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Número 19 - Jan./Jun. 2014
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO
DA FACULDADE DO SUL DA BAHIA
Revista Mosaicum é indexada em:
EDUBASE (Unicamp)
Latindex
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Os artigos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem,
necessariamente, o pensamentos dos editores.
FUNDAÇÃO FRANCISO DE ASSIS
Presidente: Lay Alves Ribeiro
FACULDADE DO SUL DA BAHIA
Diretor-acadêmico: Valci Vieira dos Santos
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO - NUPPE
Coordenação: Jessyluce Cardoso Reis
Revista Mosaicum
Publicação semestral do Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão
da Faculdade do Sul da Bahia
Conselho científico:
Abrahão Costa Andrade (UFRN)
Bernardina Maria de Sousa Leal (UFF)
Celso Kallarrari (UNEB/UCGO)
Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES)
Eva Aparecida da Silva (UFVJM)
J. Agustín Torijano Pérez (Universidad de Salamanca)
Jaceny Maria Reynaud (UFRGS)
Josina Nunes Drumond (PUC/SP)
Luiz Roberto Calado (Faculdades Alves Farias)
Miguel Zugasti (Universidad de Navarra, Espanha)
Nilson Robson Guedes da Silva (Faculdade Anhanguera de Limeira)
Paulo Roberto Duarte Lopes (UEFS)
Raphael Padula (COPPE/RJ)
Ricardo Daher Oliveira ((Unicesumar)
Ricardo Jucá Chagas (UESB)
Rodrigo Loureiro Medeiros (UFES)
Rogério Greco (Instituto de Ciências Penais - ICP)
Sebastião Costa Andrade (Universidade Estadual da Paraíba)
Solimar Garcia (Universidade Paulista - Unip))
Valci Vieira dos Santos (UNEB)
Vincenzo Durante (Universidade de Padova, Itália)
Wisley Falco Sales (PUC/Minas)
Conselho Editorial:
Carlos Felipe Moisés
Rodrigo da Costa Araújo
Sélcio de Souza Silva
Valci Vieira dos Santos
Wilbett Oliveira
© 2014 Núcleo de Pós-graduação,
Pesquisa e Extensão da Faculdade
do Sul da Bahia (Fasb). Permitida
a reprodução parcial ou total por
qualquer meio de impressão, em
forma idêntica, resumida, parcial
ou modificada, em língua portu-
guesa ou outro idioma, desde que
citada a fonte.
Revista Mosaicum
Ano 12, n. 19 (Jan./Jun. 2014).
Teixeira de Freitas, BA.
ISSN: 1808-589X
1. Publicação Periódica - Faculdade do Sul da Bahia.
						
					CDD 050
Correspondências:
Rua Sagrada Família, 120 - Bela Vista
Teixeira de Freitas, BA
CEP 45997-014
(73) 3011.7000 - ramal 7005
Home page: www.revistamosaicum.com.br
E-mail: revistamosaicum@ffassis.edu.br
SUMÁRIO
Estudos Literários
1 METÁFORAS DO ESPAÇO EM EDWARD MÃOS DE TESOURA............................11
	 Metaphors of space in Edward Scissorhands
		Rodrigo da Costa Araujo | Maria Lucia Vaccari
	
2 AS ÚLTIMAS HORAS: AGORIDADE DOS ALTOS E BAIXOS DA VIDA HUMANA....21
		Arolda Maria da Silva Figuerêdo
		
3 LEITURA E PERSUASÃO: PRINCÍPIOS DE ANÁLISE RETÓRICA.......................26
		 Cristhiane Ferreguett
4 PARA UMA RETÓRICA DA COLLAGE.........................................................................29
		 Rodrigo da Costa Araújo
5 DE MINÚSCULOS A ESCOMBROS...........................................................................................31
		 Abrahão Costa Andrade
Filosofia
1 JUÍZO DE GOSTO E JUÍZO MORAL..................................................................................33
	 Kant’s judgment of taste and moral judgment
		Abrahão Costa Andrade
2 O SUJEITO E A CORAGEM DA VERDADE:
UMA ANÁLISE DO ÚLTIMO FOUCAULT.................................................................. .43
	 The Subject of Truth and Courage: an analysis of the last Foucault
		Michael Douglas de Almeida Nunes | Iraquitan de Oliveira Caminha
Educação
1CONSTRUINDOSIGNIFICATIVAMENTEOENSINODACIÊNCIA.....................59	
	 Significantbuildingscienceteaching
		Leonardo Diego Lins
2 O ENSINO RELIGIOSO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ALUNO:
CONTRIBUIÇÕES E LACUNAS.......................................................................................68	
	 Religious education in the process of student education: contributions and gaps		
		Rodrigo de Araújo Pereira | Celso Kill
Economia
1 CRISE COMO ESTRATÉGIA DE PERMANÊNCIA: ANTES E DEPOIS DE 2008.....77	
	 Crisis as a strategy of permanency before and after 2008
		 Eduarda de Lima Andrade
2 A LIBERALIZAÇÃO FINANCEIRA NO BRASIL.........................................................93
	 Financial Liberalization in Brazil
		 Marcelino Serretti Leonel
3 PERFIL DO EMPREGO FORMAL NAS MICRORREGIÕES BAIANAS:
UMA APLICAÇÃO DO QUOCIENTE LOCACIONAL
E DO MULTIPLICADOR DE EMPREGO........................................................................113
	Profile of formal employment in bahia state microrregions: an application of loca-		
	 tion quotient and employment multiplier
		 Paulo Henrique de Cezaro Eberhardt
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO..........................................................................................137
EDITORIAL
A Revista Mosaicum, publicação semestral do Núcleo
de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul
da Bahia (Fasb), chega ao seu décimo nono número com a
certeza de que ao longo de sua circulação tem cumprido o seu
objetivo primevo que é a disseminação do fazer científico, re-
sultante das pesquisas realizadas por professores-pesquisado-
res de renomadas instituições.
Este número se divide em quatro blocos, que apresen-
tam textos das diversas áreas do conhecimento: Estudos Li-
terários, Filosofia, Educação e Economia.
O artigo que abre o primeiro bloco, Metáforas do es-
paço em Edward Mãos de Tesoura, de Rodrigo da Costa
Araujo, doutorando em Literatura Comparada (UFF) e de
Maria Lucia Vaccari, Professora de Língua Portuguesa, dis-
cute alguns aspectos da relação entre o espaço e discurso me-
morialístico da infância, baseando-se no filme Edward mãos
de tesoura (1990). Pelas metáforas do espaço, os autores pro-
curam demonstrar a complexidade da memória e as marcas
delicadas da subjetividade humana. Para Araújo e Vaccari, ao
inserir o espaço e as suas ressignificações no repertório de ele-
mentos auxiliares no processo de investigação da memória, o
cineasta Tim Burton contribuiu para a ampliação do debate
em torno dessa manifestação artística que tanto se aproxima
da nossa capacidade de recordar visualmente o tempo passa-
do e o tempo.
Em seguida, a professora Arolda Maria da Silva Figue-
rêdo (Uneb) resenha As últimas palavras, terceiro livro de
poemas de Celso Kallarrari, que, segunda ela “traduzem os
sentimentos de desatino e agonias, leveza e dureza, incons-
tância, falta de rumo, consequências das muitas urgências
atuais, do esfriamento das relações, dos silêncios da alma e da
corrupção dos discursos.” Cristhiane Ferreguett (Uneb), em
sua resenha de Leitura e Persuasão: princípios de análise
retórica, afirma que neste livro há uma discussão abrangente
sobre os diversos princípios da análise retórica, sintetizando
os principais pontos da teoria, fundamentando-se em diver-
sos autores e teóricos da retórica, dando ênfase aos estudos
apresentados por Aristóteles e Chaim Perelman e Olbrecht-
s-Tyteca.
Rodrigo da Costa Araújo resenha A collage como trajetória amorosa, de
Fernando Freitas Fuão, e observa que o próprio livro em si, revela fragmentos
visuais, brincadeiras que incitam e solicitam a leitura, a vida, a memória, a lem-
brança de qualquer leitor. Para Araújo, A collage como trajetória amorosa não é
uma análise especificamente barthesiana, mas também não lhe é alheia a esse
viés, uma vez que o autor confessa logo de início, no título, alguma retomada
dolivroFragmentsd’undiscoursamoureux,deRolandBarthes(1915-1980).Em
De Minúsculos a Escombros, Abrahão Costa Andrade (UFPB) resume bre-
vemente o livro do poeta Wilbett Oliveira - Escombros -, afirmando que, “em
conformidade com ou em decorrência do ato que ele provocou, não recolhe,
expõe os escombros caídos como efeito do livro anterior. Quando, de fato, ele
escreve “fossem fraturas do sujeito” ou “fossem realidades esmaecidas” e não
conclui em canto algum o que aconteceria se assim o fossem, ele aponta para
uma situação em que algo, o nada (a morte?), é o que mais espreita.”
O segundo bloco – Filosofia - abre-se com Kant: juízo de gosto e juí-
zo moral, do poeta, ensaísta e professor da Universidade Federal da Paraíba
Abrahão Costa Andrade. O texto consiste em um estudo do juízo de gosto e
do juízo moral a partir do pensamento de Kant, tentando articular sua filoso-
fia ao contexto histórico social de sua época.
Nesse mesmo bloco, os professores Michael Douglas de Almeida Nu-
nes (UFP) e Iraquitan de Oliveira Caminha, Doutor em filosofia pela Uni-
versité Catholique de Louvain, no texto intitulado O sujeito e a coragem
da verdade: uma análise do último Foucault, procuram fazer uma análise
daquilo que se acredita ser o cerne do pensamento filosófico de Michel Fou-
cault: a relação existente entre o sujeito e a verdade que o constitui como su-
jeito moral. Perpassando a antiguidade grega junto com Foucault, os autores
discutem as práticas e técnicas de cuidar de si que determinam a profunda
relação entre a verdade e o sujeito que se busca elucidar.
Construindo significativamente o ensino da ciência, texto de Leo-
nardo Diego Lins, inaugura a terceira parte deste número. Mestre em Ensino
de Ciências pela Universidade Estadual da Paraíba, Lins afirma que o ensino
de Ciência, de maneira geral, é caracterizado pelo excesso de exercícios re-
petitivos, problemas resolvidos, utilização de uma sucessão de “fórmulas”,
muitas vezes decoradas de forma literal e arbitrária, em detrimento de uma
análise mais profunda, visando à compreensão dos fenômenos físicos, quí-
micos e biológicos envolvidos no cotidiano do aluno. Para o autor, “parti-
cularmente, há graves problemas no Ensino de Ciência, como a aprendiza-
gem mecânica por parte dos alunos do Ensino Fundamental e Médio e ele
propõe a operacionalização didática dos conteúdos ministrados em Ciência
pelo modelo cognitivista ausubeliano, pois é o mais adaptável à concepção de
material didático em Ciência, permitindo a exploração de forma hierárquica
do universo cognitivo do aprendiz, como também possibilita a manipulação
deliberada deste universo para propiciar uma aprendizagem significativa.”
Ainda sobre educação, o professor Rodrigo de Araújo Pereira, da Pon-
tifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), discute, em seu ar-
tigo Ensino religioso no processo de formação do aluno: contribuições
e lacunas, o Ensino religioso no processo de formação do aluno, procurando
refletir sobre as contribuições e as lacunas surgidas nesse processo de ensi-
no-aprendizagem. Para este autor, “a religiosidade surgiu com os primeiros
seres humanos que manifestavam suas crenças nos seres inanimados repre-
sentados nos fenômenos naturais: o relâmpago, a lua, o sol, as estrelas. A po-
lêmica sobre a obrigatoriedade do ensino religioso em escolas públicas e pri-
vadas traz elementos da liberdade de expressão e da desvinculação expressa
da administração pública das entidades religiosas a não ser as expressamente
permitidas na legislação vigente.” Em suma, o texto procura discutir sobre a
importância do ensino religioso na formação do aluno.
O último bloco - Economia – aponta o estudo da Mestranda em An-
tropologia (UEPB ) Eduarda de Lima Andrade intitulado Crise como es-
tratégia de permanência: antes e depois de 2008. Nele, a autora analisa o
surgimento da crise de 2008 chamado atenção para o fato de haver por trás
dela, por um lado interesses particulares e enriquecimento ilícito, o que gera
transferência de riquezas e desigualdades sociais, por outro, como o sistema
pode não só se beneficiar com uma crise, mas também implementar estra-
tégias de crise, novas ou antigas, a fim de criar novos campos de expansão e
permanência do sistema capitalista.
Em A liberalização financeira no Brasil, Marcelino Serretti Leonel,
Professor da UFVJM, apresenta e analisa o panorama do processo da libe-
ralização financeira ocorrida na década de 1980 em diante. A análise inicia a
partir da concepção dessa medida econômica no mundo, além de relatar as
consequências por meio de evidências empíricas, estas baseadas em traba-
lhos direcionados a investigação dos resultados da liberalização da conta de
capital feitas por vários autores de diferentes correntes de pensamento eco-
nômico. O texto também apresenta, em particular, a trajetória e os resultados
da implantação da liberalização financeira da conta de capital no brasil até o
ano de 2005.
Perfil do emprego formal nas microrregiões baianas: uma apli-
cação do quociente locacional e do multiplicador de emprego, de Paulo
Henrique de Cezaro Eberhardt (Unioeste/Toledo), encerra este bloco. Por
meio da análise da distribuição do emprego formal nas atividades da base
econômica na Bahia, utilizando dois métodos de análise regional: o Quocien-
te Locacional (QL) e o multiplicador de emprego, o autor recolhe dados in-
dicativos dos os ramos de atividade que mais concentram empregos formais
na economia baiana, quais sejam, a administração pública e extração mineral.
Agradecemos imensamente a Fundação Francisco de Assis, mantene-
dora da Faculdade do Sul da Bahia, pelo estímulo e pelos desafios encontra-
dos com a publicação deste importante periódico científico.
Conselho Editorial
Estudos Literários
Revista Mosaicum, n. 15, Jan./Jun. 2012 - ISSN 1808-589X 10
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 11
Rodrigo da Costa Araujo
Doutorando em Literatura Comparada [UFF].
Mestre em Ciência da Arte (2008-UFF)
Professor de Literatura Infantojuvenil
e Teoria da Literatura (Fafima)
E-mail: rodricoara@uol.com.br
Maria Lucia Vaccari
Maria Lucia Vaccari é Professora de Língua Portuguesa.
E-mail: aguadourada2000@yahoo.com.br
Resumo: Neste trabalho discutimos alguns aspectos da relação entre o espaço e discur-
so memorialístico da infância, a partir do filme Edward Mãos de Tesoura (1990). Pelas
metáforas do espaço, procura-se entender a complexidade da memória e marcas delica-
das da subjetividade humana. Ao inserir o espaço e ressignificações dele no repertório
de elementos auxiliares no processo de investigação da memória, o cineasta Tim Burton
contribuiu para a ampliação do debate em torno desta manifestação artística que tanto
se aproxima da nossa capacidade de recordar visualmente o tempo passado e o tempo
perdido.
Palavras-chave: Tempo - Espaço - memória - Edward mãos de tesoura
Abstratct: In this paper we discuss some aspects of the relationship between space and
discourse memoir of childhood, from the movie Edward Scissorhands (1990). The me-
taphors of space, we seek to understand the complexity of memory and delicate marks
of human subjectivity. When entering the space and his reinterpretation of auxiliary ele-
ments in the repertoire of the memory research process, filmmaker Tim Burton helped
expand the debate on this artistic manifestation that both approaches our ability to vi-
sually recall the last time and lost time .
Keywords: Time - Space - Memory - Edward Scissorhands
METÁFORAS DO ESPAÇO
EM EDWARD MÃOS DE TESOURA
METAPHORS OF SPACE IN EDWARD SCISSORHANDS
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 12
Figurações e (re)configurações do espaço
O espaço é caracterizado como sendo o lugar onde se desenrola a
trama, articulando-se com os personagens e o tempo, situando suas ações,
suas atitudes mantém uma estreita relação entre eles e a construção de
sentidos. Diante disso, ele não se define somente como o lugar físico onde
ocorrem ações, mas, também, demarca, semioticamente, o perfil psicológi-
co e o socioeconômico dos envolvidos em situações, entre outros aspectos.
Em Eduard Mãos de Tesoura (1990) deve-se reconhecer o espaço li-
gado a vários outros aspectos, como ambiente, tempo, ação, iluminação,
figurino, maquiagem, tudo isso ao mesmo tempo, imbricado no jogo visual.
Isso porque a representação da história no cinema é simultânea, quando a
luz, a linguagem, a teatralização dos personagens, a fala, e outros elementos
criam a realidade, mesmo que ficcional, como é o caso desse filme, corres-
pondendo a uma nova forma de visualizar a sociedade e (re)discuti-la.
Quanto ao aspecto ficcional, é importante considerar o espaço social
- lugar onde circulam os personagens - e o espaço psicológico - como cons-
trução que demonstra alguma atmosfera interior. E é através dessa visão e
atmosfera, em conjunto com o social e o psicológico, que se caracterizam
melhor todos os conflitos do personagem.
No filme percebe-se que não há como distinguir espaço e tempo fic-
cionais. Eles comungam da mesma natureza, pois o espaço é onde se desen-
rola a trama e o tempo é quando isso acontece. Por isso, quando aproxima-
dos e juntos, esses elementos ajudam a definir símbolos importantes para
o enredo e para a identidade do protagonista. O movimento, a riqueza de
detalhes e a impressão da realidade oferecidos pelo filme abrangem dois
níveis que, também, atuam em conjunto: a redefinição de espaço e a cons-
trução do tempo.
Como todo e qualquer espaço fílmico, a relação estabelecida entre tais es-
paços,osatributospsicológicosdopersonagem(quemodificamaquelesespaços),
a justaposição dos espaços (comandada pelo tempo do filme, também criado) e
a própria carga da história resultam em uma experiência temporal, semelhante ao
modo como nós sentimos o tempo, próximo de aspectos psicológicos que regis-
tram em nossa memória fragmentos visuais. Nesse caso, a relação espaço-tempo-
ral e seu ritmo são comandados pelo desenrolar dos acontecimentos.
Além disso, a paisagem cinematográfica não é uma documentação objeti-
va, muito menos mero espelho do real. É uma forte criação/construção cultural e
ideológica em que significados sobre lugares, personagens e sociedade são produ-
zidos, legitimados e até mesmo contestados.
O figurino faz parte do conjunto de significantes que ajuda a moldar o es-
paço e o tempo nesse filme. Ele, contextualizado com as ações e marcas pessoais
do protagonista, ajuda a definir (ou tornar imprecisa) a localidade geográfica onde
a história se passa e mesmo a época em que tudo ocorre, e, ainda, demarca cer-
ta atmosfera pretendida pelo contexto. Ele, de certa forma, serve como elemento
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 13
de identificação dos personagens, diferenciando-os ou ajudando a identificar qual
arquétipo a personagem revela. Suas cores, texturas e apetrechos demonstram as
sensações, o estado de espírito, a correlação entre o personagem e o ambiente
em que está inserido. A maquiagem, nesse conjunto semiótico, também apresenta
papel importante porque evidencia os personagens em seus respectivos espaços.
A iluminação cuidadosamente, elaborada em cada espaço, cuida para o avi-
vamento dos pensamentos, ações e mis en scène de seus personagens. A luz, imbri-
ca-se à maquiagem do protagonista, transformando seu rosto quase em máscara,
criando uma atmosfera gótica, através de efeitos de sombra e de luz, apontando
composições exageradas sugerindo algum impacto visual.
Apesar de ressignificar certas delicadezas, o espaço e outros elemen-
tos na construção das cenas e paisagens em Edward carregam exploram cer-
tos exageros. O contraste entre o bem e o mal, o dia e a noite, ações que
amedrontam e confortam, a distorção entre o que se pode, aparentemente,
confiar e o que é, verdadeiramente, perigoso: o discernimento, em Edward
MãosdeTesoura,contaquenadaé,realmente,oqueparece.Enfim,oespaço
e outras interessantes articulações da ordem da estética são utilizadas para
compor certa subjetividade conceitual e memorialística nesta obra fílmica.
Figurino/ Espaço e subjetivação
Em sociedade, o ato de vestir-se traduz várias concepções, porque
envolve normas primárias estabelecidas pela civilização. O ser humano ves-
te-se e desnuda-se para atender às tradições de sua cultura. A roupa não
serve apenas para protegê-lo do frio, mas carrega consigo símbolos, códi-
gos, convenções de status, comportamentos, sentimentos, identificação de
grupos e posições ideológicas que definem a cultura. Ela, também, serve
para proteger o corpo, representar o pudor, ornamentação e embelezamen-
to, podendo ainda, estabelecer a identificação de determinados grupo ou
pessoas. Assim, a partir dessas considerações, a roupa ganha novo nome
- figurino.
O figurino é composto por todas as roupas e os acessórios dos perso-
nagens, de acordo com as necessidades do roteiro do filme. Ele, ajuda, ainda
a “definir o local onde se passa a narrativa, o tempo histórico e a atmosfera
pretendida, além de definir características das personagens.” (COSTA, 2002,
p. 38).
Como vestuário, o figurino constrói um conjunto de trajes e adornos
queplasticamenterevestemesearticulamcomocorpo,emfunçãodacena,
dizendo ou significando o que a palavra não justifica ou omite. O figurino
é um fator importante de abstração e tem um significado incerto e poético.
No filme, a roupa inicial com que Edward aparece demonstra sua verdadei-
ra condição de “menino-monstro”. Em relação à fidelidade histórica, o figu-
rino de Edward possui liberdade maior e não é fiel à época em que a história
énarrada.Seufigurinoédiferentedetodososdemaispersonagensdofilme.
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 14
Isso deve-se ao fato de a personagem ser criada artificial e diferentemente
das outras pessoas. O objetivo é ressaltar essa diferença no figurino, pois ela
será fundamental para a narrativa e coerência da história.
De aspecto assustador, no entanto doce e delicado, Edward personifica a
estranha mistura de ingênua benevolência infantil com o poder de destruição imi-
nente. Tal como o monstro de Frankenstein, também ele possui uma credulidade
que o coloca em dificuldades, especialmente porque não consegue destrinçar os
motivos ocultos ou as segundas intenções por detrás das atitudes das personagens.
Ainda assim, ele tudo faz para agradar e tentar integrar-se, usando a sua própria
inaptidão.
Ele, também possui um visual gótico que lembra muito o período Batcave
ou Deathrocker. A maquiagem branca no rosto, com olhos e boca “carregados”
também são características desse estilo. O Batcave ou Deathrock possui influên-
cias do Punk Rock e temas de filmes de terror. As roupas de Edward, com diversas
fivelas, recortes e costuras também são uma referência punk, ao mesmo tempo em
que sugere “armadura” e dificuldades de seus movimentos. Ela compõe a sensação
de estranheza e deslocamento que Edward possui na narrativa e em oposição aos
outros personagens. Parece que a sua roupa, assim como seu corpo foram feitos
de retalhos. Isso o aproxima ao aspecto Frankenstein, porém estereotipado e não
como os convencionalismos macabros, próprios das narrativas de terror, o que
desconstrói os significados do senso comum e maniqueísta, frequentemente atri-
buído aos monstros. Seu figurino não oferece uma época, ou seja, não se relaciona
a um determinado tempo, não é próprio de sugestão de um determinado período.
No castelo, o espaço grande e escuro combina com os cabelos, cor,
roupas, e horror que trazem consigo, a imagem-metáfora do protagonista.
