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Baixar para ler offline
José Nivaldo Júnior
TUDO PELOS ARES(Amor e cólera em tempos de Lava Jato)
Recife, 2018
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IX.
O matador
identificado

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tudopelosares
Todo esse esforço para recapitular os fatos cuidado-
samente, tentando não deixar de fora nada que pudesse ajudar no
esclarecimento do trágico desfecho, JB fazia por desencargo de
consciência, como se diz. A narrativa dos acontecimentos coloca-
va em cena ingredientes diversificados, era preciso identificar os
fatores determinantes para a tragédia. Porém, desde o primeiro
instante, percebera o óbvio, conclusão que estaria ao alcance de
qualquer criança. O matador era a peça chave para se chegar às
causas e aos mandantes.

Escolado nas práticas do submundo do crime, ele tinha noção
de que dificilmente o sujeito levaria diretamente aos responsáveis.
Como acontecia com ele mesmo, quando convocado para alguma
missão, o cara provavelmente foi contratado por um agenciador
profissional. Logo, não conhecia os mandantes, sequer tinha noção
de quem eram ou quais os seus propósitos. 

Mesmo assim, o matador constituía peça fundamental. Não
pelo que sabia, mas para onde a análise dele e de suas circunstâncias
poderia conduzir. Era como se fosse um objeto importante presente
na cena do crime, ou mesmo um esqueleto com milhares de anos.
Bemexaminado,poderialevaraoesclarecimentodemuitosdetalhes.
Desde que os dois colidiram violentamente na noite dos cri-
mes, na saída do elevador, JB sabia que já tinha visto o rosto do ma-
tador em algum lugar. A reação do fugitivo também apontava na
mesma direção. Restava lembrar de onde. Repassou fatos antigos,
missões que envolveram terceiros, esquadrinhou tudo o que tinha
feito no submundo.

No dia seguinte, tomando um banho quente no inverno es-
pecialmente congelante de Nova Iorque, sentindo a água escorrer
sobre a sua cabeça, teve um estalo de memória. Eureca! Já sei. Só
pode ser ele.

Enxugou-se, agasalhou-se, correu para o Google. A busca não
foi tão fácil e rápida como parece no cinema, demorou um bocado,
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JoséNivaldoJunior
mas finalmente conseguiu localizar o que queria. Notícias sobre
uma fuga espetacular de um grupo de presos, evadidos de um pre-
sídio no interior de São Paulo aproximadamente 16 anos atrás.

Selecionou todo o material que pode encontrar, tratou as fotos
para melhorar a resolução. Sob a manchete Executor de Líder Político
Comanda Fuga Cinematográfica da Prisão, estava a foto que não dei-
xava dúvidas. Era ele.

Bem que dizem: o passado não perdoa. Por mais bem arquiva-
do que seja, sempre volta para assombrar o presente. No caso, um
fantasma, ressuscitado do limbo do esquecimento.

Lembrança puxa lembrança. Aquele foi o primeiro trabalho de
peso executado por JB no que ele próprio considerava os subterrâ-
neos do crime. Providenciar a fuga de um grupo criminoso de um
presídio, em plena luz do dia, sem cavar túneis, sem dominar guar-
das, sem limar grades.

Desde menino, JB se destacava por suas habilidades em geral
e por sua capacidade mental. Era craque em todos os brinquedos,
imbatível na bola de gude, no pião, no futebol, na brincadeira do
triângulo, que era jogada com um ferro pontiagudo atirado rumo a
um ponto no chão, os mais antigos devem lembrar. Mais tarde, no
pingue-pongue, na sinuca, no bilhar, no pôquer.

Ao mesmo tempo em que sabia ser bom, memória privilegia-
da, insuperável em matemática e raciocínio, gostava de ser discre-
to. Errava questões de propósito nas provas para não ser primeiro
de classe. Deixava-se ser derrotado nas finais das competições para
não chamar mais atenção. Fazia questão de ser reconhecido como
bom, mas fugia da posição de melhor.

Não conheceu os pais. Foi criado por uma tia solteira, pro-
fessora, que morava numa cidade de porte médio do interior de
Pernambuco.Frequentouboasescolaslocais,eraqueridoportodos.

O circo constituía um dos seus fascínios. Quando um deles
chegava ao local, logo se enturmava, fazia-se útil na operação de
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tudopelosares
equipamentos. Ficava por lá a maior parte do tempo. Assistia aos
ensaios, aprendia os fundamentos de malabarismos com os artis-
tas, nos meses seguintes ficava treinando sozinho.

Certa vez, ouviu de um mágico no picadeiro uma frase que lhe
marcou profundamente. A mão é mais rápida que os olhos. Colou
no ilusionista, logo era seu ajudante no palco. O deslocamento do
circo coincidiu com as férias escolares do fim de ano, pediu a bên-
ção à tia, seguiu alguns meses com a trupe. Ao retornar, dominava
o segredo das caixas que eram trespassadas por espadas sem ferir
quem se encontrava no interior, sabia como partir ao meio provo-
cantes mulheres ou fazer um ovo sumir e reaparecer na bolsa de
uma espectadora qualquer.

Quando foi estudar no Recife, passou a trabalhar para ganhar
a vida. A tia, a essas alturas aposentada e doente, precisava da pen-
são para cuidar de si própria. Tentava ajudar no que podia, mas
era insuficiente para bancar as despesas do sobrinho na capital.
Registre-se que JB, quando se deu bem na vida, mandou buscar a
anciã para morar com ele, garantiu a ela dignidade e conforto até o
fim dos seus dias.

No meio tempo, atuou como marceneiro, encanador, me-
cânico, não enjeitava serviço. Logo passou a trabalhar em lojas,
depois escritórios, quando entrou na  universidade para cursar
Administração de Empresas já tinha um emprego bem razoável.

Suas habilidades e espírito criativo não passavam despercebi-
dos. Os colegas o chamavam de MacGyver, personagem popular na
televisão naquele tempo, que tinha como característica a capacida-
de de improvisar para resolver os maiores problemas. Felizmente
a brincadeira ficou restrita ao círculo da faculdade, mas, até ago-
ra, não era raro algum ex-colega o chamar pelo apelido. Na vida
real, JB não se inspirava no personagem televisivo. Pelo contrário.
Priorizava as estratégias e a informação. Um dos seus lemas prefe-
ridos era planejar sempre, improvisar só quando necessário.

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86.
JoséNivaldoJunior
Concluiu o curso, entrou no mercado, trabalhou em grandes
empresas, passou a circular por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília.
Simpatizava na época com teses políticas da esquerda, tornou-se
amigo de importantes sindicalistas, passou a conhecer gente do
poder. Começou a atuar como lobista, ainda timidamente, mas de-
terminado a seguir em frente.

Sua carreira paralela no mundo das sombras começou por um
mero acaso, nunca estivera nos seus planos tornar-se criminoso.
Ser lobista, embora a profissão não esteja até agora legalizada e dis-
ciplinada no Brasil, é uma coisa. Ninguém tem culpa do atraso e do
farisaísmo da legislação. Praticar delitos na clandestinidade é algo
muito diferente.

O acaso tem um grande peso na vida de cada um. Acontece que
alguém falhou em uma operação muito difícil e colocou em risco
um grande projeto de poder. Era preciso uma pessoa de absoluta
confiança, muito hábil e eficiente para coordenar, de fora, uma
fuga cercada de altíssimo risco. 

Certa noite, foi procurado por um amigo, ligado à igreja e à
luta sindical, com um pedido desesperado de ajuda. O visitante era
figura de referência no meio político por sua seriedade e correção.
Ostentava um histórico irretocável na defesa dos direitos huma-
nos, desde os ásperos tempos da ditadura. Era a última pessoa que
imaginaria convocá-lo para uma ação criminosa.

Oamigonarrouocasocomfranqueza.Expôsospróseosriscos.
Colocou a solução em suas mãos. Falou que nem ele nem o núcleo
duro do seu partido conheciam alguém mais habilitado e confiável
para encaminhar a solução para aquela situação desesperadora. Ele
era o cara talhado para a missão. Da sua colaboração e do seu suces-
so, dependeria a viabilidade de um gigantesco projeto de poder.

