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José Nivaldo Júnior
TUDO PELOS ARES(Amor e cólera em tempos de Lava Jato)
Recife, 2018
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XI.
O investigador
diligente

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tudopelosares
O mês seguia seu curso, a tragédia, conforme registra-
do, foi sumindo dos noticiários e das redes sociais, em algumas
semanas só as famílias e amigos próximos insistiam no assunto.
Expressar repetidas vezes os mesmos sentimentos faz parte do
luto. Ajuda a tirar o peso da alma.

Fora desse círculo restrito, apenas um investigador da polícia
do Rio de Janeiro parecia interessado no caso. É que, desde que in-
gressara na cena do crime, acompanhando o delegado e a equipe de
peritos, não se convenceu da versão que foi assumida oficialmente,
a seu ver, de modo precipitado.

Ao entrar no quarto, o delegado, atarefado com centenas de
homicídios pendentes de resolução e pressionado pela imprensa
para prestar esclarecimentos sobre uma penca de mortes violen-
tas no fim do ano, até respirou aliviado quando se deparou com a
cena. Pelo menos teria uma resposta plausível, dessa vez as des-
culpas evasivas seriam dispensáveis. Responderia objetivamente.
Tratava-se de um clássico crime passional, cujos detalhes a polícia
iria investigar, mas o essencial estava esclarecido.

E parecia estar mesmo. A camareira do hotel, verificando que o
períododaestadiadocasaljásevencera,relevouaindicaçãoparanão
perturbar os hóspedes. Bateu na porta repetidas vezes e, sem obter
resposta, entrou no recinto. Refeita do susto, chamou o gerente, que
comunicou o fato à polícia, que, naturalmente, demorou a chegar.

A notícia se espalhou entre funcionários e hóspedes como um
vendaval. Logo os motoristas de táxi também sabiam. Posts toma-
vam conta das redes sociais. Antes da polícia, chegou a imprensa.
Blogueirosespecializadosemviolênciaecasospoliciaisaproveitaram
a porta aberta para conseguir fotos do terrível cenário. Rapidamente
um jornal postou no seu portal de notícias um vídeo e algumas fotos
do casal morto, horas antes do crime, em pleno clima de romance, na
pérgola da piscina do hotel. Viralizou a cena captada por uma hós-
pede que produzia selfies e filmagens para fazer inveja às amigas nas
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102.
JoséNivaldoJunior
redes sociais. Já tinha, inclusive, desde o domingo à noite, postado
uma tomada ampla do local dando ênfase a um demorado beijo de
Elisa e JB, com a chamada sugestiva: Tudo aqui é lindo.

Quando o delegado chegou com sua equipe, já foi abordado na
entrada pela imprensa, passou direto, nada a declarar por enquan-
to. Em pouco tempo, tinha tudo a declarar.

Só tomou a precaução de cumprir alguns procedimentos bá-
sicos. A encarregada do check-in reconheceu o casal como o mesmo
que ingressara junto no sábado. Lembrou o detalhe dela ter falado
o nome Tino dirigindo-se ao companheiro. O funcionário encar-
regado do monitoramento não demorou a admitir o suborno para
provocar uma pane no sistema e reconheceu o morto como o sujei-
to que lhe pagou. Os funcionários da área da piscina confirmaram
que os dois estiveram no local, registraram que era claro o ambien-
te de grande paixão. O garçom que os atendeu foi capaz de recor-
dar minúcias do pedido, que incluiu 2 doses de deliciosa cachaça
pernambucana envelhecida e camarões gigantes do Pacífico como
principal tira-gosto. Não se furtou a registrar, como um preito de
homenagem aos clientes exemplares, a gorjeta extra de R$ 100,00 a
que fizera jus pelos bons serviços prestados.

Quando o delegado já ia saindo para encarar a imprensa, o in-
vestigador o chamou a um canto. E foi insolente: Se eu fosse o senhor,
esperava um pouco mais. Desde que cheguei, percebi que outras pessoas es-
tiveram na cena do crime antes da camareira. Notei também que ambos os
tiros foram disparados à distância, logo não é possível que haja suicídio na
história. Além do mais, a perícia não encontrou impressões digitais nas tor-
neiras, nas malas, nos controles remotos, no telefone. O casal estava hospe-
dado há mais de 24 horas. Será crível que nesse período não tomou banho,
não usou a pia, não assistiu televisão, não abriu as malas, não solicitou
serviço de quarto? 
Desconheceu a expressão de desagrado estampada no rosto do
chefe. E prosseguiu firme: Não é possível, delegado. Alguém apagou as
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digitais, com certeza. Além disso, o cenário está conveniente demais, tudo
muitodirecionado.Eosmokingparecequechegoudepoisdocrime,estánuma
posição muito estranha. E só com uma luva, onde foi parar a outra do par?

Quantomaisouvia,maiorairritaçãodaautoridade.Contestou
áspero: Você por acaso está surdo? Não ouviu as testemunhas? Ouvi, de-
legado, mas testemunha, o senhor sabe, é a prostituta das provas. Aprendi
na Academia que os nossos sentidos enganam, a gente pensa que está vendo
uma coisa e pode ser outra muito diferente.
O delegado, a fim de não deixar espaço para críticas ao seu tra-
balho, chamou o chefe da equipe de peritos e perguntou sobre as
impressões digitais. Encontramos impressões do morto nos copos, no ma-
terial de toalete, nos sabonetes. Ainda não posso fornecer um laudo oficial,
mas, pela minha experiência, digo que há 99,99% de probabilidade dessas
impressões pertencerem ao cidadão morto ali, e apontou para Tino. O de-
legado fez um gesto para o investigador significando eu bem que
disse. E insistiu com o perito: Doutor, nosso jovem investigador acha
que a distância da qual o tiro teria sido disparado na cabeça do homem
elimina a hipótese de suicídio, procede isso?

O perito ponderou: Delegado, eu também percebi desde o primeiro
momento que ambos os orifícios indicam tiro à distância. Na mulher isso é
sem dúvida. Mas, com relação ao homem, esse indicativo é anulado por ou-
tros fatos objetivos presentes na cena do crime e no corpo da vítima. Primeiro,
como a arma dispõe de silenciador, o cano não entrou em contato direto com
o crânio, o que pode ter determinado o formato do orifício. Porém há outras
evidências que enfraquecem a hipótese do nosso meticuloso investigador.

E prosseguiu sua análise, também meticulosa e apoiada por cri-
térios objetivos. Mais uma vez, disse ele, só posso emitir um laudo oficial
após a autópsia e os exames no laboratório. Porém tenho certeza absoluta
de que esse sujeito atirou com essa arma. Existem resíduos na sua mão, está
mais do que claro de que são de pólvora. Além do mais, os mesmos resíduos
estão presentes na cabeça da vítima, o que atesta que o tiro foi executado bem
de perto. Vejam aqui os senhores mesmo. E empunhou uma poderosa lupa,
através da qual era possível enxergar nitidamente os tais resíduos. 
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104.
JoséNivaldoJunior
O especialista não quis ser passado para trás por um novato. E
prosseguiu: Delegado, um leigo pode se equivocar, mas qualquer aprendiz
de perito não precisa de laboratório para saber que isso é pólvora. Rasgo
meu diploma se não for. O delegado deu-se por satisfeito com a análi-
se circunstancial. Todos concordam? Assassinato seguido de suicídio. É a
explicação que sustentaremos na coletiva. 
E prosseguiu entusiasmado: Faço questão que estejamos juntos na
foto, foi um trabalho em equipe. Vamos mostrar para a sociedade a nossa
eficiência, se nos dessem as boas condições de trabalho que tivemos aqui, ne-
nhum crime ficaria sem esclarecimento. Na verdade, o delegado estava
ensaiando a mensagem política que queria passar, aspirava a ser re-
conhecidocomoreferênciaprofissionaleumaliderançadacategoria.