Há ainda o contraste entre sua roupa preta e seu rosto branco, sugerindo,
assim, o caráter de uma criatura, “montada”, ”inventada”, “morta”.
Do Castelo, também, observa-se a simbologia que a roupa traz em
relação ao espaço que o personagem vive primariamente. Cenário exagera-
do em escuridão, em materiais em estado bruto (como as paredes sem re-
boco), janelas disformes e vidraças quebradas, com características de mal-
-assombrado, visuais exagerados e expressivos, que chocam inicialmente,
porém estão inseridos no contexto narrativo, e que, por isso, não sugerem
uma conotação absurda. Visualmente, características da arte gótica tomam
lugar em cena, enriquecem e caracterizam as cenas e paisagens do filme.
O ambiente, nesse contexto em preto e tons de azuis, é totalmen-
te exagerado: uma velha mansão - com portas grandes, janelas disformes
e de tamanho irregulares, escadas intermináveis e ambientes totalmente
sombrios, repletos de estátuas assustadoras. A real utilização desse exagero
é para enfatizar o espaço e, logicamente, fortalecer o sentido das relações
com o protagonista. Nele existem sombras distorcidas, projetadas nas pare-
des de pedras e com teias de aranha, demonstrando o abandono do lugar.
O casarão, inclusive, está sobre as montanhas, um local sombrio, que cria
um ambiente de excentricidade e isolamento. Excêntrico vem do latim ex
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 15
centricu que significa aquele ou aquilo que se desvia ou se afasta do centro,
ou seja, no caso, o que não é igual, ou semelhante aos outros.
Na contracena com Peg, nota-se, perfeitamente, a diferença entre
os figurinos dos personagens. Em Peg, a vendedora do Avon que encontra
Edward, é um tailleur de linhas retas, gola e chapéu cor lilás. Este figuri-
no remonta, intertextualmente, os tailleurs e vestidos de André Courrèges
e Pierre Cardin, estilistas de renome, demarcando a diferença em que os
doisseencontram.Eles,dealgumaforma,representammundostotalmente
diferentes.
Nessecontextovisual,portanto,ofigurinopodeserumelementoam-
bíguo, na medida em que esconde, disfarça, engana a respeito de seu porta-
dor. Quantas pessoas não se vestem de modo que contrariam sua idade, sua
época e sua condição moral, social e econômica? Essas duas possibilidades
que caracterizam a vestimenta do corpo, uma contrária à outra, encontram
uma terceira e última função que se define pela ausência: é desnudamento,
a não-roupa. No momento da criação da personagem, o figurino torna-se
a segunda pele do ator e a comunicação passa a ser entre um indivíduo e
outro (entre personagens), ou entre símbolos, inicialmente uma linguagem
em que predomina na construção do olhar. Será a vestimenta de Edward
mesmo uma roupa ou parte de seu corpo?
Há de se considerar, ainda, que a cor é um elemento importante para
caracterizar a simbologia da roupa, bem como a aparência e a essência dos
personagens na trama. O protagonista é apresentado com o figurino em
preto, cor que sugere certo luto, sensação de frustração, associando-se, nos-
so olhar, à ideia de terror, ao mistério e à fantasia (CHEVALIER, 1988, p.
740-744). Além da cor preta, a maquiagem e a roupa do protagonista, jun-
tamente com seu andar robótico, desconcertante, participam da instalação
de universo fictício, inquietante, com a sua aparência “estranha”. O espaço
escuro, leva à uma aura de mistério e lugubridade, para compor a aparência
da figura do protagonista incompreendido e incomum, complementando a
questão imagética do estranhamento do personagem. Contraditoriamente,
nessa configuração semiótica do personagem, mesmo o espaço escuro, no-
turno, soturno, “provocador” de medo e aversão, ele, também, desperta cer-
to encanto e pureza, em oposição aos valores sociais de outros personagens.
Diante dessas informações, ficam correlatos o ambiente e espaço
com o arquétipo do personagem. Há um pertencimento entre personagem
e espaço, pois ambos estão no mesmo contexto, amparados pela ideia góti-
ca, ainda que extremamente lúdica.
Reforçando esse ludismo, a maquiagem caracteriza o ator no filme,
sugerindo aquilo que ele é ou pretende parecer. Os contornos destacam
os olhos e os lábios no conjunto do rosto, enfatizam os traços físicos, a ex-
pressão do olhar e o movimento da boca na articulação do discurso. Ela
possui forte interferência semântica, na medida em que explora cores, con-
trastes, tonalidades, linhas, formas, contornos, relevos e texturas, elemen-
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 16
tos característicos da construção visual, capazes de interferir diretamente
na percepção do espectador em relação ao sujeito. Esse é o caso do perso-
nagem Edward, que fisicamente se diferencia de todos os outros sujeitos
da comunidade. Os relevos das cicatrizes, nesse conjunto, permitem criar
sinais de rugas, cicatrizes e marcas de acidente (no caso os acidentes com as
tesouras) e de deformações diversas, além de permitirem/sugerirem certa
alteração no tamanho e configuração no nariz e das pálpebras.
Diantedessesexageros,écertoqueoqueconsideramornamentação
e embelezamento para uns, para outros, isso varie de uma cultura para ou-
tra, pois constroem significados diferentes aos arranjos de cada sociedade.
O que para Edward é normalidade (suas roupas, sua cor, seu rosto, suas
tesouras e espaço onde mora) para os habitantes da pequena cidade, esses
códigosvisuaisecoamcomo“mutilação”,exuberância,esteticismoexagera-
do. Isso se dá devido ao estranhamento, as diferenças que aparecem, ainda
que usufruam ou explorem ações desse sujeito dito “estranho”.
A partir desse fato, percebe-se que, o quintal da mansão é ornamen-
tado de plantas bem cordadas, até a cor verde da grama da mansão é mais
viva que o verde da grama das casas do bairro, pois este tom plastificado
surge moldado como seus donos. Isso demonstra uma aparência óbvia: o
espaço e a identidade do diferente. Edward é representação do diferente e
uma sociedade moldada, com certeza, não saberia viver com ele.
Edward é o sujeito que só usa uma mesma roupa preta que não é re-
movida em nenhum momento da história, nem mesmo quando Peg lhe dá
outras peças para vestir-se. A calça comprida que ela lhe dá é cinza, porém,
para iluminar, urbanizar ou mesmo humanizá-lo, a sua camisa é branca, su-
gerindo, nesse gesto, clarear sua imagem. Mesmo seu rosto pálido e cheio
de cicatrizes (autoinfligidas por suas tesouras), cabelos bagunçados, olhos
fundos marcados por olheiras, Peg tenta maquiá-lo, ou seja, “maquiá-lo”
com produtos que disfarcem sua real imagem, diminuindo, nesse contexto,
seu aspecto dark.
Diante de determinado situação, Edward, delicadamente, se vê no
espelho e percebe que as cicatrizes do seu rosto, na verdade são causadas
pela lâmina da tesoura de suas mãos. Como Edward possui a índole e com-
portamentos de uma criança, tudo no mundo lhe é novo, por isso age de
uma maneira inocente e sincera causando empatia com o seu público infan-
til que o aceita sem julgamentos.
Opostamente ao mundo do protagonista, na cidade tudo é muito co-
lorido: as casas, as roupas, as ruas muito limpas, as crianças brincando e por
isso, Edward acha graça, maravilha-se com os acontecimentos. O diretor
usa as cores para brincar, realçar o encantamento. Aquele que se difere, o
“sujo” - também chamado de estranho, estrangeiro, forasteiro, deslocado
entre outros nomes - é, necessariamente, peculiar, inusitado e diferente no
ambiente e, por esse motivo, destoa dos outros elementos do grupo. O es-
tranho social manifesta-se no momento em que não compreende ou não
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compartilha do mesmo código de valores implícitos em determinada socie-
dade, sejam eles morais, comportamentais ou, até mesmo, visuais, infantis,
demonstrando que a cidade, com todas as suas cores, fortes e vivas, possui
um caráter de vida fútil, extremamente suburbana, em contraposição a cor
escura do mundo de Edward, que é na verdade o mundo puro e ingênuo.
Além das várias representações do espaço físico, o cenário e o figu-
rino assumem papeis tão importantes quanto ao de um ator dentro de um
espetáculo,construindosentidoseoutraspercepçõesdaquiloquenospare-
cem invisíveis, transmitindo, silenciosamente, leituras sensoriais. Em deter-
minados momentos, é fundamental que o figurino, assim como o cenário,
passem despercebidos e o espectador possa direcionar sua atenção para a
interpretação do texto, descobrindo elementos específicos como a perso-
nalidade da personagem, o enredo da cena etc.
O uso da cor em determinados espetáculos, por meio do figurino,
cenários ou luz, é capaz de produzir no espectador determinadas impres-
sões, fazendo-o mergulhar no simbolismo da cena, ajudando na definição
da personalidade do personagem, na valorização dos materiais e, acima de
tudo, no perfil psicológico como, por exemplo, nas cenas da fabricação de
Edward.
A história acontece no período dos anos de 1950/1960. A filha de Peg,
Kim, usa uma silhueta famosa: o “New Look”, de Christian Dior com a cintura
marcada e saia ampla. Todos os jovens do filme possuem um estilo semelhante
aos anos de 1950: suéter, cardigãs de malha, jeans, jaquetas coloridas, bobby socks
(meias soquete) e tênis. Um estilo college que teve origem no sportwear. Algumas
vizinhas usam a mesma linha de vestidos de formas retas, algumas com calça ci-
garrete e suéter, como a personagem Joyce Monroe no início do filme. Podemos
observar algumas vizinhas com vestidos trapézio, feito os lançados por Yves Sain-
t-Laurent e a influência da moda unissex. Também há uma influência dos anos de
1960 nas estampas da roupas. A maquiagem, ao estilo anos 1960, reforça olhos e
cabelos com raiz alta e impecáveis. Além disso, podemos notar o uso das franjas,
como na personagem Kim.
Espaço/ Iluminação
Conforme observado nas considerações anteriores, a roupa tem de
passar pela experimentação de formas, de materiais, referências e cores,
numprocessodeestudoquesustenteeviabilizeacriação.Maselanãopode
ser exclusivamente experimental, pois no caso do filme, não se usa um figu-
rino para representar alguma moda. Entretanto, a simbologia das roupas
não pode se contentar com a ausência de significados, sua função é, pri-
mordialmente, alterar regras, quebrar padrões e estabelecer o “novo”, para
que este seja, talvez, difundido, aceito e absorvido por um número maior
de pessoas.
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Afinal, os trajes exploram os aspectos metafóricos e metonímicos do
corpo deixando de ser apenas certo elemento realista ou um recurso orna-
mental, para tornar-se uma espécie de suporte de significação que estabelece
as relações essenciais entre a personagem e o contexto do filme. Diante desse
olhar, esses recursos/elementos completam a integração entre o ator, o figu-
rino, o cenário e a luz, pois neles estão concentrados os sentidos visuais do
filme.
A iluminação destaca-se em cenas, tais como, ao observar a mansão,
o espaço ou paisagem eleva-se sobre como uma nuvem negra, trazendo
uma sombra de premonição. O contraste estende-se na cor e nitidez da
imagem, às formas geométricas regulares, associadas às cores tranquilas, vi-
vas e as formas claras e detalhadas. Os pormenores urbanos, como as casas,
carros, candeeiros, relvados são alinhados de forma organizada e repetitiva,
sugerindo, sutilmente, ao observador, a impressão de alguma monotonia e
ausência de originalidade. A montanha, pelo contrário, parece extraída de
um filme em preto e branco, com certa falta de nitidez que é característi-
ca das primeiras experiências cinematográficas. A base da montanha, feito
imagem memorialísticas dos contos de fadas, surge envolta numa névoa,
fora de contexto, como um elemento irreal e atemporal.
Nesse caso, temos um filme atemporal, pois mistura padrões estéticos dos
anos 50 com os padrões dos anos 90, além da utilização de cores monocromáticas
e fortes dando-nos ou construindo, dessa forma, o caráter fantástico. A iluminação
sofre uma intensa diferenciação entre o ambiente em que Edward vivia e o novo
bairro,numinteressanteefeitoclaroversus escuro.Nacenadocastelo,sãoosjogos
de luzes em forma de antíteses visuais que predominam, esta dicotomia claro-es-
curo sugere o ciclo da vida e da morte. A coreografia de cores é a poesia que mais
chama a atenção: casas, carros e objetos são pintados em tons monocromáticos e
berrantes, dando a impressão, aos olhos do espectador, de visualizarem brinque-
dos rústicos, certa memória infantil. O céu azul-bebê e a falta de sombras (com
exceção para as cenas elaboradas dentro do castelo de Edward) contribuem para
intensificar o clima onírico do enredo.
Em Edward Mãos de Tesoura, além de conduzir os dualismos de sombra e
luz, bem e mal, cenário e decoração, a iluminação conduz certa profundidade e
atração para o telespectador. A luz deforma, juntamente com o espaço e os obje-
tos, para sugerirem uma atmosfera de mistério - nos momentos de escuridão - e
em outros, como no caso da cidade, muita claridade para contrapor com a imagem
do protagonista.
Considerações Finais
O espaço como metáfora e os elementos ou recursos da maquiagem,
cenário, cor e luz, assim como os figurinos, fazem parte do espetáculo fílmi-
co em Edward mãos de tesoura e leva-nos, visualmente, a pensar neles, como
componentes de uma narrativa, essenciais e determinantes em uma obra
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fílmica e estética como esta.
	 A fotografia e suas relações com o espaço em Edward mãos de te-
soura são problemas levantados nas primeiras cenas do filme, pelas consi-
derações da contação de histórias da avó, pela insinuação memorialística,
a esperar as demarcações do tempo e do espaço no recorte fotográfico que
opera a cena entre molduras. Esse gesto inicial da avó, no filme, também
demarca o jogo entre a representação do real e a capacidade de inferir nesse
mesmo real, fragmentos do mundo imaginário. Assim, o espaço se desdo-
bra em espaço observado e espaço que torna possível a observação. Obser-
var pode equivaler a mimetizar o registro de uma experiência perceptiva e
memorialística.
OcontrasteestabelecidoentreouniversoespacialesombriodeEdwardeo
colorido artificial da cidadezinha é um dos pontos mais fortes da trama, e para que
se torne eficaz, o cineasta recorreu a uma estética “pesada”, feito a transmissão dos
contos de fadas. Os cenários são exagerados, assim como os figurinos e a maquia-
gem. Nos créditos iniciais já começam os recursos estéticos, ao nos apresentar o
gigantesco castelo, mergulhado em escuridão e habitado por Edward. Ele é espaço
repleto de estátuas assustadoras, escadas intermináveis, janelas disformes de ta-
manhos irregulares e sombras distorcidas projetadas em paredes de pedra. Nasce
então um abismo entre esse mundo assustador e a comunidade em que vivem Peg
e Kim, marcada por construções provincianas, simetria perfeita, belos jardins flo-
ridos e habitantes sorridentes.
A partir dessas oposições e apresentações dos espaços e das relações de po-
der nelas instauradas, que aparece a ironia fina e espectral da obra. Diante dessas
aparências e recursos, o cineasta conduz o filme procurando seduzir o espectador
para entender pequenos detalhes que inscrevem a inocência e pureza do protago-
nista.
Edward mãos de tesoura é, para além das metáforas do espaço, algo como
“o espaço proustiano” que se afirma não somente como busca do tempo, mas,
também, do espaço perdido. O tempo recuperado por Proust1
é um conjunto de
momentos-lugares memoráveis separados por imensas distâncias. Nesse sentido,
o espaço recuperado por Edward não é o de extensão geográfica, mas uma série de
“quadros” como retábulos.
Referências
BETTON, Gérard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes. 1987.
COSTA, Francisco Araújo da. Análise fílmica: o figurino como elemento
essencial da narrativa. Sessões do imaginário. Porto Alegre, nº 8 (agosto).
Semestral. FAMECOS/PUCRS, 2002, p. 38.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,
1
Para uma leitura mais aprofundada sobre o espaço proustiano, cf. O espaço proustiano, de Georges
Poulet.
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costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). R J: José Olympio. 1998.
GANCHO, Cândida V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática. 2004.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo
Horizonte. Ed. UFMG. 1997.
JÚNIOR, Eduardo Neiva. A imagem. São Paulo. Editora Ática. 1994.
PINNA, Daniel Moreira de Souza. Curta a narrativa: contos, curtas e
personagens animadas. 2005. Programa de Pós-Graduação em Design.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2005. Disponível em:
<http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/narrativa/ensaios/pinna.
pdf />. Acesso em 16 out.2011
POULET, Georges. O espaço proustiano. Rio de Janeiro. Imago. 1992.
FILMOGRAFIA
Edward Mãos de Tesoura. Direção: Tim Burton. São Paulo: Fox Home En-
tertainment, 1990. 1 DVD (104 min.), som, color., Tradução de: Edward
Scissorhands.
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AS ÚLTIMAS PALAVRAS:
AGORIDADE DOS ALTOS E BAIXOS DA VIDA HUMANA
Arolda Maria da Silva Figuerêdo
Pós-graduanda em Literatura Brasileira e Mestranda em
Crítica Cultural. Professora de Literatura Brasileira da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
E-mail: aroldafigueredo@yahoo.com.br
A contemporaneidade é marcada pela falta de tempo, pois essa é a
era da Internet, dos celulares, dos videogames, tablets, objetos que trazem,
em suas estruturas tecnológicas, o atendimento ao acelerar das coisas e do
tempo; e, dentro deste quadro, se inclui a comunicação entre as pessoas.
Mas, paradoxalmente, o tempo que se ganha ao deleite das relações sociais
pode, ao contrário, diminuir/esvaziar os encontros.
Segundo Aleilton Fonseca(2009), a poesia contemporânea surgiu
no processo histórico em que se deu o surgimento das grandes cidades.
Naturalmente, revolucionaram-se as relações entre pessoas, e, desde en-
tão, esse processo veio se desdobrando e hoje alcança a era globalizada que
— embora preze pela velocidade e pela urgência — não consegue calar a
poesia, essa arte que demanda tempo para leitura e fruição, pois
A poesia quer subir em um palanque
E gritar palavras sem piedade
Acusar o poder dos verbos mal usados
Que na boca infame de alguns se propagam
(KALLARRARI, 2013, p. 26).
E como a poesia resiste às crises e atravessa as eras, chega até nós As
Últimas Palavras, de Celso Kallarrari, seu terceiro livro de poemas, que tra-
duzem os sentimentos de desatino e agonias, leveza e dureza, inconstância,
faltaderumo,consequênciasdasmuitasurgênciasatuais,doesfriamentodas
relações, dos silêncios da alma e da corrupção dos discursos. Ao se refletir a
este cenário caótico e desumanizante em que vivemos, os poemas de Kallar-
rari, aqui reunidos, evidenciam as dificuldades que o sujeito contemporâneo
tem de se adaptar ao sistema vigente e viver estas quebras, estas rupturas.
Paratanto,o poetabuscatraduzir— emversos,estrofes, àsvezes,ritmadas,
outras não —, palavras carregadas de sentidos e imaginação.
As Últimas Palavras pertence a um conjunto de obras que nos permi-
te adentrar numa rede de significados, onde, de forma convergente, a bele-
za e a sutileza se estreitam, mas, antagonicamente, também os dissabores
que se nos apresentam, cotidianamente, como sendo normais e dignos de
serem aceitos. Nesta obra, o autor propõe uma escrita poética, que mescla
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temáticas instigantes da contemporaneidade, consoante a tradição, sem-
pre que a ela recorre. Compõe-se de uma série de poemas que revelam, na
reflexão metalinguística, filosófica e literária, o papel e função da poesia na
formação do homem e no seu processo de humanização/desumanização,
a partir de títulos, em letras iniciais minúsculas, a exemplo de “a poesia
precisa sair das calçadas”, “a crônica”, “o poema”, “um best-seller” e “meus
últimos versos”.
Os poemas evidenciam temáticas plurais que abarcam o hibridismo
cultural, a fragmentação do homem e seus valores numa análise crítica sin-
tomática da paisagem caótica do mundo contemporâneo. Entretanto, esta
poesia — por conta de sua força expressiva — permite ao leitor acessar
outras dimensões significativas que o elevem espiritualmente e despertem
nele, uma consciência reflexiva, isto é, mais crítica sobre o estar no mundo,
para além das aparências e das certezas estabelecidas.
Como Kallarrari é um padre-poeta ou poeta-sacerdote, veste suas
palavras de forma que as elas aglutinam o lírico-amoroso, o lírico-religio-
so ao lírico-político-social, numa simbiose de diálogos que expressam um
espírito inconformado com o estado desigual no mundo capitalista. Além
disso, há a preocupação com o espírito mercadológico, que encobre o
olhar pleno e deixa no ar certa aura melancólica, diante de tantos desajus-
tes de caráter e ausência de postura ética entre os homens.
Toda a obra é perpassada por uma leveza de propósitos poéticos,
que implicam num perfil e elegância estéticos de escrita, assinalado por
um estado de alerta, um incômodo, um espírito inconformado, diante das
mais diversas, antigas e modernas tragédias humanas, pois para o poeta
Guernica é aqui.
É um cachimbo exalando fumaça.
Está repleta de tristes e violentos,
De fascistas pós-modernos.
Guernica é uma aldeia global,
Vítima dos pensamentos arsênicos,
Que pintam o céu de branco.
Nela, só há choro, dor, desilusão (p. 51).
“Guernica” aponta a uma leitura atualizada da famosa pintura de Pi-
casso, distribuída em fragmentos que se tocam pela dureza e crueldade, uma
vez que viver, nesse mundo, é algo difícil. Tem-se a impressão de faltar o ar,
elemento imprescindível ao viver, pois, no início do poema, o cachimbo e
a fumaça apresentam-se como objetos que impedem o respirar tranquilo.
Semelhantemente à vida moderna de caos, terrorismo e guerras, no quadro
de Guernica, todos os seres representados têm a boca aberta como repre-
sentandoumadispneiacoletiva,alémdosolhosvoltadosaumanesgadeluz,
que do alto clareia e resplandece seu brilho em meio às sombras, à dor e à
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morte. Neste caso, ao ler o quadro de Picasso e fazer uma correlação com o
mundo atual (essa aldeia global), “marcado pelo choro, dor e desilusão”, é
perceptível uma força suprema capaz de iluminar o mundo, torná-lo habitá-
vel e habitat possível a todos.
Somam-se a estes painéis — quadros pintados pela poética de
Kallarrari, a partir de uma linha evolutiva de poemas —, a fé do poeta de
que há uma saída para o mundo, tanto no “poema”, em seu aspecto meta-
linguístico ou enquanto metáfora do ser humano, quanto na crença no ser
supremo e no amparo em Jesus como seu mestre e guia.
Nessa perspectiva, é possível encontrar poemas como “a lógica da
criação”, “os teus pés Senhor”, “os últimos dias”, textos que traçam e sus-
tentam uma visão que vai desde a gênese do mundo até as profecias apoca-
lípticas, anunciadora dos tempos finais. Desse modo, o sagrado e profano,
divino e o humano se tocam e se entrelaçam, deixando uma relação de
completude e inteireza — necessárias a uma vida plena de realizações.
Ademais, estão presentes, na obra, os poemas “o prado”, “fazenda
cascata”, “as bundas” e “alcobaça” (texto que intertextualiza com o poema
“Garota de Ipanema” de Vinícius de Moraes); estes localizam, geografi-
camente, o poeta no Extremo Sul da Bahia: “Como esquecer-me de ti, ó
Prado!/ Um campo enorme no mar/ Se tua saudade é meu fado,/ Pois ao
passado não posso voltar” (p. 79).
