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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS - RJ
ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA
CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
POR UMA REFORMA DOS SISTEMAS
HORIZONTAL E VERTICAL DE DIVISÃO
DE FUNÇÕES DO ESTADO
DISSERTAÇÃO APRESENTADA A ESCOLA
BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
MAURÍCIO BALESDENT BARREIRA
Rio de Janeiro
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POR UMA REFORMA DOS SISTEMAS HORIZONTAL E VERTICAL
DE DIVISÃO DE FUNÇÕES DO ESTADO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR
MAURÍCIO BALESDENT BARREIRA
APROVADA EM 2£/õ*> /2-QOJL
PELA COMISSÃO EXAMINADORA
ProP. Deborah Moraes Zouain
Doutora em Engenharia de Produção
Prof. Aspásfa Brasileir
)outora em Sociolaín
Prof. Pauímde Bessa Antunes
Doutor em Direito
BARREIRA, Maurício Balesdent. Por uma reforma dos
sistemas horizontal e vertical de divisão de funções do
estado.
Não há realização minha que não tenha, direta ou indiretamente,
origem em Patrícia, Gabriel e Tiago. A eles dedico esta
monografia, como tenho dedicado todo meu viver.
Agradeço aos professores da EBAPE, em especial a Aspásia
Camargo e Frederico Lustosa, fontes constantes de inspiração, e
à Deborah Moraes Zouain, minha orientadora, bem como a todos
meus alunos de graduação e pós-graduação, pois de sua avidez
por conhecimento nasce a maior parte de meu estímulo para
refletir e estudar sempre.
SUMARIO
Dedicatória 4
Agradecimentos 5
Resumo 7
Abstract 9
Introdução 11
Metodologia 13
Objetivos do Estudo e a Delimitação do Tema 14
Capítulo I: A Reordenação da Divisão Horizontal das
Funções do do Estado: O Papel do Poder Legislativo 20
1. O Legislativo no Brasil: um Poder em crise 20
2. A Separação de Poderes 29
3. O Princípio da Legalidade 37
4. Primeira Proposição: A Revisão de Funções do
Poder Legislativo 49
Capítulo II: Federalismo à Brasileira 59
1.0 Modelo Federativo Brasileiro 59
2. Segunda Proposição: Instituições Regionais e
Federalismo 68
Conclusão 79
Bibliografia 83
RESUMO
Enquanto muito se discute nos meios acadêmicos e no próprio
Congresso Nacional o teor das reformas política, tributária e
previdenciária, todas elas, aliás, fundamentais ao país, esta
monografia aborda outras dimensões de reforma, relacionadas à
organização funcional do Estado Brasileiro.
Assim porque a exigência de um Estado eficiente responde não
somente a questão de sua legitimidade, mas é, hoje, no ambiente
globalizado de intensa competição e de constante instabilidade,
imperativo do próprio desenvolvimento de uma nação, especialmente
o Brasil, que deve, paralelamente, enfrentar um enorme déficit social
acumulado.
Procura-se, então, discutir, numa visão prospectiva, uma nova divisão
de funções entre os Poderes Executivo e Legislativo, especialmente
no que concerne à produção normativa, cujo modelo atual, ainda
fundado no dogma da reserva de lei, apresenta-se incapaz de
responder com o grau de agilidade e competência que se exige do
Estado atual. Remanesce, obviamente, a preocupação com a
preservação dos valores democráticos e com a contenção do poder do
Executivo, que instruíram a formação dos Estados constitucionais,
mas a monopolização, pelo Legislativo, da produção de normas gerais
e abstratas não é fator imprescindível ao alcance de tais objetivos e
sequer corresponde ao modelo empiricamente em vigor no Brasil.
No outro aspecto, da divisão vertical de funções determinada pelo
modelo federativo brasileiro, aborda-se a "crise de relacionamento"
entre os Entes Federativos, que se nota na dificuldade de adoção de
políticas públicas conjuntas, problema que mais se agrava ante à
justa demanda da sociedade em encontrar, para seus organismos,
espaço de participação nessa mesma seara.
Deixando à parte algumas sugestões de reconfiguração federativa,
com inclusão ou exclusão de Entes, o presente estudo procura
defender a adoção de soluções institucionais para a concretização da
cooperação entre os Entes e para participação da sociedade na busca
do interesse público.
