?” “Eu achava que eram gases. Tá bem fraquinho mesmo.” Daí, foi
internação. Banho. Limpeza interna. Eca! Minha mãe chega. Combi-
namos todos no quarto que a Mãe iria ver o parto, que eu não iria. Que
estava certo e tal. Chega a enfermeira: “Está pronta, Mãe?” Referiu-
se à que iria parir, não à que iria acompanhar. “Tô sim. Vamos.” “Está
pronto, Pai? Você tem de vestir a roupa.”

Pois é. Assim como as mulheres têm um firmware instalado que as fa-
zem saber tudo o que se relaciona a bebês no momento que eles nas-
cem, algo em mim brotou. Algo inédito, coisa que nunca havia sentido
antes. Acho que foi coragem. Ou burrice, dá na mesma.

“Tô sim. Vamos.”




28                                                            urbanóides
Mãe e a Mãe Futura se olham. Não senti pingo de confian-
ça vindo desses olhares. Com a coragem (ou privação temporá-
ria dos sentidos) que recém recebera, parti para A Roupa Verde
e A Máscara. Roupa Verde! Máscara! YEAH!

Daí rola uma espera. Médica mede dilatação. Espera mais um pouco.
Mede de novo. Um “é, acho que já dá” seguido de um “dá a injeção an-
tes”. Injeção? É, injeção. Ok, ok, ok, ok. Não vou desmaiar.

Não era injeção de verdade. Era uma agulhinha de nada, coisinha à toa.

“É só isso?” “Não. Essa é só para preparar para a peridural.” “Ah! bom.”

Quando o Anestesista saca o trabuco… Péra lá! Você não leu direito. Era
um TRABUCO! Se fosse uma pica, seria o Long Dong Silver. Quando
o Anestesista saca o trabuco, eu começo a ver o mundo girar. O Pediatra,
que sabiamente se posicionara a meu lado, me dá um “abraço” de apoio.
E eu NÃO desabo! U-hú! Deixa eu sair daqui correndo!

“Sabe que a maioria dos pais sempre desmaia quando a mulher toma a
peridural?” “Verdade?” “Não. Mas quis apenas te consolar um pouco.”
“Mesmo que um pai desmaie, não dá muita dor de cabeça aos médicos,
né?” “Nem. Só teve uma vez que um cara caiu na mesa de instrumen-
tos e se cortou todo. Mas foi só uma vez.”

Nota mental: ficar LONGE da mesa de instrumentos. Como assim ins-
trumentos. Burro! Vão cortar a Mãe toda e depois costurar de volta. Eca!

Bom, Mãe não pode mais ficar de pé mas não tem dilatação suficiente.
Médica me expulsa do quarto de espera e fecha a porta.



zander catta preta                                                    29
“Acho que estão amarrando um pedaço de ferro no pé da cama e mijan-
do na porta enquanto acendem umas velas no corpo.” “Hein?” “Nada,
deixa. Tô uma pilha.” “Você fuma?” “Não.” “Pena.”

Toda a equipe médica fumava. E estavam vendo novela. E um deles
dormia. Filhos da puta. Sem consideração. Sem empatia. Ainda me
davam tapinhas nas costas. Parecia que eu era um estagiário ou uma
forma ainda mais baixa de vida.

Pronto. Tava na hora. Mesa de operações, ou de parto, ou de eutaná-
sia. Não sei. Tudo igual nessa hora. A mãe começa a fazer força. Muita
força. E berra. Mais que o normal. Menos que a vez que eu a deixei es-
perando umas seis horas em casa enquanto fui tomar um pileque com
o pessoal do trabalho. Menos ainda que quando eu gastei uns 500 dóla-
res em figurinhas de Magic, the Gathering, coleção The Dark, esgotada,
uma caixa fechada. Mas ainda berrava muito. O médico faz um “rolo
de massa” com o braço esquerdo e pressiona dos peitos para as pernas,
como se espremesse a criança para fora. Mãe berra ainda mais e a ca-
beça começa a aparecer. Já era Catarina.

Dez minutos (se tudo isso) depois, chega a baixinha por inteiro. Pe-
quena, imunda. Nojenta mesmo. Mas linda. Nem enrugada estava,
mas ainda parecia um joelho. O joelho mais amado da face da Terra.
Me a colocam no colo. Ela nem chora (já haviam limpado-a com um
aspirador de melecas placentais). Opa. O que acontece atrás de mim?
Outro parto? ah! é a placenta. Puta que pariu! É outro parto… Bom…
ao menos o pessoal pode puxar com menos delicadeza.

“Pai, deixa eu ver… Você contou os dedos? ela tem dez dedos?” “Claro
pô! Você acha que eu sou o Homer Simpson? (hoje, mais careca, gor-



30                                                            urbanóides
do, burro e atolado, eu penso se isso não foi uma profecia) Tá com dez
dedos sim! Olha só.. é linda… e nem é um joelho.”

Levamos a baixinha para a estufa, ou caixão da Branca de Neve, como
eu prefiro contar à ela. Eu e o Pediatra que faz o teste do pezinho.

“Você tem filhos?” “Quatro.” “E você viu o parto de todos eles?” “Ló-
gico, né? Economizei uma grana… hahaha” “Mas não enjoou no quar-
to?” “Não. Chorei em todos eles.”

Da estufa, os avós, do outro lado do vidro davam adeus.

Fomos pro quarto. Mãe dormiu. Eu acho que chorei um pouco. Mas guar-
dei a lembrança desse dia, bem calada no peito. Abro só um pouquinho,
quando chega essa data. Ou quando acho que nunca fiz nada direito.

Catarina, não sei se você um dia lerá isso, mas agora faz sete anos que
eu me senti uma pessoa melhor, maior e mais humana. Você agora tem
os dentes moles, caindo aos poucos, e outros tomarão o lugar deles (es-
pero!). Nesse quarto de Saturno, você saiu da infância-bebê e vai co-
meçar, cada vez mais rápido, a virar gente grande. Vai ser uma pré-
adolescente, uma adolescente (que invenções bestas da nossa socieda-
de), uma jovem adulta e uma mulher. Mas não deixará nunca de ser o
bebê que eu coloquei no colo, nos primeiros momentos de sua vida.

E eu te amo.

Beijos do pai (que não desmaiou!!)




zander catta preta                                                   31
32   urbanóides
Jão com medo




Jão tinha muitos medos, eram tantos que dava para fazer uma coleção
deles. Uns grandes, outros pequenos, uns escuros, outros claros, uns
azuis, outros cinza. Tinha tantos que tinha medo de ter medo e assim
vivia escondido dentro dele mesmo, sem vontade de sair de seu peque-
no mundo medroso.

Um dia, um medo pequeno, pequenino mesmo, conseguiu passar por
entre os poros da casca de ovo de Jão e ficou à espreita. Quando Jão
passou em frente, ele pulou e disse: “Bu!”

Jão, é claro, se apavorou e ficou pasmo, apalermado mesmo, defrontado
com um medinho à toa desses. “Como pode isso? Eu sou maior e mais
forte e mais esperto e mais bonito. Não é para ter tanto medo assim!”

Decidido, Jão resolveu deixar a cara de bobo apavorado em casa e saiu
com uma coragem nova. Quer dizer, uma coragem meio usada que en-
contrara numa gaveta do quarto. Mas servia.

Mal botou o pé fora da sua caixa de fósforos, se assustou novamente. O
medinho chamou uma turma grande, uns cinco ou seis, e estava lá es-
perando uma bola chegar. Sem bola, não tem jogo.




zander catta preta                                                  33
Jão ficou atônito. De pé, de frente, encarando meia dúzia de pequenos
medos, mais ou menos da altura de Jão. Tão rotos e encardidos e espe-
rando uma bola qualquer que nunca chegava.

Um medo, maior que os outros, passou em frente e perguntou: “Quer
jogar conosco?” Jão, sem pestanejar, disse: “Não sei jogar!” E eles: “A
gente ensina!”

De bola em bola (que afinal chegou), de pé em pé, Jão ficou tão roto
e encardido como os outros medos (pequenos, grandes) e teve muito
medo de si mesmo. Voltou para a sua concha fechada e ficou esperan-
do os medos, o tempo, a vida passar.

Já velho, ele põe o pé para fora. Os medos pequenos cresceram e nem
estavam mais rotos e encardidos, até gravata igual a de Jão usavam e ti-
nham os seus pequenos medos com quem andavam de mãos dadas.

E estes ex-medinhos andavam em carros, com suas janelas fechadas,
com medo de falar com os medinhos que pediam dinheiro em sinais,
ou que botavam navalhas nos pescoços ou que jogavam bolinhas de tê-
nis pro ar ou que carregavam medos ainda menores nos colos, peque-
nos medos que geravam outros…

Jão havia feito isso antes… de tanto ter medo, não quis arriscar em viver.

E os medinhos que jogaram bola com Jão agora eram outros Jãos, cada
um em sua forma e jeito. Jão sentou no chão da rua, perto de outro que
fedia e chorou porque sempre foi Jão Com Medo, nunca se deixou ser
Jão Sem Medo, Jão Valente ou mesmo Jão Gente.




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A menina que pulava os anos




Catarina era uma menina nos seus anos. Nem mais velha, nem mais
moça. Ou melhor, às vezes era mais velha, ou mais moça.

Ela pulava os anos.

Tinha 4 ou 6, 3 ou 5, 1 ou 9, 5 ou 8, ninguém nunca sabia ao certo. Todo
ano era um ano novo, mas novo mesmo. Às vezes nem ano era, basta-
va ser um aniversário.

Não é que ela não soubesse contar, mas dessa forma era mais divertido
e ela ficava maior ou menor quando pulava os seus anos para mais ou
para menos. Velha, moça, criança, bebê, nem uma nem outra.

Brincava com os anos e com as horas também. Para ela, entrar no colé-
gio era como sair; na hora de brincar, estudo; na hora de estudar, lan-
che e no lanche, papel e lápis, elástico e corda, bola e areia.

Tudo em volta de Catarina também a acompanhava nessa brincadeira
esquisita. O pintinho que ganhou, virou ovo e depois galinha e, de re-
pente, um dinossauro de penas que saiu voando pela janela.




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Os colegas de amarelinha envelheciam a olhos vistos, casavam-se, ti-
nham filhos e filhas e seus filhos tornavam-se pais e avós, continuando
sempre crianças. Criança-adulto, criança-pai-e-mãe, criança-criança.

As horas do dia brincavam com ela, sempre 12, ou 24 ou 36. Às vezes
6, 20 ou 3. De 3 em 3 horas, o remédio que tomava quando estava boa,
e cuspia quando estava doente. Ninguém entendia bem, mas ela se jo-
gava assim, ficando confuso e divertido ao mesmo tempo com os anos,
as horas e as eras pulando à sua volta.

Mas teve um dia (manhã, tarde ou noite, sei lá!) que tudo ficou muito
mais estranho. Ela ficou grande e pequena, velha e nova e seus amigos
de tempos não mais a reconheciam.

Não era mais menina, criança. Mas não era aduta, nem moça-mulher.
Era isso tudo e nenhuma das coisas. Os anos já não pulavam em volta
dela e ela não queria brincar mais com eles. Era já uma mocinha. De-
cidiu ser assim daqui por diante.

Só que os anos, as horas e os minutos, acostumados a ouvir a voz agu-
da da menina, não reconheceram a mulher-moça que estava a lhes fa-
lar. Não a escutavam mais.

E o tempo passou a andar como anda para todos nós, tomando dela o
que sempre foi seu. Só a memória de Catarina é que pulava os anos, de
bebê a mulher, de filha a mãe.

Tempos depois, seus netos bricariam com os dinossauros e as netas, en-
tre as estrelas.




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A moça dos dentes




Catarina me veio com mais essa. Disse que a Fada dos Dentes é muito
pão dura, muquirana mesmo. E um tanto quanto distraída.

Botou um dente debaixo do travesseiro, como manda a tradição dos fil-
mes, seriados e desenhos animados norte-americanos, e foi dormir.

Quando acordou, encontrou lá o dente, intacto. Meio que decepciona-
da, ligou a televisão, comeu o café da manhã, se arrastou para fazer um
xixi, viu mais televisão, brincou com as bonecas e se lembrou do dever
de casa 3 minutos antes de sair para a aula de inglês.

Chegou da aula de inglês, fez o dever (os dois que estava devendo, na
verdade) se arrumou para a escola e foi ter mais aulas.

No recreio, foi comprar um Porcalitos® (Luis Eduardo Ricon®2004) e
encontrou uma moeda de cinqüenta centavos na sua carteira. Ficou fe-
liz, é claro, e comprou duas balas a mais com a moça dos acepipes. Mas
matutou bastante sobre o ocorrido.

Quando caiu o outro dente dela, correu para a Mãe para mostrá-lo.




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“Mãe, caiu mais um.” “O que você vai pedir para a Fada dos Dentes,
Catarina?” “Não é Fada, mãe. Fada é rica e essa moça dos dentes me
deu só cinqüenta centavos.”

A Mãe ficou um pouco envergonhada, pois o mês tinha sido aperta-
do e mesmo que não fosse, não fazem moedas de dez reais, né? Mas
emendou rápido: “Então, o que você vai pedir para a Moça dos Den-
tes?” “Vou pedir para ser mais esperta! E no próximo para continuar
sendo feliz!”




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O mistério do copo vazio




“Pai, como se faz para esvaziar um copo?”

Catarina inventando novamente… Tá certo que está na idade da razão
mas isso não faz muito sentido pra ela. Vocês já sabem que ela pula os
anos, né? Mas ela me veio como se tirasse as idéias da cartola, do nada
mesmo. Não parecia ter pulado ano algum.

“Anda Pai… como se faz para esvaziar um copo?” “Uai, Catarina, o
copo aí tá vazio.” “Tá não pai. Toda vez que coloco água, ele enche de
água; se eu coloco suco, ele enche de suco; e se eu tomo o suco ou a
água, ele se enche de ar. Como se esvazia um copo?”

Eu poderia explicar a ela que é só colocar numa câmara de vácuo e…
entendi que ela estava falando de outra coisa. Não tinha nada a ver com
copo, suco ou água. Fiquei na dúvida se ela tinha pulado muitos anos
de uma vez só ou, pior, se era um extra-terrestre que tinha tomado o
corpo da baixinha, com planos de dominação mundial.

Por vezes vinha um ou outro tentar uma coisa dessas. Não dava muito
certo porque eles não têm um extenso e vasto conhecimento de Bone-
cas Barbie® e desenhos animados como toda criança na idade de Cata-
rina tem de ter. Mas eles poderiam estar tentando novamente né?



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“Catarina, é você mesmo que está aí?” “Claro, né Pai. Você acha que
é quem? Um marciano-japonês ou um inca-venusiano? Como se esva-
zia um copo, Pai?”

Eu peguei o copo. Olhei para dentro. E só tinha ar. Tentei assoprar e
nada. Botei de cabeça para baixo e nada.

“Desisto Catarina.” “Então vem cá que eu vou te ensinar.”

Ela colocou o copo “vazio” na pia e deixou a água enchê-lo até a boca.
Até entornou um pouco. Mas tavam lá um copo, a água do copo, uma
pia molhada, uma Catarina com um sorriso maroto e um Pai com cara
de bobo.

“Cacá… não entendi.” “Pai. Taí! Será que você não vê? O copo nun-
ca tá vazio. Não dá para esvaziar o copo. Só tem de encher ele com
uma outra coisa. Se ar não tem gosto, vamos encher de mate, sorve-
te e chocolate. E o doce e o mate tiram o ar sem gosto de dentro dele.
É tão fácil, papai…”

A danada tem o dom de adivinhar o que a gente sente, né?




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             foto: Museu Nacional de Economia da Suécia




urbanóides
Tipos solares




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Sunday morning
– pós Velvet Underground




Chegara em casa às duas da madrugada, passando as chaves na porta-
ria com cuidado para não acordar o porteiro. Não queria que fosse des-
coberto assim, sorrindo à toa, como se estivesse feliz ou coisa parecida.
Mas sabia que estava com uma cara de moleque que quebrou vidraça
ou que ganhou bola nova ou que tirou palito premiado no picolé.

Estava com um sorriso tal que engoliria um sol.

Entrou no elevador. Olhou no espelho. Viu um cara diferente do que ti-
nha deixado ali, no reflexo. A barriga ainda era flácida, mesmo que a
contraísse ainda que involuntariamente. Os cabelos já eram ralos na ca-
beça, entradas fundas. O que era grisalho antes, nas têmporas, era qua-
se branco agora. Mas ainda e tão somente nas têmporas. A barbicha bem
cuidada não tinha pelo branco. Aliás. Tinha sim. Mas ele os pinçava.

E o sorriso ofuscava quaisquer outros defeitos que tivesse.

Apertou o nono andar. Subia como um cágado manco, andar a andar.
Encostou na parede do espelho e tinha em si uma certeza, uma firmeza
de caráter que nunca encontrara antes. Olhava os andares a passar um
a um, contando os segundos para chegar em casa. Playground, terceiro




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andar, quarto andar. Mmmm vontade de mijar. Quinto, sexto. Chega
logo, cacete. Sétimo, oitavo. Anda! Anda! Nono!

Abriu correndo a porta, correu pro novecentos e onze. Puxou a chave
no caminho e selecionou a certa insistivamente. “Merda! Não é mijo!
O corvo tá bicando a cueca!” Abriu a porta de sopetão e se jogou no ba-
nheiro com o caminho ainda em breu.

Aliviado, fechou a porta de casa, acendeu a luz da sala. Diminuiu o
brilho no dimmer. Pousou o celular no carregador, em frente ao compu-
tador. Ligou o monitor e viu as mensagens que recebera na noite. Cen-
tenas de mulheres deixavam recados! Não, milhares! Duas!

Fechou o programa de mensagens instantâneas. Verificou as descargas
de arquivos. Foi à cozinha. Preparou um sanduíche de feijão com ge-
léia de morango e shoyu e sentiu falta do queijo parmesão ralado. Sen-
tou no micro para ler emails e sentiu que iria se aborrecer. Nada estra-
garia o seu sentimento agora. Encarou os emails e confirmou que, se
fosse em um outo momento, talvez umas duas semanas atrás, surtaria
e pegaria o celular para ligar para pessoas que não queriam mais ser li-
gadas a ele. Assentiu e consentiu com o desejo alheio e deixou escapar
singelamente: “Vaca!”

Navegou um pouco na internet, descobriu sensacionais sites inúteis,
desprovidos de qualquer informação relevante. Abriu o tradicional site
de putaria e não ficou animado a descer qualquer um dos vídeos ama-
dores que lá estavam.

Acabou com o sanduíche e se perguntava por que comia aquela merda
todas as noites. Deveria variar de vez em quando. Trocar a geléia por



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mostarda e o feijão por lentilhas. Achou que não era boa idéia. Já tinha
problemas suficientes com gases e flatulência. Mas toparia uma pizza
de alho e óleo. Fazia tempo que não comia em respeito às pessoas que
dividiam o mesmo ambiente que ele.

Ligou na Discovery que anunciava um documentário sobre o sistema
solar. Riu baixinho para si mesmo e colocou um DVD. Faziam oito
meses que não assistia Manhattan novamente e achou que estava mais
que na hora de revê-lo.

Ao acabar, se pegou choramingando mas ainda com aquele diabo de
sorriso na cara. “Porra! Vou ser sacaneado se sair na rua assim ama-
nhã!” Levantou, tirou o DVD e colocou um CD do Suede bem baixi-
nho. Cantou Trash para si mesmo com lágrimas nos olhos e resolveu
amanhecer. Já eram dez para as seis, né? Já tava de bom tamanho!

Abriu a janela e se espreguiçou. Sabia que ele seria um bom doze de
setembro.




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48   urbanóides
Uma crônica de Marte e Luna




A menina estava disponível e ele também. Já se conheciam de outros
carnavais e já fizeram aquele caminho outras vezes. A bem da verdade,
eram outros tempos e outras intenções. Hoje, eles eram adultos: expe-
rimentados, maduros, resolvidos e sabiam bem o que queriam um do
outro.

Ou assim pensavam.

Passearam pelo Arpoador de mãos dadas. Emocionaram-se com a Lua
que nascia em Copacabana e com o Sol que se punha em Ipanema.
Pensaram ouvir ao longe os aplausos do Posto 9 mas, dada a distân-
cia, os aplausos estavam em suas imaginações. Como se elogiassem a si
mesmos subconscientemente.

Conversaram bastante, a ponto de acabar a saliva no meio de uma con-
versa. O assunto era recorrente. Se comentavam da Lua, do Sol ou do
cheiro de mijo das pedras, era apenas para dar uma pausa para tomar
fôlego ou para embasar o tema principal. A paisagem se tornara uma
metáfora para relações mal-acabadas. Mal-acabadas para eles, diga-
se de passagem, porque o “outro” estava muito bem da vida. Sorrindo
como nunca antes ao lado deles. Se divertindo como idem. Transando
como nunca antes transaram em suas patéticas vidas.



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Pois é.

Durante o cair da tarde ele só falava da ex-noiva e ela, do ex-namorado.
Os ex-outros eram o tema principal e o único assunto que os unia na-
quela tarde. Talvez essa fosse a forma que encontraram para dizer que
estavam sendo o mais verdadeiro e sincero possível. Não haveria enga-
nação, sentimentos dúbios ou ilusões que não fossem consentidas por
ambos, conscientemente. Sabiam o porquê de estarem ali e essa con-
versa só reafirmava isso.

Passearam até a noite se firmar e sentirem que a saudade já se manifes-
tava por dentro das suas calças. Era tanta saudade que já davam vexa-
me público e evitavam os olhares invejosos de quem caminhava casta-
mente pelas pedras.

Já em casa, nus, cometeram uma dúzia de erros fatais.

Amaram com sofregudão, mal dando tempo para os preparativos. Pre-
liminares? Ora, estavam nas preliminares há meses. E ficaram ali por
horas praticando o antigo esporte bretão.

Mentira! Mal durou dez minutos!

Ela, por cima dele, controlava a situação como sempre sonhara fazer
com o seu amado e ele cometeu o erro de chamá-la pelo o nome erra-
do por três vezes.