Todos ficaram satisfeitos. Funcionários com salários insufi-
cientes, além disso atrasados, permanentemente sujeitos a críticas
vindas de todos os lados, recebem de bom grado qualquer gratifica-
ção moral através do reconhecimento do trabalho. O próprio investi-
gador dissidente ficou todo empavonado quando, no dia seguinte, os
vizinhos, conhecidos e colegas não se cansavam de lhe parabenizar.
Olhe, te vi na televisão, você estava um gato, falou uma vizinha bem boni-
tinha e gostosa em quem ele andava de olho. Valeu a pena. 

Apesar de todo esse sucesso, o investigador ainda não estava
satisfeito. Quando chegou o laudo da perícia, suas dúvidas aumen-
taram. Elisa fora morta à distância. Tinha resíduos de bebida alcoó-
lica no sangue, restos de alimentos no estômago. E, além da blusa
com os botões arrancados, nada indicava que estivesse se sentindo
ameaçada ou perseguida. Estava confortavelmente sentada. Quem
leva tiros e senta numa poltrona para se assistir ser assassinada?

Já o homem não continha registros de que ingerira bebida al-
coólica ou se alimentara nas últimas horas. Era possível o organis-
mo já ter assimilado tudo, porém improvável e estranho. Certeza
também de que o homem disparou vários tiros com a arma encon-
trada ao seu lado. Porém, no mais, tudo lhe parecia insuficiente. O
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tudopelosares
formato do orifício na cabeça de Tino indicava que o tiro viera de
certa distância. Dois metros pelo menos. Baseando-se nos resíduos,
fora disparado rente ao crânio, mas isso podia ter sido forjado. A
posição do seu corpo não condizia com as comumente encontradas
nos suicídios em casos como esse. Ele estava em pé quando atirou?
Não cairia naquela posição. Deitou-se para atirar? Tampouco se po-
sicionaria daquela forma. 

Porém, o que mais fervilhava na sua cabeça eram os resultados
das comparações das fotos captadas na piscina com as do morto.
Os penteados e tamanhos de cabelos eram diferentes. Como o ca-
belo de Tino podia ter crescido tanto em poucas horas? O cara da
piscina era mais sarado, mais musculoso, mais forte. E tinha mais
cabelo no peito, além de um sinal, na verdade uma mancha verme-
lha na pele. 

O morto, além de não apresentar essas características, osten-
tava algumas tatuagens, inclusive no braço esquerdo trazia grava-
do um coração bem grande com o nome Elisa. Como era possível
que nenhuma foto ou filmagem, estando ele de sunga, se bronzean-
do ao sol, tivesse captado isso?

Ampliou as fotos dos dois perfis, analisou detidamente e fi-
cou absolutamente convencido. Não eram a mesma pessoa. Tentou
despertar o delegado, ouviu uma lição: Cara, bastou. Você está pen-
sando que isso é filme americano? Aqui a gente não precisa saber a verdade,
basta ter respostas que deixem todos satisfeitos. Falando nisso, acabei de
receber um comunicado de um massacre na favela. O caso é seu. Vamos ser
bombardeados de perguntas logo mais. Vá lá e me traga respostas, ao invés
de cascavilhar sobre o que ninguém está perguntando.


O investigador saiu para cumprir sua missão, mas ainda não es-
tava convencido. De vez em quando puxava o assunto com um cole-
ga, perguntavaumaopinião, foiconversarcomoslegistas.Gerouum
buxixo desagradável, o delegado botava fogo pelas ventas. Aumentou
sua carga de trabalho, ele deixou de lado o assunto. Até que, um belo
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106.
JoséNivaldoJunior
dia, recebeu um envelope anônimo contendo um verdadeiro relató-
rio sobre JB. Quem era, o que fazia, algumas fotos dele com Elisa, fo-
tos correndo na praia, a mancha na pele bem visível. Vieram também
registros de telefones de parentes e amigos, nome do hotel no qual
se hospedava no Rio, outros detalhes sobre a sua vida legal. Com um
bilhete: Esse homem tem as respostas que você quer.

O investigador resolveu agir por conta própria. Ligou para al-
gumas pessoas, não obteve maiores esclarecimentos. JB estava via-
jando com a família, ninguém sequer tinha a informação de que
não viajaram juntos. Decidiu tentar a última cartada: pediu licença
ao delegado e, durante uma folga, foi ao hotel em Ipanema.
Funcionários de diversos setores atestaram que, no último
dia do ano, JB chegou cedo da noite e partiu meio apressado de-
pois das 22h30. O registro telefônico do quarto identificava uma
demorada chamada internacional para um celular com código
de Pernambuco. Contrariando a espectativa do agente, a ligação
coincidia com o horário que a perícia estimara para as duas mor-
tes. Numa tentativa, já quase de desespero, pediu licença e ligou
do hotel para o número registrado. Atendeu voz de mulher, era a
esposa de JB. Identificou-se como funcionário do estabelecimento
em busca de confirmar o responsável por certa ligação para lançar
corretamente na conta. A mulher confirmou que recebeu a ligação
do marido, espontaneamente justificou a demora da conversa. O
policial pediu desculpas, desligou. O hotel fez uma cortesia com a
polícia e dispensou o custo da chamada.

O investigador saiu convencido de que a história estava mes-
mo mal contada, a declaração da mulher de que ele se despedira de
todos e chegara de surpresa no dia seguinte alimentava as dúvidas.
Por que o sujeito agiria daquela forma? Só um fato novo muito sé-
rio o faria partir às pressas. JB tinha alguma coisa a ver com as mor-
tes, era sua convicção. Entretanto, como prosseguir no caso enfren-
tando a hostilidade do chefe se ele mesmo descobriu que o sujeito
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tinha um álibi incontestável? Qualquer que fosse o envolvimento,
se algum vivente estava livre da acusação de executar o casal, era JB.

Jogou a toalha. Como encontrava-se de folga, resolveu apro-
veitar o dia e o restinho da efêmera glória que a repercussão do caso
provocara. Resolveu ir para casa e convidou a vizinha gostosa, de
pernas torneadas, sempre meio à mostra, para curtir um cinemi-
nha e tomar um vinho depois da sessão.


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XII.
Surpresas
surpreendentes

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. 109
tudopelosares
Tranquilo quanto ao andamento das coisas no Brasil,
JB tratou de fazer o que até então passara ao largo: aproveitar a via-
gem. Foi às melhores atrações, shows, cassinos de Las Vegas. Em
seguida, seguiu rumo à Flórida. Ali, levou os netos para conhecer os
parques mais interessantes, garantiu que eles teriam para sempre
uma memória sensacional do avô.

Imaginando que o tempo jogava a seu favor, resolveu esticar
as férias até o Carnaval. Programou uma viagem de navio incluindo
visitas a Cuba, ao México, à Jamaica, além de ilhas e praias paradi-
síacas da região. JB Júnior declinou do convite, tinha compromis-
sos já agendados, precisava voltar no prazo estabelecido. Mas o JB
Neto, agora totalmente apegado ao avô, ficou. Os demais concorda-
ram, aquelas férias, além de um bom descanso, estavam proporcio-
nando uma integração inédita da família.

Todos aproveitaram bastante. Após o retorno, ainda ficaram
uns dias na Flórida, assistiram pela televisão do hotel ao discutido
desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, chegou o dia do re-
torno. Por questão de praticidade, programaram o retorno por São
Paulo, todos na primeira classe, voo maravilhoso.