ABSTRACT
While discussions go on within academic environment and The
National Congress over reforms, be it political, tributary or on social
welfare — actual subject in Brazil which is, indeed, primordial — the
present monograph reaches into different paradigms on amendments,
focusing the functional organization of the Brazilian State.
The demand of an efficient State is due to the matter of legitimacy, as
well as — within the contemporary globalized world, with intense
competition and frequent instability — it is peremptory to the
development of a country, particularly Brazil, which should,
concomitantly, meet its huge social déficit.
Thus, in a prospective point of view, one intends to scrutinize a new
division of tasks between the Executive and Legislative; specially
concerning normative production, which the current model — still
based on the 'reservation of law' dogma — is unable to respond as
nimble and proper as nowadays' State may claim. Prevails the
apprehension with the preservation of democratic values along with the
restraint of the Executive's power — which, both, answer for the
development of constitutional State. Nevertheless, the Legislative
monopolization of the general and abstract production of norms is not
vital to achieve the referred goal; neither does it correspond to the
current model in Brazil.
On the hierarchical division of functions aspect, set by BraziliarTs
federative model, the "relationship crisis" between Federative Entities
is analyzed. Such crisis points out the obstruction to adopt public
policies as a whole — an increasing problem, inasmuch as society
strives delegation for its body politic.
Not examining possible federative recostructions, such as Entities'
omission or comprehension, this essay works on the adoption of
institutional solutions to form a coalition between these Entities, and to
stimulate the participation of society in public issues.
10
INTRODUÇÃO
A presente monografia encontra-se sistematizada em quatro partes
distintas, com o seguinte teor:
Na primeira, caracteriza-se a estrutura e a forma do texto, abordando
seus objetivos, a delimitação do tema e a metodologia utilizada.
No segunda (Capítulo I), discorre-se sobre o Poder Legislativo e os
princípios correlatos a sua função no Estado de Direito. A
demonstração de que a Teoria da Separação de Poderes buscava
responder a demandas do Estado Liberal erigido no século XVIII, de
manutenção do poder pela burguesia (em face do monarca e da
própria "massa" popular), e que nesse intento seu caráter instrumental
revelou-se mo uso de proteções meramente formais, como o princípio
da legalidade, leva à conclusão da inadequação de um sistema em
que os poderes são separados.
Remanesce, sim, a divisão funcional de competências entre os
poderes, sem, no entanto, que tal se dê em regime de monopólio das
atribuições que lhes dão nome. Na função de produção normativa, que
demanda em si mudança brusca, quer pela retirada do âmbito do
Estado de um amplo espectro de matérias, fundada no princípio da
subsidiariedade, quer pelo enxugamento do rol de assuntos
submetidos à reserva de lei (princípio formal), admitindo-se que
apenas as que se refiram aos direitos fundamentais, às garantias
democráticas, à segurança jurídica e outros meios essenciais de
manutenção de um Estado de Direito Democrático devem a ela
adstringir-se, estendendo-se, quanto às demais, a capacidade
normativa do Poder Executivo.
Na terceira parte (Capítulo II), dá-se a análise da divisão vertical de
funções perpetrada na adoção do federalismo, e após rápida análise
de sua origem no mundo, parte-se da constatação de que, no Brasil, a
dicotomia centralismo-descentralização acompanhou toda sua
trajetória histórica e que tal aspecto determinou especial dificuldade de
inter-relação entre os entes federados, problema que não encontra
solução senão na criação de instâncias institucionais próprias à ação
conjunta.
Assim, propõe-se a criação de instâncias - algumas personalizadas e
outras não personalizadas - titularizadas por União, Estados,
Municípios, setor produtivo e pela a sociedade civil organizada,
constituindo-se uma simulação da própria vontade geral, em âmbito
regional, de forma a otimizar a atividade estatal e mesmo de
demonstrar a propriedade da manutenção de um Estado Federal.
No último bloco, procura-se um adequado concerto entre as duas
proposições cunhadas, a partir da premissa de que tanto a divisão
vertical quanto a horizontal devem justificar-se diante do princípio da
eficiência, de observância imperiosa ao Estado contemporâneo.
12
A METODOLOGIA UTILIZADA
Trata-se de monografia de análise teórica, cujo desenvolvimento se
dá, como prescrevem Tachizawa e Mendes1, mediante uuma análise
crítica ou comparativa de uma teoria ou modelo já existente, a partir
de um esquema conceituai bem definido".