“Me desculpe, eu não queria…” “Não… tudo bem… eu te entendo!”
“Como assim entende?” “Deita aí e imagine que sou ela!” “Não! Pera
lá!” “Faça isso! Anda!”



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No décimo-primeiro minuto já estavam satisfeitos, e se contemplavam.
Ele, procurando algum tipo de carinho. Qualquer carinho. E não en-
controu. Ela, tentando inventar um amor que não teria como existir
naquelas condições.

Se vestiram, tomaram a rua, pegaram um táxi. Ele foi deixá-la em
casa. Na volta, não se conteve e pediu para o motorista passar por uma
rua que não passava fazia tempo.

“O caminho por aqui é mais longo.” “Tudo bem. Pode até pegar a praia
depois. Não tô com pressa!”

A rua estava vazia e o motorista não se demorou o tempo que ele espe-
rava. Procurou um tipo de emoção dentro de si e não achou. Não vie-
ram as lágrimas nem a auto-comiseração. Achou que estava pronto.

Saltou em frente ao Othon Palace. Foi até a praia. Tirou os sapatos e
pisou na areia com calma, como se quisesse sentir cada grão roçando
os pés. Olhou em volta para ver se havia perigo e foi calmamente an-
dando até a água.

A Lua estava ali, lhe esperando.

“Então. Como foi?” “Não sei. Tudo é muito estranho. Há um vazio
agora. Não tenho mais raiva, ou paixão.” “Duvido. Você ama ser rejei-
tado.” “Mentira!” “Ama sim. Vai negar que a ama agora mil vezes mais
que antes?” “Não nego.” “Então?” “Talvez você tenha razão. Talvez eu
seja um maldito masoquista.” “Não fique assim.” “Não?” “Não é pro-
dutivo isso.” “Você tem razão novamente.”




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Sorriu para ele e o chamou para si.

“Não posso ir agora. Você deveria ficar aqui também.” “Não sei se
devo…” ela titubeou “…não sei se conseguiria viver uma vida de carne
e osso.” “Você mesmo quem me recomendou isso!” “Mas tenho medo.
Já me magoei muito antes.” “Olha só a rota falando do esfarrapado!”
“Eu sei, eu sei. Mas você é Marte. Você está apto para a guerra, para
os ferimentos da batalha. Se eu me ferir, me desfaço em água, vou com
as marés.” “Querida, você é a maré! Vem. Desce do teu pedestal e seja
feliz.”

Ela olhou com o olho mais doce e depois com o olho mais vil.

“Você sabe que sou terrível e divina. Sou mãe e bruxa. Sou o teu prazer
e teu sacrifício e…” “Blá, blá, blá… Luna e Hecate, yadda yadda yadda.
E eu sou Marte e Ares, sou Medo e Terrror, sou Libido e Potência…
Porra! Sou um ser humano, caralho!” “Eu sei!” “E é em cada queda que
aprendemos a andar, a sermos seres melhores. Você fica aí, num altar,
cortejada pelos pobres, poetas e melancólicos e se esquece que, quando
envelhecer, vai ser deixada de lado. Tua corte procurará outra Lua. E
eu, deverei aposentar minhas armas, vou procurar um canto para criar
meus livros e plantar meus discos. Cansei da Guerra, do Bom Comba-
te. Quero sossego.” “Então está combinado.”

Ela desceu do pedestal e, antes de ir para São Paulo, disse no ouvido
dele: “Tudo muda.”

E ele: “Nada mudará.”

E era belo e verdadeiro, assim no alto, como embaixo.



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Wouldn’t it be nice
– pós Beach Boys




Saltou na Barata Ribeiro como se descesse da ante-sala do Inferno, en-
fim liberto das agruras e torturas diárias a que se submetia. Vendia coi-
sas que não importavam a pessoas desinteressantes e tentava convencer
outras pessoas desinteressantes que as coisas que vendia eram impor-
tantes e seus clientes eram interessantes. Mas nada disso tem impor-
tância, exceto o simples fato que ele descia do 127 Praça Mauá – Copa-
cabana como se deixasse o Inferno após pagar o todo o seu suplício.

Ao atravessar a rua, lembrou-se que não cumprira todos os ritos a que
estava acostumado.

“Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.”

Namorava um som há dois anos. Obviamente não era sempre o mesmo
aparelho, mas fazia planos em comprar um para si desde o falecimento
do anterior. Ficava olhando pelas vitrines, comprava revistas, lia tudo
que saía publicado e trocava o modelo de seus sonhos de acordo com as
dívidas e os lançamentos.

“Que falta faz a Som Três…”




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Ele cumpria esse ritual diário religiosamente. Saltava antes da Santa
Clara, paquerava o som pela vitrine da Modern Sound, eventualmen-
te comprava um CD ou uma camiseta por lá mesmo. Sabia que pode-
ria pagar a metade do preço de qualquer um desses ítens se comprasse
no centro, mas achava que assim pagaria um dízimo de fidelidade nes-
se templo do estilo e culto à boa música, como um clube de milhagem
no céu dos aparelhos de som de alta sofisticação e sensibilidade.

Após a oração no templo, partia na sua perigrinação, no seu caminho
de São Tiago pessoal. Da Barata Ribeiro, descia pela Santa Clara, pa-
rava na banca de jornais na esquina com a Nossa Senhora de Copa-
cabana, procurava por uma publicação nova ou algum artigo em uma
outra revista. Quando achava tentava ler ali mesmo, de pé. Se não
conseguia, planejava economizar em um almoço ou dois para comprá-
la no fim de semana. Ia andando até a Domingos Ferreira, passando
por livrarias decadentes e bares idem. Comia um croquete ou um pas-
tel quando tinha um troco e chegava em casa cansado e baldado, mas
sempre esperançoso.

Mas nesse dia, não cumprira o seu pequeno ritual.

“Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.”

Ao atravessar a Santa Clara – para trocar de calçada – notou um despa-
cho na encruzilhada. Nada demais até aí, sempre tem alguma macum-
ba espalhada nas árvores de Copa. Notou o ebó. Dois pombos.

“Epa hei!” Disse para si mesmo. “Axé, meu pai!”




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Uma trovoada vibrou o céu em cima da cabeça dele e o dia virou noi-
te de relance.

“Tá certo. Eu nunca trago um guarda-chuva mesmo. Tinha de cho-
ver hoje.”

Correu para a marquise enquanto o ar tornava-se mais úmido que um
urinol. No tempinho que esperava a chuva de verão passar, olhou com
um pouco mais de interesse para o pote com farofa e duas pombas
mortas. Lembrou-se que os pombos eram usados como sacrifício para
os judeus, no dia do corte do prepúcio, se não estava enganado. E va-
cas para Odin no equinócio de inverno, ou no solstício de verão, não
estava bem certo disso.

Sentiu-se cercado pelos deuses do passado e imaginou fadas mercuriais
passando pelos fios de cobre dos postes, criaturas feéricas habitando os
esgotos, espíritos construtores nos alicerces dos prédios e sílfides etére-
as nos aparelhos de som.

Tomado por um medo ancestral, atravessou as ruas no meio da chuva,
correndo entre os carros e voltou no seu templo de dedicação para pros-
tar-se na vitrine e admirar as relíquias que queria trazer para sua casa.

Caixas de som de mogno. “Salve os espíritos da madeira e os padroei-
ros das montadoras!”

Auto-falantes alemães. “Salve os gnomos importadores e os deuses do
magneto!”




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Amplificador francês… “Oi. Você vem sempre aqui, não é? Por que
não entra?”

Virou-se e deparou-se com uma mulher alta, de cabelos escorridos,
como se estivessem molhados. Dã! Estava chovendo, né? Linda ela,
não? E que olhos profundos. Parecia que varavam sua alma. Ela fe-
chou o guarda-chuva que usava, limpou os pés, digo, a sola dos tênis
que usava no carpete de entrada da loja e dirigiu-se a ele.

“Vai entrar ou não? Vamos! Eu te pago um café! Tem um café aqui, né?”

Beliscou-se. “Salve os demônios dos feromônios.”

Falou baixinho e ela não conseguiu conter um riso debochado. Senta-
ram-se e conversaram um bocado. Seis cafés e dois sanduíches depois
ele descobriu que ela estava de mudança para São Paulo mas ainda iria
ficar umas duas semanas no Rio.

“Preciso do Sol e do Mar. Aquele me faz falta e este precisa de mim.”
“As marés né?” “É.”

A chuva passara mas a conversa no café não. Ele contou do trabalho in-
sosso e frustrante que tinha e dos sonhos e da vida inócua, medíocre.

“Não é ruim ser medíocre.” “Como assim não é ruim?” “Não é ruim. É
médio.” “Verdade.” “As pessoas é que querem ser reis o tempo inteiro.
Não dá, né?” “Qual o seu signo?” “Câncer.” “Óbvio, né?” “Sim.” “Você é
de Peixes, não é mesmo?” “Sim.”

Ela passou a mão no rosto gelado dele.



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“Que besteira a minha! Aqui está um frio danado.” “O café esquenta.”
“Mas não cura a gripe que você vai pegar.” “Não fico doente.” “Nem
eu, mas isso não é desculpa.” “Vou pra casa agora que a chuva passou.”
“Está bem. Você tem o meu telefone?” “Agora sim.” “Me liga. Vou em-
bora no fim da semana que vem.”

Ele assentiu e se levantou para ir para casa.




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58   urbanóides
The ghost of you
– pós The Tears




“Quando eu digo que Manhattan é o meu filme, ou melhor, o filme da
minha vida, as pessoas não entendem de prima. Mas quando explico que
o filme trata de escolhas erradas, de atitudes exageradas sem sentido, de
bad timing genético, aí que elas discordam mesmo de vez. O problema
é que elas não vestem a minha pele. Não usam os meus óculos. E eu só
aprendo quando olho para trás. Mas isso não evita que eu bata novamen-
te com a cabeça no poste, quando ando pela rua da vida.”

Ouvia quieto o artista ler o seu ensaio em voz alta. Estava entre ene-
briado e intimidado por ficar entre tantas pessoas desconhecidas e se
segurava na sua máquina fotográfica como se fosse uma muleta, um
escudo. Enquanto fotografava não precisava se apresentar ou justifi-
car porque estava olhando atento a um casal ou a um grupo menor no
canto. Tinha a desculpa do olhar do fotógrafo, daquele que tenta ver
além do que é mostrado, de quem procura o detalhe. No caso, ele ape-
nas procurava um canto para se esconder e se deliciar com o espetácu-
lo das emoções humanas.

Por vezes cumprimentava um ou outra que o reconhecia do seu site, de
uma foto que tinha postado ou de um outro encontro de internautas.
Era conhecido por ser esperto e comunicativo, mas hoje estava mais ta-




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citurno que nunca. Nunca tinha estado naquele sebo apertado e lota-
do de gente.

O artista terminara sua leitura e outro tomara o seu lugar. Era uma
menina. Não. Uma mulher. Linda, linda. Alta, reluzente. Os olhos
brilhavam com fúria e tesão. Ele se ajoelhou para achar um ângulo me-
lhor. Bateu seis fotos defaut e descansou a câmera no colo. No fim do
texto, mal continha os soluços. Não poderia ficar muito tempo no mes-
mo lugar que ela. Não com tanta gente em volta.

Saiu desastrado no fim do evento sem se despedir dos conhecidos. Só
foi guardar a câmera ao chegar na Siqueira Campos, três quadras de-
pois do burburinho da loja. Subiu a rua ainda tonto, embriagado com
as próprias emoções. Passou em frente do Bar Pérola e resolveu se en-
costar lá mesmo. Não trabalhararia no dia seguinte, então poderia en-
cher a cara com tranqüilidade.

Lá pelo décimo chope, viu que um tipo diferente de gente estava entran-
do bar adentro. Demorou um pouco para se encontrar no meio da embria-
guez mas reconheceu parte do público que estava no evento literário.

“Fala fotógrafo!” Disse um mais animadinho.

“Pronto. Perdi o meu nome.” Pensou.

E no meio deles, lá estava ela.

“Olá.”




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Tremeu dos pés à cabeça. Precisava mijar. Agora! “Já volto.” Foi se ali-
viar no banheiro e voltou para o seu ponto de partida mais enxuto.
“Olá.” Disse apressado, enxugando as mãos na calça.

“Eu gosto muito das suas fotos, sabia?” “Você disse isso da outra vez.”
“Mas não canso de repetir.” “O que você quer de mim?” “Nada.” “É o
que eu temia.”

Disfarçou um sorriso amarelo.

“Você é bobo. E eu gosto disso.” “Não sou bobo. Sou mordaz e cínico.
Às vezes até mau. Mas você me desmonta, sabe disso.” “Sei. E eu gos-
to de te desmontar.” “Mas acho que não quero mais passar por isso. Já
passei boa parte de minha vida orbitando em estrelas maiores que ti e
me recuso a ficar apagado na tua presença.”

Ela olhou com um quê de doçura e um outro tanto de sarcasmo. Che-
gou bem perto. Sussurrou no seu ouvido.

“Querido. Isto é impossível. Meu brilho é maior que o seu.”

Afastou-se com um sorriso aberto, como se fosse uma criança brincan-
do de dar foras decorados numa outra.

Desequilibrou-se de dentro para fora. Pagou a conta e arrastou-se para
o seu apartamento. Perdeu-se no caminho entre a Siqueira e a Bolívar.
Perdeu-se em cada boteco fedido que encontrava no caminho.




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Amanheceu em casa, sem entender direito o que acontecera. A cabeça
doía como um parto e ele xingava cada gota de álcool ingerida. Foi até
a sala e deparou-se com ela saindo do banheiro enrolada numa toalha.

“O que você está fazendo?” “Me enxugando.”

Não entendeu.

“Você não se lembra? Voltou ao Pérola. Declamou poesias. Cantou Chi-
co e Belchior, me carregou no colo e me amou o resto da noite. Meia-
bomba, a bem da verdade, mas dou um desconto. Nunca vi homem fi-
car bem com tanto álcool no sangue.” “Não lembro mesmo.” “Como
assim? Você é o guardião da memória, não é? É aquele que é senhor do
raciocínio e do pensamento.” “É o que eu dizia na escola, e só você dava
bola para isso. Hoje me esqueço das coisas e quero esquecer o mun-
do.” “Você tem a alma do artista, a habilidade do…” “Pára! Você sabe
o quão mal isso me faz. Não precisava te encontrar. Não hoje. Larguei
tudo para trás quando nós nos encontramos. Deixei estabilidade e vida
morna e previsível para cair nos braços de Luna. Enlouqueci porque ti-
nha de provar o lado de Hecate, tinha de passar por tudo isso e magoei
quem eu não queria e quem eu não podia. No fim das contas, o úni-
co que se fodeu fui eu mesmo. E, quando mais precisava do teu lastro,
mais precisava do teu porto seguro, você me negou. Agora vem você
me tentar novamente? Vai para a sua terra. Me deixa.”

“Seu desejo é uma ordem.” Disse ela vestindo a saia.

Compôs-se com habilidade e destreza de quem estava acostumada a
devorar gente como se fosse um McLixo qualquer.




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“Não. Péra.” “Querido, você já é passado. Só queria ter um gosto da tua
memória. E, sinceramente, preferia ter esquecido.” Saiu pela porta ele-
gantemente.

Sentou-se no sofá e não encontrou o pranto necessário. A cabeça doía
demais.




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64   urbanóides
I’m waiting for the day
– pós The Beach Boys




Eram três amigos: o Grande, o Gordo e o Burro. Grande era chama-
do assim porque brincava com todos sobre sua estatura. Era pequeno,
bem pequeno. Todo miúdo mesmo.

“Eu gosto de armas grandes porque meu pau é curto!” Dizia ao es-
colher uma Zweihandder como arma preferida do seu personagem de
RPG da semana ou uma M249 no CounterStrike.

Fazia isso de brincadeira, é claro. Daquelas brincadeiras que só três
grandes amigos entenderiam. A maior parte do papo deles era essa tro-
ca de sacanagens sadias que os entretetinham por horas e horas a fio
na mesa de bar.

Gordo era o mais calado e o mais sacana dos três. Seus comentários
lacônicos eram devastadores. Quase monossilábico, se expressava me-
lhor bebendo, comendo ou rasgando fichas de personagens de RPG.
Homofóbico, direitista e antiético, era a lady do trio. De certo, chora-
va em propaganda de sabonete com crianças e era o mais empolgado
dos três quando saiu da primeira sessão que assitiu do “Sociedade dos
Poetas Mortos”. Escondeu lágrimas e soluços no “A Lista de Schind-
ler”. Gordo era assim.




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Burro era o falastrão. De prima, diziam que era um gênio. Trabalhava
desde os doze anos com programação. Sabia falar de todo e qualquer
assunto que pintava em qualquer grupo social. Dizia que não discu-
tia: sofismava. Não debatia: praticava a maiêutica. Enciclopédico, cita-
va duzentos autores sem se repetir. Normalmente ele inventava as cita-
ções e os autores na hora. Estranhos se impressionavam com a verbor-
ragia e recolhiam as suas armas no embate verbal.

“Cara, não sabia que você já tinha usado um Macintosh em 82.” “O Mac
foi lançado em 84. Eu menti.”

Burro vivia apaixonado. Não aprendia. Mas sempre estava ali, na guer-
ra. Não perdia uma saída com as amigas baranguetes para ver se so-
brava uma rapa. Um beijinho na boca de uma menina caída de bêbada
que fosse. Mas sempre apaixonado por sua musa, Vênus. Cabelos ne-
gros, pele bem branca, olhos negros. Boca vermelha. Fazia merda so-
bre merda por conta disso, enchia os cornos, pagava paixão em públi-
co, cometia poesias. Até pro teatro entrou!

Gordo era um platônico. Apaixonado pela primeira namorada, ain-
da quando era mais magro, nunca a esquecera. As outras mulheres
podiam sentar no seu colo que ele não reagia. Não se sabia se era por
medo, timidez ou por inabilidade. Não interessava. Os outros tinham
já o seu veredito. “Veado!” Diziam da boca para fora mas sabiam que,
no íntimo, Gordo ainda sangrava aquele amor mal-acabado. E nunca
iria passar a dor.

Grande era mais safo com as meninas. Só cantava as lindas, maravi-
lhosas, perfeitas e inatingíveis. Portanto o seu fracasso era mais coro-
ado de méritos, ainda que sendo derrotado em cada batalha do bom



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combate. Juntava-se com Gordo para sacanear Burro nas tentativas de
ficar com as mais desarrumadas, desconjuntadas e disformes, mas sa-
bia que Burro tava certo. Ao menos nisso. E sonhava com uma paixão
verdadeira, um grande amor.

Cada um foi pro seu canto, ainda que se vissem com regularidade.
Gordo foi morar em São Paulo, Burro se formou em Ciência da Com-
putação e Grande virou arquiteto e engenheiro civil. Regularmente
viajavam para Sampa para zoar Gordo e beber todo o álcool possível
daquela cidade e vice-versa.

O tempo foi passando e as viagens do outro começaram a rarear. Gor-
do casara.

“Paulista é muito esquisito mesmo, né Grande?” “Pela primeira vez na
vida, concordo contigo.”

Cada um foi traçando rumo, trabalhando, estudando, namorando(!) e,
eventualmente, saindo para beber.

Nas raras viagens de Gordo de Sampa pro Rio, eles davam um jeito de
se encontrar em um boteco novo, previamente aprovado pela seleção de
cervejas, petiscos e freqüência feminina, ou apelavam para o bom e ve-
lho Sindicato do Chope, na Farme de Amoedo.

“Putaquepariu, caralho. Vocês só vão em bar de veado!” “Porra, o cho-
pe lá é bom, e tem história.” “O chope de lá é uma merda, a serpenti-
na tem menos de quinze metros, que é o mínimo aceitável para o líqui-
do sair a quatro graus centígrados que dá tempo para chegar na mesa
a dez. Temperatura perfeita para o consumo.” “Ah! Não fode, Burro!”



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“Burro tá certo. O chope de lá é ruim e só tem veado. Vamos no Bar
do Beto.” “Baixo Gávea, então.” “Chope ruim.” “É chope ruim.” “Com
gosto de ferrugem.”

Acabavam indo para o Hipódromo mesmo.

Já fazia mais de ano e meio desse último encontro. Muito trabalho para
todos e os emails trocados eram só de putaria mesmo. RPG não rola-
va mais. Nem com Burro insistindo para jogar “a nova versão do World
of Darkness” ou “no relançamento do do Dungeons and Dragons”. Bur-
ro criara um blog pros três, mas pouco postavam por conta de trabalho
de cada um mesmo.

Numa tarde, Gordo liga pro Grande.

“Tô chegando hoje. Avisa ao veado do Burro que estou na área.”
“E a esposa?” “Ex-!” “É ex-posa? HAAHAHAH! Tomou pé no cú,
cara?” “…” “Er… bom. Te espero no aeroporto. Me liga quando chegar.
Tô trabalhando do lado do Santos Dumont.”

Chegou. Foi pego e fez hora no escritório. Gordo tinha um semblante
mais fechado, mais triste que de costume. Falou palavra desde que se
alojou na frente de um computador que estava vazio. Grande ligou para
Burro que confirmou a reserva no Devassa da Barra.

“Mas tem de chegar antes das nove senão perdemos o lugar. A serpen-
tina lá tem vinte e cinco metros e a cerveja stout…” “Tá! Tá! Sete e meia
passo aí. Gordo se separou. Tá aqui, macambúzio e sorumbático.” “Pô.
Não é melhor marcar na Centaurus?” “Porra Burro!” “Sei lá. Vai que




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ele quer levar seis pra cabine e ficar vendo as meninas correrem peladas
dentro do quarto.” “Vamos beber antes. Depois vemos o que rola.”

Chegaram às oito e meia. Mesa boa, dava para ver todo o salão.

“Desce três negras. Vocês vão ver! Parece uma Guiness: cremosa, consis-
tente. Uma delícia! Garçom, não deixa o copo secar! Principalmente do
meu amigo aqui, esse mais fortinho! Fala alguma coisa, Gordo! Olha lá
aquela morena. Ela deve entender do traçado!” “Cala a boca Burro! Por-
ra, não tá vendo que o cara tá maus. Fala Gordo. Como foi a história?”