A questão realmente era bem complicada. Líderes políticos re-
gionais, figuras importantes ligadas ao tal projeto de poder come-
çaram a morrer em série. Foram sequestros e assassinatos violentos
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tudopelosares
e cruéis, cadáveres queimados vivos em supostos acidentes de trân-
sito ou torturados até a morte com requintes de perversidade. Era
como se alguém estivesse mandando recados para alguém. Quem
para quem? Até hoje não foi elucidado.

Algumas ações dessa sequência foram desastradas. Certo po-
lítico conhecido e respeitado chegou a ser sequestrado no meio da
rua, um amigo próximo praticamente o entregou aos bandidos.
Foi, quase com certeza, um caso de conivência com a emboscada,
quanto a isso poucos acalentavam dúvidas.

Câmeras de segurança registraram tudo. Juntando A mais B,
logo a polícia capturou parte do grupo criminoso, não havia ques-
tionamentos acerca da autoria. Detalhes da motivação é que não
foram imediatamente esclarecidos, as mais extravagantes versões
pipocaram de todos os lados. Até hoje, repita-se, tudo permanece
nebuloso. Graças, em grande parte, ao sucesso da empreitada de
JB, como também a outras providências adotadas posteriormente.

O amigo deixou claro que nem ele nem seus companheiros,
muito menos o comandante supremo, tiveram qualquer ligação
com os assassinatos. Sequer sabiam de algo. Tratava-se de iniciati-
va de facções criminosas infiltradas no partido, operando em causa
própria. Entretanto, no grupo preso, havia pessoas que sabiam de-
mais, eram detentoras de informações e documentos com poten-
cial para, naquele momento, implodir o projeto.

Ainda pior. O irmão do matador preso, também envolvido na
conspiração, conseguiu escapar. Era o chefe, secretário e cérebro
da organização criminosa. Sabia de tudo, tinha em mão documen-
tos incriminadores e estava vendendo caro o seu silêncio. O preço,
para começar, era a libertação do grupo e sua condução em segu-
rança até determinada cidade no interior da Bahia. A quadrilha já
tinha providenciado refúgio seguro para todos. 

Garantiam, mediante também uma vultosa quantia em di-
nheiro, que iam virar fazendeiros, largar a vida de crimes, nunca
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JoséNivaldoJunior
mais botariam os pés em São Paulo. Claro que não se pode confiar
na palavra de bandidos daquele quilate, mas no momento não res-
tava outro caminho, tinham que atender as exigências.

O planejamento original, o que não deu certo, era simples e
parecia eficiente. Com armamento infiltrado na prisão por guardas
subornados, o grupo aproveitaria o dia de visitas e dominaria os
guardas da portaria. Fariam mulheres e crianças como reféns, sai-
riam do presídio e fugiriam em 3 carros espaçosos e iguais. Poucos
quilômetros adiante, soltariam os últimos reféns, iriam todos para
um carro só, os outros dois automóveis tomariam rumos diferentes
para despistar. Mais adiante, quando o veículo transportando os
fugitivos estivesse longe, um dos carros de despiste seria incendia-
do e o outro atirado numa represa.

O plano, porém, deu errado. Os agentes encarregados de infil-
trar as armas no presídio não cumpriram o acordo. Para complicar,
alguém vazou detalhes do que estava arquitetado, a inteligência da
Secretaria de Segurança do Estado ficou sabendo. Evitar a fuga do
bando virou questão de honra. Sem falar no interesse político en-
volvido na provável divulgação das informações confidenciais. O
companheiro encarregado da missão desapareceu. Eles ficaram,
como se diz, no mato sem cachorro.

O pior é que o tempo determinado pela quadrilha estava se
esgotando. Eles já tinham iniciado negociações com a oposição, o
dossiê devastador estava pronto. Ele próprio tinha recebido uma
amostra dos documentos explosivos. Não se tratava de ameaça vã.
Em ano eleitoral, aqueles papéis na imprensa destruiriam qualquer
candidato. Muita coisa estava em jogo. Dispunham de mais três ou
quatro dias, e olhe lá. 

O amigo repassou tudo o que a cúpula partidária já tinha re-
unido de informações. Descreveu sucintamente a rotina cheia de
restrições cumprida pelos integrantes do bando no presídio. E
adiantou uma planta geral e fotografias das instalações 

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tudopelosares
JB pediu um prazo para pensar, o amigo ficou de voltar em
duas horas, o tempo urgia.
Quando retornou, ouviu mais algumas
perguntas, forneceu as importantes respostas: tinha como se co-
municar diariamente com os prisioneiros, um advogado militante,
comprometido com a causa, passaria no dia seguinte as informa-
ções necessárias; o esquema para abrigar os fugitivos e levá-los ao
destino final estava preservado, se fossem tirados da prisão e entre-
gues em lugar seguro, o resto era com eles. E o principal: dinheiro
não era problema.

JB foi incisivo. Pode marcar para depois de amanhã na hora do
banho de sol, avise ao chefe deles que o seu irmão e os outros ligam
para dizer que estão livres em 48 horas. E detalhou as instruções, o
plano era ousado e viável, o amigo estava boquiaberto.

Nessa conversa, JB fez um pouco de promoção pessoal. Ele na
verdade estava cheio de dúvidas, mas não adiantava compartilhá-
-las. Aprendeu no circo que se um trapezista tem receio ao executar
determinado salto, não pode transmitir a insegurança aos parcei-
ros. Em certas circunstâncias, vacilar é fracassar, fingir pode ser a
garantia do sucesso.

No dia e na hora combinados, os integrantes da quadrilha es-
tavam no seu período de banho de sol, porém separado dos demais.
Para impedir qualquer possibilidade de acesso aos portões, o grupo
ficava agrupado no meio do pátio. JB usou os princípios da arte da
guerra: descobrir e explorar as fraquezas do inimigo quando e onde
ele pensa que está mais forte.

Tudo aconteceu conforme o programado. Surpreendendo a vi-
gilância, um helicóptero invadiu inesperadamente o espaço aéreo
do presídio e desceu exatamente no meio do pátio. Tudo foi muito
rápido. Portas abertas, o grupo entrou imediatamente na aeronave.
Os demais presos ficaram desorientados, os guardas boquiabertos
e atônitos, não conseguiram disparar um tiro sequer.

Cerca de 15 minutos depois, o helicóptero descia no ponto pre-
determinado. JB em pessoa estava no local para ter certeza de que
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90.
JoséNivaldoJunior
tudo transcorreria de acordo com o esquema traçado. Recebeu os
prisioneiros um a um e os encaminhou à van preta, que daria se-
quência à fuga espetacular. Cumprimentou a todos e entregou ao
líder do grupo um pacote de dinheiro e um telefone celular, para
que pudesse se comunicar com o irmão, quando estivesse em segu-
rança. Ficaram se entreolhando durante alguns segundos, o sufi-
ciente para JB guardar a imagem do homem na memória. Apertou
sua mão, desejou boa sorte. E só voltou a encontrar com ele na re-
cente trombada na saída do elevador.

Algumas horas depois de encaminhar os fugitivos, recebeu
o amigo em casa. Um abraço emocionado selou o sucesso da ope-
ração. Ouviu agradecimentos calorosos, tudo tinha dado certo, os
caras estavam em segurança. Os riscos foram removidos. E veio a
pergunta inevitável: Quanto lhe devemos? Nada, foi a resposta sur-
preendente. É a minha colaboração para o êxito do projeto.


Essa frase foi o maior investimento da sua vida. Nos anos se-
guintes, aboletado em uma das salas de maior prestígio do País, o
amigo retribuiu muitas vezes o favor. Estamos aqui por sua causa, dizia
apontando para a Esplanada dos Ministérios quando estavam a sós.

AcarreiradeJBprosperouemprogressãogeométrica.Recebeu
indicações enfáticas dirigidas ao alto comando de empresas impor-
tantes e em grande expansão, graças a generosos financiamentos
governamentais. Esse apadrinhamento abriu portas. Sua eficiência
rendeu bons negócios. Tudo parecia um tranquilo conto de fadas.