No desembarque, em Guarulhos, o comissário deu um aviso
inesperado: Sr. Silva, João, por favor permaneça na aeronave. O
mencionado gelou. Era ele. Resolveram ficar todos, cada qual mais
atarantado do que o outro, para aguardar os acontecimentos. Não
demorou e dois agentes da Policia Federal entraram no ambien-
te, com uma prancheta nas mãos, e fizeram a pergunta alto e bom
som: o senhor João Batista da Silva e Silva, vulgo JB, encontra-se no
recinto?

O homem deu dois passos à frente e se apresentou: Sou eu,
mas há um equivoco aí. Eu não tenho vulgo, tenho um apelido de infância,
minha saudosa tia me chamava JB, virou meu nome de guerra, protesto
quanto ao termo vulgo. Falou com energia e determinação. Estava na
presença da família, os netos guardariam para sempre a imagem
da dignidade do avô perante o inesperado.

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110.
JoséNivaldoJunior
Os agentes então esclareceram do que se tratava. JB fora pro-
curado e não encontrado. O juiz, encarregado do caso, determinou a
condução coercitiva e emitiu um mandado de busca e apreensão. Não
estava sendo acusado de nada, por enquanto, era apenas testemunha
de um caso. Como estava evadido e, agora, foi capturado ao ingressar
no País, iria coercitivamente prestar os esclarecimentos necessários.


Mais uma vez JB, de olho na imagem que os netos fariam dele,
afirmou enfaticamente que não estava foragido, nem se escon-
dendo de nada. Apenas encontrava-se em viagem de férias com os
familiares. Atividade lícita, programada com antecedência e divul-
gada em todas as colunas sociais de Pernambuco. Além disso, a via-
gem fora acompanhada passo a passo nas redes sociais através de
posts dos seus familiares. Assim, repelia enfaticamente os termos
foragido e capturado, favor anotar o meu protesto.

Em seguida, tentou tranquilizar os familiares em pânico e ti-
rar por menos. Meus queridos, falou, eu sou testemunha de alguma coisa,
testemunha, ouçam bem. Esta convocação é normal e constitucional, apesar
de encaminhada de forma arbitrária e inaceitável. O mandado de busca é
uma aberração jurídica, mas quem não deve, não teme. Se for o caso, facili-
tem tudo, entreguem tudo, não escondam nada. Eu vou cumprir imediata-
mente o mandado, ninguém discute decisão judicial por mais absurda que
seja. Vocês prosseguem a viagem, vão para casa, eu darei notícia. Vejam,
não estou preso, fui apenas convocado para depor, em poucos dias estare-
mos juntos novamente. 
E complementou: Se isso sair no noticiário, é possível que saia, vocês
repitam para os parentes, amigos, imprensa, para qualquer um, o que estou
dizendo. Sou testemunha, estava viajando com vocês, o juiz interpretou a
ausência como fuga e decretou equivocadamente uma condução coercitiva.
Ponto final. Despediu-se de cada um, abraçou a esposa e desembar-
cou com os agentes.

Um helicóptero os esperava. Foram de Guarulhos para
Congonhas, onde um jatinho já estava pronto para decolar, JB deu
graças a Deus não ter que viajar em voo comercial. Chegando ao des-
tino, foi alojado em hotel de padrão intermediário, os dois agentes
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. 111
tudopelosares
ficaram sentados do lado de fora. Quando desceu para jantar, ambos
o acompanharam. Convidou para sentarem na mesma mesa, aceita-
ram. Ofereceu vinho, recusaram. Beberam refrigerantes e pagaram
sua conta à parte. No dia seguinte, cedo, estava diante do juiz, um
dos mais importantes e conhecidos que atuavam na Operação.

O magistrado iniciou de forma cordial e dura, ao mesmo tem-
po. Explicou que JB fora mencionado como envolvido em ações cri-
minosas, mas não havia provas, e ele, prudentemente, o convocou
como testemunha. Ao mesmo tempo, aproveitou para determinar
busca e apreensão. Caso alguma evidência objetiva o incriminasse,
teria sua prisão preventiva decretada. 
JB ouviu tudo impassível, apesar da ansiedade. O juiz elencou
os seus direitos, ele confirmou que os entendera. Nada tenho a escon-
der, falou. Não preciso da orientação de nenhum advogado, sei que
a presença de um defensor é indispensável no interrogatório, acei-
to o causídico de ofício. Pretendo responder a todas as perguntas,
falou em tom firme. Concordou em gravar que abria mão de advo-
gado particular e também não fez restrição a que o seu depoimento
fosse registrado em vídeo.

Então, veio a primeira pergunta. Vossa senhoria conhece o se-
nhor Eduardo Camboa Rosabranca? Por esse nome, com certeza, JB
não tinha ideia de quem se tratava. Negou convicto. O juiz prosse-
guiu tranquilamente: O senhor conhece o Máscara de Ferro?
Agora sur-
preendido, ele ficou lívido. Já falamos sobre o elemento surpresa.
Até a máquina de guerra mais treinada e experiente do mundo, o
Exército dos Estados Unidos, foi muitas vezes obrigado a se curvar
perante ele. Imagine um reles mortal como JB. 
Recuperou-se rápido, raciocinou na velocidade da luz.
Precisava ganhar um fôlego. Admitiu. Conheço sim, senhor. E gosto
muito.
O interrogador sorriu discretamente, pressentindo vitória,
e prosseguiu: Qual a última vez que o senhor teve contato pessoal com o
Máscara de Ferro? Foi a oportunidade para JB tentar desmoralizar
a linha do interrogatório. Não sei, meretríssimo, faz muito tempo, não
tenho tido oportunidade para reler os clássicos.

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112.
JoséNivaldoJunior
O juiz, como já ficou registrado, é uma das figuras mais im-
portantes e polêmicas, entre os vários encarregados de julgar o ex-
plosivo caso. Dentre todos os personagens que se destacaram nas
diversas investigações em curso no País, é considerado por muitos
como arrogante, prepotente, arbitrário. Acusado por adversários
de praticar a imposição da lei, que é coisa muito diversa da sua apli-
cação. Por outro lado, é entusiasticamente aplaudido e defendido.
Não exageramos ao dizer que chega a ser idolatrado por uma par-
cela expressiva da sociedade.
Naquele momento, teve um raro descontrole. Tinha se pre-
parado para triturar JB no interrogatório. Mas, pouco antes deste
começar, recebeu um relato sobre o material apreendido na resi-
dência, nas casas de praia e campo, nos escritórios e também no
apartamento do hotel em Ipanema. À primeira vista, nada foi en-
contrado que comprometesse JB. Nem uma moto, sequer um ca-
pacete. Nenhuma evidência que o ligasse ao Máscara de Ferro. O
homem parecia imaculado.
Em quase todos os eventos suspeitos de terem acontecido com
a participação da testemunha, havia a menção a um misterioso mo-
toqueiro articulando os procedimentos. E sequer habilitação para
pilotar moto JB possuía. 
Além disso, pelo menos com relação ao caso mais recente, a ex-
plosão da fábrica de fogos, o juiz do caso não sentia firmeza sequer
para incluir o tema na inquirição. Ele não só estava hospedado no
hotel, durante os acontecimentos, como o telefone fixo do aparta-
mento registrava ligações durante o dia para escritórios de clientes.
E mais: no horário em que o galpão voava pelos ares, o sistema de
compra de filmes on-line do apartamento estava sendo utilizado. 
Vamos esclarecer logo a perfeição desse álibi: Após ganhar tra-
quejo nas práticas ilegais, quando JB saía para uma missão, sem-
pre construía uma alternativa. Podia comprovar, se necessário, sua
ausência do local do crime. Neste caso, o detetive amigo e parceiro
hospedou-se no hotel utilizando outro nome e, com uma chave da
suíte de JB fornecida pelo próprio, fez ligações e comprou filmes
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. 113
tudopelosares
para simular que o hóspede encontrava-se ali. Assim, o julgador,
tenso, ao ouvir a ridícula explicação sobre a falta de tempo para ler
os clássicos da literatura, perdeu a usual tranquilidade e deu um
murro na mesa. O senhor está brincando comigo? Isso, por acaso, é desa-
cato à autoridade?
JB manteve a linha agressiva, a melhor defesa é o ataque. Se me
permite um parêntese, meretríssimo – usou pela segunda vez a palavra
errada de propósito, para ofender o outro sem sair da linha – con-
sidero que a legislação que define desacato à autoridade deve ser revogada.
E substituída pelo desacato ao cidadão. É opinião esposada por muitos hu-
manistas. Proposta lúcida e democrática, o senhor não concorda? Foi a vez
do próprio do juiz acusar a surpresa pela ousadia incalculável. E
escorregou na casca de banana. Tentou manter o controle da situa-
ção: Aqui eu pergunto e Vossa Senhoria responde. Responda sério, o meu
tribunal não é picadeiro.
JB prosseguiu jogando para a plateia. Meritíssimo – dessa vez
usou a palavra corretamente, de propósito, só para deixar o juiz em
dúvida se ele o irritou querendo ou por equívoco – estou perplexo.
Humildemente admito que não alcancei o sentido da sua pergunta. Vossa
Excelência perguntou se conheço O Máscara de Ferro, célebre romance de
Alexandre Dumas. Sou fã assumido, li muitas vezes na juventude, creio que
assisti a todas as versões cinematográficas. Respondi respeitosamente, não
estou entendendo sua exaltação.