Os dois se calaram e olharam pro Gordo que não tirava a cara inex-
pressível de quem joga pôquer com a vida. Secou o primeiro chope
numa virada. Abriu o menu.

Apontou pro garçom uma cachaça da lista. “Traz uma garrafa.”

O garçom trouxe e Gordo começou o trabalho.

Fim de noite, Gordo bêbado, Burro bêbado e Grande puto da vida
porque tinha de levar os dois para casa.

Eles saindo do Devassa, já quase entrando no carro, param para Gordo
vomitar. Burro toma um ar e vê, dentro do bar, dois rostos conhecidos.

“Caralho, Grande!” “Eu vi. Vambora.” “Não. É ela!” “Vambora. Isso
não vai te fazer bem. Eu tenho um mau pressentimento.” “Tenho de ir
lá! Gordo! É ela!”

Gordo levanta-se, limpa a baba e recupera-se de pronto.



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“Luna!” “Putaquepariu. Isso vai dar merda! Pronto! Já deu!”

Grande ficou olhando Gordo e Burro cambalearem para dentro do bar
e sentarem-se na mesa das duas. Luna e Vênus. As duas interrompe-
ram o beijo e entre assustadas e divertidas olharam as figuras patéticas
se acomodarem. Burro, tentando ser galante apesar do álcool e da his-
tória; Gordo, apenas mantendo o cenho cerrado, como se criasse uma
barragem entre si e ela.

Grande ficou do lado de fora, procurando o telefone no amigo delega-
do, já prevendo alguma confusão com os seguranças. Espantado, viu as
duas se levantarem rindo e os dois pedirem algo ao garçom. Elas saí-
ram do bar e foram até ele.

Vênus deu-lhe um beijo na boca. Luna sussurrou-lhe: “Quem teme,
não goza.”

Ambas pegaram um taxi que se fundiu à noite.

Grande sentou-se à mesa e juntou-se às libações.




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Dois velhos bêbados




O mais novo chegou no Belmonte às três da tarde. Ficara jogando pete-
ca na praia desde às onze da manhã e estava com fome e sede. Já era uma
espécie de rotina: acordar às cinco, comprar pão, manteiga, presunto e
queijo; tomar café da manhã com a esposa e o neto encostado pela Ae-
ronáutica às sete. Às oito, banho tomado e academia: correr uma hora e
malhação e hidroginástica. Às dez de volta em casa para um lanche rá-
pido e colocar a sunga para a praia. Morava na Atlântica, perto da Bolí-
var, num prédio antigo, um dos primeiros de Copacabana.

E era isso: praia e depois chope no Belmonte. Costumava chopear no
Cabral 1500, mas esse bar novo tinha pastéis de camarão sensacionais
e empadas memoráveis e resolvera trocar local do almoço desde a sua
inauguração. Não se arrependera e estava lá, nessa quarta-feira, lendo
o jornal que o garçom havia pegado e notou que tinha uma outra cabe-
ça branca observando-o. Havia sentado na mesma mesa sem pedir li-
cença ou se apresentar. Não precisava.

“O senhor é uma vergonha! Não honra as próprias calças!”

Olhou para o mais velho que estava vermelho em fúria contra ele.




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“Nunca vi homem que dignasse o próprio nome fazer tal coisa! O senhor
desonra seu nome, tua família, teu posto e tua farda!” “Não uso farda
há mais de duas décadas.” “Não interessa! O senhor tem um nome a…”
“Um nome a zerar!”

E riu sozinho.

Fazia uns cinqüenta anos que os dois se conheciam. Desde o primeiro
momento antipatizaram um com o outro. O mais novo, recém ingres-
so na AMAN; o mais velho, no penúltimo ano. Competiam em tudo.
Notas, esportes, oratória. E empatavam nas graduações. Só que o mais
novo tinha uma vantagem que nunca seria superada. Era muito mais
bonito e tinha o dom da sedução, o sex appeal inato que dava larga van-
tagem numa área onde o velho nunca conseguiria competir.

Antipatia que se tornou guerra pessoal. Um era comunista histórico.
Amigo de Prestes e de Teotônio. Outro, simpatizante do Integralismo,
seguidor de Plínio Salgado, adesista de primeira hora no golpe/revolu-
ção de 1964. O primeiro perseguido e torturado, depois exilado. Outro,
diretor da Light e aposentado aos cinqüenta e cinco. Sempre se encon-
traram em todas as quinas de suas próprias histórias. Estavam lá em
cada momento decisivo, em cada dor, perda ou escolha. Uma vendetta
branca tão marcada em suas personalidades que já não fazia mais di-
ferença os motivos, as ideologias, os partidos, as causas ou conseqüên-
cias. Já estavam velhos demais para a beleza de um ou outro fazer di-
ferença. Os filhos já haviam vindo e ido, deixando alegrias e desgos-
tos que usavam para ofender um ao outro. Filhos, netos, política, eco-
nomia, futebol e, principalmente, mulheres. Qualquer coisa que desse
uma oportunidade para o outro espezinhar era motivo suficiente. Des-
ta vez era o turno do mais velho, no seu motivo preferido.



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“É deprimente que o senhor ainda se arraste por rabos de saia que têm
menos da metade da tua idade! Sei que é adepto desses remédios que
garantem a virilidade momentânea! Vê-se que já sofre os efeitos cola-
terais! Não se enxerga mais!” “Inveja! A mais doce das infâmias que
poderia lançar sobre mim. Não consegues te acertar com tua prótese,
então ficas difamando os que…” “Calúnia! Não existe implante algum
em mim!” “…os que ainda despertam algum interesse nas mulheres
ainda em plena atividade e prática sexual. Mas te garanto, meu caro,
que não sei do que falas. Sabes bem que desde a morte do meu primei-
ro filho, me assossego em casa, não tenho mais dessas aventuras.”

O velho sentou-se à mesa, pediu um chope curto e comeu um dos pas-
téis. O novo pediu mais um chope para si e um “refil” nos pastéis. Fi-
caram ali, em silêncio, se estudando como se fossem dois samurais es-
perando a reação um do outro para sacar a lâmina de sua bainha e cor-
tar a moral do outro.

O novo faz o primeiro movimento.

“Do que falas, afinal?” “Dessa mulher que o senhor tem freqüentado
às quartas-feiras.” “Não é isso que pensas.” “Como não? Sei muito bem
como o senhor se coloca frente às mulheres, enganando-as, seduzindo-
as.” “Há muito te expliquei que não somos nós que as seduzimos, mui-
to pelo contrário: elas que nos convidam e dão o seu aceite. Se brincam
de serem cortejadas, é porque lhes é conveniente. A sedução vem de-
las para nós, não o contrário.” “Mas meninas, que mal sabem o que é a
vida?” “Tu sabes que, hoje ou em mil novecentos e sessenta, as meninas
deixam de ser meninas aos vinte. São mulheres em plena flor da ida-
de. Não há meninice nisso. Tu, que casastes com uma de quinze, deve-
rias ter mais noção disso que eu.” “Não menciona o nome dela assim! A



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boca do senhor não é limpa o suficiente para mencionar Gaia.” “Gaia.
Eu pensava que era Géia o seu nome. Já é o tempo me tomando as lem-
branças.” “O tempo toma tudo, sei disso.” “Não tenho dúvidas. Mas
sempre te surpassei, não? Sempre estive um passo à sua frente.” “Nem
sempre.” “Justo. Tem coisas que tirastes de mim que não há como de-
volver.” “Fi-lo pela pátria.” “Ou por vingança, ou por ódio, ou por per-
versão, sei lá. Não me interessa mais. É passado e é história. Teve a tua
cota de vingança e de sangue e eu também. Somos agora dois velhos a
nos cutucar enquanto o mundo nos esquece.”

O golpe fora certeiro. O novo sempre fora muito melhor na oratória,
mas dessa vez vinha carregada de alguma coisa mais forte. Ele estava
com a guarda aberta. Via-se nos olhos que não estava estudando o que
falava. Era um homem de setenta e poucos anos, lúcido, saudável que
admitia para o seu nêmesis que tudo aquilo que basearam a sua relação
de ódio e vingança havia caído por terra, perdido a importância. Era
apenas uma birra de dois velhos bêbados. E que isso era um laço mais
forte que muita amizade sincera, aberta e verdeira.

Os dois viram os rostos para a menina que se aproximava e que pedia
licença para sentar à mesa. Menina não. Uma linda mulher.

Ela se senta entre os dois, à cabeceira da mesa. Ajeita a saia rodada
branca e coloca o chapéu, a bolsa e os óculos escuros numa cadeira va-
zia. Olha lentamente para o mais velho e com desleixo para o novo.

“Parece que vocês chegaram num campo comum, não é mesmo? Se
acertaram?” “Não existe acerto entre mim e o velho. Mas acho que es-
tamos colocando os pesos corretos na nossa guerra.” “É verdade. Então
é a senhorita a mulher que o novo visita às quartas?” “Sim.”



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Disse Luna, com o olhar incapacitado. Sabia que era poderosa e ma-
ravilhosa, que era a segunda da lista, mas sabia que, de perto, os dois
eram maiores e mais poderosos que todos os outros. À exceção de Hé-
lio, ou Hélius, nunca se lembrava como Ele preferia ser chamado. Já
Ela ficava diminuída perto dos dois.

O velho dirige um olhar meio envergonhado, meio compreendendo o
mais novo. Pede mais um chope e uma caipirinha de tangerina para
Luna que não conseguia manter o porte altivo e imponente. Sentava-
se como uma menininha entre dois gigantes.

“Quando partes?” “Não sei mais se parto ou se fico. Tudo é muito con-
fuso para mim agora.” “Sabes que tem alguns de nós com quem não
deves brincar. Creio que já falastes com todos? Ou não? Existem aque-
les que são mais velhos e mais distantes e que não tens acesso. Não de-
ves procurá-los. Tua jornada não se expande mais.” “O novo fala a ver-
dade. A senhorita tem de saber o seu lugar. Ande à luz do Sol, se qui-
seres, mas tem de ter o limite das coisas.”

Ela escutava, discordando mas incapaz de se defender. Sabia que o seu
tempo ali havia terminado.

E partiria para São Paulo ainda hoje.




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             foto: Zander Catta Preta




urbanóides
Trinca de nerds




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78   urbanóides
O sexo é o alento




Burro chegou com uma novidade.

“Comi gente ontem!”

Os dois olharam com a cara de tédio habitual e, antes de fazerem a
pergunta default, ele sacou.

“E não paguei por isso!”

Com o interesse dos amigos ativado, ele se derramou em longuíssimas
narrativas de como conduzira o flerte por meses a fio, como evitara as
tradicionais armadilhas de seduções baratas, como envolvera e seduzi-
ra a menina até obter “os favores da linda e querida flor.”

“Flor? Porra! Você comeu gente ou um brócolis?”

Gordo com sua delicadeza habitual cortou o longo, elogioso e enfado-
nho relato de Burro.

Ofendido, mas não abalado, Burro revelou.

“Eu a chamo de Minha Flor!”



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Explode uma gargalhada entre copos de chope consumidos no Devas-
sa do Leblon. Grande não se conteve. Com dedo em riste, olhos em lá-
grimas, tenta falar alguma coisa mas só consegue aumentar os soluços
de Gordo que quase desmonta a mesa de tanto se contorcer.

“Essa é a coisa mais engraçada, ever!”

Conseguiu dizer apenas ao domar os risos e as lágrimas.

“Cara, você me deu duas semanas terapia agora! Putaquepariu! Que
coisa foda! ‘Minha Flor’ é foda, cara!”

Abalado e ofendido, Burro saca do palmtop as fotos que tirara da me-
nina. Linda, linda! Aliás, lindíssima! Morena, olhos negros e fundos,
rosto delicado, corpo de vespa. Acintosamente exibe as dos dois se bei-
jando e pára ante o olhar estupefato dos amigos.

“Pois é. Mó gata!”

“Qual o preço? É. Quanto você tá pagando para a menina posar de sua
namorada.” Pergunta, impromptu, Grande.

“Não estamos namorando. Não quero relacionamento sério.” “Ah!
Qualé! Mó gatinha e você não vai amarrar com chave de pica?” “Pois
é. Você vai ver. Se a minha teoria estiver certa, vou ficar cercado de
mulheres maravilhosas em pouco tempo.”

Dali a dois meses, os amigos mal conseguiram ver Burro. Ou ele saiu
com Sicrana ou com Beltrana ou com ambas ao mesmo tempo. Ou era
uma terceira, quarta. Já tinham perdido a conta. Só sabiam do histó-



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rico porque Burro informava-os religiosamente das novas conquistas.
Foto, dados cadastrais, breve histórico da conquista. Gordo já contava
para os seus amigos paulistas o orgulho que tinha do amigo nerd e co-
medor. Grande se calava e matutava.

Finalmente combinaram de se encontrar no Belmonte para chope e
pastel de camarão. Gordo chegara antes e saúda o Burro ao entrar.

“Como é que tá essa vida de pica-doce?” “Tá ótima! A merda é que não
dá para comer todo mundo. Não dá tempo. Ou como ou trabalho, né?”
“E tu vai largar o emprego?”

Burro ficou tenso.

“Nunca!” “Qual foi cara? Você odiava o emprego…”

Soltou Grande, já puxando uma cadeira e pedindo um chope e uma
Coca-cola.

“Conta aí a teoria que transformou um nerd magrelo, antipático e mal-
vestido em um comedor de primeira linha.” “Fui promovido a Geren-
te Sênior de Marketing n’A Empresa.” “Porra cara! Parabéns! Parabéns
mesmo, mas o que isso tem a ver com aumentar a densidade de mulher
boa ao teu redor.” “Cara, mulher sente o cheiro do poder à distância.
Sabe que cara com cargo bom dá segurança e estabilidade.” “É. Quem
gosta de pica é veado. Mulher gosta é de dinheiro.”

Gordo ri, meio que acabrunhado, dessa afirmativa.




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“Não vou discordar. Mas qual era o lance da primeira menina?” “…”
“Fala negão! Conta aí…” “Prometi uma promoção à ela…” “NÃO
ACREDITO! TU É UM FILHO DA PUTA!”

Grande realmente ficou preocupado.

“Pois é. Isso vai dar merda, cara. E se a menina te processar por assé-
dio?” “Ela já tem a promoção. Já tava certo. E foi para Curitiba. Eu só
me aproveitei disso.”

Gordo explode novamente.

“NÃO ACREDITO! TU É UM GRANDISSISSIMO FILHO DA
PUTA!” “Não nego. Vi a ficha dela aprovada e só precisava de um OK
meu. Nunca negaria, claro. Mas ela se insinuou cheia de charme me
pedindo a aprovação. ‘Ah, chefinho… eu faria qualquer coisa para ter esse
ok.’ Paguei para ver né?” “Tu é um merda mesmo!”

Grande ficou puto.

“Tu foi é assediado, mané! Gravou a conversa dela ao menos?”

Burro apontou pro PDA e tocou um MP3 de lá. E não é que o veadi-
nho não tava mentindo? Ouviu-se com clareza a voz da menina se in-
sinuando.

“O que importa é que fiquei com fama de comedor e bom partido. Sei
que isso não vai durar, mas vou aproveitar.” “E Vênus, cara?”

Soltou Gordo sem pensar duas vezes.



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“Como é que fica?” “Não fica. Ela não me quer. Se pedir para mim,
caio de quatro aos pés dela, mas não vou ficar esperando o tempo pas-
sar. E tá divertido para caralho!”

Grande olhou meio de rabo de olho, pediu um caldo verde entre um
“suco de pica de Hulk”, “sopa de radiação gama” e outras piadas de
cunho nerdístico e comeu em silêncio, ouvindo as peripécias sexuais do
Burro. Pra si, matutou: “vai dar merda” e pediu a conta. Foram todos
para casa cedo.

Daí a mais duas semanas, foi Burro que chamou os amigos para ir ao
Stephanio’s.

“Tô na merda, galera!”

Sempre que o Burro propunha o Stephanio’s, tinha alguma merda para
contar. Ou uma dor de corno ou uma desilusão, ou um pé na bunda ou
um fora hercúleo. Mas de certo era papo de mulher. Era assim que ele
funcionava: Stephanio’s: problema de mulher; Adega da Velha: proble-
ma em casa, família; Siri da Barra: problema de trabalho.

Os três se encontraram e de pronto reclamaram entre si da música ao vivo.

“Porra! Não sei porque insiste em vir aqui. Samba, cara! Que merda!”
“Porra Gordo! O bolinho de bacalhau daqui é simplesmente sensacional.”
“Gordo, senta. Burro, abre o bico. Garçom: duas Bohemias e uma Coca-
cola. Quatro copos. Uma porção de bolinhos de bacalhau. Não deixa as
Bohemias secarem. Fala, Burro. Qual o galho?” “Cansei.” “Como assim?
Cansou? Cansou de que?” “Cansei de putaria. De saco cheio de olhar
para o lado e não querer acordar junto daquela mulher. Quero alguém



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para acordar para sempre. Mais ou menos o que o Garcia Marquez dizia:
‘o sexo é o alento de alguém que ainda não encontrou o amor’. Saca?”

Beberam até amanhecer e até cantarolaram um sambinha ou dois.




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As funções da sarjeta




Já tinha quase dois meses que os três amigos não se encontravam. Gor-
do estava atolado de trabalho e problemas até o pescoço. Mudança para
o apart-hotel. Procurando um novo para alugar. Dividido entre a mu-
dança para o Rio e largar definitivamente os projetos que conduziu ou
continuar em Sampa e ficar longe da família e dos amigos. Principal-
mente dos amigos. Desde que fora para lá, não conseguira qualquer
companhia fixa para as atividades boêmias às quais estava acostuma-
do “em casa”. Digamos que a combinação casamento com mulher es-
petacularmente sexy, uma certa tendência a ser ríspido em demasia com
os colegas de trabalho e uma forte propensão ao isolamento social não
permitiam que ele criasse os vínculos normais para encher a cara regu-
lar e socialmente.

Findo o casamento e terminado o contrato de cinco anos de consulto-
ria em Sampa, que poderia ser renovado num estalar de dedos, ele se
deparou com o dilema da volta para casa ou ficar rico. Optou pela pri-
meira já que tinha amealhado uma boa quantidade de numerário para
viver, com alguma moderação, sem trabalhar o resto da vida. E pode-
ria fazer um bico aqui e ali para completar alguma extravagância even-
tual. Afinal de contas, sempre se precisa de um advogado especializado
em direito tributário. Principalmente um com sobrenome de ex-presi-
dente e com trânsito no Banco Central.



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Grande estava atolado com os projetos. Rio Cidade. Pan-Americano.
Dois hotéis na Barra da Tijuca. Nenhum deles entrou. Tava tudo cer-
to, orçamento direitinho, equipe afiada, pedigree de projetos anteriores,
putas pagas para as pessoas certas. Nada poderia dar errado. Mas deu.
Resumo da ópera? Tava já queimando as reservas e ainda era junho.
Pior, sem perspectivas de entrar trabalho grande até outubro. Resolveu
sentar na merda e ver o que faria. Não estava a fim de dispensar a ga-
lera, mas também não escondeu o jogo. Passava as tardes promovendo
campeonatos de Counter Strike no escritório para tentar levantar a mo-
ral da turma e cometeu um ou outro excesso orçamentário ao bancar
um curso de CAD para um funcionário. Afinal de contas a equipe era
enxuta e boa. E sempre estavam ali nas roubadas.

De cabeça quente, resolveu vender o apê de quatro quartos na Atlântica,
com vista para a Aires Saldanha. O famoso Sessenta e Nove do Grande.

“Sessenta e Nove, Grande? Não entendi!” “Tu é Burro mesmo! É um
meia-nove clássico, cara! A posição é excelente, mas a vista é um cú!”

Num papo com Gordo, este se interessou em alugar o apê. O que seria
bom para os dois. Gordo sempre gostara da proximidade do apê com
a Help por motivos de conveniência sexual e Grande ia ficar tranqüi-
lo que o morador iria manter a tradição de orgias pela madrugada que
o Sessenta e Nove tinha.

Então foi assim. Gordo chegou no Galeão, pegou um tê-xis e largou as
malas na sala do apê. Exatamente isso. Já tinha a cópia das chaves fa-
zia uns dez anos. Aliás todos os três tinham as chaves do apartamento.
E da portaria. E nas épocas áureas tinham até dos carros uns dos ou-
tros. Nunca se sabia quem poderia precisar de uma ajuda emergencial.



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Fosse pelo álcool consumido, das drogas experimentadas, das namo-
radas-casos-encrencas-pretês-que-resolviam-surtar-quando-pegavam-
um-ou-outro-pelado-com-umas-e-outras e etecetera.

Esperou Grande chegar com um uísque que tinha trazido num “adian-
tamento” da mudança. Se bem que, de mudança mesmo, tinha pouca
coisa para trazer de Sampa. As roupas, os livros, os CDs viriam no ca-
minhão. Os móveis, vendera por lá mesmo. Tapetes, cortinas, copos,
talheres. Não precisaria de nada disso.

Sabia que o apê estava mobiliado por três gerações de herdeiros de
Copacabanenses típicos. Ricos, amorais e extremamente poseurs. Só
Grande fugia à expectativa da família.

Rico? Sim, de fato, mas não aumentara a fortuna, ao contrário, gasta-
ra boa parte na empresa que estava em dificuldades.

Imoral? Pós-moderno seria mais adequado.

Poseur? É. Não tinha como negar o sangue da família de pleibóis.

Grande chegou acompanhado de Burro que entrou já vomitando bullshits.