Contudo, como dizem os economistas, não existe almoço grá-
tis. Claro que retribuía os favores através de doações eleitorais ou,
aqui acolá, quebrando um galho financeiro do partido ou de algum
companheiro de causa. Porém, ele próprio sabia que era pouco. A
conta mais salgada estava por vir.
Um dia, foi convidado para um cafezinho no gabinete do ami-
go. Após algumas trivialidades, esse fez ar de mistério e disse, fa-
lando baixo, após aumentar o som do aparelho de TV: Estamos preci-
sando novamente de seus talentos.
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tudopelosares
Diante do olhar espantado do amigo, prosseguiu: Você está
acompanhando os acontecimentos, vivemos uma crise sem precedentes. E
temos uma missão a cumprir, tão ou mais importante que aquela outra. Só
que, agora, eu sequer posso tratar com você, como da outra vez. Virei uma
ilha, cercado de grampos por todos os lados. 
Colocou discretamente um celular no bolso do outro e deter-
minou em tom que não admitia contestações: Vá para um lugar segu-
ro e ligue para esse número em meia hora. Você vai conhecer alguém, siga
cegamente as instruções dele, confie como se fosse eu.

Foi assim que JB conheceu o Máscara de Ferro.
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X.
Detalhes
escondem
segredos

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tudopelosares
As férias nos Estados Unidos prosseguiam, era hora de
mudar de ares. Durante as quase 6 horas do voo de Nova Iorque
para Las Vegas, JB se deparou com uma espécie de conflito mental:
queria se concentrar em reflexões que lançassem luz sobre a figu-
ra do matador, porém as lembranças o remetiam insistentemente
ao Máscara de Ferro. Recordava o primeiro encontro, provocado
pelo amigo que trabalhava no Palácio. Foi há mais de dez anos,
em Brasília. Depois de telefonar, seguindo a orientação recebida,
dirigiu-se ao estacionamento de determinado flat em Brasília.
Tomou o elevador no subsolo e subiu até à espaçosa unidade, com
quarto e sala de estar, onde o personagem o recebeu cordialmen-
te. Seja bem-vindo, você chega muito bem recomendado, comentou.
OMáscaraofascinoudesdeaquelaprimeiravez.Eraatraídopor
ele como o imã chama o ferro. A figura parecia incapaz de rir. Porém,
na conversa, tinha um certo jeito de falar e olhar que envolvia o inter-
locutor.Apesardosmodosrudesedolinguajarchulo,eraumhomem
culto, talvez mesmo de gostos refinados. A grosseria talvez fizesse
parte apenas do personagem, não necessariamente do homem.

A tarefa a cumprir, como sempre ocorreria na relação que de-
senvolveram a partir de então, não era nada fácil. A República es-
tava abalada por um escândalo de grandes proporções, envolvendo
parlamentares e integrantes dos mais altos escalões do governo.
Gente muito próxima ao presidente já estava irremediavelmente
enredada na complexa teia de aranha que envolvia o caso. Ministros
caíam como uma fileira de dominó. Mandatos eram cassados no
Congresso em grande quantidade. Ninguém que entrou na linha
de tiro conseguiu se safar. Agora, tratava-se simplesmente de sal-
var o chefe supremo.

JB, por mais que estivesse a par dos métodos utilizados pelo
governo para se viabilizar e conquistar aliados, não conteve a sur-
presa. Puta que pariu, o homem está dentro disso também, eu não acredi-
to. E ficou paralisado durante alguns instantes. Até que o Máscara
quebrou a sua letargia com uma frase grosseira, adequada mesmo
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94.
JoséNivaldoJunior
a um protagonista dos esgotos da sociedade: Acorda, meu filho, vai
ficar quanto tempo parado aí com essa cara de cu?

Não gostou da expressão. Cara de cu, logo ele? Aquele trata-
mento se entranhou na sua memória. Permaneceu ainda inerte, até
que o outro repetiu, balançando o seu braço: Acorda, cara de cu, temos
muito trabalho a fazer.

JB sacudiu a cabeça como que realmente despertando e voltou
à sintonia do papo. Na sequência, conversaram bastante. É a primei-
ra vez que vamos trabalhar juntos, precisamos afinar as ideias. No futuro
a gente passa a tocar de ouvido. Agora, você precisa saber como a banda
toca, falou o Máscara. 

Em seguida, pacientemente e de forma didática, explanou os
seus métodos: o que esperava dos colaboradores; como entrariam
em contato; parâmetros de remuneração, variáveis conforme a im-
portância, o grau de dificuldade, o tempo da missão. Definiu o seu
próprio papel, que era o de levantar informações e definir o objeti-
vo, além de coordenar as providências de retaguarda. Todo o pla-
nejamento tático, a responsabilidade pela execução das tarefas era
dos operadores, que gozavam de total autonomia para isso. Enfim,
alinhou aqueles procedimentos que já acompanhamos postos em
prática, em capítulos anteriores.

Para evitar que a esposa puxasse assunto, JB ficou horas con-
templando a paisagem mutante através da janela do avião. À me-
dida que a aeronave avançava no seu percurso, JB ruminava as
reminiscências daquela primeira missão sob a coordenação do
misterioso personagem. A tarefa consistia simplesmente em fazer
sumir do Universo a prova material e objetiva que ligava o presi-
dente direta e pessoalmente ao escândalo que corroía o governo e
dizimava parte dos seus escudeiros e aliados. 
A responsabilidade política do mandatário, revelada até então,
era inquestionável. Seria julgada nas urnas. Porém não estava su-
jeita a qualquer ação penal ou processo de impeachment. Uma pro-
va irrefutável, uma só que fosse, poria tudo a perder. E essa prova
existia. Um tanto forçada, obtida através da mais pura canalhice.
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tudopelosares
Entretanto, uma vez divulgada, a versão prevaleceria sobre o fato,
seria um Deus nos acuda. 


A prova existente não foi alcançada espontaneamente, e sim
através de artimanhas e jogo sujo. Certo governador, integrante
de partido formalmente de oposição, avisou ao presidente, duran-
te audiência protocolar, sobre o esquema de corrupção em curso.
Detalhou todo o processo, que já era do conhecimento de muitos.
Pensava com o alerta em ganhar pontos com o adversário, ficar bem
na fita. Contudo, sua denúncia não foi acolhida. Pelo contrário, ao
invés de agradecimentos, teve que escutar impropérios. Ficou in-
dignado. E resolveu aprontar.
No próximo encontro privado, montou a armadilha. Levou um
minúsculo aparelho de gravação importado de Israel, e voltou ao
assunto como se estivesse insistindo para ajudar. O presidente se
mostrou ainda mais irritado. E disse algo como: Não vem me encher
o saco com essa conversa novamente, porra. Você sabe como funciona o sis-
tema, sem dinheiro esses filhos da puta paralisam meu governo. Ou a gente
compra esses picaretas ou nada anda nesse Congresso de merda.
E foi adiante: Você acha que eu sou imbecil para não saber o que
acontece no gabinete ao lado do meu? Você acha que qualquer um desses
porras aí – e fez um gesto como se abrangesse todo o governo –
tem autonomia e coragem pra fazer um negócio desses pelas minhas costas?
Autorizei, mandei fazer, quem não gostar vá se queixar ao papa. E ainda
completou, agora em tom de completo deboche: Já que o senhor é tão
metido a santo, não quer sujar suas mãozinhas delicadas na merda do meu
governo corrupto, daqui o senhor não leva mais um tostão. Passe bem.
A gravação ficou de ótima qualidade. O governador reuniu-se
com a cúpula do partido, a divulgação derrubaria de vez o governo
que já andava bambo das pernas. Mas os líderes da oposição se divi-
diram quanto a melhor ocasião para veicular o bombástico material.

Uns queriam divulgar logo a fita, detonar tudo. Outros pon-
deravam que era melhor deixar o governo sangrando, na próxima
campanha soltariam a fita, a reeleição iria para o brejo. Em defesa
do presidente, repita-se que, quando ele falou no seu governo como
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96.
JoséNivaldoJunior
corrupto, utilizou um tom de ironia com a situação. Não pretendia
revelar nem assumir nenhuma culpa perante o adversário. Pretendia
caricaturar a situação. Ou seja, estava querendo dizer o contrário das
palavras pronunciadas. Mas como explicar isso depois de divulgado?

O uso da ironia traz embutidos esses perigos. Depois de trans-
critas, frases que não deixam dúvidas em função do tom e da ên-
fase verbal, tomam um sentido completamente diverso. Forças de
expressão gravadas, editadas e difundidas fora do contexto origi-
nal frequentemente manifestam algo completamente diverso da
intenção de quem falou. Ninguém, nem o mais puro dos mortais,
resiste à divulgação de conversas fora do contexto. De um jeito ou
de outro, a fita faria um estrago irremediável. Era, como se diz, o
batom na cueca.