Em “as bundas”, poema carregado de significados sobre a temática
da festa baiana carnavalesca, o autor carnavaliza, destronando a visão mi-
diática da sedução barata e da anticultura da bunda televisiva, que, ao invés
de valorizar a beleza do bamboleio — característica peculiar da descen-
dência afro —, repercute a dimensão da desvalorização feminina, aponta-
da como uma mercadoria sexual e de exportação.
A parte lírica amorosa ora descortina os sentidos da alma do ho-
mem, ora evidencia os desejos carnais, como ser partícipe, e a realização
plena no sentido e no jogo do toque e da troca sensual e romântica, aspec-
tos perceptíveis em “declaração”, “por ti, eu sou peixes” e “amanhecendo”:
“E eu orvalho em teu corpo/ E tu fecundas em mim/ E o mar nos enten-
dendo” (p. 43).
Sobre o entendimento da nova conjuntura do Brasil e do mundo, o
poeta interpreta e reconhece os arroubos e as fragilidades através de poe-
mas como “maniqueísmo”, “a visita”, “a fila”, “brasis”, “o golpe” e, princi-
palmente, “provérbios” — poema híbrido e plurissignificativo:
Este é um poema que grita
Este é o grito dos países excluídos;
Este é o grito de todos os países juntos.
Não é o grito pela guerra;
É um grito de desabafo;
É um grito de quem denuncia
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As injustiças, desigualdades e violências sociais.
É um grito de quem anuncia a liberdade
Um novo tempo, os direitos iguais.
(p. 86).
	
Neste texto, percebe-se que o poema remete a metáfora do homem,
que sobrevive, apesar das intempéries, porém, precisam sair das calçadas,
ganhar o mundo, elevar a voz, conquistar os seus direitos, para ser ouvido,
reconhecido e valorizado.
Também a criança foi incluída como temática nesta obra, que toca
no desalento do homem, na dissolução do sujeito e nas suas tantas omis-
sões, como a de ser responsável pelo futuro através das suas ações presen-
tes, diante do quadro de negligências, expresso em “o menino e a casa”,
“tancredo” e “destino”.
Outro aspecto importante refere-se à inserção da mulher na obra, pri-
meiro através do reconhecimento de Maria, como mãe do filho de Deus, e,
por isso mesmo, digna de reconhecimento e exaltação, mas também, como
intercessora das dores do mundo, amparo de todos os filhos e filhas, porque
conhece a dor como ninguém, uma vez que a crucificação do seu filho, fê-la
experimentar da mais profunda das dores, como se nela fosse. Entretanto, su-
pera a malignidade dos homens pela sua capacidade de transcender do plano
terreno das mediocridades para o outro, onde nasce a vida e não se reconhece
a morte como fase derradeira, pois é possível o ressurgir. Pode-se observar
essa visão nos poemas “na mesma cruz”, “a lógica da assunção” e “a mesma
paixão”.
No poema “claralina”, se inclui uma linha de transição entre a evolu-
ção da menina e a chegada da mulher, apontando a pobreza dos laços entre
estas e o mundo, num tom de alerta acerca da desvalorização da mulher
como ser que, ingenuamente, se torna apenas objeto do desejo da pobreza
da alma humana, semelhantemente, à Clara de Caetano Veloso, poema
que segue a mesma linha de discussão.
Os poemas “segredo” e “tereza” trazem outra roupagem de senti-
dos, pois as mulheres ali representadas, traduzem a singeleza e o calor hu-
mano, que elas emanam em suas ações mais profundas do toque sobre os
homens, que como filhos e/ou esposos gozam do seu cuidado constante.
Diferenciam-se, entretanto, das mulheres (mães) do poema “destino”, que
se mostram frias nas relações com o sêmen, com o feto e futuro filho. Em
“tereza”, o autor alude ao texto de Bandeira com o mesmo título, embora
haja uma troca de s e z, como que caracterizando o novo jeito de olhar,
visto que aqui se revela como mãe do eu-lírico e do poeta e transcende os
limites humanos e ganha as dimensões do mar, do infinito. Nesse sentido,
“tereza” é comparada à Maria, na graça dar à luz e marcar o rebento pelo
afago, pelo cheiro, pela alegria, pelo amor.
Enfim, As Últimas Palavras trazem o sentido do instante, do agora,
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do imediatismo, que não é definitivo, que não é o último, mas o pronun-
ciamento que não só revela e desvela o momento presente, o hic et nunc —
com todas as suas nuances, possibilidades, fragilidades —, mas também
o seu lado cruel, desumano, sem chão que se aprume e sem teto que se
abrigue. EstAS Últimas Palavras trazem, sutilmente, a agoridade dos altos
e baixos, dos poderes, dos deveres e do caos, em trânsito, que enreda e
desenreda valores; que refaz e desfaz as coisas, que constrói e desconstrói
a vida, pois
Num só grito, desterro o que desconheço
Daquilo que pensava que era num tempo indiviso
Mas o tempo desmarca a vida do homem
O tempo é tão mesquinho com a gente
E nos rouba as palavras,
Corta e entrecorta a nossa vida
(p. 108).
Elas, As Últimas Palavras, têm a face do comunicável e do incomu-
nicável, do emudecimento, do desenlace das relações e das certezas neces-
sárias que não chegam, porque já não cabem utopias. Mas há também um
firme propósito explícito no reconhecimento da incerteza, nos reveses da
vida estética, sem louros, sem heróis e sem tesouros; e na identificação do
caos, do egoísmo, da descoberta dos inúmeros significados, escondidos e
esmagados.
Neste livro, As Últimas Palavras, vazias e cheias, são parecidas às
palavras de Cristo, pregado àquela cruz, na hora da agonia, no momento
derradeiro: Pater, dimitte illlis non enim sciunt quid faciunt (p. 89). Aparen-
temente, não dizem nada, mas insinuam a possibilidade de muitas pontes,
ligando o ser humano sedento (de amor, de fé, de esperança, de confiança,
de segurança, de paz, de fraternidade universais) do tempo de agora.
Antagonicamente, elas
Não dizem tudo o que querem dizer
Mas também não dizem nada que não querem dizer,
Elas apenas seguem o tempo impróprio dos homens
Enquanto continuam tendo sede de humanidade
Na ânsia eterna de beber o oceano (p. 108).
Referências:
FONSECA, Aleilton; PATRÍCIO, Rosana Ribeiro (Orgs). Cantos & re-
cantosdacidade: vozes do lirismo urbano. Itabuna: Via Litterarum, 2009.
KALLARRARI, Celso. As últimas palavras. São Paulo: Reflexão, 2013.
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LEITURA E PERSUASÃO:
PRINCÍPIOS DE ANÁLISE RETÓRICA
Cristhiane Ferreguett
Mestre em Estudos de Linguagem.
Email: cristhiane.linguagens@yahoo.com.br
Leitura e persuasão: princípios de análise retórica é o mais novo livro de
Luiz Antônio Ferreira, doutor em educação pela Universidade do Estado de
SãoPaulo–USP,professortitulardaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSão
Paulo – PUC-SP. A obra faz parte da Coleção Linguagem e Ensino, da Edi-
tora Contexto.
O livro apresenta uma discussão abrangente sobre os diversos prin-
cípios da análise retórica, sintetizando os principais pontos da teoria, fun-
damentando-se em diversos autores e teóricos da retórica, dando ênfase
aos estudos apresentados por Aristóteles e Chaim Perelman e Olbrechts-
-Tyteca. Segundo Ferreira, o livro foi feito “para iniciantes na arte da análi-
se retórica”; e, a fim de cumprir seu objetivo, apresenta as seguintes carac-
terísticas: é simples, didático e curto.
A obra, que apresenta uma introdução feita pelo autor e apenas
quatro capítulos, traz a teoria de forma sintética e as análises práticas são
realizadas utilizando textos curtos, leves e atuais de diversos gêneros tex-
tuais: quadrinhos, crônicas, propagandas, notícias, anúncios de jornais etc.
Optamos por descrever o livro, ao tempo em que tecemos algumas consi-
derações sobre cada parte do mesmo.
O primeiro capítulo - O espaço retórico -, inicia-se na página 11 e ter-
mina na página 37. Nelas, o autor vai situar o leitor dentro do universo da
retórica, a partir de uma reportagem publicada na página de notícias Terra
sobre um desempregado argentino que encontrou US$50 mil no lixo de sua
cidade e utilizou o dinheiro comprando casa, automóveis e uma loja. Ferrei-
ra utiliza o texto para discutir o que é argumentação, orador, auditório, dis-
curso retórico. Além de apresentar estes conceitos básicos, o autor faz uma
reflexão sobre a busca da verdade, sobre o verossímil e o acordo.
Osegundocapítulo,“Brevíssimahistóriadaretórica”,comoopróprio
nome diz, apresenta de forma sintética (em nove páginas) a história da retó-
rica. O autor apresenta o nascimento histórico da retórica na Magna Grécia;
através da diacronia de Barthes (1995), discute sinteticamente a retórica de
Górgias e dos sofistas; os estudos de Platão; os estudos aristotélicos e dos
autores helenísticos e romanos e finaliza apresentando a novas propostas
retóricas, citando os estudos de Perelman e Tyteca, Meyer, Lempereur, Re-
boul, que Ferreira apresenta como autores baseados na lógica não formal;
os autores que se baseiam nas lógicas naturais (Grize e Vignaux) e Dubois,
Klinkemberg, Minguet, apresentados como precursores da Retórica Geral.
O último parágrafo é dedicado à nova retórica de Perelman e Tyteca.
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 27
O terceiro capítulo pretende apresentar, como o próprio título diz,
“Primeiros passos para a análise retórica”, passos para a realização de uma
análise retórica. O autor faz uma grande divisão do capítulo em cinco sub-
títulos: Passo 1: olhar inicial – o contexto retórico; Passo 2: o sistema retó-
rico – a invenção; Passo 3: o sistema retórico – a dispositio; Passo 4: o sis-
tema retórico – a elocutio e Passo 5: o sistema retórico – a actio. Podemos
considerar este capítulo como o maior (p. 49 a 144) e o mais importante
capítulodolivro,umavezqueforneceráospassosparaumaanáliseprática.
Cada passo vai sendo apresentado com diversos exemplos, seguidos
de inúmeros conceitos teóricos que o autor tenta simplificar ao máximo.
Ferreira não esclarece com quais teóricos ele está trabalhando; além disso,
os conceitos são tantos que prejudicam a compreensão, mesmo para quem
já tem outras leituras na área. Lembramos aqui que o autor, na introdução
do livro, afirmou que o livro “foi feito para iniciantes na arte da análise
retórica” (p.8). Existem equívocos evidentes que mostram como o exces-
so de informação conceitual prejudica até mesmo raciocínio do próprio
autor do livro. No primeiro passo, após o subtítulo intitulado “Elementos
que caracterizam o gênero do discurso retórico”, o autor apresenta a se-
guinte assertiva: “ressalte-se que, em síntese, todo discurso é político, com
maior ou menor carga intencional, pois, na prática, é difícil encontrar um
discurso puro (só laudatório, só judiciário, só político ou deliberativo). Os
valores dos três gêneros se interpenetram (o justo, o bem, o útil), mas é
possível buscar-se o gênero predominante” (p.57). Para o leitor não fica
claro se os gêneros são quatro ou se são três. O autor apresenta, após a fala
transcrita, o conceito de três gêneros (o deliberativo, o judiciário, o lauda-
tório), fica a pergunta no ar: o gênero político não foi definido, como os
demais, por estar, segundo o autor, presente em todos os outros? Quando
o autor diz “os três gêneros se interpenetram”, a quais gêneros ele se refe-
re? Qual é o gênero que é designado justo? Qual é o gênero relacionado
com o bem e qual o relacionado com o termo útil?
Osegundopassoéomaislongoedetalhado,inicianapágina60eter-
mina na página 109. O autor apresenta inicialmente uma notícia da revista
Veja (2008), cujo título é “Fazendeiro acusado de encomendar a morte da
freira Dorothy Stang é absolvido pelo júri”. A partir daí, o autor retoma a
questão do gênero e, em seguida, aborda os temas: invenção (inventio), a
construção do ethos; o orador ; o pathos e os lugares retóricos. Para traba-
lhar este último item, o autor apresenta outros textos e tece considerações
sobre novos lugares retóricos, criados pela propaganda. Ferreira discute
também a noção do pathos e logos; em seguida, apresenta os diversos ra-
ciocínios, componentes argumentativos que se valem da dedução. Segue
apresentando novos textos-exemplos para discutir novos pontos teóricos:
premissa maior; premissa menor; os tipos de discurso (religioso, autori-
zado, dominante, servil e polêmico); retoma ainda, com mais detalhes, a
discussão sobre o ethose o pathos.
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 28
No terceiro passo, o autor discute os quatro pilares da retórica, cor-
respondentes às etapas de organização do discurso: invenção, disposição,
elocução e ação. Discute ainda a composição da narração, a exploração da
confirmação e a peroração (o epílogo). O quarto passo retoma o traba-
lho com a elocução, discute os três gêneros de estilo: o nobre, o simples
e o ameno. Discute ainda as falácias, algumas figuras retóricas e o aspecto
ideológico do discurso. O quinto e último passo apresenta e discute a ação
(actio), abordando também a gestualidade (kinésica) e a interação com o
espaço (proxêmica); asestratégias de polidez e a construção dos efeitos pas-
sionais.
O quarto e último capítulo recebe o seguinte título: “A lógica do
verossímil”. Nessas últimas páginas o autor vai discutir os argumentos, di-
vididos em três grandes grupos: Argumentos quase lógicos; Argumentos
baseados na estrutura do real e Argumentos que fundamentam a estrutura
do real. Aqui, finalmente, o autor situa o leitor com relação ao ponto de
vista teórico adotado, que são os estudos apresentados por Perelman-Ty-
teca no Tratado da Argumentação: a nova retórica.
Cada um dos três grandes grupos de argumentos é apresentado e
discutido após inúmeros exemplos de textos da atualidade, facilitando a
compreensão do leitor. A única questão que não fica clara são os critérios
que o autor usou para selecionar alguns subtipos (ou variação) de argu-
mentos e outros não da obra original. A omissão da maioria dos argumen-
tos existentes no Tratado pode criar no leitor desavisado a crença de que
está diante da síntese de toda teoria argumentativa original. Outra questão
que preocupa é o fato de esta discussão estar à parte dos passos apresen-
tados por Ferreira para um trabalho de análise prática, uma vez que clas-
sificar corretamente os argumentos é fundamental numa análise retórica.
Conclusão do resenhista
O estudo da retórica é recomendado para todos que desejam de-
senvolver e ampliar os recursos para uma leitura e escrita mais atenta e
crítica. Recomendamos a obra para todos os alunos de graduação dos
mais variados cursos, em especial os de Letras, Pedagogia e Direito. A
obra apresenta uma boa visão inicial da teoria retórica e serve como base
para outras leituras. É recomendável ao autor uma revisão geral da obra para
uma segunda edição, retirando os pontos que confundem o leitor e esclarecendo
outros. Facilitaria muito a leitura se existisse uma numeração progressiva orde-
nando os capítulos e seus subtítulos que são apresentados soltos, sem nenhuma
ordem numérica. Sentimos falta também de um capítulo conclusivo do livro. O
grande ponto positivo deste livro é a simplificação de inúmeros conceitos com-
plexos da retórica e a presença farta de exemplos atuais. Ele, certamente, poderá
servir de base inicial para quem deseja aprofundar no universo retórico.
Referência:
FERREIRA, Luiz Antônio. Leitura e persuasão: princípios de análise retóri-
ca. São Paulo: Contexto, 2010. 173 p.
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PARA UMA RETÓRICA DA COLLAGE
Rodrigo da Costa Araújo
Doutorando em Literatura Comparada (UFF)
	 Um título direciona a leitura de um livro. Pensando assim, A colla-
ge como trajetória amorosa, de Fernando Freitas Fuão, Editora da UFRGS.
2011, é uma forma de visualizar o fenômeno da collage. O próprio livro em
si, revela fragmentos visuais, brincadeiras que incitam e solicitam a leitura,
a vida, a memória, a lembrança de qualquer leitor.
	 A collage como trajetória amorosa não é uma análise especificamen-
te barthesiana, mas também não lhe é alheia a esse viés, uma vez que o au-
tor confessa logo de início, no título, alguma retomada do livro Fragments
d’un discours amoureux, de Roland Barthes (1915-1980). O texto barthe-
siano, porém, será o intertexto prenunciado para olhar o registro visual, a
visualização, a história e o processo criativo da collage em diversos momen-
tos. O sumário do livro, feito a obra de Barthes, totalmente fragmentária,
já apresenta suas partes, sua estrutura e modo como constitui o processo
criativo da collage. A partir dos elementos constitutivos, como a tesoura
(recorte), a cola, as figuras (fragmentos) e os encontros das figuras, o livro
compõe o “discurso amoroso” da collage explicando esse processo.
	 Ver e entender a collage, então, parece pressupor aceitar o frag-
mento, a visão caleidoscópica, a escolha do ambíguo, o que se apresenta
sobre a forma de texto labiríntico, em olhares enviesados, registros que
singularizam o estranhamento, informações e instantes. O ensaio de Fer-
nando Freitas Fuão é álbum luminoso de leitura do texto que se desdobra.
Enquanto marcas “físicas” e “superfícies”, os fragmentos configuram-se aí
como lugar de inscrição e rasura de signos cuja ilegibilidade (ou jogo de le-
gibilidade?) seduz e desafia o olhar de Fernando, (e também dos leitores)
congestionado pelo silêncio e pela criatividade visual.
	 Entre o que se vê e o que lê, é possível que de vez em quando, ao
folhear este livro, o leitor perceba que “o movimento da collage é compará-
vel à trajetória amorosa descrita por Roland Barthes, onde os fragmentos
são as figuras da ação da collage e o recorte, ou captura, é o primeiro ato
do trajeto amoroso” (2011, p.33). Nesse jogo visual, a capa, como máscara
narrativa, vela e revela a personagem que representa: a própria collage. Esse
paratexto, de alguma forma, não cria uma máscara de uma personagem
qualquer, mas a sua própria máscara, - Olhos de Lempiska (1989) -, como
um duplo, outro, uma dobra de si que explicita o próprio conceito e lin-
guagem da collage. Dessa forma, a capa do livro, emoldurada em fotografia-
-collage, não se apresenta como um traço autobiográfico ou fotobiográfico
de alguém, mas como exemplo do próprio assunto tratado. Ela já anuncia,
antecipadamente, os traçados paratextuais que se revelam pelos recortes
de um corpo/rosto fragmentário e em representação.
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 30
	 Para falar disso, o crítico parte da definição do pintor e artista gráfico
Marx Ernst, para quem a collage é a transfiguração de todas as coisas e seres,
em busca de um outro significado, para guiar o leitor por uma pesquisa que
ele entende como sendo a essência do século XX. A obra questiona, de certa
forma, a profundidade e o simbolismo dos atos aparentemente inocentes e
superficiais contidos no simples recortar de uma figura de revista. Para tal ati-
vidade, Fuão propõe a crítica à fotografia como instauradora de uma maneira
diferente de representar e de construir o mundo. Retomando Susan Sontag,
eleentendeasfotografiascomocitações,artefatosquepossuemacategoriade
objets-trouvés, involuntários fragmentos do mundo (2011, p.13).
A collage como trajetória amorosa, de Fernando F. Fuão persegue
uma nova ordem para o conceito de collage, revelando-se inovador não só
por sua tentativa de (re) discussão das origens desse processo na tradição
popular, como também por sua proposta de elucidação de certa retórica
dessa arte. Toda essa trajetória reforça uma outra concepção do autor, que
resumira, de certo modo suas ideias nesse estudo ensaístico: “ A moderni-
dade é collage. O princípio da montagem/desmontagem está impregnado
no pensamento moderno” (2011, p. 93).
	 No último capítulo do livro, depois de retratar, anteriormente,
todos os procedimentos que envolvem a collage, o professor dedica-se a
um breve histórico desse recurso estético, como também suas definições
e indefinições. Nesse percurso ele esclarece que o conceito de collage está
intimamente relacionado ao surgimento da fotografia no século XIX e não,
como muitos historiadores reforçam aos papier colles. Para o crítico, a ori-
gem da collage, longe da prática cubista produzida por Braque, Picasso ou
Gris, está na tradição popular da manipulação da imagem. A partir daí, essa
origem circularia desde os poemas japoneses do século XII, até as séries de
criações populares de diários, biombos, cartões, persistindo até hoje, em
cadernos, pastas, cartas etc.
	 Éevidentequeofenômenodautilizaçãodefragmentosjáfabricados,
não era do domínio exclusivo das artes visuais, afirma o pesquisador. Por isso,
retoma-se o conceito de collage nas poesias Dada, de Tristan Tzara, na com-
binação de letras e imagem para compor fotogramas, na montagem cinema-
tográfica, na pintura, fotografia e escultura. Portanto, assumindo a posição de
encontros ou fricções, a collage, para Fuão “é uma imagem desorbitada, põe
olhoforadoslimitesdarealidade,davisãonormal.Elaéconjugaçãodeencon-
tros, de linguagens em movimento” (2011, p. 68).
	 A Collage como trajetória amorosa é, em muitos sentidos, mais que
um livro teórico sobre a collage, um livro de memória visual e criativa desse
processo. Por meio de uma nova gramática e uma nova sintaxe visual, o en-
saio projeta a collage irradiada sobre a circulação dos diversos fragmentos,
dando visibilidade incomum, rara entre nós, ao diálogo intertextual entre
o texto e a fotografia. Essa cartografia visual e afetiva, então, desenhada e
mapeada por Fuão repercute, para o leitor/espectador, em respostas que
se abrem para outras indagações. Até onde pode ir a collage?
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DE MINÚSCULOS A ESCOMBROS
Abrahão da Costa Andrade
Escritor, poeta, Mestre e Doutor em Filosofia (USP).
Professor Associado da UFPB
A discussão sobre a mímesis como fenômeno artístico e cultural
pelo qual se tecem as relações entre a linguagem e a realidade, realidade
que é feita de mundo tanto quanto de sujeitos, exige, cedo ou tarde, um en-
frentamento difícil, porém necessário, com as questões ontológicas mais
básicas. Não se trata, porém, como alguns pensam, de escolher, nessa ta-
refa ontológica, entre Kant ou Hegel, entre Heidegger e Lukács, como se
isso dependesse de algum estado de ânimo pessoal, ou alguma espécie de
predileção. É preciso encarar a coisa mesma, e somente no exame da coisa
é que se pode decidir qual filósofo consegue dizê-la de modo adequado.
Evidentemente, a coisa mesma não é nada de estranho às nossas realidades
cotidianas, e se isso é difícil de perceber em um Kant ou em um Hegel, não
é de todo opaco em Heidegger e, em Lukács, é franca e conscientemente
tematizado.
O mundo que temos de viver é o mundo que vivemos no dia a dia. E
nós, esses viventes, somos ao mesmo tempo parte desse mundo e contras-
te desse mundo, num movimento dentro do qual o vir a ser do mundo im-
plica nosso vir a ser, e o vir a ser de nós mesmos implica uma intervenção
no mundo que é, simultaneamente, criação de si. É nas mediações desse
confronto entre mundo, cada um e os outros que, tentando abocanhar a
realidade, cumprimos o tempo de nossa vida. Mas, o tempo de nossas vi-
das é também o tempo de nossas palavras.