“… e o sistema novo é mais inteligente, evita aquele absurdo: quanto
mais dados você joga, maior a sua chance de tirar um botch o que ferra
o conceito dos dots. Pô, se o cara tem vinte dots num skill ele tem 3.456
vezes mais chances de tirar vários uns que o cara que rola apenas dois
dados.” “Você inventou esse número, né?” “É claro!” “Mas entendi. E a
história, o background? Fala Gordo! Nem me ligou, seu puto!” “Os dois
veadinhos sempre juntos! Cueca gosta é de cueca, né?” “Não é bem as-



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sim, Ilmo. Sr. Dr. O. Gordo! Qual a boa? Puteiro? Termas? Cacha-
ça?” “Vocês vão me chamar de veado, mas eu quero é encher os cornos
hoje!” “Falou o ex-dono da casa. E você manda hoje!” “Simba para um
boteco que abriu aqui perto, em Copa mesmo. E deve ter umas ‘meni-
nas’ por lá.” “Caraca, Burro, não me adimira que você viva fodido de
grana. Gasta tudo numas putas de quinta.” “Gordo, o Burro assusta
qualquer mulher que não saiba o cargo dele n’A Empresa.” “Executivo-
zinho de merda, você, Burro. Aposto que não tá comendo nem estagi-
ária.” “Vamos para a cachaça que o papo aqui tá brabo.”

Desceram os três para a rua e ganharam a noite.

Cinco da manhã, sol nascendo, foram até o quiosque em frente ao Me-
ridien, no Leme, para tomar água de coco e tentar entender o que esta-
va acontecendo. O mundo não parava de rodar, o Burro tava calado fa-
zia duas horas. Gordo estava animado e falante. Grande estava otimis-
ta para com o futuro. Algo não fazia sentido.

Pararam para ver o Sol nascer. Cena patética. Três homens no fim dos
trinta, sentados num banco de cimento do calçadão do Leme. Dois be-
bendo água de coco – Burro estava vomitando as tripas e tentando se
hidratar com água mesmo – e todos com olhar idiota para o espetácu-
lo que se anunciava.

Um tipo esquisito atravessou a faixa de areia e foi na direção do mar.
Não deu para ver direito o rosto do distinto, mas parecia atrasado pelo
jeito que corria. Tava de jeans, tênis e camiseta e não parou para tirar
nada ao entrar na água. Com o Sol no horizonte, pouco viram e, nesse
pouco, perderam o cara de vista.




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Atrás deles, um casal discutia alguma coisa que tinha começado na noi-
te anterior e envolvia, um café, uma promessa de se encontrarem e uma
besteira que ele dissera sobre mudar as pessoas com quem se convive.

“Mas relacionar-se é mudança. É entender o outro e ceder onde se é
necessário. Da mesma forma que o outro cede para que possam convi-
ver, dividir o espaço das escovasde dentes, trocar o papel higiênico ou
o lado da cama que vão dormir.” “Mas não é mudança. É aceitação do
outro como ele é.” “Mas mudança não é negação. Quando um dos dois
não aceita abrir mão de nada do relacionamento, tipo a pelada de quar-
ta à noite ou o carteado com a rapaziada nos domingos à tarde, ele não
está disposto a se relacionar.” “Mas existem limites para esse ceder, a
esse mudar. Eu não cedo. Não mudo.” “Te provo que você está enga-
nada.” “Não prova.” “Quando você decidiu me encontrar, disse-me que
não iria me ter. Ou melhor, que não dormiríamos juntos.” “Verdade,
mas não dormimos.” “E me disse que não amanheceria comigo. Tinha
muito a fazer no dia seguinte.” “…” “Diga oi para o Sol, meu amor.”

A morena, que parecia ter uns vinte e três anos, olhou encabulada para
ele – que tinha uns quarenta por baixo – e deu-lhe um beijo.

Grande olhou para os dois putos ao seu lado e viu que os laços entre eles
eram mais fortes que qualquer feromônio. Eram forjados no álcool, na
sarjeta, na humilhação mútua, no sarcasmo e tudo mais que enobrece o
ser humano. Tudo aquilo que dá sentido para o acordar no dia seguinte.
E que um daria o braço direito pelo outro, se fosse necessário.

Grande levantou-se de sopetão e berrou, bêbado ainda.

“O braço sim! Mas o cú não, seus pederastas!”



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90   urbanóides
Dos problemas corporativos e das putas




Burro andava mais animado do que a média. De lá de dentro de sua
baia corporate, voiciferava impropérios em diversas línguas. Não que
fosse mestre em alguma delas, sua educação sempre fora improvisada
e incompleta na melhor das hipóteses, mas sabia como sobreviver em
oito idiomas diferentes.

“Farabuto!”

Tinha feito diversos cursos na Europa e trabalhara em umas três mul-
tinacionais antes de ser convidado para A Empresa.

“Sonovabitch!”

Sempre colara nos chefes “importados” para ganhar um pouco mais
de prestígo e experiência. Seu alto conhecimento do bas fond cario-
ca também ajudava a reforçar a boa imagem do Brasil com o exterior.
A imagem de povo pacífico, amistoso e “receptivo” era endossada por
Burro sempre que podia.

“FILHO DA PUTA!”, berrou na entrada da baia para todos os fun-
cionários.




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“Esse filho da puta me deu o cano!” “Calma chefinho, calma!” “Porra,
Rogê! Vai puxar o saco da diretoria que hoje tô com o ovo virado!”

Entrou de volta, bufando. Sentou-se na cadeira. Ligou o laptop e cha-
mou a secretária.

“Dona Paula! Traz um café e dois quilos de boa vontade que o dia vai
ser longo!” “Ó doutor, o seu Marconi quer falar com o senhor. E ele
tava meio puto da vida.”

E lá foi Burro engolindo o café com úlcera que ele consumia todos os
dias pela manhã. Subiu os seis lances de escada que separavam-no da
presidência e adentrou a sala do Doutor Marconi.

Doutor Marconi estava no Brasil há seis anos, desde a chegada d’A
Empresa em Terra Papagalis e Burro tinha conseguido quebrar sucessi-
vamente com ele o seu recorde de gafes e comentários inoportunos com
pessoas de alto ranking empresarial. A bem da verdade, Burro tinha o
dom de dizer a coisa errada na hora mais imprópria, mas o seu carisma
o defendia de quaisquer outras conseqüências mais nefastas que ganhar
o rótulo de “excêntrico” ou de “distraído do marketing”. Pena que isso
não o tinha protegido da bile certeira do Doutor Marconi.

Subiu, conversou e desceu cabisbaixo.

“Tô fodido.”

Confessou ao Gordo quando acabou o expediente. Gordo passara por
ali porque sabia que tinha inaugurado uma nova “casa de tolerância”




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em Jacarepaguá e ele queria um companheiro que topasse uma expedi-
ção antropológica nessas ermas áreas.

“Mas porque tá fudido? O que você fez de errado agora? Falou alguma
merda? Mandou algum arquivo errado? Roubou…” “Não! Isso nun-
ca!” “…algum enfeite da mesa do chefão?” “Pior, muito pior.” “Então
conta!” “O filho do chefão veio da Itália semana retrasada e foi com
uma galera ‘confraternizar’ em Copacabana. Tava toda a gringaiada na
Help dançando, bebendo e se esbaldando com ‘as meninas’ quando sa-
quei que o moleque tava meio sorumbático, não tava se soltando e tal.”
“Era veado, o moleque?” “Porra Gordo! Espera eu terminar de contar
a história!” “Tu enrola muito. Era veado ou não?” “Era. Não era. Sei lá,
porra. Parece que tá na moda de viadinho ficar em dúvida se vai dar o
cú ou não. Porra, no meu tempo ou a bicha era ou não era. Não tinha
essa de experimentar ou de não ter certeza. Se não era, mas tinha skill
pra isso a galera já zoaria o putinho de tal maneira que não teria ou-
tro jeito. Ou ele ia carcar a primeira vagabunda, ou ia dar o rabo des-
de cedo.” “E o veadinho do filho do teu chefe?” “Pois é. O moleque ca-
tou uma vagaba lá. Porra cara, o menino tem dezoito anos mal com-
pletados. Tem um pai que tem a largura de uma lápide de mármore e
que deve ter um enorme coração de chumbo. Se o moleque desse pinta
ali no meio dos filhos da puta que trabalham com o pai, ele iria man-
char o nome da famiglia toda.” “Tá. Tu levou o moleque pro puteiro.
Ele carcou uma lá. Qual a merda que você fez?” “Parece que o mole-
que gostou do esporte. E como fui eu quem apresentou ‘a menina’, vi-
rei o best man nessa nova vida.” “Ainda não entendi qual o problema.”
“Péra! Daí o Doutor Marconi me chamou na sala dele. Tava meio ir-
ritado porque o menino andava direto na noitada, sem dormir direi-
to, sem ir às aulas e tal, mas tava contente porque ‘ despertei o macho si-
ciliano que dormia dentro dele’.” “PORRA! E tu diz que tá fodido? Tá



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na maior fita com o chefão e tá reclamando?” “O moleque tá traçando
tudo quanto é puta de Copacabana, Gordo. Ou vai pegar doença ou vai
ganhar um filho em breve.” “Saquei, daí a culpa vai ser sua, né?” “Exa-
tamente!” “É. Tu tá fodido.”

Saíram e foram afogar as mágoas no Devassa da Barra. Lá pelas tan-
tas, chega Grande com duas amigas. Velhas amigas. Suzi e Fabi. Eram
boas de copo, boas de papo, péssimas de cama. Já tinham ficado com os
três nas suas remotas adolescências de milênio passado. Não dera cer-
to. Eram “homens de saia” como dizia o Gordo. “Diluidoras do extrato
escrotal”, segundo Burro. Tudo inveja, dor de corno e tal. Na verdade,
elas eram testemunhas dos fracassos de cada um deles. Fracassos como
homens, como gente, como criaturas inventadas.

“Quer dizer que Burro colocou o menino no ‘Bom Combate’ e deu
merda? Tu é um merda, Burro.” “Mas Suzi, vai que o menino apren-
de o caminho que lhe é de direito.” “Fabi e Suzi, não tem jeito. Quem
nunca comeu açúcar, se lambuza com melado.” “Mas não tem jeito,
Burro?” “Tem não Grande.” “Tem sim.”

Gordo sempre tinha uma solução. Normalmente era imprópria ou ile-
gal. Neste caso era ambas.

“Pega o moleque. Apresenta para aquelas suas amigas que curtem car-
ne fresca. Deixa as balzacas ensinarem o caminho para ele. Elas não
querem filhos ou já têm os seus e prezam a liberdade que conquista-
ram. Na pior das hipóteses vão dar uma chave de buceta no moleque e
ele vai ficar apaixonado.” “Boa.” “Pera lá. O menino é bonito?” “É sim,
Suzi.” “Pô Burro. Põe na fita.” “Peralá!” “Pô Gordo, põe na fita. Ou eu
ou Fabi damos um jeito no moleque. Colocamos ele na linha.”



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Os três se entreolharam com cara amargas e meio que não concorda-
ram. Mas sabiam que não teria jeito. As duas quando queriam alguém,
nada ficava no caminho. Dali a duas semanas era o italianinho com
uma uma na Melt ou com outra na Nuth, com uma na Ploc ou com
outra na Soundtrack. Um mês se passou, o moleque voltou para a Itália
e os cinco se reencontraram para um chope. Na verdade os três manés
foram convocados pelas meninas. Impreterivelmente.

Marcaram num pub novo lá na Paula Freitas. As meninas moravam em
Copa e normalmente saíam dos botecos em estado pior que os nerds.
Chegaram, chopearam, chopearam mais um pouco, contaram piadas,
sacanearam a tudo e todos e só tangenciavam o assunto. Ninguém fa-
lava no menino. Nem elas. Obviamente havia algo de errado.

“Porra. Tamos aqui desde cedo rodando o assunto e ninguém fala.”
“Deixa quieto gordo. A cerva tá descendo macia e não tô a fim de falar
de homem.” “Porra Grande. Então tu veio porquê?” “Vim porque gos-
to de beber aqui. Não se nega cerveja boa nem ida a boteco novo.” “Tá
bom. Tu tá roxo de ciúmes só porque o veadinho lá comeu a Fabi.” “Pe-
ralá! Não põe o meu nome nessa história!” “Como não? Ele te comeu
ou não?” “Não, porra!” “Então comeu a Suzi!” “Também não me co-
meu.” “PORRA, CARALHO. PUTAQUEPARIU!” “Que foi Gor-
do. Tu tá nervoso com o quê?” “…” “Deixa ele quieto, Burro. Gordo, o
menino não comeu nem a mim nem a Suzi. Mas não posso dizer das
minhas amigas. Elas gostaram bastante do menino.” “!” “Que cara é
essa, Gordo. Eu e Suzi até tínhamos a intenção de ‘fazer’ o menino
sim. Mas não dava.” “É, meninos. Não rolou.”

Ficaram os três estupefatos enquanto as duas riam e contavam dos ca-
sos das amigas. Estupefatos e invejando ter vinte anos e duas amigas



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balzacas para apresentá-los aos prazeres da vida. Puto, depois de horas
olhando a cerveja stout esquentar no copo, Burro se levantou.

“Eu sou um merda mesmo. Mesmo não me fodendo, me fodi.”

Em solidariedade, os outros dois se levantaram e foram mijar. Quando
sentou de volta, antes dos amigos, Fabi sussurrou-lhe no pé do ouvido.

“Você foi o melhor dos três.”

As duas pagaram a conta inteira e levantaram-se. Sabiam que uma pe-
quena mentira sempre seria seguida de outra e nada como uma peque-
na verdade para terminar a corrente.




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Como ser inconspícuo em três lições




Grande sempre fora o mais discreto e o mais festeiro da turma. Apron-
tava e envolvia-se em tantas ou mais confusões que os outros mas man-
tinha um low profile que invejava a todos. Sempre que as mães, namo-
radas, amigas ou mesmo conhecidos os criticavam por um vexame ou
um comportamento inadequado, tomavam-no como exemplo.

“Nunca que o Grande vomitaria no sofá da sua tia.” “O Grande não
fica apalpando as amigas da namorada. Aliás ele apresenta a namora-
da, não uma ‘essa é uma amiga’.” “Aquele seu amigo (o Grande né?) tem
opinião. É, definitivamente, uma pessoa de caráter.”

Na verdade, Grande media muito bem as palavras que usava e os gestos
que praticava. Não que racionalizasse cada gesto, era mais como uma
programação em backlog que ele “rodava” na sua cabeça. Era quase que
inconsciente o processo de se colocar nos eventos sociais. Ele mesmo
dizia apenas que tinha “compostura”. Apenas isso.

Mas, para quem era mais próximo, Grande não era essa flor social
toda. Só que, além de Burro e Gordo, apenas um punhado de pessoas
poderiam ser chamadas de próximas. Então ele conseguia circular bem
entre as mais diversas esferas. Era uma vernissage de um livro de de-
signers aqui, uma recepção no Palácio da Guanabara ali, uma inaugu-



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Urbanoides, de Zander Catta Preta