Alguns jornalistas sem brilho e dois ou três blogueiros de se-
gunda linha acompanhavam o depoimento e gravavam cada pa-
lavra. Um vídeo desse trecho no qual o juiz, que normalmente se
comportava com extremo decoro e autossuficiência, era encurrala-
do por uma obscura testemunha ganhou as redes sociais. Viralizou
quase imediatamente, recebeu milhões de curtidas e outro tanto de
visualizações. JB virou celebridade instantânea. Os repórteres pre-
sentes conquistaram matérias exclusivas de grande repercussão. À
noite, trechos do interrogatório estavam nos principais noticiários
das televisões. No dia seguinte, o assunto ocupava a primeira pá-
gina em quase todos os jornais. Uma publicação popular dedicou
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114.
JoséNivaldoJunior
toda a primeira página ao tema. Cravou a manchete O Homem Que
Desafiou a Fera, acompanhada por uma foto enorme da audiência,
muito bem tirada por sinal. Enquadrava os dois como se estivessem
prestes a subir no octógono para um combate mortal.

O magistrado prosseguiu a inquirição mal disfarçando a rai-
va que o dominava. Consultou alguns papéis e retornou com ar de
agora te peguei. E desferiu a pergunta inusitada: O apelido Cara de
Cu, data venia, lhe diz alguma coisa?

JB não ficou mais lívido porque era impossível. Mesmo assim,
saiu-se bem. Meritíssimo, data venia, eu me recuso a discutir termos de baixo
calão no seu tribunal. Perguntas nesses termos eu uso o meu direito constitu-
cional de não responder. Outro soco no fígado. Esse foi mais um trecho
do depoimento que se espalhou pelas redes sociais quase instantanea-
mente. Numa fração de segundos, JB era o mais admirado e o mais
achincalhado dos brasileiros, país dividido é pródigo em criar heróis
que também são vilões, dependendo da posição do observador.

No entanto, a expressão chula foi da maior utilidade para ele.
Cara de Cu. Em toda a sua vida, só o Máscara tinha lhe tratado assim,
nodiaemqueseconheceram.Então,concluiu,encontrava-senaque-
la situação não apenas por causa do misterioso personagem. Tinha
sido delatado por ele ao juiz, restava saber por quê. 

O magistrado foi esperto o suficiente para perceber que per-
dera aquela batalha. Insistir na inquirição sem uma prova evidente
significaria grandes riscos para a sua reputação. E concluiu o in-
terrogatório: Esta oitiva está prejudicada desde que o interrogado nega
conhecer o réu. Esta dúvida poderá ser dirimida brevemente através de uma
acareação. A testemunha está liberada, aguarde nova convocação para ou-
tra audiência, proclamou. 
Na verdade, naquele momento, o juiz pensava em esperar uma
melhor oportunidade. Quem sabe a perícia nos computadores e ou-
tros aparelhos apreendidos não desse frutos? Ou alguma prova sur-
gisse por outros meios? Talvez mais um testemunho incriminatório
fosse suficiente. Contudo, caso não conseguisse uma boa fundamen-
taçãoparaincluirJBnoprocesso,pretendiaaquelesujeitolongedele.
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. 115
tudopelosares
Mantido na condição de testemunha, se absolutamente necessário,
deveria ser ouvido através de carta precatória emitida para a comar-
ca do seu domicílio. Nesse caso, seria interrogado no Recife por um
juiz que não tinha qualquer relação direta com o caso. 
Ele mesmo, só queria aquele atrevido na sua frente na condi-
ção de réu, caso conseguisse elementos para o indiciamento. Nessa
hipótese, teria muito prazer em processá-lo e aplicar-lhe uma sen-
tença cumulativa exemplar. Mas não seria fácil, o sujeito era escor-
regadio como uma enguia ensaboada. Foi dormir naquela noite
com o gosto amargo da derrota na boca. Nem por isso JB se sentiu
vitorioso. Na verdade, estava apreensivo. Encurralou um adversá-
rio perigoso, e, na prática, só conseguiu despertar sua hostilidade.
Teria que ter muito cuidado nos próximos passos.
Foi deixado de volta em São Paulo no mesmo jatinho da Polícia
Federal. O turno dos agentes que o escoltavam desde a véspera já
havia terminado. Estavam todos famintos. Convidou a dupla, mais
a tripulação da aeronave para uma lauta refeição, frequentando
boa churrascaria perto do aeroporto. Todos foram e, dessa vez, fora
do expediente, aceitaram o vinho de primeira linha que JB pediu
para relaxarem da tensa jornada e degustarem as deliciosas carnes
servidas no lugar.

Mais tarde, recolhido ao hotel, sentindo os efeitos do jet-lag e
das emoções pós desembarque, ligou para a esposa. Ela relatou os
acontecimentos, parte a mídia já tinha divulgado. Quando chega-
ram em casa, a polícia já havia vasculhado tudo, uma bagunça ge-
ral. Estava na residência de uma das filhas. Mas ficasse tranquilo.
Já tinha contratado profissionais para deixarem tudo em ordem, na
residência e no escritório. 
Ouviucomentárioscarinhososefavoráveis,amulhernãoescon-
dia o orgulho pelo desempenho e evidência do marido. JB ouviu sem
dizer muito. Desligou, ficou repassando os fatos sem, no entanto,
avançar na compreensão do sentido daquilo tudo.
Programou para
o dia seguinte reunião com um advogado de primeira linha e com o
detetive da sua confiança. Para ele, por um lado, a situação parecia
mais intrincada do que nunca. Por sua vez, o instinto lhe indicava
que o esclarecimento de todo o caso estava perigosamente perto.
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Tudo pelos ares cap11e12