Enquanto a cúpula não decidia pela disseminação imediata ou
posterior da gravação, um mandatário acima de qualquer suspeita
ficou com a sua guarda. O Máscara descobriu que estava guardada
no próprio apartamento do líder. Protegida em cofre convencional,
de parede, misturado a euros e dólares, bem mais que um punhado,
além de alguns documentos importantes.

JB planejou tudo minuciosamente. Aproveitou o final da se-
mana, quando o casal visitava os netos. Provocou um curto circui-
to no prédio, se apresentou como eletricista em companhia de um
especialista em abrir cofres, também devidamente caracterizado.
Invadiu o apartamento. Incinerou a gravação no próprio local.
Já que o material gravado envolvia ironia, resolveu fazer a sua.
Depositou as cinzas no cofre que, de propósito, deixou aberto. Não
tocou e sequer olhou para o conteúdo dos outros papéis. Uma regra
pétrea imposta pelo Máscara a seus operadores era que deviam se
concentrar na missão, fora do objetivo, nada interessava. 

O procedimento que adotou garantia que sequer uma quei-
xa seria prestada. Um homem de moral ilibada iria chamar a polí-
cia para periciar um cofre recheado de irregularidades e inconve-
niências? O assunto morreu por ali. Sem a prova da gravação, não
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houve a denúncia. O presidente recuperou-se, conseguiu a reeleição.
A História seguiu o seu curso. Ninguém falou mais nessa fita.

Nos anos seguintes, apesar da discrição e do laconismo do
Máscara, JB acabou, de um modo ou de outro, sabendo de muitos
detalhes sobre a sua vida misteriosa. Uma conversa casual muitas
vezes revela detalhes muito além do que pretendia o interlocutor.
Assim, JB ficou conhecendo o personagem mais do que seria con-
veniente. O Máscara mantinha a mãe bem velhinha e uma irmã que
cuidava dela morando em típica residência suburbana, no Rio de
Janeiro. E as visitava pelo menos uma vez por mês. Nunca abordou
com ele o assunto sexo, era como se o tema não existisse. 
Certavez,deixoutransparecerqueeratambémumescritorfrus-
trado. Na realidade, tempos atrás, sob pseudônimo, publicou um ro-
mance, não vendeu nem 50 exemplares. Mas não desistira, anotava
fatos e expressões curiosas para usar futuramente em uma obra que,
segundo imaginava, consagraria o seu talento reprimido. E o mais re-
levante para o andamento da história: era viciado em jogo de cartas.

JB não conhecia detalhes. Porém o Máscara frequentava cas-
sinos ilegais, onde era conhecido pelo apelido de Monstro e habi-
tualmente depenado. O vício é triste, destrói qualquer um. Por isso,
apesar de ganhar vultosas quantias nos trabalhos que realizava,
vivia em permanente estado de necessidade. Principalmente nos
últimos tempos. 
Quem o contratava no governo federal já estava longe do po-
der. Os seus grandes clientes tradicionais atravessavam notórias
dificuldades. Boa parte aderiu à delação premiada, os seus présti-
mos deixaram de ser necessários. Com os trabalhos mais esparsos,
o que contrariava a sua expectativa inicial, os cachês passaram a
ser negociados e espremidos, coisa que antes era impensável. JB,
que tinha outras fontes de renda, sentiu menos a diferença. Para o
Máscara, a queda das demandas foi fatal. Suas dívidas de jogo au-
mentaram para patamares astronômicos. Os credores pressiona-
vam pelo pagamento, restringiam o crédito, estava difícil manter o
seu dispendioso modelo de vida.
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JoséNivaldoJunior
Esse detalhe não era sabido por ninguém, fora do circuito do
carteado. Dívida de jogo, foi dito lá atrás, é sagrada, ninguém tem
imunidade com relação a elas. Nem mesmo o legendário Máscara
de Ferro, ou o Monstro, como queiram. Realmente, passava por um
enorme e inédito sufoco financeiro, circunstância, repetimos, in-
teiramente desconhecida fora do reservado círculo da jogatina.
Instalado em Las Vegas, a família se distraindo no maior e
mais brega parque de diversões do mundo, JB sentiu que sozinho,
trabalhando suas próprias reminiscências, não avançaria muito
mais. O método de recompor os acontecimentos serviu para que
tomasse consciência das variáveis, apontou caminhos, mas não le-
varia a conclusões. Era preciso reforço. E decidiu ampliar o campo
de informações, acessando arquivos e noticiários sobre o caso e pe-
dindo ajuda.

Começou revisando o noticiário. Leu quase tudo o que a mídia
publicou sobre o caso das mortes no réveillon. A repercussão, como
previsto, foi grande. Saiu nos principais telejornais da televisão,
ocupou manchetes, gerou artigos e debates sobre a violência contra
a mulher. Isso por alguns dias, depois o assunto foi sendo deixado
de lado. Na imprensa de Pernambuco, como é natural, o drama ren-
deu durante um período maior. A família de Elisa, chocada, recebeu
muitas manifestações de carinho, o velório seguido de cremação,
provocou um engarrafamento colossal. Porém a existência segue o
seu curso inexorável. Depois da missa de sétimo dia, as referências
foram escasseando, o tema desapareceu das redes sociais. Quando
chegou a vez da missa de 30º dia, na capela da família, apenas os
mais próximos compareceram. É a vida.
A polícia, que, seguindo a praxe,  não deveria descartar ne-
nhuma linha de investigação, dessa vez não aparentou dúvidas. As
abordagens da mídia abrangiam outras hipóteses de modo apenas
protocolar. O núcleo do noticiário era o crime passional.
Uma ou
outra voz, isolada, especulava pontualmente fora desse roteiro.
Nas redes sociais a coisa rolou mais quente. Pessoas que não
gostavam do governo soltavam farpas capciosas e especulações
Miolo Tudo pelos ares-.indd 98 06/04/2018 16:42:25
. 99
tudopelosares
sem fundamento, tentando de alguma forma jogar os mortos no
colo do poder estadual de Pernambuco. Não funcionou. Pelo con-
trário, apesar do clima generalizado de intolerância, a morte ainda
é o melhor detergente que existe. Todos se compadecem, quem ten-
tou tirar proveito político do episódio acabou ouvindo muito mais
reprimendas do que manifestações de apoio. Bem diziam os anti-
gos, morto não tem defeito.

Devidamente informado, JB telefonou para alguns amigos,
tanto do Recife como do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, a título
de saber das novidades. Ouviu várias alusões espontâneas ao caso,
que nada acrescentaram. Eram conversas mais adjetivas do que
substantivas. Uma coisa chocante, muito triste, quem diria, tão moça, lin-
da e rica. Quem com porcos se mistura, come farelo com eles, eu bem que
disse que aquele cafajeste ia acabar com a vida dela. Lamentos genéricos
desse tipo, ninguém se aprofundou nos detalhes. 
Muito menos fez
qualquer alusão ao seu nome.
Ligou em seguida para o amigo detetive de São Paulo, a quem
antes pedira para acompanhar as investigações. Ouviu a mensa-
gem otimista. O caso está praticamente encerrado, amigo, foi assassinato
seguido de suicídio, somente um investigador ficou tentando empentelhar,
mandaram ele se aquietar. Relaxa, aproveita tuas férias.
Foi o que JB fez, embora todo dia desse uma espiada no no-
ticiário para ficar a par dos acontecimentos. Quando leu sobre a
condenação de Lula, não evitou uma piada para si próprio. Não fez
como o outro, não me chamou, deu nisso. Eu, entrando lá atrás para resol-
ver esse imbróglio, transformava o tal triplex numa barraca de camping.
E foi gastar uns dólares nos cassinos apenas para passar o tempo.
Tinha aprendido a lição da tia, que frequentemente lhe orientava:
Meu filho, teime, mas não aposte.