Os dois últimos livros de Wilbett Oliveira - Minúsculos e Escombros
- tecem um percurso no curso do qual essa relação entre a palavra e a vida
tenta cingir a coisa do mundo ao mesmo tempo em que lança luz sobre o
estar-no-mundo do ser humano contemporâneo. O primeiro desses dois
livros, armado como um conjunto de poemas todos iniciados com a ter-
ceira pessoa do plural do presente do subjuntivo (modo, como se sabe,
predominantemente da dúvida) do verbo ser (“fossem”), parece dialogar
com e aprofundar o legado do Coup de dés deixado por Mallarmé, num
sentido abertamente complexo, moderno, negativo, como dizia do ve-
lho Machado de Assis o nosso Roberto Schwarz. Se Mallarmé explode as
palavras para comportar o mundo na sintaxe de uma única frase, Wilbett
Oliveira explode a própria sintaxe e, com isso, deixa de fora não só o mun-
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 32
do como também todas as aspirações do sujeito e a própria carne deste, a
carne e os desejos.
O novo livro de Wilbett - Escombros -, em conformidade com ou em
decorrência do ato que ele provocou, não recolhe, expõe os escombros
caídos como efeito do livro anterior.
Quando, de fato, ele escreve “fossem fraturas do sujeito” ou “fossem
realidades esmaecidas” e não conclui em canto algum o que aconteceria
se assim o fossem, ele aponta para uma situação em que algo, o nada (a
morte?), é o que mais espreita. Todavia, mesmo que esse nada seja uma
“sombra” é também “feixes luminosos”, conforme um dos poemas desse
novo livro. E, no contraste entre ambos, o que se percebe é um grito gris
de melancolia que, entrementes, não quer permanecer melancolia, mas,
antes, quer resistir ao nada, quer dar cor ao nada, quer atingir, entre os
escombros, os restinhos de luz que possam trazer sangue e vida à própria
vida.
Esses restinhos de luz, no entrelaço de sujeito e mundo, nas cerca-
nias do cotidiano, na lavra da palavra, são os próprios poemas que, a seguir,
nos é dado ler.
Referência
OLIVEIRA, Wilbett. Escombros. São Paulo: Opção: 2014.
Filosofia
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KANT: JUÍZO DE GOSTO E JUÍZO MORAL
KANT’S JUDGMENT OF TASTE AND MORAL JUDGMENT
Abrahão Costa Andrade
Filósofo, Professor no Departamento de Filosofia da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Email: abrandrade40@outlook.com
Resumo: Trata-se de um estudo do juízo de gosto e do juízo moral a partir do pensamen-
to de Kant, tentando articular sua filosofia ao contexto histórico social de sua época.
Palavras-chave: Kant; modernidade; filosofia; estética; natureza; moral; juízo.
Abstract: This is a study of the judgment of taste and moral judgment from Kant’s
thought, trying to articulate his philosophy to the social and historical context of his time.
Keywords: Kant; modernity; philosophy; aesthetics; nature; moral; judgment.
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 36
	 Ojuízodegostoseenuncia:“Istoébelo.”Ojuízomoralseformula:
“Isto é o que deve ser.” Mas o que vem a ser o belo nisto? “Belo é o que apraz
universalmente sem conceito.” (Kant, 1993: 64) O que deve ser? O que
deve ser é que em cada ação o sujeito da ação aja “como se” a sua “máxima
devesse servir ao mesmo tempo de lei universal” (Kant, 1984: 142). O que
uneessesdoisjuízosassimformuladoséaexigênciadeuniversalidade.No-
te-se, porém, que, a universalidade (característica primordial do conceito)
é, no primeiro, “sem conceito”, ao passo que, no segundo, tem o caráter de
“lei” (característica primordial do que é necessário). O que pode, pois, ser
uma universalidade sem conceito?
A resposta a esta pergunta nos coloca em frente da necessidade de
fisgar a Crítica do juízo, de Kant, em sua dupla determinação: como contri-
buiçãoaofechamentodosistemakantiano;comocontribuiçãoaosproble-
mas da estética moderna. No que diz respeito ao primeiro caso, necessário
é recordar o seguinte: o sistema kantiano é, sobretudo, um gigantesco es-
forço no sentido de resolver, em termos filosóficos, o problema histórico da
modernidade europeia. Isto significa que o problema histórico da moder-
nidade, explicitado em termos filosóficos, coloca questões especificamen-
te conceituais, mas o tratamento exclusivo dos conceitos não exclui, senão
por questão de método, a referência à historicidade do problema. Somente
com a atenção duplicada nessas nuances de uma mesma tarefa é que pode-
mos, ademais, situar, na Estética moderna, as relações entre juízo de gosto
e juízo moral.
Quando, pois, Kant diz, nos Prolegômenos, que fora despertado por
Hume do sono dogmático, isso aponta para o fato de que Hume sabia o
que estava em jogo com o seu ceticismo, e para o fato de que, ao assumir
a tarefa de criticar o ceticismo de Hume, Kant tomava a peito uma tarefa
que o implicava diretamente no curso dos eventos de sua época. Não há,
evidentemente, como explicar essa relação no espaço deste pequeno en-
saio. Todavia, vale lembrar que, tendo a Europa, depois de guerras intesti-
nas, colocado nas mãos da ciência a tarefa de esboçar um plano para que a
humanidade europeia pudesse se conciliar consigo mesma, e sabendo-se
que essa conciliação só poderia se dar em Deus e no Estado, o conheci-
mento de Deus, em Descartes, e o conhecimento da máquina do poder,
emHobbes,passavamparaoprimeiroplanofilosófico.Noquedizrespeito
ao Estado, se a meta, que Kant há de estabelecer em seguida, seria uma
confederação de Estados, o percurso para essa meta significava a formação
préviadoEstado-naçãocomofuturomembrodaquelaconfederação.Toda
a filosofia política, desde Hobbes, e mesmo antes, desde Maquiavel, segue
na direção de pensar a formação do Estado moderno. No que diz respeito
ao conhecimento de Deus, a matéria filosófica em pauta era o problema da
causalidade. Deus é a causa do mundo, se conhecemos a causa, conhecere-
mos também os seus efeitos, e conhecendo esses efeitos, saberemos dizer
qual o fim último do homem. Sabendo-se a que o homem se destina, sa-
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 37
be-se também em que direção se pode elevar toda uma comunidade histó-
rica. Prestigiosa tarefa, essa, dada à Metafísica, essa ciência de Deus. Nada
menos que indicar os caminhos para toda a humanidade (europeia). To-
davia, dirá Hume, estragando o otimismo decorrente dessa possibilidade
de conhecer pelas causas: esse conhecimento só seria válido se houvesse
conexão necessária entre a causa e o efeito. Como todas as nossas ideias são
lembrançasfracasdeantigasimpressões,ecomosóconhecemosdascoisas
aquilo que apreendemos pelo hábito, nossa ideia de uma conexão neces-
sária é mero produto do hábito de termos visto de um ato A decorrer-se
uma reação B, mas é o hábito que autoriza essa conclusão, e não uma lei da
natureza. Logo, se é a Metafisica que, enquanto ciência, vai resolver nossos
problemas morais e políticos, forçoso é observar que, enquanto ciência,
ela nada pode fazer, pois a conexão que vemos entre uma causa e um efei-
to não tem outra necessidade além daquela assegurada pelo mero hábito.
Kant, antigo professor de Metafísica, diante desse fato, será levado a pôr-se
radicalmente em questão. (Lebrun, 1993a) Se a Metafísica não tem como
ser uma ciência válida, como, então, resolver, em termos filosóficos, nossos
problemas morais e políticos?
	 Ao lermos a obra de Kant atentos a essa preocupação moral e po-
lítica como fundo histórico sobre o qual se desenvolvem os problemas
epistemológicos e conceituais, somos levados a fazer a seguinte questão:
qual é, afinal, o problema moral e político em jogo? Dissemos, acima, da
necessidade de a Europa conciliar-se consigo mesma. Logo: o problema
diz respeito a uma não-conciliação (crise, cisão) prévia. Isso se dá, é ver-
dade, tanto entre as nações quanto dentro das nações. Antes da Reforma
protestante, para ficarmos apenas com a dimensão intranacional, a luta era
entre os camponeses revoltosos e os senhores feudais. Para evitar novos
levantes camponeses que, se vitoriosos, levaria ao fim do feudalismo, os
senhores feudais, para proteger seus privilégios, foram forçados a criar o
Estado (Anderson, 1989). Inútil dizer que, ao fazê-lo, eles plantavam a se-
mente de, por outra via, sua posterior aniquilação e desaparecimento: a
Revolução francesa, inconcebível sem a crise do Estado feudal. Mas, antes
da Revolução, e depois da Reforma, a cisão esteve em voga entre católicos
e protestantes; e essa cisão impulsionou também a mesma necessidade de
criação e consolidação do Estado moderno. Simplificando um pouco, po-
demos dizer que a rixa entre católicos e protestantes, fundamentalmente,
eraarixaentreosseguintesprojetosdemundo:deveoindivíduoperder-se
na Igreja para alcançar sua salvação, ou deve o indivíduo viver por si só, no
mundo,epelotrabalhoárduodescobriremmeioàlabutaasuadestinação?
O primeiro projeto, comunitarista, tenderia a manter a tradição da Igreja
católica; o segundo, individualista, forçaria uma ruptura com essa tradição
e desfraldaria o horizonte do mundo moderno vindouro. Ora, quem diz
“comunidade”diz“comunidadenatural”e,porextensão,“natureza”;quem
diz “indivíduo” diz “liberdade individual” e, por extensão, diz “liberdade”
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pura e simples. A questão que se coloca, então, para Kant, é se não haveria
como criar uma passagem da natureza para a liberdade. Isto é, se não pode-
ríamos criar um projeto de mundo capaz de apontar para isso que é quase
um oximoro: uma comunidade de indivíduos livres.
	 Nosso filósofo tomará as seguintes providências a fim de resolver
essa questão: primeiro, proporá uma mudança de método (a revolução co-
pernicana); segundo, em decorrência dessa revolução, uma transformação
das coisas em conceitos. A revolução copernicana consistirá, basicamente,
em deixar quietos os objetos e considerar apenas a capacidade humana a
priori de concebê-los e conhecê-los. Uma vez, pois, trazido para a interiori-
dade do sujeito a questão que se intentava resolver, passa-se à transforma-
ção da coisas sociais (comunidade e indivíduo) aos objetos filosóficos (na-
tureza e liberdade), e destes aos conceitos transcendentais (as faculdades
humanas): “natureza”, depois da virada copernicana, será “entendimento”
ou “razão teórica”; “liberdade”, será “razão” ou, mais precisamente, “razão
pura prática”. A cisão vivida na história social é trazida para a subjetividade
da interioridade humana; e o que era problema entre dois objetos (comu-
nidade e indivíduo; natureza e liberdade) passa a ser problema entre duas
faculdades humanas. Como conciliá-las?
	 É claro que essa é a questão de fundo, todavia faz-se necessário,
antes de tentar respondê-la, especificar de modo preciso o funcionamen-
to de cada uma dessas faculdades, pois somente as conhecendo de perto
seremos capazes de divisar o método de sua conciliação. Uma faculdade,
sobretudo, é uma fonte de representações. As representações, modos de
um sujeito se relacionar com objetos, diferem-se entre si segundo o tipo de
referência que se agrega a cada objeto: se é o objeto como fenômeno; se é
objeto como o fundamento de sua causalidade (vontade); ou se é o objeto
como o próprio sujeito, na autorreflexão. No primeiro caso, a representa-
ção é acionada em vista do conhecimento; no segundo, em vista da ação;
no terceiro, em vista de auferir o sentimento de prazer ou desprazer.
Quanto ao conhecimento do fenômeno, a representação conhece
quatro inflexões: ela é, primeiro, representação externa do objeto (há no
sujeito uma capacidade que permite a apreensão do objeto como estando
no lado de fora do sujeito: é a forma sensível do espaço); segundo, parale-
lo ao primeiro, ao representar o objeto como estando fora de si, o sujeito
não deixa de representá-lo também como estando em si, enquanto dura a
apreensão espacial (é a forma sensível do tempo que surge como capacida-
de do sujeito); terceiro, o que fora apreendido no espaço-tempo é “esque-
matizado”, ou seja, sem perder seu aspecto de intuição sensível, já não é
somentesensação,mastraço,figura,esquema(éaimaginaçãoreprodutora
acapacidadesubjetivadeseresponsabilizarporesseprocessodeintelectua-
lização do sensível); quarto, uma vez que o dado da intuição pode chegar
limpo de (quase) toda sensibilidade ao entendimento, que é dotado ele
próprio de representações universais (os conceitos, as categorias), o rela-
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 39
cionamento entre aquele dado e essas categorias, no juízo, isto é, na forma
daproposição,podeenfimosujeitoenunciarconhecimentosválidos.Con-
tudo,avalidadedessesjuízosestaráasseguradaapenasseajunção(síntese)
de intuição e conceito, dado e categoria, revelar a fonte de sua unidade, o
lugar de sua unificação. Quando escreve que “o eu penso deve poder acom-
panhar todas as minhas representações” (Kant, 1994: 131), porém, Kant
não apenas aponta para o papel desse eu como fonte a priori da síntese, ou
seja, como o que assegura um juízo sintético a priori, mas também marca
uma caraterística inolvidável desse mesmo eu incansável que “deve poder
acompanhar” todos os evolveres das representações subjetivas.
É esse traço ativo do eu penso (que mais tarde atrairia a vocação fi-
losófica de Fichte) que Kant, antes de Fichte, vai privilegiar como sendo o
fundamento do sujeito: o eu que conhece é razão, mas a razão, no fundo
de si, é sobremaneira prática, isto é, liberdade em estado puro. Enquanto
observa a si mesma como entendimento que se empenha em lidar com
intuições sensíveis esquematizadas, essa razão ativa aprende que só pode-
mos conhecer fenômenos de que temos intuição. Como não temos intui-
ção alguma de Deus, não podemos, como previra Hume, fazer metafísica
de Deus (teologia). Mas, enquanto repara no trabalho do entendimento,
bem que essa razão, diligente, gostaria de elevar mais e mais os resultados
do entendimento a um nível crescentemente sistemático. Todavia nessa
direção o erro é sempre uma cilada fácil e possível. Volta-se, então, a razão
para si mesma e já não mais para os conhecimentos do entendimento, e,
ao conhecer-se a si mesma como razão pura prática, ela inaugura um tipo
outro de saber: a filosofia moral. Nesse caso, ao contrário do entendimento
que recebia as representações de fora de si, a razão prática dá a si mesma as
suasrepresentações,eestassãorepresentaçõesquedeterminamavontade,
vontadeque,dessemodo,apareceaosujeitoqueasimesmoseconhece(ou,
mais rigorosamente, se concebe) como uma faculdade específica: a faculda-
de-de-desejar. O que deve ser buscado na determinação desta vontade é a
lei moral, uma representação a priori. Livre de toda representação sensível,
a vontade é livre, a saber, autônoma: dá a si mesma a lei de seu envolver e
desenvolver. O juízo moral é fundado nessa faculdade humana de autono-
mia, de dar a si mesma a lei de sua conduta.
Ao contrário do entendimento, que é o princípio universal da na-
tureza, a razão prática é o domínio específico da liberdade. O mesmo “eu
penso”, pura atividade, quando acompanha todas as minhas representa-
ções, funda a validade do conhecimento teórico; quando, todavia, legisla
para sua própria vontade, isto é, dá à vontade a lei universal de sua rea-
lização, funda a validade de uma filosofia prática: “Age apenas segundo
uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal.”(Kant,1984:129)Age–éoimperativocategórico.Mas,quem
age? Um ser humano, e não um ser divino. Isto quer dizer, um ser dotado
de uma natureza sensível, de um corpo aplacado por determinações ab-
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solutamente sensíveis a desdobrar os sentimentos empíricos de prazer e
desprazer. Como, pois, fazer essa natureza sensível obedecer às injunções
da lei suprassensível, passar das determinações da sensibilidade para a
determinação da lei? Como, no homem, a natureza pode aceder à liber-
dade? Como, no homem, conciliar o sensível e o suprassensível? Cá de
novo estamos em volta do mesmo problema, o da conciliação.
A pergunta que norteará a investigação doravante será: é possível
uma forma não sensível de sentimento de prazer e desprazer? Melhor di-
zendo: como ainda estamos no interior da revolução copernicana, pode-se
dizer que, para Kant, o único modo de conciliar natureza e liberdade, cuja
relação é perturbada pelos sentimentos empíricos de prazer e desprazer,
é assegurar, no nível das faculdades, um sentimento de prazer e desprazer
livres de afetação sensível. Como, pois, seria possível uma forma superior
(suprassensível) de sentimento de prazer e desprazer? Este é um dos sen-
tidos em que se faz necessária uma crítica da faculdade do juízo. Esta crítica
buscaráparaosentimentodeprazeredesprazerumafaculdade(adojuízo)
como um seu princípio superior (transcendental). Este princípio, todavia,
qualaimaginaçãoreprodutoraqueficaranacharneiraentreoentendimen-
to suprassensível e as intuições sensíveis, precisará ficar ele também entre
o entendimento como forma universal da natureza e a razão como forma
universal da liberdade, e não poderá ter, nem interesse em determinar algo
do conhecimento do fenômeno, nem o interesse de determinar algo da lei
moral. Não podendo, pois, nada determinar, não fundará por sua conta ne-
nhum ramo do saber, nem teórico nem prático no sentido moral do termo.
É somente concebendo uma faculdade livre de toda determinação – uma
faculdade desinteressada – que se pode esperar uma aproximação, por meio
dessa terceira, entre as duas outras faculdades. Ora, é o desinteresse da fa-
culdade do juízo que evoca e suscita uma crítica do gosto. Aqui o segundo
sentido em que se faz urgente uma Terceira crítica. O juízo de gosto (por
motivo óbvio, deixarei de fora o juízo espiritual do sublime e o juízo teleo-
lógico), concebido como livre de interesse sensível (o belo não é o agra-
dável), candidata-se a mover-se no mesmo gingado da imaginação (antes
concebida como meio termo entre o dado sensível e o conceito suprassen-
sível): o juízo de gosto é universal e, portanto, é inteligível; porém, é sem
conceito e, portanto, particular, sensível.
Dito de uma só vez: o gosto, revelado no juízo “Isto é belo”, entrega-
-se como o tipo de sentimento que, desinteressado de toda determinação,
mostra-se como sentimento suprassensível. Mas, de que modo a afirmação
“Isto é belo” não é uma determinação? A resposta a esta pergunta nos con-
duz diretamente aos dois escopos da Crítica do juízo: o de complementação
do sistema e o de contribuição à teoria estética. Com efeito, o juízo “Isto é
belo” não se modula segundo um princípio determinante, mas segundo um
princípioregulador.Elenãoéumjuízoquesedebruçasobreoobjetodeque
se diz ser belo, mas sobre o sujeito mesmo que, diante do objeto, é levado
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 41
a sentir um complexo de relações internas que o leva a ajuizar o objeto que
suscitou aquele complexo de relações como belo. O juízo “Isto é belo”, por-
tanto, aponta menos para o isto que seja belo que para o sujeito que, diante
disto, sentiu uma conformidade interior (o complexo de relações entre suas
faculdades) e, refletindo, chegou à conclusão de que sentia a beleza que o isto
provocara. O juízo de gosto é reflexionante.
Ora, a reflexão só é possível quando guiada por um princípio re-
gulador. O que seria um princípio regulador? Seria uma pressuposição
transcendental segundo a qual a natureza, mesmo agindo de fato apenas
mecanicamente, pode ser concebida como, de direito, movida por uma fi-
nalidade. Por que chamar de “transcendental” essa pressuposição? Porque
“a natureza parece favorecer um prazer desinteressado, e esta ideia nos re-
mete à de um sujeito desligado de todo projeto mundano e preocupado
apenas em obedecer ao imperativo categórico que representa ‘uma ação
necessáriaporsimesmasemrelaçãocomoutrofim’.”(Lebrun,1993b:106)
O juízo de gosto, pois, é procurado pela razão prática desejosa de seques-
trar o sujeito mundano de sua pertença ao mundo sensível, ao mesmo tem-
po em que o projeta em um mundo de puro sentimento que, embora não
entre na determinação da lei, favorece o seu cumprimento. A estética, as-
sim, que nunca poderá ser uma ciência do belo, é um laboratório de expe-
riências morais, no sentido de que ela cria o ambiente onde a passagem do
suprassensível ao sensível corresponde à elevação, pelo gosto, do sensível
aosuprassensível.Tudoisso,porém,nadependênciadesepoderconceber
osobreditoprincípioregulador,apressuposiçãodeumafinalidadesemfim
(determinado) na natureza, como possível a priori.
E esta pressuposição é a priori porque ninguém pode tirá-la do ser
humano.Se,escreveKant,“nosdissessemqueumconhecimentomaispro-
fundo ou mais alargado da natureza através da observação terá que final-
mente deparar com uma multiplicidade de leis que nenhum entendimento
humano é capaz de reduzir a um princípio, ficaremos mesmo assim satis-
feitos.” (Kant, 1993:32) Satisfeitos, isto é, transbordantes do puro senti-
mento de prazer decorrente da pressuposição de que, mesmo que não haja
um fim último da natureza a que se possa conceber, é belo pensar que tudo
nela se encaixa tão bem que, quando nos deparamos com o nexo de suas
leis empíricas, particulares, só podemos nos entregar a uma “admiração
sem fim”, e a um “prazer digno de nota” (id., ibid.: 31). Como se percebe, o
recurso a essa pressuposição de uma conformidade sem fim, que leva Kant
a apreciar o juízo de gosto, revela, por parte do filósofo, uma espécie de
resistência plástica em relação às conclusões das ciências e, de certo modo,
replica o ceticismo de Hume na medida em que aponta para o fato de que,
mesmo que a ciência não autorize qualquer passagem da natureza à liber-
dade, ainda assim é possível pensá-la sem nenhuma contradição.
Neste ponto, o recurso de Kant à Estética o traz também de volta
dos altos problemas transcendentais (de fundo e de detalhes) ao problema
Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 42
propriamente histórico (moral e político) concreto que, depois de Hume,
ele se viu na premência de resolver: aquele da disparidade entre os indiví-
duos e o todo social. “É uma pressuposição transcendental subjetivamente
necessária”, escreve Kant, “que aquela inquietante disparidade sem limite
de leis empíricas e aquela heterogeneidade de formas naturais não convêm
à natureza, mas, pelo contrário, que esta, pela afinidade das leis particula-
res sob as mais universais, se qualifique a uma experiência, como sistema
empírico.” (Kant, 1984a: 175) O que é expresso aqui como “disparidades
sem limite” não traduziria em termos filosóficos a experiência sociológica
do individualismo? Pelo sim ou pelo não, a posição kantiana a respeito é:
“aquela disparidade de formas naturais não convém à natureza”. Preciso é
postular certa “afinidade das leis particulares sob as mais universais.” Para
quê? A fim de que a afinidade entre os particulares “se qualifique a uma
experiência,comosistemaempírico.”Aprópriahistóriadossereshumanos
é esse sistema empírico. Trata-se, com efeito, da mesma regra que rege o
juízo de gosto e, como estamos antevendo, também o pensamento crítico
da história mundial: a regra do fio condutor da natureza (o princípio da
insociável sociabilidade).