  • 1. urbanóides zander catta preta
  • 3. urbanóides por zander catta preta
  • 4.
  • 5. urbanóides por zander catta preta
  • 6.
  • 7. Esta obra está protegida por licença da Atribuição – Uso Não-Comercial – Não a obras derivadas 2.0 Brasil Você pode: copiar, distribuir, exibir e executar a obra sob as seguintes condições: Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante. Uso Não-Comercial. Você não pode utilizar esta obra com finalidades comerciais. Vedada a Criação de Obras Derivadas. Você não pode alterar, transformar ou criar outra obra com base nesta. • Para cada novo uso ou distribuição, Você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra. • Qualquer uma destas condições podem ser renunciadas, desde que Você obtenha permissão do autor. Qualquer direito de uso legítimo (ou “fair use”) concedido por lei, ou qualquer outro direito protegido pela legisla- ção local, não são em hipótese alguma afetados pelo disposto acima. www.creativecommons.org foto capa – escultura de Vigeland Open Air Museum zander catta preta – arte capa e miolo revisão – Gabriela Graça
  • 8.
  • 9. Agradecimentos À Cata r ina Botel ho Cat ta Preta que se reve- la um anjo que me renova a esperança no ser humano. Se não por mérito (a inda), então pela presença e possibil idade. Ag radeço também à Ma r iana Blanc pela rev isão inicia l e pelo apoio constante, Luciana A r raes que conseg uiu transfor- ma r bits e by tes em átomos, ca rinho em rea l ização, Gabr iela Graça que a rduamente rev isou os inúmeros erros desse apren- diz aqui, Lia A mâncio que me convenceu de que eu sou capaz de faz er ma is que caça r megatérios e, f ina lmente, à comuni- dade de amigos, leitores e “moradores” do sítio de comunidade Mu ltiply (www.multiply.com) que, com críticas, elogios ou sim- ples presença, estimu la ram e impu lsiona ram essa modesta obra.
  • 10. Sumário Filosóficas Pale blue eyes ...........................................................................................15 Hoje tive um sonho ruim ...................................................................... 19 O país dos covardes ............................................................................... 21 Somos legião ......................................................................................... 23 Infância E assim se passaram sete anos ...............................................................27 Jão com medo ........................................................................................ 33 A menina que pulava os anos ................................................................ 35 A moça dos dentes ................................................................................ 37 O mistério do copo vazio ......................................................................39 Tipos solares Sunday morning ..................................................................................... 45 Uma crônica de Marte e Luna ............................................................. 49 Wouldn’t it be nice ................................................................................... 53 The ghost of you .......................................................................................59 I’m waiting for the day ............................................................................65 Dois velhos bêbados .............................................................................. 71 Trinca de nerds O sexo é o alento ...................................................................................79 As funções da sarjeta ............................................................................. 85 Dos problemas corporativos e das putas................................................ 91 Como ser inconspícuo em três lições ....................................................97 Urbanóides Sobreviventes da maratona .................................................................. 105 De prêmios Nobel e sonhos em azul ...................................................109 Historinha ............................................................................................ 113 Toes across the floor ................................................................................. 115 The sky is a landfill .................................................................................119 Skin and bones .......................................................................................123 Rua Siqueira Campos, 143 ....................................................................125 Uísque e chope .................................................................................... 129 Ne me quite pas ......................................................................................133
  • 11. The murder mystery ............................................................................... 139 Three imaginary boys ............................................................................. 143 Horizonte roubado .............................................................................. 147 That´s life ............................................................................................... 151 You little fool .......................................................................................... 155 Vernissage ............................................................................................161 Sweet little sixteen..................................................................................165 Linhas tortas ........................................................................................171
  • 12.
  • 13. “(...)Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó principes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?(...)“ Poema em linha Reta - Fernando Pessoa
  • 14. 12 foto: arte sobre foto da Máscara de Agamenon (cerca séc.XVI a.C.) urbanóides
  • 16. 14 urbanóides
  • 17. Pale blue eyes – pós Velvet Underground Diziam que ele era o rapaz perfeito: inteligente, hábil, bonito, educa- do. Era obediente e levado, sabia instintivamente quando podia for- çar uma situação ou quando poderia deixar o destino cuidar da si- tuação. Era excelente na escola, notas à perfeição. Achava que tinha o mundo em suas mãos. De fato tinha. Um dia, encontrou um par de olhos azuis. Eram os primeiros olhos azuis que via. Pele branca, cabelo negro e olhos como bolas de gude. Encantou-se por eles e decidiu que queria acordar ao seu lado o resto de sua vida. Que queria ter filhos com esses olhos. Que envelheceriam juntos e ficariam vendo o tempo passar quando se aposentassem. Com- prariam um café em Paris. No primeiro piso o café, no segundo livros e doces. E isso era bom e certo. Mas ele sabia que estava escrito que não ficariam juntos. Ela lhe passa- ria ao largo da vida. Nunca mais se lembraria do seu nome ou que sen- tava a uma carteira na segunda série. Até porque ele adotaria um outro nome para si quando chegasse à maioridade. Um nome mais curto que o da chamada, um apelido mais forte. Por sua vez, ela mal se lembra- ria do franzino de franjas que lembrava uma menina. E ele ainda usa- zander catta preta 15
  • 18. va um nome curto. Não forte, nem feroz. Apenas infantil, um apeli- do de criança. E ele tinha lido o livro de sua própria vida várias vezes. Numa noite acordou, vagou pela sala vazia e sentou-se no sofá. Acen- deu um abajur e começou a ler um gibi de terror qualquer. Teve um pouco de medo de andar descalço de volta para a cama: “A Mão vai me pegar!” diria duas semanas mais tarde para a mãe que lhe proibiria café, açúcar e gibis de terror. “Não compro mais gibi de terror para você. Super-heróis pode! Môni- ca também!” “Mônica é de menina, mãe!” “E aquele de dinossauros?” “Esse é legal! Quero o do Tio Patinhas também!” “Tá bem!” Mas esse diálogo se daria apenas duas semanas depois de sua primeira virada. Leu o gibi de cabo a rabo duas vezes e só conseguiu pregar os olhos quando o sol raiava. Antes de amanhecer decidiu. “Não quero ganhar a vida. Vou ser ganho por ela.” Sempre sabia o que os outros iriam dizer, advinhava o que lhes encan- taria mais, sabia que aos onze trocaria de escola, aos dezessete entraria numa faculdade, aos vinte e cinco terminaria o seu mestrado, aos trin- ta dominaria o mundo, aos noventa morreria odiado, sem filhos, sem legado mas imprimiria a sua marca indelével na história. Cem anos de- pois de sua morte, a humanidade encolheria para um sexto mas teria sua expectativa de vida aumentada em quatro vezes. Teríamos Lua e Marte 16 urbanóides
  • 19. colonizados, andaríamos em carros voadores e trabalharíamos três horas por dia apertando botões. Mas antes passaríamos por sua ditadura que expurgaria as fronteiras e as liberdades. Seria um senhor terrível e po- deroso nos sessenta anos de seu reinado mundial. “Não quero ser rei. Quero ser um pai.” Falou para a sombra que o ze- lava do umbral da porta. Ela fechou os livros que carregava ao mesmo tempo em que ele se calava. “Teu sangue herdará o mundo de uma forma que poucos jamais con- seguiram. Serás um deus entre os deuses, uma lenda entre as lendas. O maior dos homens.” Disse a sombra. Decidiu que não queria o mundo mesmo. Os olhos azuis valiam mais. Foi para a escola, olhando com cuidado para os cantos escuros do ca- minho para ver se A Mão não aparecia para pegar a sua perna. “Você não vai comer mais açúcar! Que é isso! Menino dessa idade vi- rando a noite!” Não deu bola para a vó que o levava. Parou na banca, comprou figuri- nhas. Dividiu em dois pacotes. Uma para as repetidas e a outra com as que não tinha colado no álbum, entregou para a vó. “Tó!” Esperaram o portão abrir e entrou para as aulas. Sabia o que a profes- sora iria dizer antes mesmo de vê-la. Encontrou o Capitão Asa cantan- zander catta preta 17
  • 20. do Sideral e guardou na memória a letra da música. Subiu para a sala e sentou-se atrás dos olhos azuis que nem por relance o fitavam. Ao chegar em casa recebeu a notícia que iriam se mudar do Méier no meio do ano. Ele teria de sair da escola e iriam para Copacabana. Num átimo o seu mundo caiu. Tudo aquilo que tinha lido no livro de sua vida, todos os planos futuros, a certeza das coisas que ocorreriam, não serviria mais de nada e agora via, ainda que desmanchando no ar, os restos dos fios que ligavam suas mãos e pés ao nada. Ainda era uma marionete do destino, mas não sabia mais qual o seu papel na peça. Chorou um pouquinho. “Não quero ir para a outra escola.” “Mas lá tem praia, dá para catar ta- tuí e você gosta tanto.” “Quero ficar na vila com as amendoeiras e a pipa e o jogo de bolinhas de gude.” “A escola de lá é melhor.” “Eu que- ro essa aqui!” “Não tem jeito, filhinho.” Chorou mais um bocado. As férias o fizeram esquecer as aulas e mudou-se no meio de julho. Ao entrar na nova escola não sabia o que a professora lhe diria mas encon- trou um par de olhos verdes sentados na segunda fila. Sorriu por fim. 18 urbanóides
  • 21. Hoje tive um sonho ruim Achei que não via mais caminhos à minha frente, que não havia mais motivos de caminhar. Queria me entregar ao tempo, envelher cem anos por hora, me tornar pó antes do meu tempo. Ser passado, nem presente nem futuro. Queria que todos me esquecessem, os bancos, os cobradores, a família, os amigos, os inimigos… Queria me tornar uma coluna, dórica ou jôni- ca, vertebral ou não… apenas servir de decoração à paisagem da vida. E aí você me veio. Aliás, nessas horas de tristeza, de verdades absolutas, quando o uni- verso resolve mostrar ao homem o quão pequeno ele é, nessas horas em que o desespero se senta na cadeira atrás de você, quando as cores per- dem intensidade e o gris parece atraente, você vem, sem vir, aparece, sem se mostrar e abre as janelas da minha manhã mal dormida. Quase como se cantasse um blues, eu resolvo escrever por ti, apenas por ti. Pequena, dos cabelos descacheados. Você é a minha pequena musa, é o meu rumo de cada manhã, as outras pessoas da minha vida são só um complemento da minha rotina. E tenho a certeza que acordarei zander catta preta 19
  • 22. amanhã, ainda triste, pois a maldade dos adultos ainda dói o meu co- ração de criança, mas certo que viverei o dia. Ainda sou um garoto aprendendo a usar os óculos… Queria ter aprendido nesses trinta e poucos anos a ser um homem me- lhor e maior. Talvez você me ensine isso. 20 urbanóides
  • 23. O país dos covardes Não abro mais a minha porta sem olhar pela câmera, falar pelo interfo- ne e pedir RG e CPF. Não olho as pessoas na minha rua, no meu pré- dio, sequer encaro meu filho adolescente. Não compro uma arma por- que ela pode se voltar contra mim. Não ligo para a polícia porque pos- so “me sujar com o movimento”. Fico amigo dos bandidos para que eles não me batam muito. Não voto. Não dou esmola. Não ajudo. Não ligo, nem retorno as liga- ções. Não namoro mais. Não trepo. Não saio. Não peço pizza, DVDs, água ou comida. Sou um escravo do meu medo. E pior, não estou só. Que tipo de humano me torno quando opto por morar perto dos meus iguais, mas distante do meu próximo? Que tipo de vida eu pretendo ter, que tipo de cidade eu quero para mim? Isto era para ser um texto curto sobre a revolta que eu sinto, de como nos transformamos em números, deixamos de ser pessoas para sermos coisificados, mas hoje, já não sei se me importo mais. Todas as vezes que tentei fazer algo diferente e achava que era digno e justo, ganhei a alcunha de otário. Me sentia um estranho, alienígena, zander catta preta 21
  • 24. um estrangeiro no meu próprio país. Se defendo o que é justo, me cha- mam de sonhador, se brigo pelo que é certo, me chamam de baguncei- ro, se cobro de quem tem de tomar atitudes, me mandam calar. Eis a expressão de quem se instala no poder, no poder de fazer calar. Mas ainda tenho um sonho: não sou o único aqui que acha que esse chão é para mim e meus filhos e os filhos destes; que acha que a me- lhor forma de viver é em cooperação com os outros, sem me aprovei- tar das fraquezas alheias; que existem outros como eu e que esses que me mandam calar são apenas invasores, eles alienígenas de um passa- do que deveria já ter morrido. Mas creio que a minha nação é de covardes. Covardes porque não berram, como berram esses fanfarrões; covardes porque não lutam, não matam, como fazem esses assassinos, bárbaros; covardes porque não cobram, com medo. Creio que sou mais um desses. Nas lendas que aprendi a gostar e escutava desde pequeno, sempre havia alguém que vestia as roupas de guerra de seu povo e lutava pelos choros mudos, pelos gritos calados, pelas liberdades básicas negadas. E a esse chamávamos de herói. Mas somos adultos, e sabemos que heróis não existem, a Terra dos Bravos é uma bazófia. Que faremos então? Não sou herói, nem o seu bardo, nem vou vestir as armas de quem me oprime. Só estou cansado de ter medo. 22 urbanóides
  • 25. Somos legião Eu sou de uma força de resistênca de poucos (talvez de apenas um). Sou de uma cepa que se recusa a admitir que somos apenas bundas, risos, pratos rasos, suor, números e dívidas em bancos ou cartões de crédito. Acho que sou mais que minha refeição diária, que minha luta eter- na em sobreviver e garantir que minha linhagem permaneça, mais que um propagador de um gene. Penso que sou maior que os meus atos, menor que minhas consequên- cias, tão grande quanto o meu querer. Mas o cansaço me drena o querer, sobreviver é mais difícil que nos meus sonhos, minha linhagem pode me trair, negando minhas essências, e os números que resumem minha alma, cada vez mais se avermelham. Então, como cidadão escarlate, quero me divorciar do casamento com o estado. Pois este não me quer, e como amante não compreendido, quero achar um novo parceiro. Quero querer mais, me livrar do desejo do sono e do descanso da mente. zander catta preta 23
  • 26. 24 ilustração: Catarina Catta Preta urbanóides
  • 28. 26 urbanóides
  • 29. E assim se passaram sete anos “Sobe que tem recado para você!” Subi as escadas correndo do subsolo onde tomava um café expresso, no esquema 0800 da Chefia, no restaurante japonês até a sobreloja onde trabalhava no Bureau. Estava na minha hora de almoço. Evento por si só bem raro dada a natureza caótica e feroz do meu antigo emprego. “Tua mulher ligou, disse que está com quatro centímetros de dilatação e a médica já a encaminhou para o hospital.” “Ela está no consultório? Já pegou um táxi? O que mais ela disse?” “Ainda está no consultório, mas disse para você ficar tranqüilo, ela está bem e indo para a maternidade.” Desci pro subsolo, avisei ao chefe que chegara a hora da Mãe pocar a Catarina. Parti, correndo, para a Avenida Rio Branco e peguei o pri- meiro táxi que passava. Besteira minha. Melhor ter pego o metrô. Eu saltaria a quatro quadras do consultório e a doze do hospital. Toca o celular (emprestado, é claro! Celular era coisa cara. Aliás, ainda é!). “Cheguei no hospital, vou para o quarto…” Interrompo-a. “Me espe- re aí! Não ouse subir sem mim.” “Não, mané! Passa em casa e pega as coisas da Catarina. Trouxe algumas roupas tuas já esperando a inter- zander catta preta 27
  • 30. nação, mas deixei as dela lá.” “Ok. Péra! Ok não! Vou para aí. O negó- cio deve demorar um bocado, então peço à minha mãe para pegar as bolsas. Além disso, é ela quem vai ver o parto mesmo. Você sabe que eu desmaio nessas horas…” “É. Eu sei. Então vem prá cá que a Médi- ca está ‘dando entrada’ aqui.” “Ok, ok e ok.” O carro se move com a letargia típica de uma quarta-feira, meio-dia, no centro do Rio de Janeiro. Parece que nunca vai sair da… Opa! ga- nhamos o Aterro do Flamengo e partimos para Botafogo. Puta que pariu! Botafogo engarrafa sempre. Que merda! Não vai dar tempo! que bosta… Opa! Chegamos na Mena Barreto! Agora é só um pulo. Pago. Saio. Desço. Encontro. “OI!!! VOCÊ TÁ LEGAL?” “Calma. Tô bem sim.” “E as contra- ções?” “Eu achava que eram gases. Tá bem fraquinho mesmo.” Daí, foi internação. Banho. Limpeza interna. Eca! Minha mãe chega. Combi- namos todos no quarto que a Mãe iria ver o parto, que eu não iria. Que estava certo e tal. Chega a enfermeira: “Está pronta, Mãe?” Referiu- se à que iria parir, não à que iria acompanhar. “Tô sim. Vamos.” “Está pronto, Pai? Você tem de vestir a roupa.” Pois é. Assim como as mulheres têm um firmware instalado que as fa- zem saber tudo o que se relaciona a bebês no momento que eles nas- cem, algo em mim brotou. Algo inédito, coisa que nunca havia sentido antes. Acho que foi coragem. Ou burrice, dá na mesma. “Tô sim. Vamos.” 28 urbanóides
  • 31. Mãe e a Mãe Futura se olham. Não senti pingo de confian- ça vindo desses olhares. Com a coragem (ou privação temporá- ria dos sentidos) que recém recebera, parti para A Roupa Verde e A Máscara. Roupa Verde! Máscara! YEAH! Daí rola uma espera. Médica mede dilatação. Espera mais um pouco. Mede de novo. Um “é, acho que já dá” seguido de um “dá a injeção an- tes”. Injeção? É, injeção. Ok, ok, ok, ok. Não vou desmaiar. Não era injeção de verdade. Era uma agulhinha de nada, coisinha à toa. “É só isso?” “Não. Essa é só para preparar para a peridural.” “Ah! bom.” Quando o Anestesista saca o trabuco… Péra lá! Você não leu direito. Era um TRABUCO! Se fosse uma pica, seria o Long Dong Silver. Quando o Anestesista saca o trabuco, eu começo a ver o mundo girar. O Pediatra, que sabiamente se posicionara a meu lado, me dá um “abraço” de apoio. E eu NÃO desabo! U-hú! Deixa eu sair daqui correndo! “Sabe que a maioria dos pais sempre desmaia quando a mulher toma a peridural?” “Verdade?” “Não. Mas quis apenas te consolar um pouco.” “Mesmo que um pai desmaie, não dá muita dor de cabeça aos médicos, né?” “Nem. Só teve uma vez que um cara caiu na mesa de instrumen- tos e se cortou todo. Mas foi só uma vez.” Nota mental: ficar LONGE da mesa de instrumentos. Como assim ins- trumentos. Burro! Vão cortar a Mãe toda e depois costurar de volta. Eca! Bom, Mãe não pode mais ficar de pé mas não tem dilatação suficiente. Médica me expulsa do quarto de espera e fecha a porta. zander catta preta 29
  • 32. “Acho que estão amarrando um pedaço de ferro no pé da cama e mijan- do na porta enquanto acendem umas velas no corpo.” “Hein?” “Nada, deixa. Tô uma pilha.” “Você fuma?” “Não.” “Pena.” Toda a equipe médica fumava. E estavam vendo novela. E um deles dormia. Filhos da puta. Sem consideração. Sem empatia. Ainda me davam tapinhas nas costas. Parecia que eu era um estagiário ou uma forma ainda mais baixa de vida. Pronto. Tava na hora. Mesa de operações, ou de parto, ou de eutaná- sia. Não sei. Tudo igual nessa hora. A mãe começa a fazer força. Muita força. E berra. Mais que o normal. Menos que a vez que eu a deixei es- perando umas seis horas em casa enquanto fui tomar um pileque com o pessoal do trabalho. Menos ainda que quando eu gastei uns 500 dóla- res em figurinhas de Magic, the Gathering, coleção The Dark, esgotada, uma caixa fechada. Mas ainda berrava muito. O médico faz um “rolo de massa” com o braço esquerdo e pressiona dos peitos para as pernas, como se espremesse a criança para fora. Mãe berra ainda mais e a ca- beça começa a aparecer. Já era Catarina. Dez minutos (se tudo isso) depois, chega a baixinha por inteiro. Pe- quena, imunda. Nojenta mesmo. Mas linda. Nem enrugada estava, mas ainda parecia um joelho. O joelho mais amado da face da Terra. Me a colocam no colo. Ela nem chora (já haviam limpado-a com um aspirador de melecas placentais). Opa. O que acontece atrás de mim? Outro parto? ah! é a placenta. Puta que pariu! É outro parto… Bom… ao menos o pessoal pode puxar com menos delicadeza. “Pai, deixa eu ver… Você contou os dedos? ela tem dez dedos?” “Claro pô! Você acha que eu sou o Homer Simpson? (hoje, mais careca, gor- 30 urbanóides
  • 33. do, burro e atolado, eu penso se isso não foi uma profecia) Tá com dez dedos sim! Olha só.. é linda… e nem é um joelho.” Levamos a baixinha para a estufa, ou caixão da Branca de Neve, como eu prefiro contar à ela. Eu e o Pediatra que faz o teste do pezinho. “Você tem filhos?” “Quatro.” “E você viu o parto de todos eles?” “Ló- gico, né? Economizei uma grana… hahaha” “Mas não enjoou no quar- to?” “Não. Chorei em todos eles.” Da estufa, os avós, do outro lado do vidro davam adeus. Fomos pro quarto. Mãe dormiu. Eu acho que chorei um pouco. Mas guar- dei a lembrança desse dia, bem calada no peito. Abro só um pouquinho, quando chega essa data. Ou quando acho que nunca fiz nada direito. Catarina, não sei se você um dia lerá isso, mas agora faz sete anos que eu me senti uma pessoa melhor, maior e mais humana. Você agora tem os dentes moles, caindo aos poucos, e outros tomarão o lugar deles (es- pero!). Nesse quarto de Saturno, você saiu da infância-bebê e vai co- meçar, cada vez mais rápido, a virar gente grande. Vai ser uma pré- adolescente, uma adolescente (que invenções bestas da nossa socieda- de), uma jovem adulta e uma mulher. Mas não deixará nunca de ser o bebê que eu coloquei no colo, nos primeiros momentos de sua vida. E eu te amo. Beijos do pai (que não desmaiou!!) zander catta preta 31