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  • 1. José Nivaldo Júnior TUDO PELOS ARES(Amor e cólera em tempos de Lava Jato) Recife, 2018 Miolo Tudo pelos ares-.indd 3 06/04/2018 16:42:22
  • 2. IX. O matador identificado
 Miolo Tudo pelos ares-.indd 82 06/04/2018 16:42:24
  • 3. . 83 tudopelosares Todo esse esforço para recapitular os fatos cuidado- samente, tentando não deixar de fora nada que pudesse ajudar no esclarecimento do trágico desfecho, JB fazia por desencargo de consciência, como se diz. A narrativa dos acontecimentos coloca- va em cena ingredientes diversificados, era preciso identificar os fatores determinantes para a tragédia. Porém, desde o primeiro instante, percebera o óbvio, conclusão que estaria ao alcance de qualquer criança. O matador era a peça chave para se chegar às causas e aos mandantes.
 Escolado nas práticas do submundo do crime, ele tinha noção de que dificilmente o sujeito levaria diretamente aos responsáveis. Como acontecia com ele mesmo, quando convocado para alguma missão, o cara provavelmente foi contratado por um agenciador profissional. Logo, não conhecia os mandantes, sequer tinha noção de quem eram ou quais os seus propósitos. 
 Mesmo assim, o matador constituía peça fundamental. Não pelo que sabia, mas para onde a análise dele e de suas circunstâncias poderia conduzir. Era como se fosse um objeto importante presente na cena do crime, ou mesmo um esqueleto com milhares de anos. Bemexaminado,poderialevaraoesclarecimentodemuitosdetalhes. Desde que os dois colidiram violentamente na noite dos cri- mes, na saída do elevador, JB sabia que já tinha visto o rosto do ma- tador em algum lugar. A reação do fugitivo também apontava na mesma direção. Restava lembrar de onde. Repassou fatos antigos, missões que envolveram terceiros, esquadrinhou tudo o que tinha feito no submundo.
 No dia seguinte, tomando um banho quente no inverno es- pecialmente congelante de Nova Iorque, sentindo a água escorrer sobre a sua cabeça, teve um estalo de memória. Eureca! Já sei. Só pode ser ele.
 Enxugou-se, agasalhou-se, correu para o Google. A busca não foi tão fácil e rápida como parece no cinema, demorou um bocado, Miolo Tudo pelos ares-.indd 83 06/04/2018 16:42:24
  • 4. 84. JoséNivaldoJunior mas finalmente conseguiu localizar o que queria. Notícias sobre uma fuga espetacular de um grupo de presos, evadidos de um pre- sídio no interior de São Paulo aproximadamente 16 anos atrás.
 Selecionou todo o material que pode encontrar, tratou as fotos para melhorar a resolução. Sob a manchete Executor de Líder Político Comanda Fuga Cinematográfica da Prisão, estava a foto que não dei- xava dúvidas. Era ele.
 Bem que dizem: o passado não perdoa. Por mais bem arquiva- do que seja, sempre volta para assombrar o presente. No caso, um fantasma, ressuscitado do limbo do esquecimento.
 Lembrança puxa lembrança. Aquele foi o primeiro trabalho de peso executado por JB no que ele próprio considerava os subterrâ- neos do crime. Providenciar a fuga de um grupo criminoso de um presídio, em plena luz do dia, sem cavar túneis, sem dominar guar- das, sem limar grades.
 Desde menino, JB se destacava por suas habilidades em geral e por sua capacidade mental. Era craque em todos os brinquedos, imbatível na bola de gude, no pião, no futebol, na brincadeira do triângulo, que era jogada com um ferro pontiagudo atirado rumo a um ponto no chão, os mais antigos devem lembrar. Mais tarde, no pingue-pongue, na sinuca, no bilhar, no pôquer.
 Ao mesmo tempo em que sabia ser bom, memória privilegia- da, insuperável em matemática e raciocínio, gostava de ser discre- to. Errava questões de propósito nas provas para não ser primeiro de classe. Deixava-se ser derrotado nas finais das competições para não chamar mais atenção. Fazia questão de ser reconhecido como bom, mas fugia da posição de melhor.
 Não conheceu os pais. Foi criado por uma tia solteira, pro- fessora, que morava numa cidade de porte médio do interior de Pernambuco.Frequentouboasescolaslocais,eraqueridoportodos.
 O circo constituía um dos seus fascínios. Quando um deles chegava ao local, logo se enturmava, fazia-se útil na operação de Miolo Tudo pelos ares-.indd 84 06/04/2018 16:42:24
  • 5. . 85 tudopelosares equipamentos. Ficava por lá a maior parte do tempo. Assistia aos ensaios, aprendia os fundamentos de malabarismos com os artis- tas, nos meses seguintes ficava treinando sozinho.
 Certa vez, ouviu de um mágico no picadeiro uma frase que lhe marcou profundamente. A mão é mais rápida que os olhos. Colou no ilusionista, logo era seu ajudante no palco. O deslocamento do circo coincidiu com as férias escolares do fim de ano, pediu a bên- ção à tia, seguiu alguns meses com a trupe. Ao retornar, dominava o segredo das caixas que eram trespassadas por espadas sem ferir quem se encontrava no interior, sabia como partir ao meio provo- cantes mulheres ou fazer um ovo sumir e reaparecer na bolsa de uma espectadora qualquer.
 Quando foi estudar no Recife, passou a trabalhar para ganhar a vida. A tia, a essas alturas aposentada e doente, precisava da pen- são para cuidar de si própria. Tentava ajudar no que podia, mas era insuficiente para bancar as despesas do sobrinho na capital. Registre-se que JB, quando se deu bem na vida, mandou buscar a anciã para morar com ele, garantiu a ela dignidade e conforto até o fim dos seus dias.
 No meio tempo, atuou como marceneiro, encanador, me- cânico, não enjeitava serviço. Logo passou a trabalhar em lojas, depois escritórios, quando entrou na  universidade para cursar Administração de Empresas já tinha um emprego bem razoável.
 Suas habilidades e espírito criativo não passavam despercebi- dos. Os colegas o chamavam de MacGyver, personagem popular na televisão naquele tempo, que tinha como característica a capacida- de de improvisar para resolver os maiores problemas. Felizmente a brincadeira ficou restrita ao círculo da faculdade, mas, até ago- ra, não era raro algum ex-colega o chamar pelo apelido. Na vida real, JB não se inspirava no personagem televisivo. Pelo contrário. Priorizava as estratégias e a informação. Um dos seus lemas prefe- ridos era planejar sempre, improvisar só quando necessário.
 Miolo Tudo pelos ares-.indd 85 06/04/2018 16:42:24
  • 6. 86. JoséNivaldoJunior Concluiu o curso, entrou no mercado, trabalhou em grandes empresas, passou a circular por São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília. Simpatizava na época com teses políticas da esquerda, tornou-se amigo de importantes sindicalistas, passou a conhecer gente do poder. Começou a atuar como lobista, ainda timidamente, mas de- terminado a seguir em frente.
 Sua carreira paralela no mundo das sombras começou por um mero acaso, nunca estivera nos seus planos tornar-se criminoso. Ser lobista, embora a profissão não esteja até agora legalizada e dis- ciplinada no Brasil, é uma coisa. Ninguém tem culpa do atraso e do farisaísmo da legislação. Praticar delitos na clandestinidade é algo muito diferente.
 O acaso tem um grande peso na vida de cada um. Acontece que alguém falhou em uma operação muito difícil e colocou em risco um grande projeto de poder. Era preciso uma pessoa de absoluta confiança, muito hábil e eficiente para coordenar, de fora, uma fuga cercada de altíssimo risco. 
 Certa noite, foi procurado por um amigo, ligado à igreja e à luta sindical, com um pedido desesperado de ajuda. O visitante era figura de referência no meio político por sua seriedade e correção. Ostentava um histórico irretocável na defesa dos direitos huma- nos, desde os ásperos tempos da ditadura. Era a última pessoa que imaginaria convocá-lo para uma ação criminosa.