  • 1. José Nivaldo Júnior TUDO PELOS ARES(Amor e cólera em tempos de Lava Jato) Recife, 2018 Miolo Tudo pelos ares-.indd 3 06/04/2018 16:42:22
  • 2. XI. O investigador diligente
 Miolo Tudo pelos ares-.indd 100 06/04/2018 16:42:25
  • 3. . 101 tudopelosares O mês seguia seu curso, a tragédia, conforme registra- do, foi sumindo dos noticiários e das redes sociais, em algumas semanas só as famílias e amigos próximos insistiam no assunto. Expressar repetidas vezes os mesmos sentimentos faz parte do luto. Ajuda a tirar o peso da alma.
 Fora desse círculo restrito, apenas um investigador da polícia do Rio de Janeiro parecia interessado no caso. É que, desde que in- gressara na cena do crime, acompanhando o delegado e a equipe de peritos, não se convenceu da versão que foi assumida oficialmente, a seu ver, de modo precipitado.
 Ao entrar no quarto, o delegado, atarefado com centenas de homicídios pendentes de resolução e pressionado pela imprensa para prestar esclarecimentos sobre uma penca de mortes violen- tas no fim do ano, até respirou aliviado quando se deparou com a cena. Pelo menos teria uma resposta plausível, dessa vez as des- culpas evasivas seriam dispensáveis. Responderia objetivamente. Tratava-se de um clássico crime passional, cujos detalhes a polícia iria investigar, mas o essencial estava esclarecido.
 E parecia estar mesmo. A camareira do hotel, verificando que o períododaestadiadocasaljásevencera,relevouaindicaçãoparanão perturbar os hóspedes. Bateu na porta repetidas vezes e, sem obter resposta, entrou no recinto. Refeita do susto, chamou o gerente, que comunicou o fato à polícia, que, naturalmente, demorou a chegar.
 A notícia se espalhou entre funcionários e hóspedes como um vendaval. Logo os motoristas de táxi também sabiam. Posts toma- vam conta das redes sociais. Antes da polícia, chegou a imprensa. Blogueirosespecializadosemviolênciaecasospoliciaisaproveitaram a porta aberta para conseguir fotos do terrível cenário. Rapidamente um jornal postou no seu portal de notícias um vídeo e algumas fotos do casal morto, horas antes do crime, em pleno clima de romance, na pérgola da piscina do hotel. Viralizou a cena captada por uma hós- pede que produzia selfies e filmagens para fazer inveja às amigas nas Miolo Tudo pelos ares-.indd 101 06/04/2018 16:42:25
  • 4. 102. JoséNivaldoJunior redes sociais. Já tinha, inclusive, desde o domingo à noite, postado uma tomada ampla do local dando ênfase a um demorado beijo de Elisa e JB, com a chamada sugestiva: Tudo aqui é lindo.
 Quando o delegado chegou com sua equipe, já foi abordado na entrada pela imprensa, passou direto, nada a declarar por enquan- to. Em pouco tempo, tinha tudo a declarar.
 Só tomou a precaução de cumprir alguns procedimentos bá- sicos. A encarregada do check-in reconheceu o casal como o mesmo que ingressara junto no sábado. Lembrou o detalhe dela ter falado o nome Tino dirigindo-se ao companheiro. O funcionário encar- regado do monitoramento não demorou a admitir o suborno para provocar uma pane no sistema e reconheceu o morto como o sujei- to que lhe pagou. Os funcionários da área da piscina confirmaram que os dois estiveram no local, registraram que era claro o ambien- te de grande paixão. O garçom que os atendeu foi capaz de recor- dar minúcias do pedido, que incluiu 2 doses de deliciosa cachaça pernambucana envelhecida e camarões gigantes do Pacífico como principal tira-gosto. Não se furtou a registrar, como um preito de homenagem aos clientes exemplares, a gorjeta extra de R$ 100,00 a que fizera jus pelos bons serviços prestados.
 Quando o delegado já ia saindo para encarar a imprensa, o in- vestigador o chamou a um canto. E foi insolente: Se eu fosse o senhor, esperava um pouco mais. Desde que cheguei, percebi que outras pessoas es- tiveram na cena do crime antes da camareira. Notei também que ambos os tiros foram disparados à distância, logo não é possível que haja suicídio na história. Além do mais, a perícia não encontrou impressões digitais nas tor- neiras, nas malas, nos controles remotos, no telefone. O casal estava hospe- dado há mais de 24 horas. Será crível que nesse período não tomou banho, não usou a pia, não assistiu televisão, não abriu as malas, não solicitou serviço de quarto?  Desconheceu a expressão de desagrado estampada no rosto do chefe. E prosseguiu firme: Não é possível, delegado. Alguém apagou as Miolo Tudo pelos ares-.indd 102 06/04/2018 16:42:25
  • 5. . 103 tudopelosares digitais, com certeza. Além disso, o cenário está conveniente demais, tudo muitodirecionado.Eosmokingparecequechegoudepoisdocrime,estánuma posição muito estranha. E só com uma luva, onde foi parar a outra do par?
 Quantomaisouvia,maiorairritaçãodaautoridade.Contestou áspero: Você por acaso está surdo? Não ouviu as testemunhas? Ouvi, de- legado, mas testemunha, o senhor sabe, é a prostituta das provas. Aprendi na Academia que os nossos sentidos enganam, a gente pensa que está vendo uma coisa e pode ser outra muito diferente. O delegado, a fim de não deixar espaço para críticas ao seu tra- balho, chamou o chefe da equipe de peritos e perguntou sobre as impressões digitais. Encontramos impressões do morto nos copos, no ma- terial de toalete, nos sabonetes. Ainda não posso fornecer um laudo oficial, mas, pela minha experiência, digo que há 99,99% de probabilidade dessas impressões pertencerem ao cidadão morto ali, e apontou para Tino. O de- legado fez um gesto para o investigador significando eu bem que disse. E insistiu com o perito: Doutor, nosso jovem investigador acha que a distância da qual o tiro teria sido disparado na cabeça do homem elimina a hipótese de suicídio, procede isso?
 O perito ponderou: Delegado, eu também percebi desde o primeiro momento que ambos os orifícios indicam tiro à distância. Na mulher isso é sem dúvida. Mas, com relação ao homem, esse indicativo é anulado por ou- tros fatos objetivos presentes na cena do crime e no corpo da vítima. Primeiro, como a arma dispõe de silenciador, o cano não entrou em contato direto com o crânio, o que pode ter determinado o formato do orifício. Porém há outras evidências que enfraquecem a hipótese do nosso meticuloso investigador.
 E prosseguiu sua análise, também meticulosa e apoiada por cri- térios objetivos. Mais uma vez, disse ele, só posso emitir um laudo oficial após a autópsia e os exames no laboratório. Porém tenho certeza absoluta de que esse sujeito atirou com essa arma. Existem resíduos na sua mão, está mais do que claro de que são de pólvora. Além do mais, os mesmos resíduos estão presentes na cabeça da vítima, o que atesta que o tiro foi executado bem de perto. Vejam aqui os senhores mesmo. E empunhou uma poderosa lupa, através da qual era possível enxergar nitidamente os tais resíduos.  Miolo Tudo pelos ares-.indd 103 06/04/2018 16:42:25
  • 6. 104. JoséNivaldoJunior O especialista não quis ser passado para trás por um novato. E prosseguiu: Delegado, um leigo pode se equivocar, mas qualquer aprendiz de perito não precisa de laboratório para saber que isso é pólvora. Rasgo meu diploma se não for. O delegado deu-se por satisfeito com a análi- se circunstancial. Todos concordam? Assassinato seguido de suicídio. É a explicação que sustentaremos na coletiva.  E prosseguiu entusiasmado: Faço questão que estejamos juntos na foto, foi um trabalho em equipe. Vamos mostrar para a sociedade a nossa eficiência, se nos dessem as boas condições de trabalho que tivemos aqui, ne- nhum crime ficaria sem esclarecimento. Na verdade, o delegado estava ensaiando a mensagem política que queria passar, aspirava a ser re- conhecidocomoreferênciaprofissionaleumaliderançadacategoria.
 Todos ficaram satisfeitos. Funcionários com salários insufi- cientes, além disso atrasados, permanentemente sujeitos a críticas vindas de todos os lados, recebem de bom grado qualquer gratifica- ção moral através do reconhecimento do trabalho. O próprio investi- gador dissidente ficou todo empavonado quando, no dia seguinte, os vizinhos, conhecidos e colegas não se cansavam de lhe parabenizar. Olhe, te vi na televisão, você estava um gato, falou uma vizinha bem boni- tinha e gostosa em quem ele andava de olho. Valeu a pena. 
 Apesar de todo esse sucesso, o investigador ainda não estava satisfeito. Quando chegou o laudo da perícia, suas dúvidas aumen- taram. Elisa fora morta à distância. Tinha resíduos de bebida alcoó- lica no sangue, restos de alimentos no estômago. E, além da blusa com os botões arrancados, nada indicava que estivesse se sentindo ameaçada ou perseguida. Estava confortavelmente sentada. Quem leva tiros e senta numa poltrona para se assistir ser assassinada?
 Já o homem não continha registros de que ingerira bebida al- coólica ou se alimentara nas últimas horas. Era possível o organis- mo já ter assimilado tudo, porém improvável e estranho. Certeza também de que o homem disparou vários tiros com a arma encon- trada ao seu lado. Porém, no mais, tudo lhe parecia insuficiente. O Miolo Tudo pelos ares-.indd 104 06/04/2018 16:42:25
  • 7. . 105 tudopelosares formato do orifício na cabeça de Tino indicava que o tiro viera de certa distância. Dois metros pelo menos. Baseando-se nos resíduos, fora disparado rente ao crânio, mas isso podia ter sido forjado. A posição do seu corpo não condizia com as comumente encontradas nos suicídios em casos como esse. Ele estava em pé quando atirou? Não cairia naquela posição. Deitou-se para atirar? Tampouco se po- sicionaria daquela forma. 
 Porém, o que mais fervilhava na sua cabeça eram os resultados das comparações das fotos captadas na piscina com as do morto. Os penteados e tamanhos de cabelos eram diferentes. Como o ca- belo de Tino podia ter crescido tanto em poucas horas? O cara da piscina era mais sarado, mais musculoso, mais forte. E tinha mais cabelo no peito, além de um sinal, na verdade uma mancha verme- lha na pele. 
 O morto, além de não apresentar essas características, osten- tava algumas tatuagens, inclusive no braço esquerdo trazia grava- do um coração bem grande com o nome Elisa. Como era possível que nenhuma foto ou filmagem, estando ele de sunga, se bronzean- do ao sol, tivesse captado isso?
 Ampliou as fotos dos dois perfis, analisou detidamente e fi- cou absolutamente convencido. Não eram a mesma pessoa. Tentou despertar o delegado, ouviu uma lição: Cara, bastou. Você está pen- sando que isso é filme americano? Aqui a gente não precisa saber a verdade, basta ter respostas que deixem todos satisfeitos. Falando nisso, acabei de receber um comunicado de um massacre na favela. O caso é seu. Vamos ser bombardeados de perguntas logo mais. Vá lá e me traga respostas, ao invés de cascavilhar sobre o que ninguém está perguntando.