  • 34. 32 urbanóides
  • 35. Jão com medo Jão tinha muitos medos, eram tantos que dava para fazer uma coleção deles. Uns grandes, outros pequenos, uns escuros, outros claros, uns azuis, outros cinza. Tinha tantos que tinha medo de ter medo e assim vivia escondido dentro dele mesmo, sem vontade de sair de seu peque- no mundo medroso. Um dia, um medo pequeno, pequenino mesmo, conseguiu passar por entre os poros da casca de ovo de Jão e ficou à espreita. Quando Jão passou em frente, ele pulou e disse: “Bu!” Jão, é claro, se apavorou e ficou pasmo, apalermado mesmo, defrontado com um medinho à toa desses. “Como pode isso? Eu sou maior e mais forte e mais esperto e mais bonito. Não é para ter tanto medo assim!” Decidido, Jão resolveu deixar a cara de bobo apavorado em casa e saiu com uma coragem nova. Quer dizer, uma coragem meio usada que en- contrara numa gaveta do quarto. Mas servia. Mal botou o pé fora da sua caixa de fósforos, se assustou novamente. O medinho chamou uma turma grande, uns cinco ou seis, e estava lá es- perando uma bola chegar. Sem bola, não tem jogo. zander catta preta 33
  • 36. Jão ficou atônito. De pé, de frente, encarando meia dúzia de pequenos medos, mais ou menos da altura de Jão. Tão rotos e encardidos e espe- rando uma bola qualquer que nunca chegava. Um medo, maior que os outros, passou em frente e perguntou: “Quer jogar conosco?” Jão, sem pestanejar, disse: “Não sei jogar!” E eles: “A gente ensina!” De bola em bola (que afinal chegou), de pé em pé, Jão ficou tão roto e encardido como os outros medos (pequenos, grandes) e teve muito medo de si mesmo. Voltou para a sua concha fechada e ficou esperan- do os medos, o tempo, a vida passar. Já velho, ele põe o pé para fora. Os medos pequenos cresceram e nem estavam mais rotos e encardidos, até gravata igual a de Jão usavam e ti- nham os seus pequenos medos com quem andavam de mãos dadas. E estes ex-medinhos andavam em carros, com suas janelas fechadas, com medo de falar com os medinhos que pediam dinheiro em sinais, ou que botavam navalhas nos pescoços ou que jogavam bolinhas de tê- nis pro ar ou que carregavam medos ainda menores nos colos, peque- nos medos que geravam outros… Jão havia feito isso antes… de tanto ter medo, não quis arriscar em viver. E os medinhos que jogaram bola com Jão agora eram outros Jãos, cada um em sua forma e jeito. Jão sentou no chão da rua, perto de outro que fedia e chorou porque sempre foi Jão Com Medo, nunca se deixou ser Jão Sem Medo, Jão Valente ou mesmo Jão Gente. 34 urbanóides
  • 37. A menina que pulava os anos Catarina era uma menina nos seus anos. Nem mais velha, nem mais moça. Ou melhor, às vezes era mais velha, ou mais moça. Ela pulava os anos. Tinha 4 ou 6, 3 ou 5, 1 ou 9, 5 ou 8, ninguém nunca sabia ao certo. Todo ano era um ano novo, mas novo mesmo. Às vezes nem ano era, basta- va ser um aniversário. Não é que ela não soubesse contar, mas dessa forma era mais divertido e ela ficava maior ou menor quando pulava os seus anos para mais ou para menos. Velha, moça, criança, bebê, nem uma nem outra. Brincava com os anos e com as horas também. Para ela, entrar no colé- gio era como sair; na hora de brincar, estudo; na hora de estudar, lan- che e no lanche, papel e lápis, elástico e corda, bola e areia. Tudo em volta de Catarina também a acompanhava nessa brincadeira esquisita. O pintinho que ganhou, virou ovo e depois galinha e, de re- pente, um dinossauro de penas que saiu voando pela janela. zander catta preta 35
  • 38. Os colegas de amarelinha envelheciam a olhos vistos, casavam-se, ti- nham filhos e filhas e seus filhos tornavam-se pais e avós, continuando sempre crianças. Criança-adulto, criança-pai-e-mãe, criança-criança. As horas do dia brincavam com ela, sempre 12, ou 24 ou 36. Às vezes 6, 20 ou 3. De 3 em 3 horas, o remédio que tomava quando estava boa, e cuspia quando estava doente. Ninguém entendia bem, mas ela se jo- gava assim, ficando confuso e divertido ao mesmo tempo com os anos, as horas e as eras pulando à sua volta. Mas teve um dia (manhã, tarde ou noite, sei lá!) que tudo ficou muito mais estranho. Ela ficou grande e pequena, velha e nova e seus amigos de tempos não mais a reconheciam. Não era mais menina, criança. Mas não era aduta, nem moça-mulher. Era isso tudo e nenhuma das coisas. Os anos já não pulavam em volta dela e ela não queria brincar mais com eles. Era já uma mocinha. De- cidiu ser assim daqui por diante. Só que os anos, as horas e os minutos, acostumados a ouvir a voz agu- da da menina, não reconheceram a mulher-moça que estava a lhes fa- lar. Não a escutavam mais. E o tempo passou a andar como anda para todos nós, tomando dela o que sempre foi seu. Só a memória de Catarina é que pulava os anos, de bebê a mulher, de filha a mãe. Tempos depois, seus netos bricariam com os dinossauros e as netas, en- tre as estrelas. 36 urbanóides
  • 39. A moça dos dentes Catarina me veio com mais essa. Disse que a Fada dos Dentes é muito pão dura, muquirana mesmo. E um tanto quanto distraída. Botou um dente debaixo do travesseiro, como manda a tradição dos fil- mes, seriados e desenhos animados norte-americanos, e foi dormir. Quando acordou, encontrou lá o dente, intacto. Meio que decepciona- da, ligou a televisão, comeu o café da manhã, se arrastou para fazer um xixi, viu mais televisão, brincou com as bonecas e se lembrou do dever de casa 3 minutos antes de sair para a aula de inglês. Chegou da aula de inglês, fez o dever (os dois que estava devendo, na verdade) se arrumou para a escola e foi ter mais aulas. No recreio, foi comprar um Porcalitos® (Luis Eduardo Ricon®2004) e encontrou uma moeda de cinqüenta centavos na sua carteira. Ficou fe- liz, é claro, e comprou duas balas a mais com a moça dos acepipes. Mas matutou bastante sobre o ocorrido. Quando caiu o outro dente dela, correu para a Mãe para mostrá-lo. zander catta preta 37
  • 40. “Mãe, caiu mais um.” “O que você vai pedir para a Fada dos Dentes, Catarina?” “Não é Fada, mãe. Fada é rica e essa moça dos dentes me deu só cinqüenta centavos.” A Mãe ficou um pouco envergonhada, pois o mês tinha sido aperta- do e mesmo que não fosse, não fazem moedas de dez reais, né? Mas emendou rápido: “Então, o que você vai pedir para a Moça dos Den- tes?” “Vou pedir para ser mais esperta! E no próximo para continuar sendo feliz!” 38 urbanóides
  • 41. O mistério do copo vazio “Pai, como se faz para esvaziar um copo?” Catarina inventando novamente… Tá certo que está na idade da razão mas isso não faz muito sentido pra ela. Vocês já sabem que ela pula os anos, né? Mas ela me veio como se tirasse as idéias da cartola, do nada mesmo. Não parecia ter pulado ano algum. “Anda Pai… como se faz para esvaziar um copo?” “Uai, Catarina, o copo aí tá vazio.” “Tá não pai. Toda vez que coloco água, ele enche de água; se eu coloco suco, ele enche de suco; e se eu tomo o suco ou a água, ele se enche de ar. Como se esvazia um copo?” Eu poderia explicar a ela que é só colocar numa câmara de vácuo e… entendi que ela estava falando de outra coisa. Não tinha nada a ver com copo, suco ou água. Fiquei na dúvida se ela tinha pulado muitos anos de uma vez só ou, pior, se era um extra-terrestre que tinha tomado o corpo da baixinha, com planos de dominação mundial. Por vezes vinha um ou outro tentar uma coisa dessas. Não dava muito certo porque eles não têm um extenso e vasto conhecimento de Bone- cas Barbie® e desenhos animados como toda criança na idade de Cata- rina tem de ter. Mas eles poderiam estar tentando novamente né? zander catta preta 39
  • 42. “Catarina, é você mesmo que está aí?” “Claro, né Pai. Você acha que é quem? Um marciano-japonês ou um inca-venusiano? Como se esva- zia um copo, Pai?” Eu peguei o copo. Olhei para dentro. E só tinha ar. Tentei assoprar e nada. Botei de cabeça para baixo e nada. “Desisto Catarina.” “Então vem cá que eu vou te ensinar.” Ela colocou o copo “vazio” na pia e deixou a água enchê-lo até a boca. Até entornou um pouco. Mas tavam lá um copo, a água do copo, uma pia molhada, uma Catarina com um sorriso maroto e um Pai com cara de bobo. “Cacá… não entendi.” “Pai. Taí! Será que você não vê? O copo nun- ca tá vazio. Não dá para esvaziar o copo. Só tem de encher ele com uma outra coisa. Se ar não tem gosto, vamos encher de mate, sorve- te e chocolate. E o doce e o mate tiram o ar sem gosto de dentro dele. É tão fácil, papai…” A danada tem o dom de adivinhar o que a gente sente, né? 40 urbanóides
  • 44. 42 foto: Museu Nacional de Economia da Suécia urbanóides
  • 46. 44 urbanóides
  • 47. Sunday morning – pós Velvet Underground Chegara em casa às duas da madrugada, passando as chaves na porta- ria com cuidado para não acordar o porteiro. Não queria que fosse des- coberto assim, sorrindo à toa, como se estivesse feliz ou coisa parecida. Mas sabia que estava com uma cara de moleque que quebrou vidraça ou que ganhou bola nova ou que tirou palito premiado no picolé. Estava com um sorriso tal que engoliria um sol. Entrou no elevador. Olhou no espelho. Viu um cara diferente do que ti- nha deixado ali, no reflexo. A barriga ainda era flácida, mesmo que a contraísse ainda que involuntariamente. Os cabelos já eram ralos na ca- beça, entradas fundas. O que era grisalho antes, nas têmporas, era qua- se branco agora. Mas ainda e tão somente nas têmporas. A barbicha bem cuidada não tinha pelo branco. Aliás. Tinha sim. Mas ele os pinçava. E o sorriso ofuscava quaisquer outros defeitos que tivesse. Apertou o nono andar. Subia como um cágado manco, andar a andar. Encostou na parede do espelho e tinha em si uma certeza, uma firmeza de caráter que nunca encontrara antes. Olhava os andares a passar um a um, contando os segundos para chegar em casa. Playground, terceiro zander catta preta 45
  • 48. andar, quarto andar. Mmmm vontade de mijar. Quinto, sexto. Chega logo, cacete. Sétimo, oitavo. Anda! Anda! Nono! Abriu correndo a porta, correu pro novecentos e onze. Puxou a chave no caminho e selecionou a certa insistivamente. “Merda! Não é mijo! O corvo tá bicando a cueca!” Abriu a porta de sopetão e se jogou no ba- nheiro com o caminho ainda em breu. Aliviado, fechou a porta de casa, acendeu a luz da sala. Diminuiu o brilho no dimmer. Pousou o celular no carregador, em frente ao compu- tador. Ligou o monitor e viu as mensagens que recebera na noite. Cen- tenas de mulheres deixavam recados! Não, milhares! Duas! Fechou o programa de mensagens instantâneas. Verificou as descargas de arquivos. Foi à cozinha. Preparou um sanduíche de feijão com ge- léia de morango e shoyu e sentiu falta do queijo parmesão ralado. Sen- tou no micro para ler emails e sentiu que iria se aborrecer. Nada estra- garia o seu sentimento agora. Encarou os emails e confirmou que, se fosse em um outo momento, talvez umas duas semanas atrás, surtaria e pegaria o celular para ligar para pessoas que não queriam mais ser li- gadas a ele. Assentiu e consentiu com o desejo alheio e deixou escapar singelamente: “Vaca!” Navegou um pouco na internet, descobriu sensacionais sites inúteis, desprovidos de qualquer informação relevante. Abriu o tradicional site de putaria e não ficou animado a descer qualquer um dos vídeos ama- dores que lá estavam. Acabou com o sanduíche e se perguntava por que comia aquela merda todas as noites. Deveria variar de vez em quando. Trocar a geléia por 46 urbanóides
  • 49. mostarda e o feijão por lentilhas. Achou que não era boa idéia. Já tinha problemas suficientes com gases e flatulência. Mas toparia uma pizza de alho e óleo. Fazia tempo que não comia em respeito às pessoas que dividiam o mesmo ambiente que ele. Ligou na Discovery que anunciava um documentário sobre o sistema solar. Riu baixinho para si mesmo e colocou um DVD. Faziam oito meses que não assistia Manhattan novamente e achou que estava mais que na hora de revê-lo. Ao acabar, se pegou choramingando mas ainda com aquele diabo de sorriso na cara. “Porra! Vou ser sacaneado se sair na rua assim ama- nhã!” Levantou, tirou o DVD e colocou um CD do Suede bem baixi- nho. Cantou Trash para si mesmo com lágrimas nos olhos e resolveu amanhecer. Já eram dez para as seis, né? Já tava de bom tamanho! Abriu a janela e se espreguiçou. Sabia que ele seria um bom doze de setembro. zander catta preta 47
  • 50. 48 urbanóides
  • 51. Uma crônica de Marte e Luna A menina estava disponível e ele também. Já se conheciam de outros carnavais e já fizeram aquele caminho outras vezes. A bem da verdade, eram outros tempos e outras intenções. Hoje, eles eram adultos: expe- rimentados, maduros, resolvidos e sabiam bem o que queriam um do outro. Ou assim pensavam. Passearam pelo Arpoador de mãos dadas. Emocionaram-se com a Lua que nascia em Copacabana e com o Sol que se punha em Ipanema. Pensaram ouvir ao longe os aplausos do Posto 9 mas, dada a distân- cia, os aplausos estavam em suas imaginações. Como se elogiassem a si mesmos subconscientemente. Conversaram bastante, a ponto de acabar a saliva no meio de uma con- versa. O assunto era recorrente. Se comentavam da Lua, do Sol ou do cheiro de mijo das pedras, era apenas para dar uma pausa para tomar fôlego ou para embasar o tema principal. A paisagem se tornara uma metáfora para relações mal-acabadas. Mal-acabadas para eles, diga- se de passagem, porque o “outro” estava muito bem da vida. Sorrindo como nunca antes ao lado deles. Se divertindo como idem. Transando como nunca antes transaram em suas patéticas vidas. zander catta preta 49
  • 52. Pois é. Durante o cair da tarde ele só falava da ex-noiva e ela, do ex-namorado. Os ex-outros eram o tema principal e o único assunto que os unia na- quela tarde. Talvez essa fosse a forma que encontraram para dizer que estavam sendo o mais verdadeiro e sincero possível. Não haveria enga- nação, sentimentos dúbios ou ilusões que não fossem consentidas por ambos, conscientemente. Sabiam o porquê de estarem ali e essa con- versa só reafirmava isso. Passearam até a noite se firmar e sentirem que a saudade já se manifes- tava por dentro das suas calças. Era tanta saudade que já davam vexa- me público e evitavam os olhares invejosos de quem caminhava casta- mente pelas pedras. Já em casa, nus, cometeram uma dúzia de erros fatais. Amaram com sofregudão, mal dando tempo para os preparativos. Pre- liminares? Ora, estavam nas preliminares há meses. E ficaram ali por horas praticando o antigo esporte bretão. Mentira! Mal durou dez minutos! Ela, por cima dele, controlava a situação como sempre sonhara fazer com o seu amado e ele cometeu o erro de chamá-la pelo o nome erra- do por três vezes. “Me desculpe, eu não queria…” “Não… tudo bem… eu te entendo!” “Como assim entende?” “Deita aí e imagine que sou ela!” “Não! Pera lá!” “Faça isso! Anda!” 50 urbanóides
  • 53. No décimo-primeiro minuto já estavam satisfeitos, e se contemplavam. Ele, procurando algum tipo de carinho. Qualquer carinho. E não en- controu. Ela, tentando inventar um amor que não teria como existir naquelas condições. Se vestiram, tomaram a rua, pegaram um táxi. Ele foi deixá-la em casa. Na volta, não se conteve e pediu para o motorista passar por uma rua que não passava fazia tempo. “O caminho por aqui é mais longo.” “Tudo bem. Pode até pegar a praia depois. Não tô com pressa!” A rua estava vazia e o motorista não se demorou o tempo que ele espe- rava. Procurou um tipo de emoção dentro de si e não achou. Não vie- ram as lágrimas nem a auto-comiseração. Achou que estava pronto. Saltou em frente ao Othon Palace. Foi até a praia. Tirou os sapatos e pisou na areia com calma, como se quisesse sentir cada grão roçando os pés. Olhou em volta para ver se havia perigo e foi calmamente an- dando até a água. A Lua estava ali, lhe esperando. “Então. Como foi?” “Não sei. Tudo é muito estranho. Há um vazio agora. Não tenho mais raiva, ou paixão.” “Duvido. Você ama ser rejei- tado.” “Mentira!” “Ama sim. Vai negar que a ama agora mil vezes mais que antes?” “Não nego.” “Então?” “Talvez você tenha razão. Talvez eu seja um maldito masoquista.” “Não fique assim.” “Não?” “Não é pro- dutivo isso.” “Você tem razão novamente.” zander catta preta 51
  • 54. Sorriu para ele e o chamou para si. “Não posso ir agora. Você deveria ficar aqui também.” “Não sei se devo…” ela titubeou “…não sei se conseguiria viver uma vida de carne e osso.” “Você mesmo quem me recomendou isso!” “Mas tenho medo. Já me magoei muito antes.” “Olha só a rota falando do esfarrapado!” “Eu sei, eu sei. Mas você é Marte. Você está apto para a guerra, para os ferimentos da batalha. Se eu me ferir, me desfaço em água, vou com as marés.” “Querida, você é a maré! Vem. Desce do teu pedestal e seja feliz.” Ela olhou com o olho mais doce e depois com o olho mais vil. “Você sabe que sou terrível e divina. Sou mãe e bruxa. Sou o teu prazer e teu sacrifício e…” “Blá, blá, blá… Luna e Hecate, yadda yadda yadda. E eu sou Marte e Ares, sou Medo e Terrror, sou Libido e Potência… Porra! Sou um ser humano, caralho!” “Eu sei!” “E é em cada queda que aprendemos a andar, a sermos seres melhores. Você fica aí, num altar, cortejada pelos pobres, poetas e melancólicos e se esquece que, quando envelhecer, vai ser deixada de lado. Tua corte procurará outra Lua. E eu, deverei aposentar minhas armas, vou procurar um canto para criar meus livros e plantar meus discos. Cansei da Guerra, do Bom Comba- te. Quero sossego.” “Então está combinado.” Ela desceu do pedestal e, antes de ir para São Paulo, disse no ouvido dele: “Tudo muda.” E ele: “Nada mudará.” E era belo e verdadeiro, assim no alto, como embaixo. 52 urbanóides
  • 55. Wouldn’t it be nice – pós Beach Boys Saltou na Barata Ribeiro como se descesse da ante-sala do Inferno, en- fim liberto das agruras e torturas diárias a que se submetia. Vendia coi- sas que não importavam a pessoas desinteressantes e tentava convencer outras pessoas desinteressantes que as coisas que vendia eram impor- tantes e seus clientes eram interessantes. Mas nada disso tem impor- tância, exceto o simples fato que ele descia do 127 Praça Mauá – Copa- cabana como se deixasse o Inferno após pagar o todo o seu suplício. Ao atravessar a rua, lembrou-se que não cumprira todos os ritos a que estava acostumado. “Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.” Namorava um som há dois anos. Obviamente não era sempre o mesmo aparelho, mas fazia planos em comprar um para si desde o falecimento do anterior. Ficava olhando pelas vitrines, comprava revistas, lia tudo que saía publicado e trocava o modelo de seus sonhos de acordo com as dívidas e os lançamentos. “Que falta faz a Som Três…” zander catta preta 53
  • 56. Ele cumpria esse ritual diário religiosamente. Saltava antes da Santa Clara, paquerava o som pela vitrine da Modern Sound, eventualmen- te comprava um CD ou uma camiseta por lá mesmo. Sabia que pode- ria pagar a metade do preço de qualquer um desses ítens se comprasse no centro, mas achava que assim pagaria um dízimo de fidelidade nes- se templo do estilo e culto à boa música, como um clube de milhagem no céu dos aparelhos de som de alta sofisticação e sensibilidade. Após a oração no templo, partia na sua perigrinação, no seu caminho de São Tiago pessoal. Da Barata Ribeiro, descia pela Santa Clara, pa- rava na banca de jornais na esquina com a Nossa Senhora de Copa- cabana, procurava por uma publicação nova ou algum artigo em uma outra revista. Quando achava tentava ler ali mesmo, de pé. Se não conseguia, planejava economizar em um almoço ou dois para comprá- la no fim de semana. Ia andando até a Domingos Ferreira, passando por livrarias decadentes e bares idem. Comia um croquete ou um pas- tel quando tinha um troco e chegava em casa cansado e baldado, mas sempre esperançoso. Mas nesse dia, não cumprira o seu pequeno ritual. “Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.” Ao atravessar a Santa Clara – para trocar de calçada – notou um despa- cho na encruzilhada. Nada demais até aí, sempre tem alguma macum- ba espalhada nas árvores de Copa. Notou o ebó. Dois pombos. “Epa hei!” Disse para si mesmo. “Axé, meu pai!” 54 urbanóides
  • 57. Uma trovoada vibrou o céu em cima da cabeça dele e o dia virou noi- te de relance. “Tá certo. Eu nunca trago um guarda-chuva mesmo. Tinha de cho- ver hoje.” Correu para a marquise enquanto o ar tornava-se mais úmido que um urinol. No tempinho que esperava a chuva de verão passar, olhou com um pouco mais de interesse para o pote com farofa e duas pombas mortas. Lembrou-se que os pombos eram usados como sacrifício para os judeus, no dia do corte do prepúcio, se não estava enganado. E va- cas para Odin no equinócio de inverno, ou no solstício de verão, não estava bem certo disso. Sentiu-se cercado pelos deuses do passado e imaginou fadas mercuriais passando pelos fios de cobre dos postes, criaturas feéricas habitando os esgotos, espíritos construtores nos alicerces dos prédios e sílfides etére- as nos aparelhos de som. Tomado por um medo ancestral, atravessou as ruas no meio da chuva, correndo entre os carros e voltou no seu templo de dedicação para pros- tar-se na vitrine e admirar as relíquias que queria trazer para sua casa. Caixas de som de mogno. “Salve os espíritos da madeira e os padroei- ros das montadoras!” Auto-falantes alemães. “Salve os gnomos importadores e os deuses do magneto!” zander catta preta 55
  • 58. Amplificador francês… “Oi. Você vem sempre aqui, não é? Por que não entra?” Virou-se e deparou-se com uma mulher alta, de cabelos escorridos, como se estivessem molhados. Dã! Estava chovendo, né? Linda ela, não? E que olhos profundos. Parecia que varavam sua alma. Ela fe- chou o guarda-chuva que usava, limpou os pés, digo, a sola dos tênis que usava no carpete de entrada da loja e dirigiu-se a ele. “Vai entrar ou não? Vamos! Eu te pago um café! Tem um café aqui, né?” Beliscou-se. “Salve os demônios dos feromônios.” Falou baixinho e ela não conseguiu conter um riso debochado. Senta- ram-se e conversaram um bocado. Seis cafés e dois sanduíches depois ele descobriu que ela estava de mudança para São Paulo mas ainda iria ficar umas duas semanas no Rio. “Preciso do Sol e do Mar. Aquele me faz falta e este precisa de mim.” “As marés né?” “É.” A chuva passara mas a conversa no café não. Ele contou do trabalho in- sosso e frustrante que tinha e dos sonhos e da vida inócua, medíocre. “Não é ruim ser medíocre.” “Como assim não é ruim?” “Não é ruim. É médio.” “Verdade.” “As pessoas é que querem ser reis o tempo inteiro. Não dá, né?” “Qual o seu signo?” “Câncer.” “Óbvio, né?” “Sim.” “Você é de Peixes, não é mesmo?” “Sim.” Ela passou a mão no rosto gelado dele. 56 urbanóides