Em que consiste esse princípio? A história é o lugar do exercício da
liberdade humana. No entanto, Kant assegura, a natureza dá uma mãozi-
nha no curso desse exercício. Dá mesmo? Não importa. O importante é
pensar o todo da realidade humana não como um agregado, porém como
um sistema, como dissemos acima, um “sistema empírico”. A história se-
ria esse sistema na medida em que podemos pressupor um projeto da na-
tureza se realizando nas ações livres dos seres humanos. Ora, como dizer
que essas ações permanecem, de fato, livres, se elas nada mais seriam que
providências da natureza tomadas para realizar seu fim último, o Bem
supremo, isto é, a unidade do todo (indivíduo e sociedade; sociedade e
Estado; Estado nacional e os outros Estados numa confederação interna-
cional em perpétua paz)? Não haveria contradição? Não. Por quê? Por-
que Kant não determina que assim o seja, mas reflexiona. “Este conceito
de uma conformidade a fins da natureza não é nem um conceito de natu-
reza, nem de liberdade, porque não acrescenta nada ao objeto (da natu-
reza), mas representa somente a única forma que temos de proceder na
reflexão sobre os objetos da natureza com o objetivo de uma experiência
exaustivamente interconectada” (Kant, 1993: 28). Como a reflexão acon-
tece no ajuizamento, a dimensão subjetiva desse ajuizamento se abre e se
deixa ver como dimensão estética, e por “estético” é preciso compreender:
público, “pretensos juízos comumente válidos.” (Id., ibid.: 58) Aprendeu-
-se a pressupor como um projeto da natureza aquilo que, entrementes, é
um projeto do sujeito moral: cada ser humano, ao entrar no movimento
da sociedade civil, busca efetivamente realizar seus próprios interesses e,
ao fazê-lo, é na tentativa de melhorar de vida que ele o faz. Todavia, outro
ser humano está igualmente interessado nesse mesmo fim. O outro pode
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  • 1. Número 19 - Jan./Jun. 2014 NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO DA FACULDADE DO SUL DA BAHIA
  • 2. Revista Mosaicum é indexada em: EDUBASE (Unicamp) Latindex LivRe! Os artigos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, o pensamentos dos editores. FUNDAÇÃO FRANCISO DE ASSIS Presidente: Lay Alves Ribeiro FACULDADE DO SUL DA BAHIA Diretor-acadêmico: Valci Vieira dos Santos NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO - NUPPE Coordenação: Jessyluce Cardoso Reis Revista Mosaicum Publicação semestral do Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia Conselho científico: Abrahão Costa Andrade (UFRN) Bernardina Maria de Sousa Leal (UFF) Celso Kallarrari (UNEB/UCGO) Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES) Eva Aparecida da Silva (UFVJM) J. Agustín Torijano Pérez (Universidad de Salamanca) Jaceny Maria Reynaud (UFRGS) Josina Nunes Drumond (PUC/SP) Luiz Roberto Calado (Faculdades Alves Farias) Miguel Zugasti (Universidad de Navarra, Espanha) Nilson Robson Guedes da Silva (Faculdade Anhanguera de Limeira) Paulo Roberto Duarte Lopes (UEFS) Raphael Padula (COPPE/RJ) Ricardo Daher Oliveira ((Unicesumar) Ricardo Jucá Chagas (UESB) Rodrigo Loureiro Medeiros (UFES) Rogério Greco (Instituto de Ciências Penais - ICP) Sebastião Costa Andrade (Universidade Estadual da Paraíba) Solimar Garcia (Universidade Paulista - Unip)) Valci Vieira dos Santos (UNEB) Vincenzo Durante (Universidade de Padova, Itália) Wisley Falco Sales (PUC/Minas) Conselho Editorial: Carlos Felipe Moisés Rodrigo da Costa Araújo Sélcio de Souza Silva Valci Vieira dos Santos Wilbett Oliveira © 2014 Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia (Fasb). Permitida a reprodução parcial ou total por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida, parcial ou modificada, em língua portu- guesa ou outro idioma, desde que citada a fonte. Revista Mosaicum Ano 12, n. 19 (Jan./Jun. 2014). Teixeira de Freitas, BA. ISSN: 1808-589X 1. Publicação Periódica - Faculdade do Sul da Bahia. CDD 050 Correspondências: Rua Sagrada Família, 120 - Bela Vista Teixeira de Freitas, BA CEP 45997-014 (73) 3011.7000 - ramal 7005 Home page: www.revistamosaicum.com.br E-mail: revistamosaicum@ffassis.edu.br
  • 3. SUMÁRIO Estudos Literários 1 METÁFORAS DO ESPAÇO EM EDWARD MÃOS DE TESOURA............................11 Metaphors of space in Edward Scissorhands Rodrigo da Costa Araujo | Maria Lucia Vaccari 2 AS ÚLTIMAS HORAS: AGORIDADE DOS ALTOS E BAIXOS DA VIDA HUMANA....21 Arolda Maria da Silva Figuerêdo 3 LEITURA E PERSUASÃO: PRINCÍPIOS DE ANÁLISE RETÓRICA.......................26 Cristhiane Ferreguett 4 PARA UMA RETÓRICA DA COLLAGE.........................................................................29 Rodrigo da Costa Araújo 5 DE MINÚSCULOS A ESCOMBROS...........................................................................................31 Abrahão Costa Andrade Filosofia 1 JUÍZO DE GOSTO E JUÍZO MORAL..................................................................................33 Kant’s judgment of taste and moral judgment Abrahão Costa Andrade 2 O SUJEITO E A CORAGEM DA VERDADE: UMA ANÁLISE DO ÚLTIMO FOUCAULT.................................................................. .43 The Subject of Truth and Courage: an analysis of the last Foucault Michael Douglas de Almeida Nunes | Iraquitan de Oliveira Caminha Educação 1CONSTRUINDOSIGNIFICATIVAMENTEOENSINODACIÊNCIA.....................59 Significantbuildingscienceteaching Leonardo Diego Lins 2 O ENSINO RELIGIOSO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ALUNO: CONTRIBUIÇÕES E LACUNAS.......................................................................................68 Religious education in the process of student education: contributions and gaps Rodrigo de Araújo Pereira | Celso Kill Economia 1 CRISE COMO ESTRATÉGIA DE PERMANÊNCIA: ANTES E DEPOIS DE 2008.....77 Crisis as a strategy of permanency before and after 2008 Eduarda de Lima Andrade 2 A LIBERALIZAÇÃO FINANCEIRA NO BRASIL.........................................................93 Financial Liberalization in Brazil Marcelino Serretti Leonel
  • 4. 3 PERFIL DO EMPREGO FORMAL NAS MICRORREGIÕES BAIANAS: UMA APLICAÇÃO DO QUOCIENTE LOCACIONAL E DO MULTIPLICADOR DE EMPREGO........................................................................113 Profile of formal employment in bahia state microrregions: an application of loca- tion quotient and employment multiplier Paulo Henrique de Cezaro Eberhardt NORMAS PARA PUBLICAÇÃO..........................................................................................137
  • 5. EDITORIAL A Revista Mosaicum, publicação semestral do Núcleo de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia (Fasb), chega ao seu décimo nono número com a certeza de que ao longo de sua circulação tem cumprido o seu objetivo primevo que é a disseminação do fazer científico, re- sultante das pesquisas realizadas por professores-pesquisado- res de renomadas instituições. Este número se divide em quatro blocos, que apresen- tam textos das diversas áreas do conhecimento: Estudos Li- terários, Filosofia, Educação e Economia. O artigo que abre o primeiro bloco, Metáforas do es- paço em Edward Mãos de Tesoura, de Rodrigo da Costa Araujo, doutorando em Literatura Comparada (UFF) e de Maria Lucia Vaccari, Professora de Língua Portuguesa, dis- cute alguns aspectos da relação entre o espaço e discurso me- morialístico da infância, baseando-se no filme Edward mãos de tesoura (1990). Pelas metáforas do espaço, os autores pro- curam demonstrar a complexidade da memória e as marcas delicadas da subjetividade humana. Para Araújo e Vaccari, ao inserir o espaço e as suas ressignificações no repertório de ele- mentos auxiliares no processo de investigação da memória, o cineasta Tim Burton contribuiu para a ampliação do debate em torno dessa manifestação artística que tanto se aproxima da nossa capacidade de recordar visualmente o tempo passa- do e o tempo. Em seguida, a professora Arolda Maria da Silva Figue- rêdo (Uneb) resenha As últimas palavras, terceiro livro de poemas de Celso Kallarrari, que, segunda ela “traduzem os sentimentos de desatino e agonias, leveza e dureza, incons- tância, falta de rumo, consequências das muitas urgências atuais, do esfriamento das relações, dos silêncios da alma e da corrupção dos discursos.” Cristhiane Ferreguett (Uneb), em sua resenha de Leitura e Persuasão: princípios de análise retórica, afirma que neste livro há uma discussão abrangente sobre os diversos princípios da análise retórica, sintetizando os principais pontos da teoria, fundamentando-se em diver- sos autores e teóricos da retórica, dando ênfase aos estudos apresentados por Aristóteles e Chaim Perelman e Olbrecht-
  • 6. s-Tyteca. Rodrigo da Costa Araújo resenha A collage como trajetória amorosa, de Fernando Freitas Fuão, e observa que o próprio livro em si, revela fragmentos visuais, brincadeiras que incitam e solicitam a leitura, a vida, a memória, a lem- brança de qualquer leitor. Para Araújo, A collage como trajetória amorosa não é uma análise especificamente barthesiana, mas também não lhe é alheia a esse viés, uma vez que o autor confessa logo de início, no título, alguma retomada dolivroFragmentsd’undiscoursamoureux,deRolandBarthes(1915-1980).Em De Minúsculos a Escombros, Abrahão Costa Andrade (UFPB) resume bre- vemente o livro do poeta Wilbett Oliveira - Escombros -, afirmando que, “em conformidade com ou em decorrência do ato que ele provocou, não recolhe, expõe os escombros caídos como efeito do livro anterior. Quando, de fato, ele escreve “fossem fraturas do sujeito” ou “fossem realidades esmaecidas” e não conclui em canto algum o que aconteceria se assim o fossem, ele aponta para uma situação em que algo, o nada (a morte?), é o que mais espreita.” O segundo bloco – Filosofia - abre-se com Kant: juízo de gosto e juí- zo moral, do poeta, ensaísta e professor da Universidade Federal da Paraíba Abrahão Costa Andrade. O texto consiste em um estudo do juízo de gosto e do juízo moral a partir do pensamento de Kant, tentando articular sua filoso- fia ao contexto histórico social de sua época. Nesse mesmo bloco, os professores Michael Douglas de Almeida Nu- nes (UFP) e Iraquitan de Oliveira Caminha, Doutor em filosofia pela Uni- versité Catholique de Louvain, no texto intitulado O sujeito e a coragem da verdade: uma análise do último Foucault, procuram fazer uma análise daquilo que se acredita ser o cerne do pensamento filosófico de Michel Fou- cault: a relação existente entre o sujeito e a verdade que o constitui como su- jeito moral. Perpassando a antiguidade grega junto com Foucault, os autores discutem as práticas e técnicas de cuidar de si que determinam a profunda relação entre a verdade e o sujeito que se busca elucidar. Construindo significativamente o ensino da ciência, texto de Leo- nardo Diego Lins, inaugura a terceira parte deste número. Mestre em Ensino de Ciências pela Universidade Estadual da Paraíba, Lins afirma que o ensino de Ciência, de maneira geral, é caracterizado pelo excesso de exercícios re- petitivos, problemas resolvidos, utilização de uma sucessão de “fórmulas”, muitas vezes decoradas de forma literal e arbitrária, em detrimento de uma análise mais profunda, visando à compreensão dos fenômenos físicos, quí- micos e biológicos envolvidos no cotidiano do aluno. Para o autor, “parti- cularmente, há graves problemas no Ensino de Ciência, como a aprendiza- gem mecânica por parte dos alunos do Ensino Fundamental e Médio e ele propõe a operacionalização didática dos conteúdos ministrados em Ciência pelo modelo cognitivista ausubeliano, pois é o mais adaptável à concepção de material didático em Ciência, permitindo a exploração de forma hierárquica do universo cognitivo do aprendiz, como também possibilita a manipulação deliberada deste universo para propiciar uma aprendizagem significativa.” Ainda sobre educação, o professor Rodrigo de Araújo Pereira, da Pon-
  • 7. tifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), discute, em seu ar- tigo Ensino religioso no processo de formação do aluno: contribuições e lacunas, o Ensino religioso no processo de formação do aluno, procurando refletir sobre as contribuições e as lacunas surgidas nesse processo de ensi- no-aprendizagem. Para este autor, “a religiosidade surgiu com os primeiros seres humanos que manifestavam suas crenças nos seres inanimados repre- sentados nos fenômenos naturais: o relâmpago, a lua, o sol, as estrelas. A po- lêmica sobre a obrigatoriedade do ensino religioso em escolas públicas e pri- vadas traz elementos da liberdade de expressão e da desvinculação expressa da administração pública das entidades religiosas a não ser as expressamente permitidas na legislação vigente.” Em suma, o texto procura discutir sobre a importância do ensino religioso na formação do aluno. O último bloco - Economia – aponta o estudo da Mestranda em An- tropologia (UEPB ) Eduarda de Lima Andrade intitulado Crise como es- tratégia de permanência: antes e depois de 2008. Nele, a autora analisa o surgimento da crise de 2008 chamado atenção para o fato de haver por trás dela, por um lado interesses particulares e enriquecimento ilícito, o que gera transferência de riquezas e desigualdades sociais, por outro, como o sistema pode não só se beneficiar com uma crise, mas também implementar estra- tégias de crise, novas ou antigas, a fim de criar novos campos de expansão e permanência do sistema capitalista. Em A liberalização financeira no Brasil, Marcelino Serretti Leonel, Professor da UFVJM, apresenta e analisa o panorama do processo da libe- ralização financeira ocorrida na década de 1980 em diante. A análise inicia a partir da concepção dessa medida econômica no mundo, além de relatar as consequências por meio de evidências empíricas, estas baseadas em traba- lhos direcionados a investigação dos resultados da liberalização da conta de capital feitas por vários autores de diferentes correntes de pensamento eco- nômico. O texto também apresenta, em particular, a trajetória e os resultados da implantação da liberalização financeira da conta de capital no brasil até o ano de 2005. Perfil do emprego formal nas microrregiões baianas: uma apli- cação do quociente locacional e do multiplicador de emprego, de Paulo Henrique de Cezaro Eberhardt (Unioeste/Toledo), encerra este bloco. Por meio da análise da distribuição do emprego formal nas atividades da base econômica na Bahia, utilizando dois métodos de análise regional: o Quocien- te Locacional (QL) e o multiplicador de emprego, o autor recolhe dados in- dicativos dos os ramos de atividade que mais concentram empregos formais na economia baiana, quais sejam, a administração pública e extração mineral. Agradecemos imensamente a Fundação Francisco de Assis, mantene- dora da Faculdade do Sul da Bahia, pelo estímulo e pelos desafios encontra- dos com a publicação deste importante periódico científico. Conselho Editorial
  • 8.
  • 10. Revista Mosaicum, n. 15, Jan./Jun. 2012 - ISSN 1808-589X 10
  • 11. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 11 Rodrigo da Costa Araujo Doutorando em Literatura Comparada [UFF]. Mestre em Ciência da Arte (2008-UFF) Professor de Literatura Infantojuvenil e Teoria da Literatura (Fafima) E-mail: rodricoara@uol.com.br Maria Lucia Vaccari Maria Lucia Vaccari é Professora de Língua Portuguesa. E-mail: aguadourada2000@yahoo.com.br Resumo: Neste trabalho discutimos alguns aspectos da relação entre o espaço e discur- so memorialístico da infância, a partir do filme Edward Mãos de Tesoura (1990). Pelas metáforas do espaço, procura-se entender a complexidade da memória e marcas delica- das da subjetividade humana. Ao inserir o espaço e ressignificações dele no repertório de elementos auxiliares no processo de investigação da memória, o cineasta Tim Burton contribuiu para a ampliação do debate em torno desta manifestação artística que tanto se aproxima da nossa capacidade de recordar visualmente o tempo passado e o tempo perdido. Palavras-chave: Tempo - Espaço - memória - Edward mãos de tesoura Abstratct: In this paper we discuss some aspects of the relationship between space and discourse memoir of childhood, from the movie Edward Scissorhands (1990). The me- taphors of space, we seek to understand the complexity of memory and delicate marks of human subjectivity. When entering the space and his reinterpretation of auxiliary ele- ments in the repertoire of the memory research process, filmmaker Tim Burton helped expand the debate on this artistic manifestation that both approaches our ability to vi- sually recall the last time and lost time . Keywords: Time - Space - Memory - Edward Scissorhands METÁFORAS DO ESPAÇO EM EDWARD MÃOS DE TESOURA METAPHORS OF SPACE IN EDWARD SCISSORHANDS
  • 12. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 12 Figurações e (re)configurações do espaço O espaço é caracterizado como sendo o lugar onde se desenrola a trama, articulando-se com os personagens e o tempo, situando suas ações, suas atitudes mantém uma estreita relação entre eles e a construção de sentidos. Diante disso, ele não se define somente como o lugar físico onde ocorrem ações, mas, também, demarca, semioticamente, o perfil psicológi- co e o socioeconômico dos envolvidos em situações, entre outros aspectos. Em Eduard Mãos de Tesoura (1990) deve-se reconhecer o espaço li- gado a vários outros aspectos, como ambiente, tempo, ação, iluminação, figurino, maquiagem, tudo isso ao mesmo tempo, imbricado no jogo visual. Isso porque a representação da história no cinema é simultânea, quando a luz, a linguagem, a teatralização dos personagens, a fala, e outros elementos criam a realidade, mesmo que ficcional, como é o caso desse filme, corres- pondendo a uma nova forma de visualizar a sociedade e (re)discuti-la. Quanto ao aspecto ficcional, é importante considerar o espaço social - lugar onde circulam os personagens - e o espaço psicológico - como cons- trução que demonstra alguma atmosfera interior. E é através dessa visão e atmosfera, em conjunto com o social e o psicológico, que se caracterizam melhor todos os conflitos do personagem. No filme percebe-se que não há como distinguir espaço e tempo fic- cionais. Eles comungam da mesma natureza, pois o espaço é onde se desen- rola a trama e o tempo é quando isso acontece. Por isso, quando aproxima- dos e juntos, esses elementos ajudam a definir símbolos importantes para o enredo e para a identidade do protagonista. O movimento, a riqueza de detalhes e a impressão da realidade oferecidos pelo filme abrangem dois níveis que, também, atuam em conjunto: a redefinição de espaço e a cons- trução do tempo. Como todo e qualquer espaço fílmico, a relação estabelecida entre tais es- paços,osatributospsicológicosdopersonagem(quemodificamaquelesespaços), a justaposição dos espaços (comandada pelo tempo do filme, também criado) e a própria carga da história resultam em uma experiência temporal, semelhante ao modo como nós sentimos o tempo, próximo de aspectos psicológicos que regis- tram em nossa memória fragmentos visuais. Nesse caso, a relação espaço-tempo- ral e seu ritmo são comandados pelo desenrolar dos acontecimentos. Além disso, a paisagem cinematográfica não é uma documentação objeti- va, muito menos mero espelho do real. É uma forte criação/construção cultural e ideológica em que significados sobre lugares, personagens e sociedade são produ- zidos, legitimados e até mesmo contestados. O figurino faz parte do conjunto de significantes que ajuda a moldar o es- paço e o tempo nesse filme. Ele, contextualizado com as ações e marcas pessoais do protagonista, ajuda a definir (ou tornar imprecisa) a localidade geográfica onde a história se passa e mesmo a época em que tudo ocorre, e, ainda, demarca cer- ta atmosfera pretendida pelo contexto. Ele, de certa forma, serve como elemento
  • 13. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 13 de identificação dos personagens, diferenciando-os ou ajudando a identificar qual arquétipo a personagem revela. Suas cores, texturas e apetrechos demonstram as sensações, o estado de espírito, a correlação entre o personagem e o ambiente em que está inserido. A maquiagem, nesse conjunto semiótico, também apresenta papel importante porque evidencia os personagens em seus respectivos espaços. A iluminação cuidadosamente, elaborada em cada espaço, cuida para o avi- vamento dos pensamentos, ações e mis en scène de seus personagens. A luz, imbri- ca-se à maquiagem do protagonista, transformando seu rosto quase em máscara, criando uma atmosfera gótica, através de efeitos de sombra e de luz, apontando composições exageradas sugerindo algum impacto visual. Apesar de ressignificar certas delicadezas, o espaço e outros elemen- tos na construção das cenas e paisagens em Edward carregam exploram cer- tos exageros. O contraste entre o bem e o mal, o dia e a noite, ações que amedrontam e confortam, a distorção entre o que se pode, aparentemente, confiar e o que é, verdadeiramente, perigoso: o discernimento, em Edward MãosdeTesoura,contaquenadaé,realmente,oqueparece.Enfim,oespaço e outras interessantes articulações da ordem da estética são utilizadas para compor certa subjetividade conceitual e memorialística nesta obra fílmica. Figurino/ Espaço e subjetivação Em sociedade, o ato de vestir-se traduz várias concepções, porque envolve normas primárias estabelecidas pela civilização. O ser humano ves- te-se e desnuda-se para atender às tradições de sua cultura. A roupa não serve apenas para protegê-lo do frio, mas carrega consigo símbolos, códi- gos, convenções de status, comportamentos, sentimentos, identificação de grupos e posições ideológicas que definem a cultura. Ela, também, serve para proteger o corpo, representar o pudor, ornamentação e embelezamen- to, podendo ainda, estabelecer a identificação de determinados grupo ou pessoas. Assim, a partir dessas considerações, a roupa ganha novo nome - figurino. O figurino é composto por todas as roupas e os acessórios dos perso- nagens, de acordo com as necessidades do roteiro do filme. Ele, ajuda, ainda a “definir o local onde se passa a narrativa, o tempo histórico e a atmosfera pretendida, além de definir características das personagens.” (COSTA, 2002, p. 38). Como vestuário, o figurino constrói um conjunto de trajes e adornos queplasticamenterevestemesearticulamcomocorpo,emfunçãodacena, dizendo ou significando o que a palavra não justifica ou omite. O figurino é um fator importante de abstração e tem um significado incerto e poético. No filme, a roupa inicial com que Edward aparece demonstra sua verdadei- ra condição de “menino-monstro”. Em relação à fidelidade histórica, o figu- rino de Edward possui liberdade maior e não é fiel à época em que a história énarrada.Seufigurinoédiferentedetodososdemaispersonagensdofilme.