O meio de investigação utilizado foi fundamentalmente bibliográfico,
com o que se procurou determinar, a partir de um estudo exploratório,
o quadro de insatisfação quanto aos modelos de divisão de poderes e
de federalismo em vigor no Brasil. A partir desse delineamento de
correntes doutrinárias atreladas às idéias ora defendidas, foram
apresentadas algumas proposições teóricas para mudança dos
referidos modelos.
1 Takeshy Tachizawa e Gildásio Mendes. Coma Fazer Monografia na Prática. 6a. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2001.
13
OS OBJETIVOS DO ESTUDO E A DELIMITAÇÃO DO TEMA
Reforma do Estado é expressão um tanto equívoca, pois sob
sua égide têm surgido uma enorme gama de reflexões e propostas, e
a maior parte a identifica com apenas uma de suas dimensões (a
reforma administrativa, ou a reforma fiscal, por exemplo). De fato, uma
verdadeira reforma do Estado não tem como prescindir do
enfrentamento de questões políticas, econômicas e administrativas.
Mesmo que os paradigmas reinantes nos processos de reforma
de Estado já implantados ou em curso no mundo sejam, como nota
Sônia Fleury, "o novo gerencialismo e a perspectiva democratizante"2,
a abordagem deste trabalho, não obstante compartilhar dos principais
objetivos desses dois eixos - a eficiência administrativa e a
participação da sociedade -, adota norteamento próprio, na medida em
que privilegia a análise de questões que se referem à própria
organização do Estado.
Para reformar o Estado, porém, há de se ter claro o papel que se
deseja para esse Estado, como faz Adam Przeworski segundo seu
prisma:
"A reforma do Estado deve ser concebida
em termos de mecanismos institucionais pelos
2 jn Reforma dei Estado, artigo publicado na Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro:
Fundação Getulio Vargas, 35 (5): 16, set/out 2001.
14
quais os governos possam controlar o
comportamento dos agentes econômicos
privados, e os cidadãos possam controlar os
governos".
Parece óbvio que o objetivo que norteia a idéia de reforma é, via
de regra, variável segundo o modelo ideológico que o inspira, como se
depreende dos objetivos cunhados por Adam Przeworski, de
inspiração neoliberal, que parece prevalecer nas experiências norte-
americana, inglesa, australiana e neozelandesa, sob a forma do
managerialism, que compreende a idéia de emprestar da
administração de empresas técnicas gerenciais, fundadas na
flexibilidade, nos processos (e não na estrutura), na delegação de
poder, na fixação de metas, no desempenho e na responsabilização
(accountability) dos funcionários e no foco no cliente
Não obstante a inspiração ideológica, parece igualmente claro
que as medidas propostas e tomadas no bojo das reformas têm um fio
condutor comum, qual seja, conferir ao Estado mais eficiência e
eficácia em suas ações, alcançando o devido equilíbrio entre, de um
lado, as limitações fiscais, e de outro, as expectativas dos cidadãos.
A Eficiência, que sempre se exigiu do Estado - ao que parece
com êxito reduzido -, como ocorre no Brasil agora com expressa
elevação do princípio correspondente à égide constitucional (art. 37,
caput), ganha contornos ainda mais rígidos, com a parametrização da
eficiência privada a se impor, mesmo que a superioridade desta não
15
seja sempre um dado de realidade, mas muitas vezes uma mera
imagem produzida pela propaganda e pela própria comparação com a
combalida administração pública burocrática.
De fato, a mudança cultural, fortemente estimulada pela recente
revolução tecnológica e pelo fenômeno da globalização, fez ampliar a
demanda geral por eficiência dentre os cidadãos, que a exigem do
Estado como o fazem, na qualidade de clientes, de seus fornecedores
privados. É o que alertam Moreira Neto e Rabello de Castro (1998:
53)3:
"E aqui se chega à palavra-chave d
globalização: eficiência...Com efeito, as
pessoas querem ver seus interesses
satisfeitos, pouco importando quem o faça: se
será uma empresa ou uma entidade
governamental, se nacional, multinacional ou
estrangeira."