  • 59. “Que besteira a minha! Aqui está um frio danado.” “O café esquenta.” “Mas não cura a gripe que você vai pegar.” “Não fico doente.” “Nem eu, mas isso não é desculpa.” “Vou pra casa agora que a chuva passou.” “Está bem. Você tem o meu telefone?” “Agora sim.” “Me liga. Vou em- bora no fim da semana que vem.” Ele assentiu e se levantou para ir para casa. zander catta preta 57
  • 60. 58 urbanóides
  • 61. The ghost of you – pós The Tears “Quando eu digo que Manhattan é o meu filme, ou melhor, o filme da minha vida, as pessoas não entendem de prima. Mas quando explico que o filme trata de escolhas erradas, de atitudes exageradas sem sentido, de bad timing genético, aí que elas discordam mesmo de vez. O problema é que elas não vestem a minha pele. Não usam os meus óculos. E eu só aprendo quando olho para trás. Mas isso não evita que eu bata novamen- te com a cabeça no poste, quando ando pela rua da vida.” Ouvia quieto o artista ler o seu ensaio em voz alta. Estava entre ene- briado e intimidado por ficar entre tantas pessoas desconhecidas e se segurava na sua máquina fotográfica como se fosse uma muleta, um escudo. Enquanto fotografava não precisava se apresentar ou justifi- car porque estava olhando atento a um casal ou a um grupo menor no canto. Tinha a desculpa do olhar do fotógrafo, daquele que tenta ver além do que é mostrado, de quem procura o detalhe. No caso, ele ape- nas procurava um canto para se esconder e se deliciar com o espetácu- lo das emoções humanas. Por vezes cumprimentava um ou outra que o reconhecia do seu site, de uma foto que tinha postado ou de um outro encontro de internautas. Era conhecido por ser esperto e comunicativo, mas hoje estava mais ta- zander catta preta 59
  • 62. citurno que nunca. Nunca tinha estado naquele sebo apertado e lota- do de gente. O artista terminara sua leitura e outro tomara o seu lugar. Era uma menina. Não. Uma mulher. Linda, linda. Alta, reluzente. Os olhos brilhavam com fúria e tesão. Ele se ajoelhou para achar um ângulo me- lhor. Bateu seis fotos defaut e descansou a câmera no colo. No fim do texto, mal continha os soluços. Não poderia ficar muito tempo no mes- mo lugar que ela. Não com tanta gente em volta. Saiu desastrado no fim do evento sem se despedir dos conhecidos. Só foi guardar a câmera ao chegar na Siqueira Campos, três quadras de- pois do burburinho da loja. Subiu a rua ainda tonto, embriagado com as próprias emoções. Passou em frente do Bar Pérola e resolveu se en- costar lá mesmo. Não trabalhararia no dia seguinte, então poderia en- cher a cara com tranqüilidade. Lá pelo décimo chope, viu que um tipo diferente de gente estava entran- do bar adentro. Demorou um pouco para se encontrar no meio da embria- guez mas reconheceu parte do público que estava no evento literário. “Fala fotógrafo!” Disse um mais animadinho. “Pronto. Perdi o meu nome.” Pensou. E no meio deles, lá estava ela. “Olá.” 60 urbanóides
  • 63. Tremeu dos pés à cabeça. Precisava mijar. Agora! “Já volto.” Foi se ali- viar no banheiro e voltou para o seu ponto de partida mais enxuto. “Olá.” Disse apressado, enxugando as mãos na calça. “Eu gosto muito das suas fotos, sabia?” “Você disse isso da outra vez.” “Mas não canso de repetir.” “O que você quer de mim?” “Nada.” “É o que eu temia.” Disfarçou um sorriso amarelo. “Você é bobo. E eu gosto disso.” “Não sou bobo. Sou mordaz e cínico. Às vezes até mau. Mas você me desmonta, sabe disso.” “Sei. E eu gos- to de te desmontar.” “Mas acho que não quero mais passar por isso. Já passei boa parte de minha vida orbitando em estrelas maiores que ti e me recuso a ficar apagado na tua presença.” Ela olhou com um quê de doçura e um outro tanto de sarcasmo. Che- gou bem perto. Sussurrou no seu ouvido. “Querido. Isto é impossível. Meu brilho é maior que o seu.” Afastou-se com um sorriso aberto, como se fosse uma criança brincan- do de dar foras decorados numa outra. Desequilibrou-se de dentro para fora. Pagou a conta e arrastou-se para o seu apartamento. Perdeu-se no caminho entre a Siqueira e a Bolívar. Perdeu-se em cada boteco fedido que encontrava no caminho. zander catta preta 61
  • 64. Amanheceu em casa, sem entender direito o que acontecera. A cabeça doía como um parto e ele xingava cada gota de álcool ingerida. Foi até a sala e deparou-se com ela saindo do banheiro enrolada numa toalha. “O que você está fazendo?” “Me enxugando.” Não entendeu. “Você não se lembra? Voltou ao Pérola. Declamou poesias. Cantou Chi- co e Belchior, me carregou no colo e me amou o resto da noite. Meia- bomba, a bem da verdade, mas dou um desconto. Nunca vi homem fi- car bem com tanto álcool no sangue.” “Não lembro mesmo.” “Como assim? Você é o guardião da memória, não é? É aquele que é senhor do raciocínio e do pensamento.” “É o que eu dizia na escola, e só você dava bola para isso. Hoje me esqueço das coisas e quero esquecer o mun- do.” “Você tem a alma do artista, a habilidade do…” “Pára! Você sabe o quão mal isso me faz. Não precisava te encontrar. Não hoje. Larguei tudo para trás quando nós nos encontramos. Deixei estabilidade e vida morna e previsível para cair nos braços de Luna. Enlouqueci porque ti- nha de provar o lado de Hecate, tinha de passar por tudo isso e magoei quem eu não queria e quem eu não podia. No fim das contas, o úni- co que se fodeu fui eu mesmo. E, quando mais precisava do teu lastro, mais precisava do teu porto seguro, você me negou. Agora vem você me tentar novamente? Vai para a sua terra. Me deixa.” “Seu desejo é uma ordem.” Disse ela vestindo a saia. Compôs-se com habilidade e destreza de quem estava acostumada a devorar gente como se fosse um McLixo qualquer. 62 urbanóides
  • 65. “Não. Péra.” “Querido, você já é passado. Só queria ter um gosto da tua memória. E, sinceramente, preferia ter esquecido.” Saiu pela porta ele- gantemente. Sentou-se no sofá e não encontrou o pranto necessário. A cabeça doía demais. zander catta preta 63
  • 66. 64 urbanóides
  • 67. I’m waiting for the day – pós The Beach Boys Eram três amigos: o Grande, o Gordo e o Burro. Grande era chama- do assim porque brincava com todos sobre sua estatura. Era pequeno, bem pequeno. Todo miúdo mesmo. “Eu gosto de armas grandes porque meu pau é curto!” Dizia ao es- colher uma Zweihandder como arma preferida do seu personagem de RPG da semana ou uma M249 no CounterStrike. Fazia isso de brincadeira, é claro. Daquelas brincadeiras que só três grandes amigos entenderiam. A maior parte do papo deles era essa tro- ca de sacanagens sadias que os entretetinham por horas e horas a fio na mesa de bar. Gordo era o mais calado e o mais sacana dos três. Seus comentários lacônicos eram devastadores. Quase monossilábico, se expressava me- lhor bebendo, comendo ou rasgando fichas de personagens de RPG. Homofóbico, direitista e antiético, era a lady do trio. De certo, chora- va em propaganda de sabonete com crianças e era o mais empolgado dos três quando saiu da primeira sessão que assitiu do “Sociedade dos Poetas Mortos”. Escondeu lágrimas e soluços no “A Lista de Schind- ler”. Gordo era assim. zander catta preta 65
  • 68. Burro era o falastrão. De prima, diziam que era um gênio. Trabalhava desde os doze anos com programação. Sabia falar de todo e qualquer assunto que pintava em qualquer grupo social. Dizia que não discu- tia: sofismava. Não debatia: praticava a maiêutica. Enciclopédico, cita- va duzentos autores sem se repetir. Normalmente ele inventava as cita- ções e os autores na hora. Estranhos se impressionavam com a verbor- ragia e recolhiam as suas armas no embate verbal. “Cara, não sabia que você já tinha usado um Macintosh em 82.” “O Mac foi lançado em 84. Eu menti.” Burro vivia apaixonado. Não aprendia. Mas sempre estava ali, na guer- ra. Não perdia uma saída com as amigas baranguetes para ver se so- brava uma rapa. Um beijinho na boca de uma menina caída de bêbada que fosse. Mas sempre apaixonado por sua musa, Vênus. Cabelos ne- gros, pele bem branca, olhos negros. Boca vermelha. Fazia merda so- bre merda por conta disso, enchia os cornos, pagava paixão em públi- co, cometia poesias. Até pro teatro entrou! Gordo era um platônico. Apaixonado pela primeira namorada, ain- da quando era mais magro, nunca a esquecera. As outras mulheres podiam sentar no seu colo que ele não reagia. Não se sabia se era por medo, timidez ou por inabilidade. Não interessava. Os outros tinham já o seu veredito. “Veado!” Diziam da boca para fora mas sabiam que, no íntimo, Gordo ainda sangrava aquele amor mal-acabado. E nunca iria passar a dor. Grande era mais safo com as meninas. Só cantava as lindas, maravi- lhosas, perfeitas e inatingíveis. Portanto o seu fracasso era mais coro- ado de méritos, ainda que sendo derrotado em cada batalha do bom 66 urbanóides
  • 69. combate. Juntava-se com Gordo para sacanear Burro nas tentativas de ficar com as mais desarrumadas, desconjuntadas e disformes, mas sa- bia que Burro tava certo. Ao menos nisso. E sonhava com uma paixão verdadeira, um grande amor. Cada um foi pro seu canto, ainda que se vissem com regularidade. Gordo foi morar em São Paulo, Burro se formou em Ciência da Com- putação e Grande virou arquiteto e engenheiro civil. Regularmente viajavam para Sampa para zoar Gordo e beber todo o álcool possível daquela cidade e vice-versa. O tempo foi passando e as viagens do outro começaram a rarear. Gor- do casara. “Paulista é muito esquisito mesmo, né Grande?” “Pela primeira vez na vida, concordo contigo.” Cada um foi traçando rumo, trabalhando, estudando, namorando(!) e, eventualmente, saindo para beber. Nas raras viagens de Gordo de Sampa pro Rio, eles davam um jeito de se encontrar em um boteco novo, previamente aprovado pela seleção de cervejas, petiscos e freqüência feminina, ou apelavam para o bom e ve- lho Sindicato do Chope, na Farme de Amoedo. “Putaquepariu, caralho. Vocês só vão em bar de veado!” “Porra, o cho- pe lá é bom, e tem história.” “O chope de lá é uma merda, a serpenti- na tem menos de quinze metros, que é o mínimo aceitável para o líqui- do sair a quatro graus centígrados que dá tempo para chegar na mesa a dez. Temperatura perfeita para o consumo.” “Ah! Não fode, Burro!” zander catta preta 67
  • 70. “Burro tá certo. O chope de lá é ruim e só tem veado. Vamos no Bar do Beto.” “Baixo Gávea, então.” “Chope ruim.” “É chope ruim.” “Com gosto de ferrugem.” Acabavam indo para o Hipódromo mesmo. Já fazia mais de ano e meio desse último encontro. Muito trabalho para todos e os emails trocados eram só de putaria mesmo. RPG não rola- va mais. Nem com Burro insistindo para jogar “a nova versão do World of Darkness” ou “no relançamento do do Dungeons and Dragons”. Bur- ro criara um blog pros três, mas pouco postavam por conta de trabalho de cada um mesmo. Numa tarde, Gordo liga pro Grande. “Tô chegando hoje. Avisa ao veado do Burro que estou na área.” “E a esposa?” “Ex-!” “É ex-posa? HAAHAHAH! Tomou pé no cú, cara?” “…” “Er… bom. Te espero no aeroporto. Me liga quando chegar. Tô trabalhando do lado do Santos Dumont.” Chegou. Foi pego e fez hora no escritório. Gordo tinha um semblante mais fechado, mais triste que de costume. Falou palavra desde que se alojou na frente de um computador que estava vazio. Grande ligou para Burro que confirmou a reserva no Devassa da Barra. “Mas tem de chegar antes das nove senão perdemos o lugar. A serpen- tina lá tem vinte e cinco metros e a cerveja stout…” “Tá! Tá! Sete e meia passo aí. Gordo se separou. Tá aqui, macambúzio e sorumbático.” “Pô. Não é melhor marcar na Centaurus?” “Porra Burro!” “Sei lá. Vai que 68 urbanóides
  • 71. ele quer levar seis pra cabine e ficar vendo as meninas correrem peladas dentro do quarto.” “Vamos beber antes. Depois vemos o que rola.” Chegaram às oito e meia. Mesa boa, dava para ver todo o salão. “Desce três negras. Vocês vão ver! Parece uma Guiness: cremosa, consis- tente. Uma delícia! Garçom, não deixa o copo secar! Principalmente do meu amigo aqui, esse mais fortinho! Fala alguma coisa, Gordo! Olha lá aquela morena. Ela deve entender do traçado!” “Cala a boca Burro! Por- ra, não tá vendo que o cara tá maus. Fala Gordo. Como foi a história?” Os dois se calaram e olharam pro Gordo que não tirava a cara inex- pressível de quem joga pôquer com a vida. Secou o primeiro chope numa virada. Abriu o menu. Apontou pro garçom uma cachaça da lista. “Traz uma garrafa.” O garçom trouxe e Gordo começou o trabalho. Fim de noite, Gordo bêbado, Burro bêbado e Grande puto da vida porque tinha de levar os dois para casa. Eles saindo do Devassa, já quase entrando no carro, param para Gordo vomitar. Burro toma um ar e vê, dentro do bar, dois rostos conhecidos. “Caralho, Grande!” “Eu vi. Vambora.” “Não. É ela!” “Vambora. Isso não vai te fazer bem. Eu tenho um mau pressentimento.” “Tenho de ir lá! Gordo! É ela!” Gordo levanta-se, limpa a baba e recupera-se de pronto. zander catta preta 69
  • 72. “Luna!” “Putaquepariu. Isso vai dar merda! Pronto! Já deu!” Grande ficou olhando Gordo e Burro cambalearem para dentro do bar e sentarem-se na mesa das duas. Luna e Vênus. As duas interrompe- ram o beijo e entre assustadas e divertidas olharam as figuras patéticas se acomodarem. Burro, tentando ser galante apesar do álcool e da his- tória; Gordo, apenas mantendo o cenho cerrado, como se criasse uma barragem entre si e ela. Grande ficou do lado de fora, procurando o telefone no amigo delega- do, já prevendo alguma confusão com os seguranças. Espantado, viu as duas se levantarem rindo e os dois pedirem algo ao garçom. Elas saí- ram do bar e foram até ele. Vênus deu-lhe um beijo na boca. Luna sussurrou-lhe: “Quem teme, não goza.” Ambas pegaram um taxi que se fundiu à noite. Grande sentou-se à mesa e juntou-se às libações. 70 urbanóides
  • 73. Dois velhos bêbados O mais novo chegou no Belmonte às três da tarde. Ficara jogando pete- ca na praia desde às onze da manhã e estava com fome e sede. Já era uma espécie de rotina: acordar às cinco, comprar pão, manteiga, presunto e queijo; tomar café da manhã com a esposa e o neto encostado pela Ae- ronáutica às sete. Às oito, banho tomado e academia: correr uma hora e malhação e hidroginástica. Às dez de volta em casa para um lanche rá- pido e colocar a sunga para a praia. Morava na Atlântica, perto da Bolí- var, num prédio antigo, um dos primeiros de Copacabana. E era isso: praia e depois chope no Belmonte. Costumava chopear no Cabral 1500, mas esse bar novo tinha pastéis de camarão sensacionais e empadas memoráveis e resolvera trocar local do almoço desde a sua inauguração. Não se arrependera e estava lá, nessa quarta-feira, lendo o jornal que o garçom havia pegado e notou que tinha uma outra cabe- ça branca observando-o. Havia sentado na mesma mesa sem pedir li- cença ou se apresentar. Não precisava. “O senhor é uma vergonha! Não honra as próprias calças!” Olhou para o mais velho que estava vermelho em fúria contra ele. zander catta preta 71
  • 74. “Nunca vi homem que dignasse o próprio nome fazer tal coisa! O senhor desonra seu nome, tua família, teu posto e tua farda!” “Não uso farda há mais de duas décadas.” “Não interessa! O senhor tem um nome a…” “Um nome a zerar!” E riu sozinho. Fazia uns cinqüenta anos que os dois se conheciam. Desde o primeiro momento antipatizaram um com o outro. O mais novo, recém ingres- so na AMAN; o mais velho, no penúltimo ano. Competiam em tudo. Notas, esportes, oratória. E empatavam nas graduações. Só que o mais novo tinha uma vantagem que nunca seria superada. Era muito mais bonito e tinha o dom da sedução, o sex appeal inato que dava larga van- tagem numa área onde o velho nunca conseguiria competir. Antipatia que se tornou guerra pessoal. Um era comunista histórico. Amigo de Prestes e de Teotônio. Outro, simpatizante do Integralismo, seguidor de Plínio Salgado, adesista de primeira hora no golpe/revolu- ção de 1964. O primeiro perseguido e torturado, depois exilado. Outro, diretor da Light e aposentado aos cinqüenta e cinco. Sempre se encon- traram em todas as quinas de suas próprias histórias. Estavam lá em cada momento decisivo, em cada dor, perda ou escolha. Uma vendetta branca tão marcada em suas personalidades que já não fazia mais di- ferença os motivos, as ideologias, os partidos, as causas ou conseqüên- cias. Já estavam velhos demais para a beleza de um ou outro fazer di- ferença. Os filhos já haviam vindo e ido, deixando alegrias e desgos- tos que usavam para ofender um ao outro. Filhos, netos, política, eco- nomia, futebol e, principalmente, mulheres. Qualquer coisa que desse uma oportunidade para o outro espezinhar era motivo suficiente. Des- ta vez era o turno do mais velho, no seu motivo preferido. 72 urbanóides
  • 75. “É deprimente que o senhor ainda se arraste por rabos de saia que têm menos da metade da tua idade! Sei que é adepto desses remédios que garantem a virilidade momentânea! Vê-se que já sofre os efeitos cola- terais! Não se enxerga mais!” “Inveja! A mais doce das infâmias que poderia lançar sobre mim. Não consegues te acertar com tua prótese, então ficas difamando os que…” “Calúnia! Não existe implante algum em mim!” “…os que ainda despertam algum interesse nas mulheres ainda em plena atividade e prática sexual. Mas te garanto, meu caro, que não sei do que falas. Sabes bem que desde a morte do meu primei- ro filho, me assossego em casa, não tenho mais dessas aventuras.” O velho sentou-se à mesa, pediu um chope curto e comeu um dos pas- téis. O novo pediu mais um chope para si e um “refil” nos pastéis. Fi- caram ali, em silêncio, se estudando como se fossem dois samurais es- perando a reação um do outro para sacar a lâmina de sua bainha e cor- tar a moral do outro. O novo faz o primeiro movimento. “Do que falas, afinal?” “Dessa mulher que o senhor tem freqüentado às quartas-feiras.” “Não é isso que pensas.” “Como não? Sei muito bem como o senhor se coloca frente às mulheres, enganando-as, seduzindo- as.” “Há muito te expliquei que não somos nós que as seduzimos, mui- to pelo contrário: elas que nos convidam e dão o seu aceite. Se brincam de serem cortejadas, é porque lhes é conveniente. A sedução vem de- las para nós, não o contrário.” “Mas meninas, que mal sabem o que é a vida?” “Tu sabes que, hoje ou em mil novecentos e sessenta, as meninas deixam de ser meninas aos vinte. São mulheres em plena flor da ida- de. Não há meninice nisso. Tu, que casastes com uma de quinze, deve- rias ter mais noção disso que eu.” “Não menciona o nome dela assim! A zander catta preta 73
  • 76. boca do senhor não é limpa o suficiente para mencionar Gaia.” “Gaia. Eu pensava que era Géia o seu nome. Já é o tempo me tomando as lem- branças.” “O tempo toma tudo, sei disso.” “Não tenho dúvidas. Mas sempre te surpassei, não? Sempre estive um passo à sua frente.” “Nem sempre.” “Justo. Tem coisas que tirastes de mim que não há como de- volver.” “Fi-lo pela pátria.” “Ou por vingança, ou por ódio, ou por per- versão, sei lá. Não me interessa mais. É passado e é história. Teve a tua cota de vingança e de sangue e eu também. Somos agora dois velhos a nos cutucar enquanto o mundo nos esquece.” O golpe fora certeiro. O novo sempre fora muito melhor na oratória, mas dessa vez vinha carregada de alguma coisa mais forte. Ele estava com a guarda aberta. Via-se nos olhos que não estava estudando o que falava. Era um homem de setenta e poucos anos, lúcido, saudável que admitia para o seu nêmesis que tudo aquilo que basearam a sua relação de ódio e vingança havia caído por terra, perdido a importância. Era apenas uma birra de dois velhos bêbados. E que isso era um laço mais forte que muita amizade sincera, aberta e verdeira. Os dois viram os rostos para a menina que se aproximava e que pedia licença para sentar à mesa. Menina não. Uma linda mulher. Ela se senta entre os dois, à cabeceira da mesa. Ajeita a saia rodada branca e coloca o chapéu, a bolsa e os óculos escuros numa cadeira va- zia. Olha lentamente para o mais velho e com desleixo para o novo. “Parece que vocês chegaram num campo comum, não é mesmo? Se acertaram?” “Não existe acerto entre mim e o velho. Mas acho que es- tamos colocando os pesos corretos na nossa guerra.” “É verdade. Então é a senhorita a mulher que o novo visita às quartas?” “Sim.” 74 urbanóides
  • 77. Disse Luna, com o olhar incapacitado. Sabia que era poderosa e ma- ravilhosa, que era a segunda da lista, mas sabia que, de perto, os dois eram maiores e mais poderosos que todos os outros. À exceção de Hé- lio, ou Hélius, nunca se lembrava como Ele preferia ser chamado. Já Ela ficava diminuída perto dos dois. O velho dirige um olhar meio envergonhado, meio compreendendo o mais novo. Pede mais um chope e uma caipirinha de tangerina para Luna que não conseguia manter o porte altivo e imponente. Sentava- se como uma menininha entre dois gigantes. “Quando partes?” “Não sei mais se parto ou se fico. Tudo é muito con- fuso para mim agora.” “Sabes que tem alguns de nós com quem não deves brincar. Creio que já falastes com todos? Ou não? Existem aque- les que são mais velhos e mais distantes e que não tens acesso. Não de- ves procurá-los. Tua jornada não se expande mais.” “O novo fala a ver- dade. A senhorita tem de saber o seu lugar. Ande à luz do Sol, se qui- seres, mas tem de ter o limite das coisas.” Ela escutava, discordando mas incapaz de se defender. Sabia que o seu tempo ali havia terminado. E partiria para São Paulo ainda hoje. zander catta preta 75
  • 78. 76 foto: Zander Catta Preta urbanóides
  • 79. Trinca de nerds zander catta preta 77
  • 80. 78 urbanóides
  • 81. O sexo é o alento Burro chegou com uma novidade. “Comi gente ontem!” Os dois olharam com a cara de tédio habitual e, antes de fazerem a pergunta default, ele sacou. “E não paguei por isso!” Com o interesse dos amigos ativado, ele se derramou em longuíssimas narrativas de como conduzira o flerte por meses a fio, como evitara as tradicionais armadilhas de seduções baratas, como envolvera e seduzi- ra a menina até obter “os favores da linda e querida flor.” “Flor? Porra! Você comeu gente ou um brócolis?” Gordo com sua delicadeza habitual cortou o longo, elogioso e enfado- nho relato de Burro. Ofendido, mas não abalado, Burro revelou. “Eu a chamo de Minha Flor!” zander catta preta 79