 Oamigonarrouocasocomfranqueza.Expôsospróseosriscos. Colocou a solução em suas mãos. Falou que nem ele nem o núcleo duro do seu partido conheciam alguém mais habilitado e confiável para encaminhar a solução para aquela situação desesperadora. Ele era o cara talhado para a missão. Da sua colaboração e do seu suces- so, dependeria a viabilidade de um gigantesco projeto de poder.
 A questão realmente era bem complicada. Líderes políticos re- gionais, figuras importantes ligadas ao tal projeto de poder come- çaram a morrer em série. Foram sequestros e assassinatos violentos Miolo Tudo pelos ares-.indd 86 06/04/2018 16:42:24
  • 7. . 87 tudopelosares e cruéis, cadáveres queimados vivos em supostos acidentes de trân- sito ou torturados até a morte com requintes de perversidade. Era como se alguém estivesse mandando recados para alguém. Quem para quem? Até hoje não foi elucidado.
 Algumas ações dessa sequência foram desastradas. Certo po- lítico conhecido e respeitado chegou a ser sequestrado no meio da rua, um amigo próximo praticamente o entregou aos bandidos. Foi, quase com certeza, um caso de conivência com a emboscada, quanto a isso poucos acalentavam dúvidas.
 Câmeras de segurança registraram tudo. Juntando A mais B, logo a polícia capturou parte do grupo criminoso, não havia ques- tionamentos acerca da autoria. Detalhes da motivação é que não foram imediatamente esclarecidos, as mais extravagantes versões pipocaram de todos os lados. Até hoje, repita-se, tudo permanece nebuloso. Graças, em grande parte, ao sucesso da empreitada de JB, como também a outras providências adotadas posteriormente.
 O amigo deixou claro que nem ele nem seus companheiros, muito menos o comandante supremo, tiveram qualquer ligação com os assassinatos. Sequer sabiam de algo. Tratava-se de iniciati- va de facções criminosas infiltradas no partido, operando em causa própria. Entretanto, no grupo preso, havia pessoas que sabiam de- mais, eram detentoras de informações e documentos com poten- cial para, naquele momento, implodir o projeto.
 Ainda pior. O irmão do matador preso, também envolvido na conspiração, conseguiu escapar. Era o chefe, secretário e cérebro da organização criminosa. Sabia de tudo, tinha em mão documen- tos incriminadores e estava vendendo caro o seu silêncio. O preço, para começar, era a libertação do grupo e sua condução em segu- rança até determinada cidade no interior da Bahia. A quadrilha já tinha providenciado refúgio seguro para todos. 
 Garantiam, mediante também uma vultosa quantia em di- nheiro, que iam virar fazendeiros, largar a vida de crimes, nunca Miolo Tudo pelos ares-.indd 87 06/04/2018 16:42:24
  • 8. 88. JoséNivaldoJunior mais botariam os pés em São Paulo. Claro que não se pode confiar na palavra de bandidos daquele quilate, mas no momento não res- tava outro caminho, tinham que atender as exigências.
 O planejamento original, o que não deu certo, era simples e parecia eficiente. Com armamento infiltrado na prisão por guardas subornados, o grupo aproveitaria o dia de visitas e dominaria os guardas da portaria. Fariam mulheres e crianças como reféns, sai- riam do presídio e fugiriam em 3 carros espaçosos e iguais. Poucos quilômetros adiante, soltariam os últimos reféns, iriam todos para um carro só, os outros dois automóveis tomariam rumos diferentes para despistar. Mais adiante, quando o veículo transportando os fugitivos estivesse longe, um dos carros de despiste seria incendia- do e o outro atirado numa represa.
 O plano, porém, deu errado. Os agentes encarregados de infil- trar as armas no presídio não cumpriram o acordo. Para complicar, alguém vazou detalhes do que estava arquitetado, a inteligência da Secretaria de Segurança do Estado ficou sabendo. Evitar a fuga do bando virou questão de honra. Sem falar no interesse político en- volvido na provável divulgação das informações confidenciais. O companheiro encarregado da missão desapareceu. Eles ficaram, como se diz, no mato sem cachorro.
 O pior é que o tempo determinado pela quadrilha estava se esgotando. Eles já tinham iniciado negociações com a oposição, o dossiê devastador estava pronto. Ele próprio tinha recebido uma amostra dos documentos explosivos. Não se tratava de ameaça vã. Em ano eleitoral, aqueles papéis na imprensa destruiriam qualquer candidato. Muita coisa estava em jogo. Dispunham de mais três ou quatro dias, e olhe lá. 
 O amigo repassou tudo o que a cúpula partidária já tinha re- unido de informações. Descreveu sucintamente a rotina cheia de restrições cumprida pelos integrantes do bando no presídio. E adiantou uma planta geral e fotografias das instalações 
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  • 9. . 89 tudopelosares JB pediu um prazo para pensar, o amigo ficou de voltar em duas horas, o tempo urgia.
Quando retornou, ouviu mais algumas perguntas, forneceu as importantes respostas: tinha como se co- municar diariamente com os prisioneiros, um advogado militante, comprometido com a causa, passaria no dia seguinte as informa- ções necessárias; o esquema para abrigar os fugitivos e levá-los ao destino final estava preservado, se fossem tirados da prisão e entre- gues em lugar seguro, o resto era com eles. E o principal: dinheiro não era problema.
 JB foi incisivo. Pode marcar para depois de amanhã na hora do banho de sol, avise ao chefe deles que o seu irmão e os outros ligam para dizer que estão livres em 48 horas. E detalhou as instruções, o plano era ousado e viável, o amigo estava boquiaberto.
 Nessa conversa, JB fez um pouco de promoção pessoal. Ele na verdade estava cheio de dúvidas, mas não adiantava compartilhá- -las. Aprendeu no circo que se um trapezista tem receio ao executar determinado salto, não pode transmitir a insegurança aos parcei- ros. Em certas circunstâncias, vacilar é fracassar, fingir pode ser a garantia do sucesso.
 No dia e na hora combinados, os integrantes da quadrilha es- tavam no seu período de banho de sol, porém separado dos demais. Para impedir qualquer possibilidade de acesso aos portões, o grupo ficava agrupado no meio do pátio. JB usou os princípios da arte da guerra: descobrir e explorar as fraquezas do inimigo quando e onde ele pensa que está mais forte.
 Tudo aconteceu conforme o programado. Surpreendendo a vi- gilância, um helicóptero invadiu inesperadamente o espaço aéreo do presídio e desceu exatamente no meio do pátio. Tudo foi muito rápido. Portas abertas, o grupo entrou imediatamente na aeronave. Os demais presos ficaram desorientados, os guardas boquiabertos e atônitos, não conseguiram disparar um tiro sequer.
 Cerca de 15 minutos depois, o helicóptero descia no ponto pre- determinado. JB em pessoa estava no local para ter certeza de que Miolo Tudo pelos ares-.indd 89 06/04/2018 16:42:25
  • 10. 90. JoséNivaldoJunior tudo transcorreria de acordo com o esquema traçado. Recebeu os prisioneiros um a um e os encaminhou à van preta, que daria se- quência à fuga espetacular. Cumprimentou a todos e entregou ao líder do grupo um pacote de dinheiro e um telefone celular, para que pudesse se comunicar com o irmão, quando estivesse em segu- rança. Ficaram se entreolhando durante alguns segundos, o sufi- ciente para JB guardar a imagem do homem na memória. Apertou sua mão, desejou boa sorte. E só voltou a encontrar com ele na re- cente trombada na saída do elevador.
 Algumas horas depois de encaminhar os fugitivos, recebeu o amigo em casa. Um abraço emocionado selou o sucesso da ope- ração. Ouviu agradecimentos calorosos, tudo tinha dado certo, os caras estavam em segurança. Os riscos foram removidos. E veio a pergunta inevitável: Quanto lhe devemos? Nada, foi a resposta sur- preendente. É a minha colaboração para o êxito do projeto.
 