É que, seja qual for o modelo de Estado pretendido, mais ou
menos interventor, mais ou menos preocupado com as políticas
sociais, há necessidade de modernização dos procedimentos da
Administração Pública que o instrumentaliza, preocupação que, de
certa forma, sempre permeou os Estados modernos, como se viu na
reforma pombalina, ou, no Brasil, na reforma "Daspiniana" de 30, ou
na impetrada pelo Decreto-lei 200, em 1967.
16
Não se pode negar o acerto das constatações de Abrucio (1999:
175) acerca do modelo de Estado que se esfacelou a partir dos anos
70 a olhos vistos e por todos os lados do mundo - o Estado do Bem-
Estar Social, interventor e apoiado no modelo burocrático weberiano4-
comprometido pela crise econômica mundial dos anos 70 e 80, cuja
face recessiva pôs o Estado frente à forte crise fiscal, a qual, por sua
vez, agravou sua incapacidade para responder às demandas dos
cidadãos, gerando crise de legitimidade e de governabilidade.
É natural que se associe a idéia de reformar o Estado às debilidades
do regime burocrático, cujas disfunções suplantam suas qualidades.
Não se pode, portanto, negar a necessidade de revisão de diversos
mecanismos mediante os quais o Estado se move, boa parte deles
relacionados à Administração Pública - termo que designa, pelo
critério formal, o complexo de órgãos responsáveis pela função
administrativa, e pelo material, o complexo de atividades concretas
desempenhadas pelo Estado, visando o atendimento de necessidades
coletivas - de forma a que esse Estado adapte-se à nova realidade do
mundo globalizado, em que predominam as "regras de mercado" e se
torne, quanto ao menos, o que irônica e precisamente denominou o
sociólogo Michel Crozier de "Estado Modesto" (1989:10)5.
3Moreira Neto, Diogo de Figueiredo & Rabello de Castro, Paulo. O Futuro do Estado: do pluralismo
à desmonopolização do poder. ]n O Estado do Futuro. Ives Gandra da Silva Martins (coordenador)
. São Paulo: Pioneira, 1998.
4Abrucio, Fernando Luiz. Artigo. Os avanços e os dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da
administração pública à luz da experiência internacional recente. In Reforma do Estado e
Administração Pública Gerencial. Orgs. Luiz Carlos Bresser Pereira e Peter Kevin Spink. 3a. ed.
Rio de Janeiro: Editora FG, 1999.
5Crozier, Michel. Estado modesto, Estado moderno: uma estratégia para uma outra mudança.
Tradução de J.M. Villar de Queiroz. Brasília:FUNCEP, 1989.
17
Ocorre que as propostas e reflexões que permeiam o tema
Reforma do Estado induzem à idéia de que é suficiente, para que o
Estado se torne mais eficiente e eficaz, que suas funções e objetivos
sejam definidos claramente (o que fazer) e que sua máquina
administrativa seja modernizada {como fazer), quando o que pretende
demonstrar a presente dissertação é que fatores estruturais do
Estado, relacionados à distribuição de suas funções e à própria
origem das diretrizes governamentais (a quem compete fazer)
deveriam receber tratamento prioritário e antecedente.
Destarte, cabe investigar se remanesce válida a premissa de
limitação de poder que instruiu os ideais do Estado Moderno,
mediante a clássica tripartição de poderes concebida por Locke e
Montesquieu, a qual encontra correlação direta com os ditames
federalistas (também já vislumbrados por Montesquieu), que
igualmente visam a evitar a concentração de poder em uma só pessoa
política. Tratou-se de conter o poder mediante separação horizontal
(dos Poderes) e vertical (entes federais).
Ou, se inadmitindo que ainda caiba ao Estado o monopólio do
Poder, que nessa hipótese dissemina-se na sociedade - é o Estado
pluriclasse, como conceituado por Massimo Severo Giannini
(1988:60)6 -, é a busca da eficiência que se apresenta como elemento
norteador dessas divisões verticais e horizontais de funções (não mais
de poder) perpetradas pelos princípios da separação de poderes e
18
federativo, e dessa forma o ponto ótimo de equilíbrio dessas divisões
deve ser intentado tão-somente com vistas a tornar o Estado mais
eficaz.
Nesse sentido, o presente estudo assume caráter propositivo, ao
procurar demonstrar que esses sistemas de divisão de funções devem
ser permanentemente flexibilizados, tanto, no que concerne aos
poderes constituídos, mediante a redistribuição do rol de atribuições
de cada qual, quanto, no âmbito da divisão federativa, por intermédio
de alternativas institucionais que permitam uma cooperação sem
interferência entre os entes federados.