 O investigador saiu para cumprir sua missão, mas ainda não es- tava convencido. De vez em quando puxava o assunto com um cole- ga, perguntavaumaopinião, foiconversarcomoslegistas.Gerouum buxixo desagradável, o delegado botava fogo pelas ventas. Aumentou sua carga de trabalho, ele deixou de lado o assunto. Até que, um belo Miolo Tudo pelos ares-.indd 105 06/04/2018 16:42:25
  • 8. 106. JoséNivaldoJunior dia, recebeu um envelope anônimo contendo um verdadeiro relató- rio sobre JB. Quem era, o que fazia, algumas fotos dele com Elisa, fo- tos correndo na praia, a mancha na pele bem visível. Vieram também registros de telefones de parentes e amigos, nome do hotel no qual se hospedava no Rio, outros detalhes sobre a sua vida legal. Com um bilhete: Esse homem tem as respostas que você quer.
 O investigador resolveu agir por conta própria. Ligou para al- gumas pessoas, não obteve maiores esclarecimentos. JB estava via- jando com a família, ninguém sequer tinha a informação de que não viajaram juntos. Decidiu tentar a última cartada: pediu licença ao delegado e, durante uma folga, foi ao hotel em Ipanema. Funcionários de diversos setores atestaram que, no último dia do ano, JB chegou cedo da noite e partiu meio apressado de- pois das 22h30. O registro telefônico do quarto identificava uma demorada chamada internacional para um celular com código de Pernambuco. Contrariando a espectativa do agente, a ligação coincidia com o horário que a perícia estimara para as duas mor- tes. Numa tentativa, já quase de desespero, pediu licença e ligou do hotel para o número registrado. Atendeu voz de mulher, era a esposa de JB. Identificou-se como funcionário do estabelecimento em busca de confirmar o responsável por certa ligação para lançar corretamente na conta. A mulher confirmou que recebeu a ligação do marido, espontaneamente justificou a demora da conversa. O policial pediu desculpas, desligou. O hotel fez uma cortesia com a polícia e dispensou o custo da chamada.
 O investigador saiu convencido de que a história estava mes- mo mal contada, a declaração da mulher de que ele se despedira de todos e chegara de surpresa no dia seguinte alimentava as dúvidas. Por que o sujeito agiria daquela forma? Só um fato novo muito sé- rio o faria partir às pressas. JB tinha alguma coisa a ver com as mor- tes, era sua convicção. Entretanto, como prosseguir no caso enfren- tando a hostilidade do chefe se ele mesmo descobriu que o sujeito Miolo Tudo pelos ares-.indd 106 06/04/2018 16:42:25
  • 9. . 107 tudopelosares tinha um álibi incontestável? Qualquer que fosse o envolvimento, se algum vivente estava livre da acusação de executar o casal, era JB.
 Jogou a toalha. Como encontrava-se de folga, resolveu apro- veitar o dia e o restinho da efêmera glória que a repercussão do caso provocara. Resolveu ir para casa e convidou a vizinha gostosa, de pernas torneadas, sempre meio à mostra, para curtir um cinemi- nha e tomar um vinho depois da sessão. 
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  • 10. XII. Surpresas surpreendentes
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  • 11. . 109 tudopelosares Tranquilo quanto ao andamento das coisas no Brasil, JB tratou de fazer o que até então passara ao largo: aproveitar a via- gem. Foi às melhores atrações, shows, cassinos de Las Vegas. Em seguida, seguiu rumo à Flórida. Ali, levou os netos para conhecer os parques mais interessantes, garantiu que eles teriam para sempre uma memória sensacional do avô.
 Imaginando que o tempo jogava a seu favor, resolveu esticar as férias até o Carnaval. Programou uma viagem de navio incluindo visitas a Cuba, ao México, à Jamaica, além de ilhas e praias paradi- síacas da região. JB Júnior declinou do convite, tinha compromis- sos já agendados, precisava voltar no prazo estabelecido. Mas o JB Neto, agora totalmente apegado ao avô, ficou. Os demais concorda- ram, aquelas férias, além de um bom descanso, estavam proporcio- nando uma integração inédita da família.
 Todos aproveitaram bastante. Após o retorno, ainda ficaram uns dias na Flórida, assistiram pela televisão do hotel ao discutido desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, chegou o dia do re- torno. Por questão de praticidade, programaram o retorno por São Paulo, todos na primeira classe, voo maravilhoso.
 No desembarque, em Guarulhos, o comissário deu um aviso inesperado: Sr. Silva, João, por favor permaneça na aeronave. O mencionado gelou. Era ele. Resolveram ficar todos, cada qual mais atarantado do que o outro, para aguardar os acontecimentos. Não demorou e dois agentes da Policia Federal entraram no ambien- te, com uma prancheta nas mãos, e fizeram a pergunta alto e bom som: o senhor João Batista da Silva e Silva, vulgo JB, encontra-se no recinto?
 O homem deu dois passos à frente e se apresentou: Sou eu, mas há um equivoco aí. Eu não tenho vulgo, tenho um apelido de infância, minha saudosa tia me chamava JB, virou meu nome de guerra, protesto quanto ao termo vulgo. Falou com energia e determinação. Estava na presença da família, os netos guardariam para sempre a imagem da dignidade do avô perante o inesperado.
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  • 12. 110. JoséNivaldoJunior Os agentes então esclareceram do que se tratava. JB fora pro- curado e não encontrado. O juiz, encarregado do caso, determinou a condução coercitiva e emitiu um mandado de busca e apreensão. Não estava sendo acusado de nada, por enquanto, era apenas testemunha de um caso. Como estava evadido e, agora, foi capturado ao ingressar no País, iria coercitivamente prestar os esclarecimentos necessários.