  • 14. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 14 Isso deve-se ao fato de a personagem ser criada artificial e diferentemente das outras pessoas. O objetivo é ressaltar essa diferença no figurino, pois ela será fundamental para a narrativa e coerência da história. De aspecto assustador, no entanto doce e delicado, Edward personifica a estranha mistura de ingênua benevolência infantil com o poder de destruição imi- nente. Tal como o monstro de Frankenstein, também ele possui uma credulidade que o coloca em dificuldades, especialmente porque não consegue destrinçar os motivos ocultos ou as segundas intenções por detrás das atitudes das personagens. Ainda assim, ele tudo faz para agradar e tentar integrar-se, usando a sua própria inaptidão. Ele, também possui um visual gótico que lembra muito o período Batcave ou Deathrocker. A maquiagem branca no rosto, com olhos e boca “carregados” também são características desse estilo. O Batcave ou Deathrock possui influên- cias do Punk Rock e temas de filmes de terror. As roupas de Edward, com diversas fivelas, recortes e costuras também são uma referência punk, ao mesmo tempo em que sugere “armadura” e dificuldades de seus movimentos. Ela compõe a sensação de estranheza e deslocamento que Edward possui na narrativa e em oposição aos outros personagens. Parece que a sua roupa, assim como seu corpo foram feitos de retalhos. Isso o aproxima ao aspecto Frankenstein, porém estereotipado e não como os convencionalismos macabros, próprios das narrativas de terror, o que desconstrói os significados do senso comum e maniqueísta, frequentemente atri- buído aos monstros. Seu figurino não oferece uma época, ou seja, não se relaciona a um determinado tempo, não é próprio de sugestão de um determinado período. No castelo, o espaço grande e escuro combina com os cabelos, cor, roupas, e horror que trazem consigo, a imagem-metáfora do protagonista. Há ainda o contraste entre sua roupa preta e seu rosto branco, sugerindo, assim, o caráter de uma criatura, “montada”, ”inventada”, “morta”. Do Castelo, também, observa-se a simbologia que a roupa traz em relação ao espaço que o personagem vive primariamente. Cenário exagera- do em escuridão, em materiais em estado bruto (como as paredes sem re- boco), janelas disformes e vidraças quebradas, com características de mal- -assombrado, visuais exagerados e expressivos, que chocam inicialmente, porém estão inseridos no contexto narrativo, e que, por isso, não sugerem uma conotação absurda. Visualmente, características da arte gótica tomam lugar em cena, enriquecem e caracterizam as cenas e paisagens do filme. O ambiente, nesse contexto em preto e tons de azuis, é totalmen- te exagerado: uma velha mansão - com portas grandes, janelas disformes e de tamanho irregulares, escadas intermináveis e ambientes totalmente sombrios, repletos de estátuas assustadoras. A real utilização desse exagero é para enfatizar o espaço e, logicamente, fortalecer o sentido das relações com o protagonista. Nele existem sombras distorcidas, projetadas nas pare- des de pedras e com teias de aranha, demonstrando o abandono do lugar. O casarão, inclusive, está sobre as montanhas, um local sombrio, que cria um ambiente de excentricidade e isolamento. Excêntrico vem do latim ex
  • 15. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 15 centricu que significa aquele ou aquilo que se desvia ou se afasta do centro, ou seja, no caso, o que não é igual, ou semelhante aos outros. Na contracena com Peg, nota-se, perfeitamente, a diferença entre os figurinos dos personagens. Em Peg, a vendedora do Avon que encontra Edward, é um tailleur de linhas retas, gola e chapéu cor lilás. Este figuri- no remonta, intertextualmente, os tailleurs e vestidos de André Courrèges e Pierre Cardin, estilistas de renome, demarcando a diferença em que os doisseencontram.Eles,dealgumaforma,representammundostotalmente diferentes. Nessecontextovisual,portanto,ofigurinopodeserumelementoam- bíguo, na medida em que esconde, disfarça, engana a respeito de seu porta- dor. Quantas pessoas não se vestem de modo que contrariam sua idade, sua época e sua condição moral, social e econômica? Essas duas possibilidades que caracterizam a vestimenta do corpo, uma contrária à outra, encontram uma terceira e última função que se define pela ausência: é desnudamento, a não-roupa. No momento da criação da personagem, o figurino torna-se a segunda pele do ator e a comunicação passa a ser entre um indivíduo e outro (entre personagens), ou entre símbolos, inicialmente uma linguagem em que predomina na construção do olhar. Será a vestimenta de Edward mesmo uma roupa ou parte de seu corpo? Há de se considerar, ainda, que a cor é um elemento importante para caracterizar a simbologia da roupa, bem como a aparência e a essência dos personagens na trama. O protagonista é apresentado com o figurino em preto, cor que sugere certo luto, sensação de frustração, associando-se, nos- so olhar, à ideia de terror, ao mistério e à fantasia (CHEVALIER, 1988, p. 740-744). Além da cor preta, a maquiagem e a roupa do protagonista, jun- tamente com seu andar robótico, desconcertante, participam da instalação de universo fictício, inquietante, com a sua aparência “estranha”. O espaço escuro, leva à uma aura de mistério e lugubridade, para compor a aparência da figura do protagonista incompreendido e incomum, complementando a questão imagética do estranhamento do personagem. Contraditoriamente, nessa configuração semiótica do personagem, mesmo o espaço escuro, no- turno, soturno, “provocador” de medo e aversão, ele, também, desperta cer- to encanto e pureza, em oposição aos valores sociais de outros personagens. Diante dessas informações, ficam correlatos o ambiente e espaço com o arquétipo do personagem. Há um pertencimento entre personagem e espaço, pois ambos estão no mesmo contexto, amparados pela ideia góti- ca, ainda que extremamente lúdica. Reforçando esse ludismo, a maquiagem caracteriza o ator no filme, sugerindo aquilo que ele é ou pretende parecer. Os contornos destacam os olhos e os lábios no conjunto do rosto, enfatizam os traços físicos, a ex- pressão do olhar e o movimento da boca na articulação do discurso. Ela possui forte interferência semântica, na medida em que explora cores, con- trastes, tonalidades, linhas, formas, contornos, relevos e texturas, elemen-
  • 16. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 16 tos característicos da construção visual, capazes de interferir diretamente na percepção do espectador em relação ao sujeito. Esse é o caso do perso- nagem Edward, que fisicamente se diferencia de todos os outros sujeitos da comunidade. Os relevos das cicatrizes, nesse conjunto, permitem criar sinais de rugas, cicatrizes e marcas de acidente (no caso os acidentes com as tesouras) e de deformações diversas, além de permitirem/sugerirem certa alteração no tamanho e configuração no nariz e das pálpebras. Diantedessesexageros,écertoqueoqueconsideramornamentação e embelezamento para uns, para outros, isso varie de uma cultura para ou- tra, pois constroem significados diferentes aos arranjos de cada sociedade. O que para Edward é normalidade (suas roupas, sua cor, seu rosto, suas tesouras e espaço onde mora) para os habitantes da pequena cidade, esses códigosvisuaisecoamcomo“mutilação”,exuberância,esteticismoexagera- do. Isso se dá devido ao estranhamento, as diferenças que aparecem, ainda que usufruam ou explorem ações desse sujeito dito “estranho”. A partir desse fato, percebe-se que, o quintal da mansão é ornamen- tado de plantas bem cordadas, até a cor verde da grama da mansão é mais viva que o verde da grama das casas do bairro, pois este tom plastificado surge moldado como seus donos. Isso demonstra uma aparência óbvia: o espaço e a identidade do diferente. Edward é representação do diferente e uma sociedade moldada, com certeza, não saberia viver com ele. Edward é o sujeito que só usa uma mesma roupa preta que não é re- movida em nenhum momento da história, nem mesmo quando Peg lhe dá outras peças para vestir-se. A calça comprida que ela lhe dá é cinza, porém, para iluminar, urbanizar ou mesmo humanizá-lo, a sua camisa é branca, su- gerindo, nesse gesto, clarear sua imagem. Mesmo seu rosto pálido e cheio de cicatrizes (autoinfligidas por suas tesouras), cabelos bagunçados, olhos fundos marcados por olheiras, Peg tenta maquiá-lo, ou seja, “maquiá-lo” com produtos que disfarcem sua real imagem, diminuindo, nesse contexto, seu aspecto dark. Diante de determinado situação, Edward, delicadamente, se vê no espelho e percebe que as cicatrizes do seu rosto, na verdade são causadas pela lâmina da tesoura de suas mãos. Como Edward possui a índole e com- portamentos de uma criança, tudo no mundo lhe é novo, por isso age de uma maneira inocente e sincera causando empatia com o seu público infan- til que o aceita sem julgamentos. Opostamente ao mundo do protagonista, na cidade tudo é muito co- lorido: as casas, as roupas, as ruas muito limpas, as crianças brincando e por isso, Edward acha graça, maravilha-se com os acontecimentos. O diretor usa as cores para brincar, realçar o encantamento. Aquele que se difere, o “sujo” - também chamado de estranho, estrangeiro, forasteiro, deslocado entre outros nomes - é, necessariamente, peculiar, inusitado e diferente no ambiente e, por esse motivo, destoa dos outros elementos do grupo. O es- tranho social manifesta-se no momento em que não compreende ou não
  • 17. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 17 compartilha do mesmo código de valores implícitos em determinada socie- dade, sejam eles morais, comportamentais ou, até mesmo, visuais, infantis, demonstrando que a cidade, com todas as suas cores, fortes e vivas, possui um caráter de vida fútil, extremamente suburbana, em contraposição a cor escura do mundo de Edward, que é na verdade o mundo puro e ingênuo. Além das várias representações do espaço físico, o cenário e o figu- rino assumem papeis tão importantes quanto ao de um ator dentro de um espetáculo,construindosentidoseoutraspercepçõesdaquiloquenospare- cem invisíveis, transmitindo, silenciosamente, leituras sensoriais. Em deter- minados momentos, é fundamental que o figurino, assim como o cenário, passem despercebidos e o espectador possa direcionar sua atenção para a interpretação do texto, descobrindo elementos específicos como a perso- nalidade da personagem, o enredo da cena etc. O uso da cor em determinados espetáculos, por meio do figurino, cenários ou luz, é capaz de produzir no espectador determinadas impres- sões, fazendo-o mergulhar no simbolismo da cena, ajudando na definição da personalidade do personagem, na valorização dos materiais e, acima de tudo, no perfil psicológico como, por exemplo, nas cenas da fabricação de Edward. A história acontece no período dos anos de 1950/1960. A filha de Peg, Kim, usa uma silhueta famosa: o “New Look”, de Christian Dior com a cintura marcada e saia ampla. Todos os jovens do filme possuem um estilo semelhante aos anos de 1950: suéter, cardigãs de malha, jeans, jaquetas coloridas, bobby socks (meias soquete) e tênis. Um estilo college que teve origem no sportwear. Algumas vizinhas usam a mesma linha de vestidos de formas retas, algumas com calça ci- garrete e suéter, como a personagem Joyce Monroe no início do filme. Podemos observar algumas vizinhas com vestidos trapézio, feito os lançados por Yves Sain- t-Laurent e a influência da moda unissex. Também há uma influência dos anos de 1960 nas estampas da roupas. A maquiagem, ao estilo anos 1960, reforça olhos e cabelos com raiz alta e impecáveis. Além disso, podemos notar o uso das franjas, como na personagem Kim. Espaço/ Iluminação Conforme observado nas considerações anteriores, a roupa tem de passar pela experimentação de formas, de materiais, referências e cores, numprocessodeestudoquesustenteeviabilizeacriação.Maselanãopode ser exclusivamente experimental, pois no caso do filme, não se usa um figu- rino para representar alguma moda. Entretanto, a simbologia das roupas não pode se contentar com a ausência de significados, sua função é, pri- mordialmente, alterar regras, quebrar padrões e estabelecer o “novo”, para que este seja, talvez, difundido, aceito e absorvido por um número maior de pessoas.
  • 18. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 18 Afinal, os trajes exploram os aspectos metafóricos e metonímicos do corpo deixando de ser apenas certo elemento realista ou um recurso orna- mental, para tornar-se uma espécie de suporte de significação que estabelece as relações essenciais entre a personagem e o contexto do filme. Diante desse olhar, esses recursos/elementos completam a integração entre o ator, o figu- rino, o cenário e a luz, pois neles estão concentrados os sentidos visuais do filme. A iluminação destaca-se em cenas, tais como, ao observar a mansão, o espaço ou paisagem eleva-se sobre como uma nuvem negra, trazendo uma sombra de premonição. O contraste estende-se na cor e nitidez da imagem, às formas geométricas regulares, associadas às cores tranquilas, vi- vas e as formas claras e detalhadas. Os pormenores urbanos, como as casas, carros, candeeiros, relvados são alinhados de forma organizada e repetitiva, sugerindo, sutilmente, ao observador, a impressão de alguma monotonia e ausência de originalidade. A montanha, pelo contrário, parece extraída de um filme em preto e branco, com certa falta de nitidez que é característi- ca das primeiras experiências cinematográficas. A base da montanha, feito imagem memorialísticas dos contos de fadas, surge envolta numa névoa, fora de contexto, como um elemento irreal e atemporal. Nesse caso, temos um filme atemporal, pois mistura padrões estéticos dos anos 50 com os padrões dos anos 90, além da utilização de cores monocromáticas e fortes dando-nos ou construindo, dessa forma, o caráter fantástico. A iluminação sofre uma intensa diferenciação entre o ambiente em que Edward vivia e o novo bairro,numinteressanteefeitoclaroversus escuro.Nacenadocastelo,sãoosjogos de luzes em forma de antíteses visuais que predominam, esta dicotomia claro-es- curo sugere o ciclo da vida e da morte. A coreografia de cores é a poesia que mais chama a atenção: casas, carros e objetos são pintados em tons monocromáticos e berrantes, dando a impressão, aos olhos do espectador, de visualizarem brinque- dos rústicos, certa memória infantil. O céu azul-bebê e a falta de sombras (com exceção para as cenas elaboradas dentro do castelo de Edward) contribuem para intensificar o clima onírico do enredo. Em Edward Mãos de Tesoura, além de conduzir os dualismos de sombra e luz, bem e mal, cenário e decoração, a iluminação conduz certa profundidade e atração para o telespectador. A luz deforma, juntamente com o espaço e os obje- tos, para sugerirem uma atmosfera de mistério - nos momentos de escuridão - e em outros, como no caso da cidade, muita claridade para contrapor com a imagem do protagonista. Considerações Finais O espaço como metáfora e os elementos ou recursos da maquiagem, cenário, cor e luz, assim como os figurinos, fazem parte do espetáculo fílmi- co em Edward mãos de tesoura e leva-nos, visualmente, a pensar neles, como componentes de uma narrativa, essenciais e determinantes em uma obra
  • 19. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 19 fílmica e estética como esta. A fotografia e suas relações com o espaço em Edward mãos de te- soura são problemas levantados nas primeiras cenas do filme, pelas consi- derações da contação de histórias da avó, pela insinuação memorialística, a esperar as demarcações do tempo e do espaço no recorte fotográfico que opera a cena entre molduras. Esse gesto inicial da avó, no filme, também demarca o jogo entre a representação do real e a capacidade de inferir nesse mesmo real, fragmentos do mundo imaginário. Assim, o espaço se desdo- bra em espaço observado e espaço que torna possível a observação. Obser- var pode equivaler a mimetizar o registro de uma experiência perceptiva e memorialística. OcontrasteestabelecidoentreouniversoespacialesombriodeEdwardeo colorido artificial da cidadezinha é um dos pontos mais fortes da trama, e para que se torne eficaz, o cineasta recorreu a uma estética “pesada”, feito a transmissão dos contos de fadas. Os cenários são exagerados, assim como os figurinos e a maquia- gem. Nos créditos iniciais já começam os recursos estéticos, ao nos apresentar o gigantesco castelo, mergulhado em escuridão e habitado por Edward. Ele é espaço repleto de estátuas assustadoras, escadas intermináveis, janelas disformes de ta- manhos irregulares e sombras distorcidas projetadas em paredes de pedra. Nasce então um abismo entre esse mundo assustador e a comunidade em que vivem Peg e Kim, marcada por construções provincianas, simetria perfeita, belos jardins flo- ridos e habitantes sorridentes. A partir dessas oposições e apresentações dos espaços e das relações de po- der nelas instauradas, que aparece a ironia fina e espectral da obra. Diante dessas aparências e recursos, o cineasta conduz o filme procurando seduzir o espectador para entender pequenos detalhes que inscrevem a inocência e pureza do protago- nista. Edward mãos de tesoura é, para além das metáforas do espaço, algo como “o espaço proustiano” que se afirma não somente como busca do tempo, mas, também, do espaço perdido. O tempo recuperado por Proust1 é um conjunto de momentos-lugares memoráveis separados por imensas distâncias. Nesse sentido, o espaço recuperado por Edward não é o de extensão geográfica, mas uma série de “quadros” como retábulos. Referências BETTON, Gérard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes. 1987. COSTA, Francisco Araújo da. Análise fílmica: o figurino como elemento essencial da narrativa. Sessões do imaginário. Porto Alegre, nº 8 (agosto). Semestral. FAMECOS/PUCRS, 2002, p. 38. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, 1 Para uma leitura mais aprofundada sobre o espaço proustiano, cf. O espaço proustiano, de Georges Poulet.
  • 20. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 20 costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). R J: José Olympio. 1998. GANCHO, Cândida V. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática. 2004. GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte. Ed. UFMG. 1997. JÚNIOR, Eduardo Neiva. A imagem. São Paulo. Editora Ática. 1994. PINNA, Daniel Moreira de Souza. Curta a narrativa: contos, curtas e personagens animadas. 2005. Programa de Pós-Graduação em Design. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2005. Disponível em: <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/imago/site/narrativa/ensaios/pinna. pdf />. Acesso em 16 out.2011 POULET, Georges. O espaço proustiano. Rio de Janeiro. Imago. 1992. FILMOGRAFIA Edward Mãos de Tesoura. Direção: Tim Burton. São Paulo: Fox Home En- tertainment, 1990. 1 DVD (104 min.), som, color., Tradução de: Edward Scissorhands.
  • 21. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 21 AS ÚLTIMAS PALAVRAS: AGORIDADE DOS ALTOS E BAIXOS DA VIDA HUMANA Arolda Maria da Silva Figuerêdo Pós-graduanda em Literatura Brasileira e Mestranda em Crítica Cultural. Professora de Literatura Brasileira da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) E-mail: aroldafigueredo@yahoo.com.br A contemporaneidade é marcada pela falta de tempo, pois essa é a era da Internet, dos celulares, dos videogames, tablets, objetos que trazem, em suas estruturas tecnológicas, o atendimento ao acelerar das coisas e do tempo; e, dentro deste quadro, se inclui a comunicação entre as pessoas. Mas, paradoxalmente, o tempo que se ganha ao deleite das relações sociais pode, ao contrário, diminuir/esvaziar os encontros. Segundo Aleilton Fonseca(2009), a poesia contemporânea surgiu no processo histórico em que se deu o surgimento das grandes cidades. Naturalmente, revolucionaram-se as relações entre pessoas, e, desde en- tão, esse processo veio se desdobrando e hoje alcança a era globalizada que — embora preze pela velocidade e pela urgência — não consegue calar a poesia, essa arte que demanda tempo para leitura e fruição, pois A poesia quer subir em um palanque E gritar palavras sem piedade Acusar o poder dos verbos mal usados Que na boca infame de alguns se propagam (KALLARRARI, 2013, p. 26). E como a poesia resiste às crises e atravessa as eras, chega até nós As Últimas Palavras, de Celso Kallarrari, seu terceiro livro de poemas, que tra- duzem os sentimentos de desatino e agonias, leveza e dureza, inconstância, faltaderumo,consequênciasdasmuitasurgênciasatuais,doesfriamentodas relações, dos silêncios da alma e da corrupção dos discursos. Ao se refletir a este cenário caótico e desumanizante em que vivemos, os poemas de Kallar- rari, aqui reunidos, evidenciam as dificuldades que o sujeito contemporâneo tem de se adaptar ao sistema vigente e viver estas quebras, estas rupturas. Paratanto,o poetabuscatraduzir— emversos,estrofes, àsvezes,ritmadas, outras não —, palavras carregadas de sentidos e imaginação. As Últimas Palavras pertence a um conjunto de obras que nos permi- te adentrar numa rede de significados, onde, de forma convergente, a bele- za e a sutileza se estreitam, mas, antagonicamente, também os dissabores que se nos apresentam, cotidianamente, como sendo normais e dignos de serem aceitos. Nesta obra, o autor propõe uma escrita poética, que mescla
  • 22. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 22 temáticas instigantes da contemporaneidade, consoante a tradição, sem- pre que a ela recorre. Compõe-se de uma série de poemas que revelam, na reflexão metalinguística, filosófica e literária, o papel e função da poesia na formação do homem e no seu processo de humanização/desumanização, a partir de títulos, em letras iniciais minúsculas, a exemplo de “a poesia precisa sair das calçadas”, “a crônica”, “o poema”, “um best-seller” e “meus últimos versos”. Os poemas evidenciam temáticas plurais que abarcam o hibridismo cultural, a fragmentação do homem e seus valores numa análise crítica sin- tomática da paisagem caótica do mundo contemporâneo. Entretanto, esta poesia — por conta de sua força expressiva — permite ao leitor acessar outras dimensões significativas que o elevem espiritualmente e despertem nele, uma consciência reflexiva, isto é, mais crítica sobre o estar no mundo, para além das aparências e das certezas estabelecidas. Como Kallarrari é um padre-poeta ou poeta-sacerdote, veste suas palavras de forma que as elas aglutinam o lírico-amoroso, o lírico-religio- so ao lírico-político-social, numa simbiose de diálogos que expressam um espírito inconformado com o estado desigual no mundo capitalista. Além disso, há a preocupação com o espírito mercadológico, que encobre o olhar pleno e deixa no ar certa aura melancólica, diante de tantos desajus- tes de caráter e ausência de postura ética entre os homens. Toda a obra é perpassada por uma leveza de propósitos poéticos, que implicam num perfil e elegância estéticos de escrita, assinalado por um estado de alerta, um incômodo, um espírito inconformado, diante das mais diversas, antigas e modernas tragédias humanas, pois para o poeta Guernica é aqui. É um cachimbo exalando fumaça. Está repleta de tristes e violentos, De fascistas pós-modernos. Guernica é uma aldeia global, Vítima dos pensamentos arsênicos, Que pintam o céu de branco. Nela, só há choro, dor, desilusão (p. 51). “Guernica” aponta a uma leitura atualizada da famosa pintura de Pi- casso, distribuída em fragmentos que se tocam pela dureza e crueldade, uma vez que viver, nesse mundo, é algo difícil. Tem-se a impressão de faltar o ar, elemento imprescindível ao viver, pois, no início do poema, o cachimbo e a fumaça apresentam-se como objetos que impedem o respirar tranquilo. Semelhantemente à vida moderna de caos, terrorismo e guerras, no quadro de Guernica, todos os seres representados têm a boca aberta como repre- sentandoumadispneiacoletiva,alémdosolhosvoltadosaumanesgadeluz, que do alto clareia e resplandece seu brilho em meio às sombras, à dor e à
  • 23. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 23 morte. Neste caso, ao ler o quadro de Picasso e fazer uma correlação com o mundo atual (essa aldeia global), “marcado pelo choro, dor e desilusão”, é perceptível uma força suprema capaz de iluminar o mundo, torná-lo habitá- vel e habitat possível a todos. Somam-se a estes painéis — quadros pintados pela poética de Kallarrari, a partir de uma linha evolutiva de poemas —, a fé do poeta de que há uma saída para o mundo, tanto no “poema”, em seu aspecto meta- linguístico ou enquanto metáfora do ser humano, quanto na crença no ser supremo e no amparo em Jesus como seu mestre e guia. Nessa perspectiva, é possível encontrar poemas como “a lógica da criação”, “os teus pés Senhor”, “os últimos dias”, textos que traçam e sus- tentam uma visão que vai desde a gênese do mundo até as profecias apoca- lípticas, anunciadora dos tempos finais. Desse modo, o sagrado e profano, divino e o humano se tocam e se entrelaçam, deixando uma relação de completude e inteireza — necessárias a uma vida plena de realizações. Ademais, estão presentes, na obra, os poemas “o prado”, “fazenda cascata”, “as bundas” e “alcobaça” (texto que intertextualiza com o poema “Garota de Ipanema” de Vinícius de Moraes); estes localizam, geografi- camente, o poeta no Extremo Sul da Bahia: “Como esquecer-me de ti, ó Prado!/ Um campo enorme no mar/ Se tua saudade é meu fado,/ Pois ao passado não posso voltar” (p. 79). Em “as bundas”, poema carregado de significados sobre a temática da festa baiana carnavalesca, o autor carnavaliza, destronando a visão mi- diática da sedução barata e da anticultura da bunda televisiva, que, ao invés de valorizar a beleza do bamboleio — característica peculiar da descen- dência afro —, repercute a dimensão da desvalorização feminina, aponta- da como uma mercadoria sexual e de exportação. A parte lírica amorosa ora descortina os sentidos da alma do ho- mem, ora evidencia os desejos carnais, como ser partícipe, e a realização plena no sentido e no jogo do toque e da troca sensual e romântica, aspec- tos perceptíveis em “declaração”, “por ti, eu sou peixes” e “amanhecendo”: “E eu orvalho em teu corpo/ E tu fecundas em mim/ E o mar nos enten- dendo” (p. 43). Sobre o entendimento da nova conjuntura do Brasil e do mundo, o poeta interpreta e reconhece os arroubos e as fragilidades através de poe- mas como “maniqueísmo”, “a visita”, “a fila”, “brasis”, “o golpe” e, princi- palmente, “provérbios” — poema híbrido e plurissignificativo: Este é um poema que grita Este é o grito dos países excluídos; Este é o grito de todos os países juntos. Não é o grito pela guerra; É um grito de desabafo; É um grito de quem denuncia
  • 24. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 24 As injustiças, desigualdades e violências sociais. É um grito de quem anuncia a liberdade Um novo tempo, os direitos iguais. (p. 86). Neste texto, percebe-se que o poema remete a metáfora do homem, que sobrevive, apesar das intempéries, porém, precisam sair das calçadas, ganhar o mundo, elevar a voz, conquistar os seus direitos, para ser ouvido, reconhecido e valorizado. Também a criança foi incluída como temática nesta obra, que toca no desalento do homem, na dissolução do sujeito e nas suas tantas omis- sões, como a de ser responsável pelo futuro através das suas ações presen- tes, diante do quadro de negligências, expresso em “o menino e a casa”, “tancredo” e “destino”. Outro aspecto importante refere-se à inserção da mulher na obra, pri- meiro através do reconhecimento de Maria, como mãe do filho de Deus, e, por isso mesmo, digna de reconhecimento e exaltação, mas também, como intercessora das dores do mundo, amparo de todos os filhos e filhas, porque conhece a dor como ninguém, uma vez que a crucificação do seu filho, fê-la experimentar da mais profunda das dores, como se nela fosse. Entretanto, su- pera a malignidade dos homens pela sua capacidade de transcender do plano terreno das mediocridades para o outro, onde nasce a vida e não se reconhece a morte como fase derradeira, pois é possível o ressurgir. Pode-se observar essa visão nos poemas “na mesma cruz”, “a lógica da assunção” e “a mesma paixão”. No poema “claralina”, se inclui uma linha de transição entre a evolu- ção da menina e a chegada da mulher, apontando a pobreza dos laços entre estas e o mundo, num tom de alerta acerca da desvalorização da mulher como ser que, ingenuamente, se torna apenas objeto do desejo da pobreza da alma humana, semelhantemente, à Clara de Caetano Veloso, poema que segue a mesma linha de discussão. Os poemas “segredo” e “tereza” trazem outra roupagem de senti- dos, pois as mulheres ali representadas, traduzem a singeleza e o calor hu- mano, que elas emanam em suas ações mais profundas do toque sobre os homens, que como filhos e/ou esposos gozam do seu cuidado constante. Diferenciam-se, entretanto, das mulheres (mães) do poema “destino”, que se mostram frias nas relações com o sêmen, com o feto e futuro filho. Em “tereza”, o autor alude ao texto de Bandeira com o mesmo título, embora haja uma troca de s e z, como que caracterizando o novo jeito de olhar, visto que aqui se revela como mãe do eu-lírico e do poeta e transcende os limites humanos e ganha as dimensões do mar, do infinito. Nesse sentido, “tereza” é comparada à Maria, na graça dar à luz e marcar o rebento pelo afago, pelo cheiro, pela alegria, pelo amor. Enfim, As Últimas Palavras trazem o sentido do instante, do agora,
  • 25. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 25 do imediatismo, que não é definitivo, que não é o último, mas o pronun- ciamento que não só revela e desvela o momento presente, o hic et nunc — com todas as suas nuances, possibilidades, fragilidades —, mas também o seu lado cruel, desumano, sem chão que se aprume e sem teto que se abrigue. EstAS Últimas Palavras trazem, sutilmente, a agoridade dos altos e baixos, dos poderes, dos deveres e do caos, em trânsito, que enreda e desenreda valores; que refaz e desfaz as coisas, que constrói e desconstrói a vida, pois Num só grito, desterro o que desconheço Daquilo que pensava que era num tempo indiviso Mas o tempo desmarca a vida do homem O tempo é tão mesquinho com a gente E nos rouba as palavras, Corta e entrecorta a nossa vida (p. 108). Elas, As Últimas Palavras, têm a face do comunicável e do incomu- nicável, do emudecimento, do desenlace das relações e das certezas neces- sárias que não chegam, porque já não cabem utopias. Mas há também um firme propósito explícito no reconhecimento da incerteza, nos reveses da vida estética, sem louros, sem heróis e sem tesouros; e na identificação do caos, do egoísmo, da descoberta dos inúmeros significados, escondidos e esmagados. Neste livro, As Últimas Palavras, vazias e cheias, são parecidas às palavras de Cristo, pregado àquela cruz, na hora da agonia, no momento derradeiro: Pater, dimitte illlis non enim sciunt quid faciunt (p. 89). Aparen- temente, não dizem nada, mas insinuam a possibilidade de muitas pontes, ligando o ser humano sedento (de amor, de fé, de esperança, de confiança, de segurança, de paz, de fraternidade universais) do tempo de agora. Antagonicamente, elas Não dizem tudo o que querem dizer Mas também não dizem nada que não querem dizer, Elas apenas seguem o tempo impróprio dos homens Enquanto continuam tendo sede de humanidade Na ânsia eterna de beber o oceano (p. 108). Referências: FONSECA, Aleilton; PATRÍCIO, Rosana Ribeiro (Orgs). Cantos & re- cantosdacidade: vozes do lirismo urbano. Itabuna: Via Litterarum, 2009. KALLARRARI, Celso. As últimas palavras. São Paulo: Reflexão, 2013.
