O documento descreve as experiências do narrador subindo as escadas do seu local de trabalho ao invés de pegar o elevador, que sempre estava lotado. Uma mulher no elevador o acusa de ter fingido não se lembrar dela depois de terem se beijado e ela ter dito que o amava. Confuso, o narrador tenta se lembrar do que realmente aconteceu.
1. Entra aqui no
elevador
O lugar que eu trabalhava era enorme. Era
entrar naquele estabelecimento e sentir
que um labirinto pode ter forma de um
prédio. Oxalá com seus 30 andares e um
punhado de escadas que, para mim, eram
as paredes que nos encurralavam e nos
engoliam na rotina.
A minha sala ficava nem muito em cima e
nem muito embaixo. Um pouquinho pra lá
da metade.
Pra chegar era um Deus nos acuda, nos dê
perna, nos dê água e nos dê um
teletransporte. É, às vezes eu apelava com
aquele cara lá de cima. Por sorte ele não
apelava comigo. Ou apelava. Se o sinônimo
disso fosse subir todos os dias aquelas
escadas de piso de marfim amarronzado
2. que camuflavam com o meu sapato
desgastado.
A subida era sempre sangrenta. Eu subia
sozinho. Dava a liberdade para as escadas
ouvirem meus pensamentos. Também para
responderem, ouvirem minhas
reclamações e dividirmos histórias, se é
que eu me permitia a tanta loucura.
Escadas não são SAC. Mas eu fingia que
eram.
“Por que você não pega um elevador”, dizia
a Vivian, vizinha da minha sala. “Toda vez
que chego e tento entrar, ele está lotado.
Eu desisto. Vou para o meio natural. Se é
que as escadas são um meio natural”,
respondia.
Eu não sabia se era uma sina ou uma falta
de sorte, mas sempre que eu chegava e
tentava subir pelo elevador, ele sempre
estava abarrotado de empregados bem
vestidos de smoking e com aquelas
3. gravatas que pareciam telhas de zinco
novas colocadas abaixo do pescoço de
tanto que refletiam a luz. Por muitas vezes
eu cheguei a acreditar que o meu
despertador biológico era simétrico ao de
todo mundo para sempre chegar lá no
mesmo horário e ele estar lotado.
Nos dias em que eu estava com muito sono
eu esperava a porta abrir, olhava para
aquele cubículo e apenas abaixava a
cabeça. Mandava tudo que vinha a minha
mente à merda. Claro que não
literalmente, eu não era louco. Podia estar
adiantado ou atrasado, no horário ou fora
do horário. Não adiantava. Ainda bem que
eu não tinha uma metralhadora. Se bem
que seria útil.
“Entra aí, cara”, berrou uma moça num
certo dia. “Não, obrigado, vou pelas
escadas. Tenho fobia com lugares
apertados”, respondi, ironicamente, sendo
que minha sala era tão pequena quanto
4. aquele elevador e eu não reclamasse tanto.
E a moça era insistente por todos os dias.
Não fosse aquela beleza diferente do de
costume, não sei qual seria meu
comportamento frente à ela. Eu tinha que
fazer o meu charme, ainda que isso às
vezes me faltasse.
Entrar naquele minúsculo pedaço de
espaço era como se eu fosse a ultima peça
do quebra-cabeça. Só que ali eram quebra-
cabeças montados em cima de quebra-
cabeças. Aí fica difícil.
Subir as escadas ficou tão rotineiro que eu
já as tratava como uma amiga. É claro que
uma amiga que nunca me respondia, ou
enviava mensagem, ou saia para tomar um
sorvete e jogar milho para pombos.
Entretanto era uma amiga que me ouvia.
Coisa que ninguém ali se disponibilizava.
As escadas praticamente eram o escape da
monotonia do meu trabalho, mesmo que
5. fosse um exercício para minhas pernas e
fulgor do meu cansaço.
Eu me acostumei com elas. Pobres escadas.
Virou um desafio. “Vou subir. Vou chegar
num horário nada a ver. Um horário que
ainda não fui. Não é possível que essa
porcaria estará cheia. E se estiver, eu
mando banana. Agora sem medo.”, dizia
para mim mesmo numa coragem que não
era de minha característica. Era tímido
apenas em não querer aparecer muito em
público para não denegrir minha imagem
que nem era muito conhecida. Quiçá
imaginava ficar conhecido como ‘’o cara
que mandou banana para um elevador”.
Quando cheguei, apertei o botão de subida.
A porta se abriu. Para minha surpresa e
pelos batuques e repiques que meu
coração fanfarreava no meu peito, o
elevador estava praticamente vazio. Só
havia uma pessoa. Aquela mesma moça
6. que me convidou a entrar em outros dias.
“Escadas, me ajudem aqui: é essa aquela
moça que lhe confidenciei uma espécie de
admiração outra dia?”, pensei na hora.
Entrei.
Ficamos calados. “Você é um grande
mistério”, disse ela navalhando o silêncio.
“Por que sou um grande mistério?”,
perguntei com cara de quem não entendia
e levantando uma das sobrancelhas.
“Antes, você entrava e conversava comigo
e se abria. Comecei até a gostar de você.
Mas de repente parou de subir pelo
elevador. Você parava em frente, olhava de
um jeito muito do estranho aqui para
dentro e depois saía. Um completo
mistério, não é verdade?”. Naquele
instante eu senti como se estivesse com
uma batedeira em minha mente triturando
todos os meus miolos. Que petecada é essa
que ela lançou do lado de cá da rede?
7. “Desculpa, moça, poderia deixar um pouco
mais claro?”, implorei educadamente. “É
como eu já esperava. Você é muito bobo
mesmo. Um bobalhão. Bastou eu dizer ‘eu
estou realmente te amando’ após nos
beijarmos e você fingir ter Alzheimer”,
esbravejou, num tom que realmente
parecia ser verdade.
O elevador chegou ao 19° andar. Ela saiu
pisando duro. Fiquei onde estava. “Pode ir
pela escada mesmo. Pode me evitar. Eu
não ligo. É como foi pela primeira vez: essa
tua cara de sonso me enoja. Adeus.”, disse
apertando o botão. Parado, fiz um exame
de consciência e tentei me recordar. Pode
ser que de fato aconteceram aqueles
momentos. Mas eu achava que era apenas
alguma história inventada pelas escadas
para me reconfortar.
Tiago Peçanha