 Mais uma vez JB, de olho na imagem que os netos fariam dele, afirmou enfaticamente que não estava foragido, nem se escon- dendo de nada. Apenas encontrava-se em viagem de férias com os familiares. Atividade lícita, programada com antecedência e divul- gada em todas as colunas sociais de Pernambuco. Além disso, a via- gem fora acompanhada passo a passo nas redes sociais através de posts dos seus familiares. Assim, repelia enfaticamente os termos foragido e capturado, favor anotar o meu protesto.
 Em seguida, tentou tranquilizar os familiares em pânico e ti- rar por menos. Meus queridos, falou, eu sou testemunha de alguma coisa, testemunha, ouçam bem. Esta convocação é normal e constitucional, apesar de encaminhada de forma arbitrária e inaceitável. O mandado de busca é uma aberração jurídica, mas quem não deve, não teme. Se for o caso, facili- tem tudo, entreguem tudo, não escondam nada. Eu vou cumprir imediata- mente o mandado, ninguém discute decisão judicial por mais absurda que seja. Vocês prosseguem a viagem, vão para casa, eu darei notícia. Vejam, não estou preso, fui apenas convocado para depor, em poucos dias estare- mos juntos novamente.  E complementou: Se isso sair no noticiário, é possível que saia, vocês repitam para os parentes, amigos, imprensa, para qualquer um, o que estou dizendo. Sou testemunha, estava viajando com vocês, o juiz interpretou a ausência como fuga e decretou equivocadamente uma condução coercitiva. Ponto final. Despediu-se de cada um, abraçou a esposa e desembar- cou com os agentes.
 Um helicóptero os esperava. Foram de Guarulhos para Congonhas, onde um jatinho já estava pronto para decolar, JB deu graças a Deus não ter que viajar em voo comercial. Chegando ao des- tino, foi alojado em hotel de padrão intermediário, os dois agentes Miolo Tudo pelos ares-.indd 110 06/04/2018 16:42:25
  • 13. . 111 tudopelosares ficaram sentados do lado de fora. Quando desceu para jantar, ambos o acompanharam. Convidou para sentarem na mesma mesa, aceita- ram. Ofereceu vinho, recusaram. Beberam refrigerantes e pagaram sua conta à parte. No dia seguinte, cedo, estava diante do juiz, um dos mais importantes e conhecidos que atuavam na Operação.
 O magistrado iniciou de forma cordial e dura, ao mesmo tem- po. Explicou que JB fora mencionado como envolvido em ações cri- minosas, mas não havia provas, e ele, prudentemente, o convocou como testemunha. Ao mesmo tempo, aproveitou para determinar busca e apreensão. Caso alguma evidência objetiva o incriminasse, teria sua prisão preventiva decretada.  JB ouviu tudo impassível, apesar da ansiedade. O juiz elencou os seus direitos, ele confirmou que os entendera. Nada tenho a escon- der, falou. Não preciso da orientação de nenhum advogado, sei que a presença de um defensor é indispensável no interrogatório, acei- to o causídico de ofício. Pretendo responder a todas as perguntas, falou em tom firme. Concordou em gravar que abria mão de advo- gado particular e também não fez restrição a que o seu depoimento fosse registrado em vídeo.
 Então, veio a primeira pergunta. Vossa senhoria conhece o se- nhor Eduardo Camboa Rosabranca? Por esse nome, com certeza, JB não tinha ideia de quem se tratava. Negou convicto. O juiz prosse- guiu tranquilamente: O senhor conhece o Máscara de Ferro?
Agora sur- preendido, ele ficou lívido. Já falamos sobre o elemento surpresa. Até a máquina de guerra mais treinada e experiente do mundo, o Exército dos Estados Unidos, foi muitas vezes obrigado a se curvar perante ele. Imagine um reles mortal como JB.  Recuperou-se rápido, raciocinou na velocidade da luz. Precisava ganhar um fôlego. Admitiu. Conheço sim, senhor. E gosto muito.
O interrogador sorriu discretamente, pressentindo vitória, e prosseguiu: Qual a última vez que o senhor teve contato pessoal com o Máscara de Ferro? Foi a oportunidade para JB tentar desmoralizar a linha do interrogatório. Não sei, meretríssimo, faz muito tempo, não tenho tido oportunidade para reler os clássicos.
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  • 14. 112. JoséNivaldoJunior O juiz, como já ficou registrado, é uma das figuras mais im- portantes e polêmicas, entre os vários encarregados de julgar o ex- plosivo caso. Dentre todos os personagens que se destacaram nas diversas investigações em curso no País, é considerado por muitos como arrogante, prepotente, arbitrário. Acusado por adversários de praticar a imposição da lei, que é coisa muito diversa da sua apli- cação. Por outro lado, é entusiasticamente aplaudido e defendido. Não exageramos ao dizer que chega a ser idolatrado por uma par- cela expressiva da sociedade. Naquele momento, teve um raro descontrole. Tinha se pre- parado para triturar JB no interrogatório. Mas, pouco antes deste começar, recebeu um relato sobre o material apreendido na resi- dência, nas casas de praia e campo, nos escritórios e também no apartamento do hotel em Ipanema. À primeira vista, nada foi en- contrado que comprometesse JB. Nem uma moto, sequer um ca- pacete. Nenhuma evidência que o ligasse ao Máscara de Ferro. O homem parecia imaculado. Em quase todos os eventos suspeitos de terem acontecido com a participação da testemunha, havia a menção a um misterioso mo- toqueiro articulando os procedimentos. E sequer habilitação para pilotar moto JB possuía.  Além disso, pelo menos com relação ao caso mais recente, a ex- plosão da fábrica de fogos, o juiz do caso não sentia firmeza sequer para incluir o tema na inquirição. Ele não só estava hospedado no hotel, durante os acontecimentos, como o telefone fixo do aparta- mento registrava ligações durante o dia para escritórios de clientes. E mais: no horário em que o galpão voava pelos ares, o sistema de compra de filmes on-line do apartamento estava sendo utilizado.  Vamos esclarecer logo a perfeição desse álibi: Após ganhar tra- quejo nas práticas ilegais, quando JB saía para uma missão, sem- pre construía uma alternativa. Podia comprovar, se necessário, sua ausência do local do crime. Neste caso, o detetive amigo e parceiro hospedou-se no hotel utilizando outro nome e, com uma chave da suíte de JB fornecida pelo próprio, fez ligações e comprou filmes Miolo Tudo pelos ares-.indd 112 06/04/2018 16:42:25