  • 82. Explode uma gargalhada entre copos de chope consumidos no Devas- sa do Leblon. Grande não se conteve. Com dedo em riste, olhos em lá- grimas, tenta falar alguma coisa mas só consegue aumentar os soluços de Gordo que quase desmonta a mesa de tanto se contorcer. “Essa é a coisa mais engraçada, ever!” Conseguiu dizer apenas ao domar os risos e as lágrimas. “Cara, você me deu duas semanas terapia agora! Putaquepariu! Que coisa foda! ‘Minha Flor’ é foda, cara!” Abalado e ofendido, Burro saca do palmtop as fotos que tirara da me- nina. Linda, linda! Aliás, lindíssima! Morena, olhos negros e fundos, rosto delicado, corpo de vespa. Acintosamente exibe as dos dois se bei- jando e pára ante o olhar estupefato dos amigos. “Pois é. Mó gata!” “Qual o preço? É. Quanto você tá pagando para a menina posar de sua namorada.” Pergunta, impromptu, Grande. “Não estamos namorando. Não quero relacionamento sério.” “Ah! Qualé! Mó gatinha e você não vai amarrar com chave de pica?” “Pois é. Você vai ver. Se a minha teoria estiver certa, vou ficar cercado de mulheres maravilhosas em pouco tempo.” Dali a dois meses, os amigos mal conseguiram ver Burro. Ou ele saiu com Sicrana ou com Beltrana ou com ambas ao mesmo tempo. Ou era uma terceira, quarta. Já tinham perdido a conta. Só sabiam do histó- 80 urbanóides
  • 83. rico porque Burro informava-os religiosamente das novas conquistas. Foto, dados cadastrais, breve histórico da conquista. Gordo já contava para os seus amigos paulistas o orgulho que tinha do amigo nerd e co- medor. Grande se calava e matutava. Finalmente combinaram de se encontrar no Belmonte para chope e pastel de camarão. Gordo chegara antes e saúda o Burro ao entrar. “Como é que tá essa vida de pica-doce?” “Tá ótima! A merda é que não dá para comer todo mundo. Não dá tempo. Ou como ou trabalho, né?” “E tu vai largar o emprego?” Burro ficou tenso. “Nunca!” “Qual foi cara? Você odiava o emprego…” Soltou Grande, já puxando uma cadeira e pedindo um chope e uma Coca-cola. “Conta aí a teoria que transformou um nerd magrelo, antipático e mal- vestido em um comedor de primeira linha.” “Fui promovido a Geren- te Sênior de Marketing n’A Empresa.” “Porra cara! Parabéns! Parabéns mesmo, mas o que isso tem a ver com aumentar a densidade de mulher boa ao teu redor.” “Cara, mulher sente o cheiro do poder à distância. Sabe que cara com cargo bom dá segurança e estabilidade.” “É. Quem gosta de pica é veado. Mulher gosta é de dinheiro.” Gordo ri, meio que acabrunhado, dessa afirmativa. zander catta preta 81
  • 84. “Não vou discordar. Mas qual era o lance da primeira menina?” “…” “Fala negão! Conta aí…” “Prometi uma promoção à ela…” “NÃO ACREDITO! TU É UM FILHO DA PUTA!” Grande realmente ficou preocupado. “Pois é. Isso vai dar merda, cara. E se a menina te processar por assé- dio?” “Ela já tem a promoção. Já tava certo. E foi para Curitiba. Eu só me aproveitei disso.” Gordo explode novamente. “NÃO ACREDITO! TU É UM GRANDISSISSIMO FILHO DA PUTA!” “Não nego. Vi a ficha dela aprovada e só precisava de um OK meu. Nunca negaria, claro. Mas ela se insinuou cheia de charme me pedindo a aprovação. ‘Ah, chefinho… eu faria qualquer coisa para ter esse ok.’ Paguei para ver né?” “Tu é um merda mesmo!” Grande ficou puto. “Tu foi é assediado, mané! Gravou a conversa dela ao menos?” Burro apontou pro PDA e tocou um MP3 de lá. E não é que o veadi- nho não tava mentindo? Ouviu-se com clareza a voz da menina se in- sinuando. “O que importa é que fiquei com fama de comedor e bom partido. Sei que isso não vai durar, mas vou aproveitar.” “E Vênus, cara?” Soltou Gordo sem pensar duas vezes. 82 urbanóides
  • 85. “Como é que fica?” “Não fica. Ela não me quer. Se pedir para mim, caio de quatro aos pés dela, mas não vou ficar esperando o tempo pas- sar. E tá divertido para caralho!” Grande olhou meio de rabo de olho, pediu um caldo verde entre um “suco de pica de Hulk”, “sopa de radiação gama” e outras piadas de cunho nerdístico e comeu em silêncio, ouvindo as peripécias sexuais do Burro. Pra si, matutou: “vai dar merda” e pediu a conta. Foram todos para casa cedo. Daí a mais duas semanas, foi Burro que chamou os amigos para ir ao Stephanio’s. “Tô na merda, galera!” Sempre que o Burro propunha o Stephanio’s, tinha alguma merda para contar. Ou uma dor de corno ou uma desilusão, ou um pé na bunda ou um fora hercúleo. Mas de certo era papo de mulher. Era assim que ele funcionava: Stephanio’s: problema de mulher; Adega da Velha: proble- ma em casa, família; Siri da Barra: problema de trabalho. Os três se encontraram e de pronto reclamaram entre si da música ao vivo. “Porra! Não sei porque insiste em vir aqui. Samba, cara! Que merda!” “Porra Gordo! O bolinho de bacalhau daqui é simplesmente sensacional.” “Gordo, senta. Burro, abre o bico. Garçom: duas Bohemias e uma Coca- cola. Quatro copos. Uma porção de bolinhos de bacalhau. Não deixa as Bohemias secarem. Fala, Burro. Qual o galho?” “Cansei.” “Como assim? Cansou? Cansou de que?” “Cansei de putaria. De saco cheio de olhar para o lado e não querer acordar junto daquela mulher. Quero alguém zander catta preta 83
  • 86. para acordar para sempre. Mais ou menos o que o Garcia Marquez dizia: ‘o sexo é o alento de alguém que ainda não encontrou o amor’. Saca?” Beberam até amanhecer e até cantarolaram um sambinha ou dois. 84 urbanóides
  • 87. As funções da sarjeta Já tinha quase dois meses que os três amigos não se encontravam. Gor- do estava atolado de trabalho e problemas até o pescoço. Mudança para o apart-hotel. Procurando um novo para alugar. Dividido entre a mu- dança para o Rio e largar definitivamente os projetos que conduziu ou continuar em Sampa e ficar longe da família e dos amigos. Principal- mente dos amigos. Desde que fora para lá, não conseguira qualquer companhia fixa para as atividades boêmias às quais estava acostuma- do “em casa”. Digamos que a combinação casamento com mulher es- petacularmente sexy, uma certa tendência a ser ríspido em demasia com os colegas de trabalho e uma forte propensão ao isolamento social não permitiam que ele criasse os vínculos normais para encher a cara regu- lar e socialmente. Findo o casamento e terminado o contrato de cinco anos de consulto- ria em Sampa, que poderia ser renovado num estalar de dedos, ele se deparou com o dilema da volta para casa ou ficar rico. Optou pela pri- meira já que tinha amealhado uma boa quantidade de numerário para viver, com alguma moderação, sem trabalhar o resto da vida. E pode- ria fazer um bico aqui e ali para completar alguma extravagância even- tual. Afinal de contas, sempre se precisa de um advogado especializado em direito tributário. Principalmente um com sobrenome de ex-presi- dente e com trânsito no Banco Central. zander catta preta 85
  • 88. Grande estava atolado com os projetos. Rio Cidade. Pan-Americano. Dois hotéis na Barra da Tijuca. Nenhum deles entrou. Tava tudo cer- to, orçamento direitinho, equipe afiada, pedigree de projetos anteriores, putas pagas para as pessoas certas. Nada poderia dar errado. Mas deu. Resumo da ópera? Tava já queimando as reservas e ainda era junho. Pior, sem perspectivas de entrar trabalho grande até outubro. Resolveu sentar na merda e ver o que faria. Não estava a fim de dispensar a ga- lera, mas também não escondeu o jogo. Passava as tardes promovendo campeonatos de Counter Strike no escritório para tentar levantar a mo- ral da turma e cometeu um ou outro excesso orçamentário ao bancar um curso de CAD para um funcionário. Afinal de contas a equipe era enxuta e boa. E sempre estavam ali nas roubadas. De cabeça quente, resolveu vender o apê de quatro quartos na Atlântica, com vista para a Aires Saldanha. O famoso Sessenta e Nove do Grande. “Sessenta e Nove, Grande? Não entendi!” “Tu é Burro mesmo! É um meia-nove clássico, cara! A posição é excelente, mas a vista é um cú!” Num papo com Gordo, este se interessou em alugar o apê. O que seria bom para os dois. Gordo sempre gostara da proximidade do apê com a Help por motivos de conveniência sexual e Grande ia ficar tranqüi- lo que o morador iria manter a tradição de orgias pela madrugada que o Sessenta e Nove tinha. Então foi assim. Gordo chegou no Galeão, pegou um tê-xis e largou as malas na sala do apê. Exatamente isso. Já tinha a cópia das chaves fa- zia uns dez anos. Aliás todos os três tinham as chaves do apartamento. E da portaria. E nas épocas áureas tinham até dos carros uns dos ou- tros. Nunca se sabia quem poderia precisar de uma ajuda emergencial. 86 urbanóides
  • 89. Fosse pelo álcool consumido, das drogas experimentadas, das namo- radas-casos-encrencas-pretês-que-resolviam-surtar-quando-pegavam- um-ou-outro-pelado-com-umas-e-outras e etecetera. Esperou Grande chegar com um uísque que tinha trazido num “adian- tamento” da mudança. Se bem que, de mudança mesmo, tinha pouca coisa para trazer de Sampa. As roupas, os livros, os CDs viriam no ca- minhão. Os móveis, vendera por lá mesmo. Tapetes, cortinas, copos, talheres. Não precisaria de nada disso. Sabia que o apê estava mobiliado por três gerações de herdeiros de Copacabanenses típicos. Ricos, amorais e extremamente poseurs. Só Grande fugia à expectativa da família. Rico? Sim, de fato, mas não aumentara a fortuna, ao contrário, gasta- ra boa parte na empresa que estava em dificuldades. Imoral? Pós-moderno seria mais adequado. Poseur? É. Não tinha como negar o sangue da família de pleibóis. Grande chegou acompanhado de Burro que entrou já vomitando bullshits. “… e o sistema novo é mais inteligente, evita aquele absurdo: quanto mais dados você joga, maior a sua chance de tirar um botch o que ferra o conceito dos dots. Pô, se o cara tem vinte dots num skill ele tem 3.456 vezes mais chances de tirar vários uns que o cara que rola apenas dois dados.” “Você inventou esse número, né?” “É claro!” “Mas entendi. E a história, o background? Fala Gordo! Nem me ligou, seu puto!” “Os dois veadinhos sempre juntos! Cueca gosta é de cueca, né?” “Não é bem as- zander catta preta 87
  • 90. sim, Ilmo. Sr. Dr. O. Gordo! Qual a boa? Puteiro? Termas? Cacha- ça?” “Vocês vão me chamar de veado, mas eu quero é encher os cornos hoje!” “Falou o ex-dono da casa. E você manda hoje!” “Simba para um boteco que abriu aqui perto, em Copa mesmo. E deve ter umas ‘meni- nas’ por lá.” “Caraca, Burro, não me adimira que você viva fodido de grana. Gasta tudo numas putas de quinta.” “Gordo, o Burro assusta qualquer mulher que não saiba o cargo dele n’A Empresa.” “Executivo- zinho de merda, você, Burro. Aposto que não tá comendo nem estagi- ária.” “Vamos para a cachaça que o papo aqui tá brabo.” Desceram os três para a rua e ganharam a noite. Cinco da manhã, sol nascendo, foram até o quiosque em frente ao Me- ridien, no Leme, para tomar água de coco e tentar entender o que esta- va acontecendo. O mundo não parava de rodar, o Burro tava calado fa- zia duas horas. Gordo estava animado e falante. Grande estava otimis- ta para com o futuro. Algo não fazia sentido. Pararam para ver o Sol nascer. Cena patética. Três homens no fim dos trinta, sentados num banco de cimento do calçadão do Leme. Dois be- bendo água de coco – Burro estava vomitando as tripas e tentando se hidratar com água mesmo – e todos com olhar idiota para o espetácu- lo que se anunciava. Um tipo esquisito atravessou a faixa de areia e foi na direção do mar. Não deu para ver direito o rosto do distinto, mas parecia atrasado pelo jeito que corria. Tava de jeans, tênis e camiseta e não parou para tirar nada ao entrar na água. Com o Sol no horizonte, pouco viram e, nesse pouco, perderam o cara de vista. 88 urbanóides
  • 91. Atrás deles, um casal discutia alguma coisa que tinha começado na noi- te anterior e envolvia, um café, uma promessa de se encontrarem e uma besteira que ele dissera sobre mudar as pessoas com quem se convive. “Mas relacionar-se é mudança. É entender o outro e ceder onde se é necessário. Da mesma forma que o outro cede para que possam convi- ver, dividir o espaço das escovasde dentes, trocar o papel higiênico ou o lado da cama que vão dormir.” “Mas não é mudança. É aceitação do outro como ele é.” “Mas mudança não é negação. Quando um dos dois não aceita abrir mão de nada do relacionamento, tipo a pelada de quar- ta à noite ou o carteado com a rapaziada nos domingos à tarde, ele não está disposto a se relacionar.” “Mas existem limites para esse ceder, a esse mudar. Eu não cedo. Não mudo.” “Te provo que você está enga- nada.” “Não prova.” “Quando você decidiu me encontrar, disse-me que não iria me ter. Ou melhor, que não dormiríamos juntos.” “Verdade, mas não dormimos.” “E me disse que não amanheceria comigo. Tinha muito a fazer no dia seguinte.” “…” “Diga oi para o Sol, meu amor.” A morena, que parecia ter uns vinte e três anos, olhou encabulada para ele – que tinha uns quarenta por baixo – e deu-lhe um beijo. Grande olhou para os dois putos ao seu lado e viu que os laços entre eles eram mais fortes que qualquer feromônio. Eram forjados no álcool, na sarjeta, na humilhação mútua, no sarcasmo e tudo mais que enobrece o ser humano. Tudo aquilo que dá sentido para o acordar no dia seguinte. E que um daria o braço direito pelo outro, se fosse necessário. Grande levantou-se de sopetão e berrou, bêbado ainda. “O braço sim! Mas o cú não, seus pederastas!” zander catta preta 89
  • 92. 90 urbanóides
  • 93. Dos problemas corporativos e das putas Burro andava mais animado do que a média. De lá de dentro de sua baia corporate, voiciferava impropérios em diversas línguas. Não que fosse mestre em alguma delas, sua educação sempre fora improvisada e incompleta na melhor das hipóteses, mas sabia como sobreviver em oito idiomas diferentes. “Farabuto!” Tinha feito diversos cursos na Europa e trabalhara em umas três mul- tinacionais antes de ser convidado para A Empresa. “Sonovabitch!” Sempre colara nos chefes “importados” para ganhar um pouco mais de prestígo e experiência. Seu alto conhecimento do bas fond cario- ca também ajudava a reforçar a boa imagem do Brasil com o exterior. A imagem de povo pacífico, amistoso e “receptivo” era endossada por Burro sempre que podia. “FILHO DA PUTA!”, berrou na entrada da baia para todos os fun- cionários. zander catta preta 91
  • 94. “Esse filho da puta me deu o cano!” “Calma chefinho, calma!” “Porra, Rogê! Vai puxar o saco da diretoria que hoje tô com o ovo virado!” Entrou de volta, bufando. Sentou-se na cadeira. Ligou o laptop e cha- mou a secretária. “Dona Paula! Traz um café e dois quilos de boa vontade que o dia vai ser longo!” “Ó doutor, o seu Marconi quer falar com o senhor. E ele tava meio puto da vida.” E lá foi Burro engolindo o café com úlcera que ele consumia todos os dias pela manhã. Subiu os seis lances de escada que separavam-no da presidência e adentrou a sala do Doutor Marconi. Doutor Marconi estava no Brasil há seis anos, desde a chegada d’A Empresa em Terra Papagalis e Burro tinha conseguido quebrar sucessi- vamente com ele o seu recorde de gafes e comentários inoportunos com pessoas de alto ranking empresarial. A bem da verdade, Burro tinha o dom de dizer a coisa errada na hora mais imprópria, mas o seu carisma o defendia de quaisquer outras conseqüências mais nefastas que ganhar o rótulo de “excêntrico” ou de “distraído do marketing”. Pena que isso não o tinha protegido da bile certeira do Doutor Marconi. Subiu, conversou e desceu cabisbaixo. “Tô fodido.” Confessou ao Gordo quando acabou o expediente. Gordo passara por ali porque sabia que tinha inaugurado uma nova “casa de tolerância” 92 urbanóides
  • 95. em Jacarepaguá e ele queria um companheiro que topasse uma expedi- ção antropológica nessas ermas áreas. “Mas porque tá fudido? O que você fez de errado agora? Falou alguma merda? Mandou algum arquivo errado? Roubou…” “Não! Isso nun- ca!” “…algum enfeite da mesa do chefão?” “Pior, muito pior.” “Então conta!” “O filho do chefão veio da Itália semana retrasada e foi com uma galera ‘confraternizar’ em Copacabana. Tava toda a gringaiada na Help dançando, bebendo e se esbaldando com ‘as meninas’ quando sa- quei que o moleque tava meio sorumbático, não tava se soltando e tal.” “Era veado, o moleque?” “Porra Gordo! Espera eu terminar de contar a história!” “Tu enrola muito. Era veado ou não?” “Era. Não era. Sei lá, porra. Parece que tá na moda de viadinho ficar em dúvida se vai dar o cú ou não. Porra, no meu tempo ou a bicha era ou não era. Não tinha essa de experimentar ou de não ter certeza. Se não era, mas tinha skill pra isso a galera já zoaria o putinho de tal maneira que não teria ou- tro jeito. Ou ele ia carcar a primeira vagabunda, ou ia dar o rabo des- de cedo.” “E o veadinho do filho do teu chefe?” “Pois é. O moleque ca- tou uma vagaba lá. Porra cara, o menino tem dezoito anos mal com- pletados. Tem um pai que tem a largura de uma lápide de mármore e que deve ter um enorme coração de chumbo. Se o moleque desse pinta ali no meio dos filhos da puta que trabalham com o pai, ele iria man- char o nome da famiglia toda.” “Tá. Tu levou o moleque pro puteiro. Ele carcou uma lá. Qual a merda que você fez?” “Parece que o mole- que gostou do esporte. E como fui eu quem apresentou ‘a menina’, vi- rei o best man nessa nova vida.” “Ainda não entendi qual o problema.” “Péra! Daí o Doutor Marconi me chamou na sala dele. Tava meio ir- ritado porque o menino andava direto na noitada, sem dormir direi- to, sem ir às aulas e tal, mas tava contente porque ‘ despertei o macho si- ciliano que dormia dentro dele’.” “PORRA! E tu diz que tá fodido? Tá zander catta preta 93
  • 96. na maior fita com o chefão e tá reclamando?” “O moleque tá traçando tudo quanto é puta de Copacabana, Gordo. Ou vai pegar doença ou vai ganhar um filho em breve.” “Saquei, daí a culpa vai ser sua, né?” “Exa- tamente!” “É. Tu tá fodido.” Saíram e foram afogar as mágoas no Devassa da Barra. Lá pelas tan- tas, chega Grande com duas amigas. Velhas amigas. Suzi e Fabi. Eram boas de copo, boas de papo, péssimas de cama. Já tinham ficado com os três nas suas remotas adolescências de milênio passado. Não dera cer- to. Eram “homens de saia” como dizia o Gordo. “Diluidoras do extrato escrotal”, segundo Burro. Tudo inveja, dor de corno e tal. Na verdade, elas eram testemunhas dos fracassos de cada um deles. Fracassos como homens, como gente, como criaturas inventadas. “Quer dizer que Burro colocou o menino no ‘Bom Combate’ e deu merda? Tu é um merda, Burro.” “Mas Suzi, vai que o menino apren- de o caminho que lhe é de direito.” “Fabi e Suzi, não tem jeito. Quem nunca comeu açúcar, se lambuza com melado.” “Mas não tem jeito, Burro?” “Tem não Grande.” “Tem sim.” Gordo sempre tinha uma solução. Normalmente era imprópria ou ile- gal. Neste caso era ambas. “Pega o moleque. Apresenta para aquelas suas amigas que curtem car- ne fresca. Deixa as balzacas ensinarem o caminho para ele. Elas não querem filhos ou já têm os seus e prezam a liberdade que conquista- ram. Na pior das hipóteses vão dar uma chave de buceta no moleque e ele vai ficar apaixonado.” “Boa.” “Pera lá. O menino é bonito?” “É sim, Suzi.” “Pô Burro. Põe na fita.” “Peralá!” “Pô Gordo, põe na fita. Ou eu ou Fabi damos um jeito no moleque. Colocamos ele na linha.” 94 urbanóides
  • 97. Os três se entreolharam com cara amargas e meio que não concorda- ram. Mas sabiam que não teria jeito. As duas quando queriam alguém, nada ficava no caminho. Dali a duas semanas era o italianinho com uma uma na Melt ou com outra na Nuth, com uma na Ploc ou com outra na Soundtrack. Um mês se passou, o moleque voltou para a Itália e os cinco se reencontraram para um chope. Na verdade os três manés foram convocados pelas meninas. Impreterivelmente. Marcaram num pub novo lá na Paula Freitas. As meninas moravam em Copa e normalmente saíam dos botecos em estado pior que os nerds. Chegaram, chopearam, chopearam mais um pouco, contaram piadas, sacanearam a tudo e todos e só tangenciavam o assunto. Ninguém fa- lava no menino. Nem elas. Obviamente havia algo de errado. “Porra. Tamos aqui desde cedo rodando o assunto e ninguém fala.” “Deixa quieto gordo. A cerva tá descendo macia e não tô a fim de falar de homem.” “Porra Grande. Então tu veio porquê?” “Vim porque gos- to de beber aqui. Não se nega cerveja boa nem ida a boteco novo.” “Tá bom. Tu tá roxo de ciúmes só porque o veadinho lá comeu a Fabi.” “Pe- ralá! Não põe o meu nome nessa história!” “Como não? Ele te comeu ou não?” “Não, porra!” “Então comeu a Suzi!” “Também não me co- meu.” “PORRA, CARALHO. PUTAQUEPARIU!” “Que foi Gor- do. Tu tá nervoso com o quê?” “…” “Deixa ele quieto, Burro. Gordo, o menino não comeu nem a mim nem a Suzi. Mas não posso dizer das minhas amigas. Elas gostaram bastante do menino.” “!” “Que cara é essa, Gordo. Eu e Suzi até tínhamos a intenção de ‘fazer’ o menino sim. Mas não dava.” “É, meninos. Não rolou.” Ficaram os três estupefatos enquanto as duas riam e contavam dos ca- sos das amigas. Estupefatos e invejando ter vinte anos e duas amigas zander catta preta 95
  • 98. balzacas para apresentá-los aos prazeres da vida. Puto, depois de horas olhando a cerveja stout esquentar no copo, Burro se levantou. “Eu sou um merda mesmo. Mesmo não me fodendo, me fodi.” Em solidariedade, os outros dois se levantaram e foram mijar. Quando sentou de volta, antes dos amigos, Fabi sussurrou-lhe no pé do ouvido. “Você foi o melhor dos três.” As duas pagaram a conta inteira e levantaram-se. Sabiam que uma pe- quena mentira sempre seria seguida de outra e nada como uma peque- na verdade para terminar a corrente. 96 urbanóides
  • 99. Como ser inconspícuo em três lições Grande sempre fora o mais discreto e o mais festeiro da turma. Apron- tava e envolvia-se em tantas ou mais confusões que os outros mas man- tinha um low profile que invejava a todos. Sempre que as mães, namo- radas, amigas ou mesmo conhecidos os criticavam por um vexame ou um comportamento inadequado, tomavam-no como exemplo. “Nunca que o Grande vomitaria no sofá da sua tia.” “O Grande não fica apalpando as amigas da namorada. Aliás ele apresenta a namora- da, não uma ‘essa é uma amiga’.” “Aquele seu amigo (o Grande né?) tem opinião. É, definitivamente, uma pessoa de caráter.” Na verdade, Grande media muito bem as palavras que usava e os gestos que praticava. Não que racionalizasse cada gesto, era mais como uma programação em backlog que ele “rodava” na sua cabeça. Era quase que inconsciente o processo de se colocar nos eventos sociais. Ele mesmo dizia apenas que tinha “compostura”. Apenas isso. Mas, para quem era mais próximo, Grande não era essa flor social toda. Só que, além de Burro e Gordo, apenas um punhado de pessoas poderiam ser chamadas de próximas. Então ele conseguia circular bem entre as mais diversas esferas. Era uma vernissage de um livro de de- signers aqui, uma recepção no Palácio da Guanabara ali, uma inaugu- zander catta preta 97