  • 26. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 26 LEITURA E PERSUASÃO: PRINCÍPIOS DE ANÁLISE RETÓRICA Cristhiane Ferreguett Mestre em Estudos de Linguagem. Email: cristhiane.linguagens@yahoo.com.br Leitura e persuasão: princípios de análise retórica é o mais novo livro de Luiz Antônio Ferreira, doutor em educação pela Universidade do Estado de SãoPaulo–USP,professortitulardaPontifíciaUniversidadeCatólicadeSão Paulo – PUC-SP. A obra faz parte da Coleção Linguagem e Ensino, da Edi- tora Contexto. O livro apresenta uma discussão abrangente sobre os diversos prin- cípios da análise retórica, sintetizando os principais pontos da teoria, fun- damentando-se em diversos autores e teóricos da retórica, dando ênfase aos estudos apresentados por Aristóteles e Chaim Perelman e Olbrechts- -Tyteca. Segundo Ferreira, o livro foi feito “para iniciantes na arte da análi- se retórica”; e, a fim de cumprir seu objetivo, apresenta as seguintes carac- terísticas: é simples, didático e curto. A obra, que apresenta uma introdução feita pelo autor e apenas quatro capítulos, traz a teoria de forma sintética e as análises práticas são realizadas utilizando textos curtos, leves e atuais de diversos gêneros tex- tuais: quadrinhos, crônicas, propagandas, notícias, anúncios de jornais etc. Optamos por descrever o livro, ao tempo em que tecemos algumas consi- derações sobre cada parte do mesmo. O primeiro capítulo - O espaço retórico -, inicia-se na página 11 e ter- mina na página 37. Nelas, o autor vai situar o leitor dentro do universo da retórica, a partir de uma reportagem publicada na página de notícias Terra sobre um desempregado argentino que encontrou US$50 mil no lixo de sua cidade e utilizou o dinheiro comprando casa, automóveis e uma loja. Ferrei- ra utiliza o texto para discutir o que é argumentação, orador, auditório, dis- curso retórico. Além de apresentar estes conceitos básicos, o autor faz uma reflexão sobre a busca da verdade, sobre o verossímil e o acordo. Osegundocapítulo,“Brevíssimahistóriadaretórica”,comoopróprio nome diz, apresenta de forma sintética (em nove páginas) a história da retó- rica. O autor apresenta o nascimento histórico da retórica na Magna Grécia; através da diacronia de Barthes (1995), discute sinteticamente a retórica de Górgias e dos sofistas; os estudos de Platão; os estudos aristotélicos e dos autores helenísticos e romanos e finaliza apresentando a novas propostas retóricas, citando os estudos de Perelman e Tyteca, Meyer, Lempereur, Re- boul, que Ferreira apresenta como autores baseados na lógica não formal; os autores que se baseiam nas lógicas naturais (Grize e Vignaux) e Dubois, Klinkemberg, Minguet, apresentados como precursores da Retórica Geral. O último parágrafo é dedicado à nova retórica de Perelman e Tyteca.
  • 27. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 27 O terceiro capítulo pretende apresentar, como o próprio título diz, “Primeiros passos para a análise retórica”, passos para a realização de uma análise retórica. O autor faz uma grande divisão do capítulo em cinco sub- títulos: Passo 1: olhar inicial – o contexto retórico; Passo 2: o sistema retó- rico – a invenção; Passo 3: o sistema retórico – a dispositio; Passo 4: o sis- tema retórico – a elocutio e Passo 5: o sistema retórico – a actio. Podemos considerar este capítulo como o maior (p. 49 a 144) e o mais importante capítulodolivro,umavezqueforneceráospassosparaumaanáliseprática. Cada passo vai sendo apresentado com diversos exemplos, seguidos de inúmeros conceitos teóricos que o autor tenta simplificar ao máximo. Ferreira não esclarece com quais teóricos ele está trabalhando; além disso, os conceitos são tantos que prejudicam a compreensão, mesmo para quem já tem outras leituras na área. Lembramos aqui que o autor, na introdução do livro, afirmou que o livro “foi feito para iniciantes na arte da análise retórica” (p.8). Existem equívocos evidentes que mostram como o exces- so de informação conceitual prejudica até mesmo raciocínio do próprio autor do livro. No primeiro passo, após o subtítulo intitulado “Elementos que caracterizam o gênero do discurso retórico”, o autor apresenta a se- guinte assertiva: “ressalte-se que, em síntese, todo discurso é político, com maior ou menor carga intencional, pois, na prática, é difícil encontrar um discurso puro (só laudatório, só judiciário, só político ou deliberativo). Os valores dos três gêneros se interpenetram (o justo, o bem, o útil), mas é possível buscar-se o gênero predominante” (p.57). Para o leitor não fica claro se os gêneros são quatro ou se são três. O autor apresenta, após a fala transcrita, o conceito de três gêneros (o deliberativo, o judiciário, o lauda- tório), fica a pergunta no ar: o gênero político não foi definido, como os demais, por estar, segundo o autor, presente em todos os outros? Quando o autor diz “os três gêneros se interpenetram”, a quais gêneros ele se refe- re? Qual é o gênero que é designado justo? Qual é o gênero relacionado com o bem e qual o relacionado com o termo útil? Osegundopassoéomaislongoedetalhado,inicianapágina60eter- mina na página 109. O autor apresenta inicialmente uma notícia da revista Veja (2008), cujo título é “Fazendeiro acusado de encomendar a morte da freira Dorothy Stang é absolvido pelo júri”. A partir daí, o autor retoma a questão do gênero e, em seguida, aborda os temas: invenção (inventio), a construção do ethos; o orador ; o pathos e os lugares retóricos. Para traba- lhar este último item, o autor apresenta outros textos e tece considerações sobre novos lugares retóricos, criados pela propaganda. Ferreira discute também a noção do pathos e logos; em seguida, apresenta os diversos ra- ciocínios, componentes argumentativos que se valem da dedução. Segue apresentando novos textos-exemplos para discutir novos pontos teóricos: premissa maior; premissa menor; os tipos de discurso (religioso, autori- zado, dominante, servil e polêmico); retoma ainda, com mais detalhes, a discussão sobre o ethose o pathos.
  • 28. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 28 No terceiro passo, o autor discute os quatro pilares da retórica, cor- respondentes às etapas de organização do discurso: invenção, disposição, elocução e ação. Discute ainda a composição da narração, a exploração da confirmação e a peroração (o epílogo). O quarto passo retoma o traba- lho com a elocução, discute os três gêneros de estilo: o nobre, o simples e o ameno. Discute ainda as falácias, algumas figuras retóricas e o aspecto ideológico do discurso. O quinto e último passo apresenta e discute a ação (actio), abordando também a gestualidade (kinésica) e a interação com o espaço (proxêmica); asestratégias de polidez e a construção dos efeitos pas- sionais. O quarto e último capítulo recebe o seguinte título: “A lógica do verossímil”. Nessas últimas páginas o autor vai discutir os argumentos, di- vididos em três grandes grupos: Argumentos quase lógicos; Argumentos baseados na estrutura do real e Argumentos que fundamentam a estrutura do real. Aqui, finalmente, o autor situa o leitor com relação ao ponto de vista teórico adotado, que são os estudos apresentados por Perelman-Ty- teca no Tratado da Argumentação: a nova retórica. Cada um dos três grandes grupos de argumentos é apresentado e discutido após inúmeros exemplos de textos da atualidade, facilitando a compreensão do leitor. A única questão que não fica clara são os critérios que o autor usou para selecionar alguns subtipos (ou variação) de argu- mentos e outros não da obra original. A omissão da maioria dos argumen- tos existentes no Tratado pode criar no leitor desavisado a crença de que está diante da síntese de toda teoria argumentativa original. Outra questão que preocupa é o fato de esta discussão estar à parte dos passos apresen- tados por Ferreira para um trabalho de análise prática, uma vez que clas- sificar corretamente os argumentos é fundamental numa análise retórica. Conclusão do resenhista O estudo da retórica é recomendado para todos que desejam de- senvolver e ampliar os recursos para uma leitura e escrita mais atenta e crítica. Recomendamos a obra para todos os alunos de graduação dos mais variados cursos, em especial os de Letras, Pedagogia e Direito. A obra apresenta uma boa visão inicial da teoria retórica e serve como base para outras leituras. É recomendável ao autor uma revisão geral da obra para uma segunda edição, retirando os pontos que confundem o leitor e esclarecendo outros. Facilitaria muito a leitura se existisse uma numeração progressiva orde- nando os capítulos e seus subtítulos que são apresentados soltos, sem nenhuma ordem numérica. Sentimos falta também de um capítulo conclusivo do livro. O grande ponto positivo deste livro é a simplificação de inúmeros conceitos com- plexos da retórica e a presença farta de exemplos atuais. Ele, certamente, poderá servir de base inicial para quem deseja aprofundar no universo retórico. Referência: FERREIRA, Luiz Antônio. Leitura e persuasão: princípios de análise retóri- ca. São Paulo: Contexto, 2010. 173 p.
  • 29. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 29 PARA UMA RETÓRICA DA COLLAGE Rodrigo da Costa Araújo Doutorando em Literatura Comparada (UFF) Um título direciona a leitura de um livro. Pensando assim, A colla- ge como trajetória amorosa, de Fernando Freitas Fuão, Editora da UFRGS. 2011, é uma forma de visualizar o fenômeno da collage. O próprio livro em si, revela fragmentos visuais, brincadeiras que incitam e solicitam a leitura, a vida, a memória, a lembrança de qualquer leitor. A collage como trajetória amorosa não é uma análise especificamen- te barthesiana, mas também não lhe é alheia a esse viés, uma vez que o au- tor confessa logo de início, no título, alguma retomada do livro Fragments d’un discours amoureux, de Roland Barthes (1915-1980). O texto barthe- siano, porém, será o intertexto prenunciado para olhar o registro visual, a visualização, a história e o processo criativo da collage em diversos momen- tos. O sumário do livro, feito a obra de Barthes, totalmente fragmentária, já apresenta suas partes, sua estrutura e modo como constitui o processo criativo da collage. A partir dos elementos constitutivos, como a tesoura (recorte), a cola, as figuras (fragmentos) e os encontros das figuras, o livro compõe o “discurso amoroso” da collage explicando esse processo. Ver e entender a collage, então, parece pressupor aceitar o frag- mento, a visão caleidoscópica, a escolha do ambíguo, o que se apresenta sobre a forma de texto labiríntico, em olhares enviesados, registros que singularizam o estranhamento, informações e instantes. O ensaio de Fer- nando Freitas Fuão é álbum luminoso de leitura do texto que se desdobra. Enquanto marcas “físicas” e “superfícies”, os fragmentos configuram-se aí como lugar de inscrição e rasura de signos cuja ilegibilidade (ou jogo de le- gibilidade?) seduz e desafia o olhar de Fernando, (e também dos leitores) congestionado pelo silêncio e pela criatividade visual. Entre o que se vê e o que lê, é possível que de vez em quando, ao folhear este livro, o leitor perceba que “o movimento da collage é compará- vel à trajetória amorosa descrita por Roland Barthes, onde os fragmentos são as figuras da ação da collage e o recorte, ou captura, é o primeiro ato do trajeto amoroso” (2011, p.33). Nesse jogo visual, a capa, como máscara narrativa, vela e revela a personagem que representa: a própria collage. Esse paratexto, de alguma forma, não cria uma máscara de uma personagem qualquer, mas a sua própria máscara, - Olhos de Lempiska (1989) -, como um duplo, outro, uma dobra de si que explicita o próprio conceito e lin- guagem da collage. Dessa forma, a capa do livro, emoldurada em fotografia- -collage, não se apresenta como um traço autobiográfico ou fotobiográfico de alguém, mas como exemplo do próprio assunto tratado. Ela já anuncia, antecipadamente, os traçados paratextuais que se revelam pelos recortes de um corpo/rosto fragmentário e em representação.
  • 30. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 30 Para falar disso, o crítico parte da definição do pintor e artista gráfico Marx Ernst, para quem a collage é a transfiguração de todas as coisas e seres, em busca de um outro significado, para guiar o leitor por uma pesquisa que ele entende como sendo a essência do século XX. A obra questiona, de certa forma, a profundidade e o simbolismo dos atos aparentemente inocentes e superficiais contidos no simples recortar de uma figura de revista. Para tal ati- vidade, Fuão propõe a crítica à fotografia como instauradora de uma maneira diferente de representar e de construir o mundo. Retomando Susan Sontag, eleentendeasfotografiascomocitações,artefatosquepossuemacategoriade objets-trouvés, involuntários fragmentos do mundo (2011, p.13). A collage como trajetória amorosa, de Fernando F. Fuão persegue uma nova ordem para o conceito de collage, revelando-se inovador não só por sua tentativa de (re) discussão das origens desse processo na tradição popular, como também por sua proposta de elucidação de certa retórica dessa arte. Toda essa trajetória reforça uma outra concepção do autor, que resumira, de certo modo suas ideias nesse estudo ensaístico: “ A moderni- dade é collage. O princípio da montagem/desmontagem está impregnado no pensamento moderno” (2011, p. 93). No último capítulo do livro, depois de retratar, anteriormente, todos os procedimentos que envolvem a collage, o professor dedica-se a um breve histórico desse recurso estético, como também suas definições e indefinições. Nesse percurso ele esclarece que o conceito de collage está intimamente relacionado ao surgimento da fotografia no século XIX e não, como muitos historiadores reforçam aos papier colles. Para o crítico, a ori- gem da collage, longe da prática cubista produzida por Braque, Picasso ou Gris, está na tradição popular da manipulação da imagem. A partir daí, essa origem circularia desde os poemas japoneses do século XII, até as séries de criações populares de diários, biombos, cartões, persistindo até hoje, em cadernos, pastas, cartas etc. Éevidentequeofenômenodautilizaçãodefragmentosjáfabricados, não era do domínio exclusivo das artes visuais, afirma o pesquisador. Por isso, retoma-se o conceito de collage nas poesias Dada, de Tristan Tzara, na com- binação de letras e imagem para compor fotogramas, na montagem cinema- tográfica, na pintura, fotografia e escultura. Portanto, assumindo a posição de encontros ou fricções, a collage, para Fuão “é uma imagem desorbitada, põe olhoforadoslimitesdarealidade,davisãonormal.Elaéconjugaçãodeencon- tros, de linguagens em movimento” (2011, p. 68). A Collage como trajetória amorosa é, em muitos sentidos, mais que um livro teórico sobre a collage, um livro de memória visual e criativa desse processo. Por meio de uma nova gramática e uma nova sintaxe visual, o en- saio projeta a collage irradiada sobre a circulação dos diversos fragmentos, dando visibilidade incomum, rara entre nós, ao diálogo intertextual entre o texto e a fotografia. Essa cartografia visual e afetiva, então, desenhada e mapeada por Fuão repercute, para o leitor/espectador, em respostas que se abrem para outras indagações. Até onde pode ir a collage?
  • 31. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 31 DE MINÚSCULOS A ESCOMBROS Abrahão da Costa Andrade Escritor, poeta, Mestre e Doutor em Filosofia (USP). Professor Associado da UFPB A discussão sobre a mímesis como fenômeno artístico e cultural pelo qual se tecem as relações entre a linguagem e a realidade, realidade que é feita de mundo tanto quanto de sujeitos, exige, cedo ou tarde, um en- frentamento difícil, porém necessário, com as questões ontológicas mais básicas. Não se trata, porém, como alguns pensam, de escolher, nessa ta- refa ontológica, entre Kant ou Hegel, entre Heidegger e Lukács, como se isso dependesse de algum estado de ânimo pessoal, ou alguma espécie de predileção. É preciso encarar a coisa mesma, e somente no exame da coisa é que se pode decidir qual filósofo consegue dizê-la de modo adequado. Evidentemente, a coisa mesma não é nada de estranho às nossas realidades cotidianas, e se isso é difícil de perceber em um Kant ou em um Hegel, não é de todo opaco em Heidegger e, em Lukács, é franca e conscientemente tematizado. O mundo que temos de viver é o mundo que vivemos no dia a dia. E nós, esses viventes, somos ao mesmo tempo parte desse mundo e contras- te desse mundo, num movimento dentro do qual o vir a ser do mundo im- plica nosso vir a ser, e o vir a ser de nós mesmos implica uma intervenção no mundo que é, simultaneamente, criação de si. É nas mediações desse confronto entre mundo, cada um e os outros que, tentando abocanhar a realidade, cumprimos o tempo de nossa vida. Mas, o tempo de nossas vi- das é também o tempo de nossas palavras. Os dois últimos livros de Wilbett Oliveira - Minúsculos e Escombros - tecem um percurso no curso do qual essa relação entre a palavra e a vida tenta cingir a coisa do mundo ao mesmo tempo em que lança luz sobre o estar-no-mundo do ser humano contemporâneo. O primeiro desses dois livros, armado como um conjunto de poemas todos iniciados com a ter- ceira pessoa do plural do presente do subjuntivo (modo, como se sabe, predominantemente da dúvida) do verbo ser (“fossem”), parece dialogar com e aprofundar o legado do Coup de dés deixado por Mallarmé, num sentido abertamente complexo, moderno, negativo, como dizia do ve- lho Machado de Assis o nosso Roberto Schwarz. Se Mallarmé explode as palavras para comportar o mundo na sintaxe de uma única frase, Wilbett Oliveira explode a própria sintaxe e, com isso, deixa de fora não só o mun-
  • 32. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 32 do como também todas as aspirações do sujeito e a própria carne deste, a carne e os desejos. O novo livro de Wilbett - Escombros -, em conformidade com ou em decorrência do ato que ele provocou, não recolhe, expõe os escombros caídos como efeito do livro anterior. Quando, de fato, ele escreve “fossem fraturas do sujeito” ou “fossem realidades esmaecidas” e não conclui em canto algum o que aconteceria se assim o fossem, ele aponta para uma situação em que algo, o nada (a morte?), é o que mais espreita. Todavia, mesmo que esse nada seja uma “sombra” é também “feixes luminosos”, conforme um dos poemas desse novo livro. E, no contraste entre ambos, o que se percebe é um grito gris de melancolia que, entrementes, não quer permanecer melancolia, mas, antes, quer resistir ao nada, quer dar cor ao nada, quer atingir, entre os escombros, os restinhos de luz que possam trazer sangue e vida à própria vida. Esses restinhos de luz, no entrelaço de sujeito e mundo, nas cerca- nias do cotidiano, na lavra da palavra, são os próprios poemas que, a seguir, nos é dado ler. Referência OLIVEIRA, Wilbett. Escombros. São Paulo: Opção: 2014.