  • 15. . 113 tudopelosares para simular que o hóspede encontrava-se ali. Assim, o julgador, tenso, ao ouvir a ridícula explicação sobre a falta de tempo para ler os clássicos da literatura, perdeu a usual tranquilidade e deu um murro na mesa. O senhor está brincando comigo? Isso, por acaso, é desa- cato à autoridade? JB manteve a linha agressiva, a melhor defesa é o ataque. Se me permite um parêntese, meretríssimo – usou pela segunda vez a palavra errada de propósito, para ofender o outro sem sair da linha – con- sidero que a legislação que define desacato à autoridade deve ser revogada. E substituída pelo desacato ao cidadão. É opinião esposada por muitos hu- manistas. Proposta lúcida e democrática, o senhor não concorda? Foi a vez do próprio do juiz acusar a surpresa pela ousadia incalculável. E escorregou na casca de banana. Tentou manter o controle da situa- ção: Aqui eu pergunto e Vossa Senhoria responde. Responda sério, o meu tribunal não é picadeiro. JB prosseguiu jogando para a plateia. Meritíssimo – dessa vez usou a palavra corretamente, de propósito, só para deixar o juiz em dúvida se ele o irritou querendo ou por equívoco – estou perplexo. Humildemente admito que não alcancei o sentido da sua pergunta. Vossa Excelência perguntou se conheço O Máscara de Ferro, célebre romance de Alexandre Dumas. Sou fã assumido, li muitas vezes na juventude, creio que assisti a todas as versões cinematográficas. Respondi respeitosamente, não estou entendendo sua exaltação.
 Alguns jornalistas sem brilho e dois ou três blogueiros de se- gunda linha acompanhavam o depoimento e gravavam cada pa- lavra. Um vídeo desse trecho no qual o juiz, que normalmente se comportava com extremo decoro e autossuficiência, era encurrala- do por uma obscura testemunha ganhou as redes sociais. Viralizou quase imediatamente, recebeu milhões de curtidas e outro tanto de visualizações. JB virou celebridade instantânea. Os repórteres pre- sentes conquistaram matérias exclusivas de grande repercussão. À noite, trechos do interrogatório estavam nos principais noticiários das televisões. No dia seguinte, o assunto ocupava a primeira pá- gina em quase todos os jornais. Uma publicação popular dedicou Miolo Tudo pelos ares-.indd 113 06/04/2018 16:42:25
  • 16. 114. JoséNivaldoJunior toda a primeira página ao tema. Cravou a manchete O Homem Que Desafiou a Fera, acompanhada por uma foto enorme da audiência, muito bem tirada por sinal. Enquadrava os dois como se estivessem prestes a subir no octógono para um combate mortal.
 O magistrado prosseguiu a inquirição mal disfarçando a rai- va que o dominava. Consultou alguns papéis e retornou com ar de agora te peguei. E desferiu a pergunta inusitada: O apelido Cara de Cu, data venia, lhe diz alguma coisa?
 JB não ficou mais lívido porque era impossível. Mesmo assim, saiu-se bem. Meritíssimo, data venia, eu me recuso a discutir termos de baixo calão no seu tribunal. Perguntas nesses termos eu uso o meu direito constitu- cional de não responder. Outro soco no fígado. Esse foi mais um trecho do depoimento que se espalhou pelas redes sociais quase instantanea- mente. Numa fração de segundos, JB era o mais admirado e o mais achincalhado dos brasileiros, país dividido é pródigo em criar heróis que também são vilões, dependendo da posição do observador.
 No entanto, a expressão chula foi da maior utilidade para ele. Cara de Cu. Em toda a sua vida, só o Máscara tinha lhe tratado assim, nodiaemqueseconheceram.Então,concluiu,encontrava-senaque- la situação não apenas por causa do misterioso personagem. Tinha sido delatado por ele ao juiz, restava saber por quê. 
 O magistrado foi esperto o suficiente para perceber que per- dera aquela batalha. Insistir na inquirição sem uma prova evidente significaria grandes riscos para a sua reputação. E concluiu o in- terrogatório: Esta oitiva está prejudicada desde que o interrogado nega conhecer o réu. Esta dúvida poderá ser dirimida brevemente através de uma acareação. A testemunha está liberada, aguarde nova convocação para ou- tra audiência, proclamou.  Na verdade, naquele momento, o juiz pensava em esperar uma melhor oportunidade. Quem sabe a perícia nos computadores e ou- tros aparelhos apreendidos não desse frutos? Ou alguma prova sur- gisse por outros meios? Talvez mais um testemunho incriminatório fosse suficiente. Contudo, caso não conseguisse uma boa fundamen- taçãoparaincluirJBnoprocesso,pretendiaaquelesujeitolongedele. Miolo Tudo pelos ares-.indd 114 06/04/2018 16:42:25
  • 17. . 115 tudopelosares Mantido na condição de testemunha, se absolutamente necessário, deveria ser ouvido através de carta precatória emitida para a comar- ca do seu domicílio. Nesse caso, seria interrogado no Recife por um juiz que não tinha qualquer relação direta com o caso.  Ele mesmo, só queria aquele atrevido na sua frente na condi- ção de réu, caso conseguisse elementos para o indiciamento. Nessa hipótese, teria muito prazer em processá-lo e aplicar-lhe uma sen- tença cumulativa exemplar. Mas não seria fácil, o sujeito era escor- regadio como uma enguia ensaboada. Foi dormir naquela noite com o gosto amargo da derrota na boca. Nem por isso JB se sentiu vitorioso. Na verdade, estava apreensivo. Encurralou um adversá- rio perigoso, e, na prática, só conseguiu despertar sua hostilidade. Teria que ter muito cuidado nos próximos passos. Foi deixado de volta em São Paulo no mesmo jatinho da Polícia Federal. O turno dos agentes que o escoltavam desde a véspera já havia terminado. Estavam todos famintos. Convidou a dupla, mais a tripulação da aeronave para uma lauta refeição, frequentando boa churrascaria perto do aeroporto. Todos foram e, dessa vez, fora do expediente, aceitaram o vinho de primeira linha que JB pediu para relaxarem da tensa jornada e degustarem as deliciosas carnes servidas no lugar.
 Mais tarde, recolhido ao hotel, sentindo os efeitos do jet-lag e das emoções pós desembarque, ligou para a esposa. Ela relatou os acontecimentos, parte a mídia já tinha divulgado. Quando chega- ram em casa, a polícia já havia vasculhado tudo, uma bagunça ge- ral. Estava na residência de uma das filhas. Mas ficasse tranquilo. Já tinha contratado profissionais para deixarem tudo em ordem, na residência e no escritório.  Ouviucomentárioscarinhososefavoráveis,amulhernãoescon- dia o orgulho pelo desempenho e evidência do marido. JB ouviu sem dizer muito. Desligou, ficou repassando os fatos sem, no entanto, avançar na compreensão do sentido daquilo tudo.
Programou para o dia seguinte reunião com um advogado de primeira linha e com o detetive da sua confiança. Para ele, por um lado, a situação parecia mais intrincada do que nunca. Por sua vez, o instinto lhe indicava que o esclarecimento de todo o caso estava perigosamente perto. Miolo Tudo pelos ares-.indd 115 06/04/2018 16:42:25