Essa frase foi o maior investimento da sua vida. Nos anos se- guintes, aboletado em uma das salas de maior prestígio do País, o amigo retribuiu muitas vezes o favor. Estamos aqui por sua causa, dizia apontando para a Esplanada dos Ministérios quando estavam a sós.
 AcarreiradeJBprosperouemprogressãogeométrica.Recebeu indicações enfáticas dirigidas ao alto comando de empresas impor- tantes e em grande expansão, graças a generosos financiamentos governamentais. Esse apadrinhamento abriu portas. Sua eficiência rendeu bons negócios. Tudo parecia um tranquilo conto de fadas.
 Contudo, como dizem os economistas, não existe almoço grá- tis. Claro que retribuía os favores através de doações eleitorais ou, aqui acolá, quebrando um galho financeiro do partido ou de algum companheiro de causa. Porém, ele próprio sabia que era pouco. A conta mais salgada estava por vir. Um dia, foi convidado para um cafezinho no gabinete do ami- go. Após algumas trivialidades, esse fez ar de mistério e disse, fa- lando baixo, após aumentar o som do aparelho de TV: Estamos preci- sando novamente de seus talentos. Miolo Tudo pelos ares-.indd 90 06/04/2018 16:42:25
  • 11. . 91 tudopelosares Diante do olhar espantado do amigo, prosseguiu: Você está acompanhando os acontecimentos, vivemos uma crise sem precedentes. E temos uma missão a cumprir, tão ou mais importante que aquela outra. Só que, agora, eu sequer posso tratar com você, como da outra vez. Virei uma ilha, cercado de grampos por todos os lados.  Colocou discretamente um celular no bolso do outro e deter- minou em tom que não admitia contestações: Vá para um lugar segu- ro e ligue para esse número em meia hora. Você vai conhecer alguém, siga cegamente as instruções dele, confie como se fosse eu.
 Foi assim que JB conheceu o Máscara de Ferro. Miolo Tudo pelos ares-.indd 91 06/04/2018 16:42:25
  • 12. X. Detalhes escondem segredos
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  • 13. . 93 tudopelosares As férias nos Estados Unidos prosseguiam, era hora de mudar de ares. Durante as quase 6 horas do voo de Nova Iorque para Las Vegas, JB se deparou com uma espécie de conflito mental: queria se concentrar em reflexões que lançassem luz sobre a figu- ra do matador, porém as lembranças o remetiam insistentemente ao Máscara de Ferro. Recordava o primeiro encontro, provocado pelo amigo que trabalhava no Palácio. Foi há mais de dez anos, em Brasília. Depois de telefonar, seguindo a orientação recebida, dirigiu-se ao estacionamento de determinado flat em Brasília. Tomou o elevador no subsolo e subiu até à espaçosa unidade, com quarto e sala de estar, onde o personagem o recebeu cordialmen- te. Seja bem-vindo, você chega muito bem recomendado, comentou. OMáscaraofascinoudesdeaquelaprimeiravez.Eraatraídopor ele como o imã chama o ferro. A figura parecia incapaz de rir. Porém, na conversa, tinha um certo jeito de falar e olhar que envolvia o inter- locutor.Apesardosmodosrudesedolinguajarchulo,eraumhomem culto, talvez mesmo de gostos refinados. A grosseria talvez fizesse parte apenas do personagem, não necessariamente do homem.
 A tarefa a cumprir, como sempre ocorreria na relação que de- senvolveram a partir de então, não era nada fácil. A República es- tava abalada por um escândalo de grandes proporções, envolvendo parlamentares e integrantes dos mais altos escalões do governo. Gente muito próxima ao presidente já estava irremediavelmente enredada na complexa teia de aranha que envolvia o caso. Ministros caíam como uma fileira de dominó. Mandatos eram cassados no Congresso em grande quantidade. Ninguém que entrou na linha de tiro conseguiu se safar. Agora, tratava-se simplesmente de sal- var o chefe supremo.
 JB, por mais que estivesse a par dos métodos utilizados pelo governo para se viabilizar e conquistar aliados, não conteve a sur- presa. Puta que pariu, o homem está dentro disso também, eu não acredi- to. E ficou paralisado durante alguns instantes. Até que o Máscara quebrou a sua letargia com uma frase grosseira, adequada mesmo Miolo Tudo pelos ares-.indd 93 06/04/2018 16:42:25
  • 14. 94. JoséNivaldoJunior a um protagonista dos esgotos da sociedade: Acorda, meu filho, vai ficar quanto tempo parado aí com essa cara de cu?
 Não gostou da expressão. Cara de cu, logo ele? Aquele trata- mento se entranhou na sua memória. Permaneceu ainda inerte, até que o outro repetiu, balançando o seu braço: Acorda, cara de cu, temos muito trabalho a fazer.
 JB sacudiu a cabeça como que realmente despertando e voltou à sintonia do papo. Na sequência, conversaram bastante. É a primei- ra vez que vamos trabalhar juntos, precisamos afinar as ideias. No futuro a gente passa a tocar de ouvido. Agora, você precisa saber como a banda toca, falou o Máscara. 
 Em seguida, pacientemente e de forma didática, explanou os seus métodos: o que esperava dos colaboradores; como entrariam em contato; parâmetros de remuneração, variáveis conforme a im- portância, o grau de dificuldade, o tempo da missão. Definiu o seu próprio papel, que era o de levantar informações e definir o objeti- vo, além de coordenar as providências de retaguarda. Todo o pla- nejamento tático, a responsabilidade pela execução das tarefas era dos operadores, que gozavam de total autonomia para isso. Enfim, alinhou aqueles procedimentos que já acompanhamos postos em prática, em capítulos anteriores.
 Para evitar que a esposa puxasse assunto, JB ficou horas con- templando a paisagem mutante através da janela do avião. À me- dida que a aeronave avançava no seu percurso, JB ruminava as reminiscências daquela primeira missão sob a coordenação do misterioso personagem. A tarefa consistia simplesmente em fazer sumir do Universo a prova material e objetiva que ligava o presi- dente direta e pessoalmente ao escândalo que corroía o governo e dizimava parte dos seus escudeiros e aliados.  A responsabilidade política do mandatário, revelada até então, era inquestionável. Seria julgada nas urnas. Porém não estava su- jeita a qualquer ação penal ou processo de impeachment. Uma pro- va irrefutável, uma só que fosse, poria tudo a perder. E essa prova existia. Um tanto forçada, obtida através da mais pura canalhice. Miolo Tudo pelos ares-.indd 94 06/04/2018 16:42:25
  • 15. . 95 tudopelosares Entretanto, uma vez divulgada, a versão prevaleceria sobre o fato, seria um Deus nos acuda.  