  • 34. Revista Mosaicum, n. 15, Jan./Jun. 2012 - ISSN 1808-589X 34
  • 35. KANT: JUÍZO DE GOSTO E JUÍZO MORAL KANT’S JUDGMENT OF TASTE AND MORAL JUDGMENT Abrahão Costa Andrade Filósofo, Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Email: abrandrade40@outlook.com Resumo: Trata-se de um estudo do juízo de gosto e do juízo moral a partir do pensamen- to de Kant, tentando articular sua filosofia ao contexto histórico social de sua época. Palavras-chave: Kant; modernidade; filosofia; estética; natureza; moral; juízo. Abstract: This is a study of the judgment of taste and moral judgment from Kant’s thought, trying to articulate his philosophy to the social and historical context of his time. Keywords: Kant; modernity; philosophy; aesthetics; nature; moral; judgment.
  • 36. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 36 Ojuízodegostoseenuncia:“Istoébelo.”Ojuízomoralseformula: “Isto é o que deve ser.” Mas o que vem a ser o belo nisto? “Belo é o que apraz universalmente sem conceito.” (Kant, 1993: 64) O que deve ser? O que deve ser é que em cada ação o sujeito da ação aja “como se” a sua “máxima devesse servir ao mesmo tempo de lei universal” (Kant, 1984: 142). O que uneessesdoisjuízosassimformuladoséaexigênciadeuniversalidade.No- te-se, porém, que, a universalidade (característica primordial do conceito) é, no primeiro, “sem conceito”, ao passo que, no segundo, tem o caráter de “lei” (característica primordial do que é necessário). O que pode, pois, ser uma universalidade sem conceito? A resposta a esta pergunta nos coloca em frente da necessidade de fisgar a Crítica do juízo, de Kant, em sua dupla determinação: como contri- buiçãoaofechamentodosistemakantiano;comocontribuiçãoaosproble- mas da estética moderna. No que diz respeito ao primeiro caso, necessário é recordar o seguinte: o sistema kantiano é, sobretudo, um gigantesco es- forço no sentido de resolver, em termos filosóficos, o problema histórico da modernidade europeia. Isto significa que o problema histórico da moder- nidade, explicitado em termos filosóficos, coloca questões especificamen- te conceituais, mas o tratamento exclusivo dos conceitos não exclui, senão por questão de método, a referência à historicidade do problema. Somente com a atenção duplicada nessas nuances de uma mesma tarefa é que pode- mos, ademais, situar, na Estética moderna, as relações entre juízo de gosto e juízo moral. Quando, pois, Kant diz, nos Prolegômenos, que fora despertado por Hume do sono dogmático, isso aponta para o fato de que Hume sabia o que estava em jogo com o seu ceticismo, e para o fato de que, ao assumir a tarefa de criticar o ceticismo de Hume, Kant tomava a peito uma tarefa que o implicava diretamente no curso dos eventos de sua época. Não há, evidentemente, como explicar essa relação no espaço deste pequeno en- saio. Todavia, vale lembrar que, tendo a Europa, depois de guerras intesti- nas, colocado nas mãos da ciência a tarefa de esboçar um plano para que a humanidade europeia pudesse se conciliar consigo mesma, e sabendo-se que essa conciliação só poderia se dar em Deus e no Estado, o conheci- mento de Deus, em Descartes, e o conhecimento da máquina do poder, emHobbes,passavamparaoprimeiroplanofilosófico.Noquedizrespeito ao Estado, se a meta, que Kant há de estabelecer em seguida, seria uma confederação de Estados, o percurso para essa meta significava a formação préviadoEstado-naçãocomofuturomembrodaquelaconfederação.Toda a filosofia política, desde Hobbes, e mesmo antes, desde Maquiavel, segue na direção de pensar a formação do Estado moderno. No que diz respeito ao conhecimento de Deus, a matéria filosófica em pauta era o problema da causalidade. Deus é a causa do mundo, se conhecemos a causa, conhecere- mos também os seus efeitos, e conhecendo esses efeitos, saberemos dizer qual o fim último do homem. Sabendo-se a que o homem se destina, sa-
  • 37. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 37 be-se também em que direção se pode elevar toda uma comunidade histó- rica. Prestigiosa tarefa, essa, dada à Metafísica, essa ciência de Deus. Nada menos que indicar os caminhos para toda a humanidade (europeia). To- davia, dirá Hume, estragando o otimismo decorrente dessa possibilidade de conhecer pelas causas: esse conhecimento só seria válido se houvesse conexão necessária entre a causa e o efeito. Como todas as nossas ideias são lembrançasfracasdeantigasimpressões,ecomosóconhecemosdascoisas aquilo que apreendemos pelo hábito, nossa ideia de uma conexão neces- sária é mero produto do hábito de termos visto de um ato A decorrer-se uma reação B, mas é o hábito que autoriza essa conclusão, e não uma lei da natureza. Logo, se é a Metafisica que, enquanto ciência, vai resolver nossos problemas morais e políticos, forçoso é observar que, enquanto ciência, ela nada pode fazer, pois a conexão que vemos entre uma causa e um efei- to não tem outra necessidade além daquela assegurada pelo mero hábito. Kant, antigo professor de Metafísica, diante desse fato, será levado a pôr-se radicalmente em questão. (Lebrun, 1993a) Se a Metafísica não tem como ser uma ciência válida, como, então, resolver, em termos filosóficos, nossos problemas morais e políticos? Ao lermos a obra de Kant atentos a essa preocupação moral e po- lítica como fundo histórico sobre o qual se desenvolvem os problemas epistemológicos e conceituais, somos levados a fazer a seguinte questão: qual é, afinal, o problema moral e político em jogo? Dissemos, acima, da necessidade de a Europa conciliar-se consigo mesma. Logo: o problema diz respeito a uma não-conciliação (crise, cisão) prévia. Isso se dá, é ver- dade, tanto entre as nações quanto dentro das nações. Antes da Reforma protestante, para ficarmos apenas com a dimensão intranacional, a luta era entre os camponeses revoltosos e os senhores feudais. Para evitar novos levantes camponeses que, se vitoriosos, levaria ao fim do feudalismo, os senhores feudais, para proteger seus privilégios, foram forçados a criar o Estado (Anderson, 1989). Inútil dizer que, ao fazê-lo, eles plantavam a se- mente de, por outra via, sua posterior aniquilação e desaparecimento: a Revolução francesa, inconcebível sem a crise do Estado feudal. Mas, antes da Revolução, e depois da Reforma, a cisão esteve em voga entre católicos e protestantes; e essa cisão impulsionou também a mesma necessidade de criação e consolidação do Estado moderno. Simplificando um pouco, po- demos dizer que a rixa entre católicos e protestantes, fundamentalmente, eraarixaentreosseguintesprojetosdemundo:deveoindivíduoperder-se na Igreja para alcançar sua salvação, ou deve o indivíduo viver por si só, no mundo,epelotrabalhoárduodescobriremmeioàlabutaasuadestinação? O primeiro projeto, comunitarista, tenderia a manter a tradição da Igreja católica; o segundo, individualista, forçaria uma ruptura com essa tradição e desfraldaria o horizonte do mundo moderno vindouro. Ora, quem diz “comunidade”diz“comunidadenatural”e,porextensão,“natureza”;quem diz “indivíduo” diz “liberdade individual” e, por extensão, diz “liberdade”
  • 38. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 38 pura e simples. A questão que se coloca, então, para Kant, é se não haveria como criar uma passagem da natureza para a liberdade. Isto é, se não pode- ríamos criar um projeto de mundo capaz de apontar para isso que é quase um oximoro: uma comunidade de indivíduos livres. Nosso filósofo tomará as seguintes providências a fim de resolver essa questão: primeiro, proporá uma mudança de método (a revolução co- pernicana); segundo, em decorrência dessa revolução, uma transformação das coisas em conceitos. A revolução copernicana consistirá, basicamente, em deixar quietos os objetos e considerar apenas a capacidade humana a priori de concebê-los e conhecê-los. Uma vez, pois, trazido para a interiori- dade do sujeito a questão que se intentava resolver, passa-se à transforma- ção da coisas sociais (comunidade e indivíduo) aos objetos filosóficos (na- tureza e liberdade), e destes aos conceitos transcendentais (as faculdades humanas): “natureza”, depois da virada copernicana, será “entendimento” ou “razão teórica”; “liberdade”, será “razão” ou, mais precisamente, “razão pura prática”. A cisão vivida na história social é trazida para a subjetividade da interioridade humana; e o que era problema entre dois objetos (comu- nidade e indivíduo; natureza e liberdade) passa a ser problema entre duas faculdades humanas. Como conciliá-las? É claro que essa é a questão de fundo, todavia faz-se necessário, antes de tentar respondê-la, especificar de modo preciso o funcionamen- to de cada uma dessas faculdades, pois somente as conhecendo de perto seremos capazes de divisar o método de sua conciliação. Uma faculdade, sobretudo, é uma fonte de representações. As representações, modos de um sujeito se relacionar com objetos, diferem-se entre si segundo o tipo de referência que se agrega a cada objeto: se é o objeto como fenômeno; se é objeto como o fundamento de sua causalidade (vontade); ou se é o objeto como o próprio sujeito, na autorreflexão. No primeiro caso, a representa- ção é acionada em vista do conhecimento; no segundo, em vista da ação; no terceiro, em vista de auferir o sentimento de prazer ou desprazer. Quanto ao conhecimento do fenômeno, a representação conhece quatro inflexões: ela é, primeiro, representação externa do objeto (há no sujeito uma capacidade que permite a apreensão do objeto como estando no lado de fora do sujeito: é a forma sensível do espaço); segundo, parale- lo ao primeiro, ao representar o objeto como estando fora de si, o sujeito não deixa de representá-lo também como estando em si, enquanto dura a apreensão espacial (é a forma sensível do tempo que surge como capacida- de do sujeito); terceiro, o que fora apreendido no espaço-tempo é “esque- matizado”, ou seja, sem perder seu aspecto de intuição sensível, já não é somentesensação,mastraço,figura,esquema(éaimaginaçãoreprodutora acapacidadesubjetivadeseresponsabilizarporesseprocessodeintelectua- lização do sensível); quarto, uma vez que o dado da intuição pode chegar limpo de (quase) toda sensibilidade ao entendimento, que é dotado ele próprio de representações universais (os conceitos, as categorias), o rela-
  • 39. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 39 cionamento entre aquele dado e essas categorias, no juízo, isto é, na forma daproposição,podeenfimosujeitoenunciarconhecimentosválidos.Con- tudo,avalidadedessesjuízosestaráasseguradaapenasseajunção(síntese) de intuição e conceito, dado e categoria, revelar a fonte de sua unidade, o lugar de sua unificação. Quando escreve que “o eu penso deve poder acom- panhar todas as minhas representações” (Kant, 1994: 131), porém, Kant não apenas aponta para o papel desse eu como fonte a priori da síntese, ou seja, como o que assegura um juízo sintético a priori, mas também marca uma caraterística inolvidável desse mesmo eu incansável que “deve poder acompanhar” todos os evolveres das representações subjetivas. É esse traço ativo do eu penso (que mais tarde atrairia a vocação fi- losófica de Fichte) que Kant, antes de Fichte, vai privilegiar como sendo o fundamento do sujeito: o eu que conhece é razão, mas a razão, no fundo de si, é sobremaneira prática, isto é, liberdade em estado puro. Enquanto observa a si mesma como entendimento que se empenha em lidar com intuições sensíveis esquematizadas, essa razão ativa aprende que só pode- mos conhecer fenômenos de que temos intuição. Como não temos intui- ção alguma de Deus, não podemos, como previra Hume, fazer metafísica de Deus (teologia). Mas, enquanto repara no trabalho do entendimento, bem que essa razão, diligente, gostaria de elevar mais e mais os resultados do entendimento a um nível crescentemente sistemático. Todavia nessa direção o erro é sempre uma cilada fácil e possível. Volta-se, então, a razão para si mesma e já não mais para os conhecimentos do entendimento, e, ao conhecer-se a si mesma como razão pura prática, ela inaugura um tipo outro de saber: a filosofia moral. Nesse caso, ao contrário do entendimento que recebia as representações de fora de si, a razão prática dá a si mesma as suasrepresentações,eestassãorepresentaçõesquedeterminamavontade, vontadeque,dessemodo,apareceaosujeitoqueasimesmoseconhece(ou, mais rigorosamente, se concebe) como uma faculdade específica: a faculda- de-de-desejar. O que deve ser buscado na determinação desta vontade é a lei moral, uma representação a priori. Livre de toda representação sensível, a vontade é livre, a saber, autônoma: dá a si mesma a lei de seu envolver e desenvolver. O juízo moral é fundado nessa faculdade humana de autono- mia, de dar a si mesma a lei de sua conduta. Ao contrário do entendimento, que é o princípio universal da na- tureza, a razão prática é o domínio específico da liberdade. O mesmo “eu penso”, pura atividade, quando acompanha todas as minhas representa- ções, funda a validade do conhecimento teórico; quando, todavia, legisla para sua própria vontade, isto é, dá à vontade a lei universal de sua rea- lização, funda a validade de uma filosofia prática: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”(Kant,1984:129)Age–éoimperativocategórico.Mas,quem age? Um ser humano, e não um ser divino. Isto quer dizer, um ser dotado de uma natureza sensível, de um corpo aplacado por determinações ab-
  • 40. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 40 solutamente sensíveis a desdobrar os sentimentos empíricos de prazer e desprazer. Como, pois, fazer essa natureza sensível obedecer às injunções da lei suprassensível, passar das determinações da sensibilidade para a determinação da lei? Como, no homem, a natureza pode aceder à liber- dade? Como, no homem, conciliar o sensível e o suprassensível? Cá de novo estamos em volta do mesmo problema, o da conciliação. A pergunta que norteará a investigação doravante será: é possível uma forma não sensível de sentimento de prazer e desprazer? Melhor di- zendo: como ainda estamos no interior da revolução copernicana, pode-se dizer que, para Kant, o único modo de conciliar natureza e liberdade, cuja relação é perturbada pelos sentimentos empíricos de prazer e desprazer, é assegurar, no nível das faculdades, um sentimento de prazer e desprazer livres de afetação sensível. Como, pois, seria possível uma forma superior (suprassensível) de sentimento de prazer e desprazer? Este é um dos sen- tidos em que se faz necessária uma crítica da faculdade do juízo. Esta crítica buscaráparaosentimentodeprazeredesprazerumafaculdade(adojuízo) como um seu princípio superior (transcendental). Este princípio, todavia, qualaimaginaçãoreprodutoraqueficaranacharneiraentreoentendimen- to suprassensível e as intuições sensíveis, precisará ficar ele também entre o entendimento como forma universal da natureza e a razão como forma universal da liberdade, e não poderá ter, nem interesse em determinar algo do conhecimento do fenômeno, nem o interesse de determinar algo da lei moral. Não podendo, pois, nada determinar, não fundará por sua conta ne- nhum ramo do saber, nem teórico nem prático no sentido moral do termo. É somente concebendo uma faculdade livre de toda determinação – uma faculdade desinteressada – que se pode esperar uma aproximação, por meio dessa terceira, entre as duas outras faculdades. Ora, é o desinteresse da fa- culdade do juízo que evoca e suscita uma crítica do gosto. Aqui o segundo sentido em que se faz urgente uma Terceira crítica. O juízo de gosto (por motivo óbvio, deixarei de fora o juízo espiritual do sublime e o juízo teleo- lógico), concebido como livre de interesse sensível (o belo não é o agra- dável), candidata-se a mover-se no mesmo gingado da imaginação (antes concebida como meio termo entre o dado sensível e o conceito suprassen- sível): o juízo de gosto é universal e, portanto, é inteligível; porém, é sem conceito e, portanto, particular, sensível. Dito de uma só vez: o gosto, revelado no juízo “Isto é belo”, entrega- -se como o tipo de sentimento que, desinteressado de toda determinação, mostra-se como sentimento suprassensível. Mas, de que modo a afirmação “Isto é belo” não é uma determinação? A resposta a esta pergunta nos con- duz diretamente aos dois escopos da Crítica do juízo: o de complementação do sistema e o de contribuição à teoria estética. Com efeito, o juízo “Isto é belo” não se modula segundo um princípio determinante, mas segundo um princípioregulador.Elenãoéumjuízoquesedebruçasobreoobjetodeque se diz ser belo, mas sobre o sujeito mesmo que, diante do objeto, é levado
  • 41. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 41 a sentir um complexo de relações internas que o leva a ajuizar o objeto que suscitou aquele complexo de relações como belo. O juízo “Isto é belo”, por- tanto, aponta menos para o isto que seja belo que para o sujeito que, diante disto, sentiu uma conformidade interior (o complexo de relações entre suas faculdades) e, refletindo, chegou à conclusão de que sentia a beleza que o isto provocara. O juízo de gosto é reflexionante. Ora, a reflexão só é possível quando guiada por um princípio re- gulador. O que seria um princípio regulador? Seria uma pressuposição transcendental segundo a qual a natureza, mesmo agindo de fato apenas mecanicamente, pode ser concebida como, de direito, movida por uma fi- nalidade. Por que chamar de “transcendental” essa pressuposição? Porque “a natureza parece favorecer um prazer desinteressado, e esta ideia nos re- mete à de um sujeito desligado de todo projeto mundano e preocupado apenas em obedecer ao imperativo categórico que representa ‘uma ação necessáriaporsimesmasemrelaçãocomoutrofim’.”(Lebrun,1993b:106) O juízo de gosto, pois, é procurado pela razão prática desejosa de seques- trar o sujeito mundano de sua pertença ao mundo sensível, ao mesmo tem- po em que o projeta em um mundo de puro sentimento que, embora não entre na determinação da lei, favorece o seu cumprimento. A estética, as- sim, que nunca poderá ser uma ciência do belo, é um laboratório de expe- riências morais, no sentido de que ela cria o ambiente onde a passagem do suprassensível ao sensível corresponde à elevação, pelo gosto, do sensível aosuprassensível.Tudoisso,porém,nadependênciadesepoderconceber osobreditoprincípioregulador,apressuposiçãodeumafinalidadesemfim (determinado) na natureza, como possível a priori. E esta pressuposição é a priori porque ninguém pode tirá-la do ser humano.Se,escreveKant,“nosdissessemqueumconhecimentomaispro- fundo ou mais alargado da natureza através da observação terá que final- mente deparar com uma multiplicidade de leis que nenhum entendimento humano é capaz de reduzir a um princípio, ficaremos mesmo assim satis- feitos.” (Kant, 1993:32) Satisfeitos, isto é, transbordantes do puro senti- mento de prazer decorrente da pressuposição de que, mesmo que não haja um fim último da natureza a que se possa conceber, é belo pensar que tudo nela se encaixa tão bem que, quando nos deparamos com o nexo de suas leis empíricas, particulares, só podemos nos entregar a uma “admiração sem fim”, e a um “prazer digno de nota” (id., ibid.: 31). Como se percebe, o recurso a essa pressuposição de uma conformidade sem fim, que leva Kant a apreciar o juízo de gosto, revela, por parte do filósofo, uma espécie de resistência plástica em relação às conclusões das ciências e, de certo modo, replica o ceticismo de Hume na medida em que aponta para o fato de que, mesmo que a ciência não autorize qualquer passagem da natureza à liber- dade, ainda assim é possível pensá-la sem nenhuma contradição. Neste ponto, o recurso de Kant à Estética o traz também de volta dos altos problemas transcendentais (de fundo e de detalhes) ao problema
  • 42. Revista Mosaicum, n. 19, Jan./Jun. 2014 - ISSN 1808-589X 42 propriamente histórico (moral e político) concreto que, depois de Hume, ele se viu na premência de resolver: aquele da disparidade entre os indiví- duos e o todo social. “É uma pressuposição transcendental subjetivamente necessária”, escreve Kant, “que aquela inquietante disparidade sem limite de leis empíricas e aquela heterogeneidade de formas naturais não convêm à natureza, mas, pelo contrário, que esta, pela afinidade das leis particula- res sob as mais universais, se qualifique a uma experiência, como sistema empírico.” (Kant, 1984a: 175) O que é expresso aqui como “disparidades sem limite” não traduziria em termos filosóficos a experiência sociológica do individualismo? Pelo sim ou pelo não, a posição kantiana a respeito é: “aquela disparidade de formas naturais não convém à natureza”. Preciso é postular certa “afinidade das leis particulares sob as mais universais.” Para quê? A fim de que a afinidade entre os particulares “se qualifique a uma experiência,comosistemaempírico.”Aprópriahistóriadossereshumanos é esse sistema empírico. Trata-se, com efeito, da mesma regra que rege o juízo de gosto e, como estamos antevendo, também o pensamento crítico da história mundial: a regra do fio condutor da natureza (o princípio da insociável sociabilidade). Em que consiste esse princípio? A história é o lugar do exercício da liberdade humana. No entanto, Kant assegura, a natureza dá uma mãozi- nha no curso desse exercício. Dá mesmo? Não importa. O importante é pensar o todo da realidade humana não como um agregado, porém como um sistema, como dissemos acima, um “sistema empírico”. A história se- ria esse sistema na medida em que podemos pressupor um projeto da na- tureza se realizando nas ações livres dos seres humanos. Ora, como dizer que essas ações permanecem, de fato, livres, se elas nada mais seriam que providências da natureza tomadas para realizar seu fim último, o Bem supremo, isto é, a unidade do todo (indivíduo e sociedade; sociedade e Estado; Estado nacional e os outros Estados numa confederação interna- cional em perpétua paz)? Não haveria contradição? Não. Por quê? Por- que Kant não determina que assim o seja, mas reflexiona. “Este conceito de uma conformidade a fins da natureza não é nem um conceito de natu- reza, nem de liberdade, porque não acrescenta nada ao objeto (da natu- reza), mas representa somente a única forma que temos de proceder na reflexão sobre os objetos da natureza com o objetivo de uma experiência exaustivamente interconectada” (Kant, 1993: 28). Como a reflexão acon- tece no ajuizamento, a dimensão subjetiva desse ajuizamento se abre e se deixa ver como dimensão estética, e por “estético” é preciso compreender: público, “pretensos juízos comumente válidos.” (Id., ibid.: 58) Aprendeu- -se a pressupor como um projeto da natureza aquilo que, entrementes, é um projeto do sujeito moral: cada ser humano, ao entrar no movimento da sociedade civil, busca efetivamente realizar seus próprios interesses e, ao fazê-lo, é na tentativa de melhorar de vida que ele o faz. Todavia, outro ser humano está igualmente interessado nesse mesmo fim. O outro pode