A prova existente não foi alcançada espontaneamente, e sim através de artimanhas e jogo sujo. Certo governador, integrante de partido formalmente de oposição, avisou ao presidente, duran- te audiência protocolar, sobre o esquema de corrupção em curso. Detalhou todo o processo, que já era do conhecimento de muitos. Pensava com o alerta em ganhar pontos com o adversário, ficar bem na fita. Contudo, sua denúncia não foi acolhida. Pelo contrário, ao invés de agradecimentos, teve que escutar impropérios. Ficou in- dignado. E resolveu aprontar. No próximo encontro privado, montou a armadilha. Levou um minúsculo aparelho de gravação importado de Israel, e voltou ao assunto como se estivesse insistindo para ajudar. O presidente se mostrou ainda mais irritado. E disse algo como: Não vem me encher o saco com essa conversa novamente, porra. Você sabe como funciona o sis- tema, sem dinheiro esses filhos da puta paralisam meu governo. Ou a gente compra esses picaretas ou nada anda nesse Congresso de merda. E foi adiante: Você acha que eu sou imbecil para não saber o que acontece no gabinete ao lado do meu? Você acha que qualquer um desses porras aí – e fez um gesto como se abrangesse todo o governo – tem autonomia e coragem pra fazer um negócio desses pelas minhas costas? Autorizei, mandei fazer, quem não gostar vá se queixar ao papa. E ainda completou, agora em tom de completo deboche: Já que o senhor é tão metido a santo, não quer sujar suas mãozinhas delicadas na merda do meu governo corrupto, daqui o senhor não leva mais um tostão. Passe bem. A gravação ficou de ótima qualidade. O governador reuniu-se com a cúpula do partido, a divulgação derrubaria de vez o governo que já andava bambo das pernas. Mas os líderes da oposição se divi- diram quanto a melhor ocasião para veicular o bombástico material.
 Uns queriam divulgar logo a fita, detonar tudo. Outros pon- deravam que era melhor deixar o governo sangrando, na próxima campanha soltariam a fita, a reeleição iria para o brejo. Em defesa do presidente, repita-se que, quando ele falou no seu governo como Miolo Tudo pelos ares-.indd 95 06/04/2018 16:42:25
  • 16. 96. JoséNivaldoJunior corrupto, utilizou um tom de ironia com a situação. Não pretendia revelar nem assumir nenhuma culpa perante o adversário. Pretendia caricaturar a situação. Ou seja, estava querendo dizer o contrário das palavras pronunciadas. Mas como explicar isso depois de divulgado?
 O uso da ironia traz embutidos esses perigos. Depois de trans- critas, frases que não deixam dúvidas em função do tom e da ên- fase verbal, tomam um sentido completamente diverso. Forças de expressão gravadas, editadas e difundidas fora do contexto origi- nal frequentemente manifestam algo completamente diverso da intenção de quem falou. Ninguém, nem o mais puro dos mortais, resiste à divulgação de conversas fora do contexto. De um jeito ou de outro, a fita faria um estrago irremediável. Era, como se diz, o batom na cueca.
 Enquanto a cúpula não decidia pela disseminação imediata ou posterior da gravação, um mandatário acima de qualquer suspeita ficou com a sua guarda. O Máscara descobriu que estava guardada no próprio apartamento do líder. Protegida em cofre convencional, de parede, misturado a euros e dólares, bem mais que um punhado, além de alguns documentos importantes.
 JB planejou tudo minuciosamente. Aproveitou o final da se- mana, quando o casal visitava os netos. Provocou um curto circui- to no prédio, se apresentou como eletricista em companhia de um especialista em abrir cofres, também devidamente caracterizado. Invadiu o apartamento. Incinerou a gravação no próprio local. Já que o material gravado envolvia ironia, resolveu fazer a sua. Depositou as cinzas no cofre que, de propósito, deixou aberto. Não tocou e sequer olhou para o conteúdo dos outros papéis. Uma regra pétrea imposta pelo Máscara a seus operadores era que deviam se concentrar na missão, fora do objetivo, nada interessava. 
 O procedimento que adotou garantia que sequer uma quei- xa seria prestada. Um homem de moral ilibada iria chamar a polí- cia para periciar um cofre recheado de irregularidades e inconve- niências? O assunto morreu por ali. Sem a prova da gravação, não Miolo Tudo pelos ares-.indd 96 06/04/2018 16:42:25
  • 17. . 97 tudopelosares houve a denúncia. O presidente recuperou-se, conseguiu a reeleição. A História seguiu o seu curso. Ninguém falou mais nessa fita.
 Nos anos seguintes, apesar da discrição e do laconismo do Máscara, JB acabou, de um modo ou de outro, sabendo de muitos detalhes sobre a sua vida misteriosa. Uma conversa casual muitas vezes revela detalhes muito além do que pretendia o interlocutor. Assim, JB ficou conhecendo o personagem mais do que seria con- veniente. O Máscara mantinha a mãe bem velhinha e uma irmã que cuidava dela morando em típica residência suburbana, no Rio de Janeiro. E as visitava pelo menos uma vez por mês. Nunca abordou com ele o assunto sexo, era como se o tema não existisse.  Certavez,deixoutransparecerqueeratambémumescritorfrus- trado. Na realidade, tempos atrás, sob pseudônimo, publicou um ro- mance, não vendeu nem 50 exemplares. Mas não desistira, anotava fatos e expressões curiosas para usar futuramente em uma obra que, segundo imaginava, consagraria o seu talento reprimido. E o mais re- levante para o andamento da história: era viciado em jogo de cartas.
 JB não conhecia detalhes. Porém o Máscara frequentava cas- sinos ilegais, onde era conhecido pelo apelido de Monstro e habi- tualmente depenado. O vício é triste, destrói qualquer um. Por isso, apesar de ganhar vultosas quantias nos trabalhos que realizava, vivia em permanente estado de necessidade. Principalmente nos últimos tempos.  Quem o contratava no governo federal já estava longe do po- der. Os seus grandes clientes tradicionais atravessavam notórias dificuldades. Boa parte aderiu à delação premiada, os seus présti- mos deixaram de ser necessários. Com os trabalhos mais esparsos, o que contrariava a sua expectativa inicial, os cachês passaram a ser negociados e espremidos, coisa que antes era impensável. JB, que tinha outras fontes de renda, sentiu menos a diferença. Para o Máscara, a queda das demandas foi fatal. Suas dívidas de jogo au- mentaram para patamares astronômicos. Os credores pressiona- vam pelo pagamento, restringiam o crédito, estava difícil manter o seu dispendioso modelo de vida. Miolo Tudo pelos ares-.indd 97 06/04/2018 16:42:25
  • 18. 98. JoséNivaldoJunior Esse detalhe não era sabido por ninguém, fora do circuito do carteado. Dívida de jogo, foi dito lá atrás, é sagrada, ninguém tem imunidade com relação a elas. Nem mesmo o legendário Máscara de Ferro, ou o Monstro, como queiram. Realmente, passava por um enorme e inédito sufoco financeiro, circunstância, repetimos, in- teiramente desconhecida fora do reservado círculo da jogatina. Instalado em Las Vegas, a família se distraindo no maior e mais brega parque de diversões do mundo, JB sentiu que sozinho, trabalhando suas próprias reminiscências, não avançaria muito mais. O método de recompor os acontecimentos serviu para que tomasse consciência das variáveis, apontou caminhos, mas não le- varia a conclusões. Era preciso reforço. E decidiu ampliar o campo de informações, acessando arquivos e noticiários sobre o caso e pe- dindo ajuda.
 Começou revisando o noticiário. Leu quase tudo o que a mídia publicou sobre o caso das mortes no réveillon. A repercussão, como previsto, foi grande. Saiu nos principais telejornais da televisão, ocupou manchetes, gerou artigos e debates sobre a violência contra a mulher. Isso por alguns dias, depois o assunto foi sendo deixado de lado. Na imprensa de Pernambuco, como é natural, o drama ren- deu durante um período maior. A família de Elisa, chocada, recebeu muitas manifestações de carinho, o velório seguido de cremação, provocou um engarrafamento colossal. Porém a existência segue o seu curso inexorável. Depois da missa de sétimo dia, as referências foram escasseando, o tema desapareceu das redes sociais. Quando chegou a vez da missa de 30º dia, na capela da família, apenas os mais próximos compareceram. É a vida. A polícia, que, seguindo a praxe,  não deveria descartar ne- nhuma linha de investigação, dessa vez não aparentou dúvidas. As abordagens da mídia abrangiam outras hipóteses de modo apenas protocolar. O núcleo do noticiário era o crime passional.
Uma ou outra voz, isolada, especulava pontualmente fora desse roteiro. Nas redes sociais a coisa rolou mais quente. Pessoas que não gostavam do governo soltavam farpas capciosas e especulações Miolo Tudo pelos ares-.indd 98 06/04/2018 16:42:25
  • 19. . 99 tudopelosares sem fundamento, tentando de alguma forma jogar os mortos no colo do poder estadual de Pernambuco. Não funcionou. Pelo con- trário, apesar do clima generalizado de intolerância, a morte ainda é o melhor detergente que existe. Todos se compadecem, quem ten- tou tirar proveito político do episódio acabou ouvindo muito mais reprimendas do que manifestações de apoio. Bem diziam os anti- gos, morto não tem defeito.
 Devidamente informado, JB telefonou para alguns amigos, tanto do Recife como do Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, a título de saber das novidades. Ouviu várias alusões espontâneas ao caso, que nada acrescentaram. Eram conversas mais adjetivas do que substantivas. Uma coisa chocante, muito triste, quem diria, tão moça, lin- da e rica. Quem com porcos se mistura, come farelo com eles, eu bem que disse que aquele cafajeste ia acabar com a vida dela. Lamentos genéricos desse tipo, ninguém se aprofundou nos detalhes. 
Muito menos fez qualquer alusão ao seu nome. Ligou em seguida para o amigo detetive de São Paulo, a quem antes pedira para acompanhar as investigações. Ouviu a mensa- gem otimista. O caso está praticamente encerrado, amigo, foi assassinato seguido de suicídio, somente um investigador ficou tentando empentelhar, mandaram ele se aquietar. Relaxa, aproveita tuas férias. Foi o que JB fez, embora todo dia desse uma espiada no no- ticiário para ficar a par dos acontecimentos. Quando leu sobre a condenação de Lula, não evitou uma piada para si próprio. Não fez como o outro, não me chamou, deu nisso. Eu, entrando lá atrás para resol- ver esse imbróglio, transformava o tal triplex numa barraca de camping. E foi gastar uns dólares nos cassinos apenas para passar o tempo. Tinha aprendido a lição da tia, que frequentemente lhe orientava: Meu filho, teime, mas não aposte.
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