É, pois, por considerar que a relação entre os Poderes e o
modelo federativo constituem os eixos sobre os quais se erige o
Estado, que o presente estudo pretende abordar suas peculiaridades,
os motivos das crises que os cercam e as propostas e perspectivas de
mudança que sirvam a propiciar a aplicação das demais dimensões, já
amplamente debatidas, da reforma do Estado Brasileiro.
In Trattatodi Diritto Amministrativo, Padua, CEDAM, 1988.
19
CAPÍTULO I : A Reordenação da Divisão Horizontal das Funções
do Estado: O Papel do Poder Legislativo
1. O Legislativo no Brasil: um Poder em crise
Desde que o Estado passou a assumir uma maior gama de
atribuições, incorporando as chamadas funções sociais, ampliou-se e
especializou-se o papel do legislativo, posto a estabelecida
precedência da lei ante a atividade executiva, fenômeno que por certo
tanto contribuiu para ampliar sua importância, quanto seu
questionamento.
Já então o poder executivo se pretendia ágil a responder às
novas demandas, e para tanto especializava o chamado aparelho de
Estado (especialmente a burocracia), processo esse para o qual não
contribuía a morosidade e o conservadorismo do legislativo, já
ressaltado por Huntington acerca do Congresso americano:
"Velhas idéias, velhos valores, velhas
crenças custam a morrer no Congresso. A
estrutura do Congresso encoraja sua
perpetuação"7
7 Huntington, Samuel. Congressional Responses to the Twentieth Century. In Truman, David. Ed.
The Congress and America's Future. New York, Prentice-Hall, 1965, p. 16. APUD Abranches,
Sérgio Henrique Hudson de & Soares, Gláucio Ary Dillon. As Funções do Legislativo. Revista de
Administração Pública, 7(1):p. 74, jan//mar 1973, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1973.
20
A associação do Poder Legislativo à idéia de conservadorismo,
de instabilidade, de inoperância, de crise, enfim, praticamente
acompanhou toda a história dos parlamentos, e não foi diferente no
Brasil.
É bem verdade que as câmaras municipais das primeiras vilas
do Brasil-colônia até o século XVII gozavam de grande autonomia de
fato, em razão da ausência de maior controle da metrópole, mas esses
tempos já vão longe e há de se notar que tais instituições ainda
exerciam funções policiais, judiciárias e administrativas - não havia
separação de poderes.
Desde então, até a outorga da primeira constituição brasileira,
em 1824, o Poder Legislativo manteve-se, como as demais
instituições, sob dependência dos monarcas, como sói ocorrer em
regimes como o aqui então em vigor.
A inauguração de nosso período constitucional deu-se sob a
influência dos ventos liberais da Constituição americana, mas,
permanecendo o regime monárquico, preservou-se o poder do
imperador mediante a inserção de um quarto poder, o moderador, que
exercido conjuntamente com o Executivo, excluía o Legislativo de
qualquer esfera decisória.
O advento da república não alterou a correlação de forças entre
os poderes, com a adoção do presidencialismo justificada pela tese da
incompatibilidade entre parlamentarismo e federalismo, encampada
21
por Rui Barbosa8. Prevalecia o Poder Executivo, sustentado na
política dos governadores e no coronelismo9, sistema que se manteve
por muito tempo e excluía qualquer participação dos demais poderes,
como bem ressalta José Afonso da Silva acerca da Primeira República
(1889-1930):
"A Constituição enumerava, é verdade, as
matérias de competência presidencial, mas isso
não tinha maior significado, porque o poder
estava para além (ou para aquém, segundo as
circunstâncias) do formalismo constitucional. A
realidade forjou um presidencialismo de mando,
sem freio e sem contrapeso constitucional."
A Segunda República, iniciada com a revolução de 1930 sob
liderança de Getulio Vargas, pôs por terra qualquer eventual aspiração
de retomada de força do Poder Legislativo; foi, aliás, anulado pelo
Governo Provisório, que avocou para o Poder Executivo a própria
função legislativa, até que eleita a Assembléia Constituinte.
A Constituição de 1934, mesmo alterando a estrutura do Poder
Legislativo, com o abandono do bicameralismo puro mediante a
Barbosa, Rui. Comentários à Constituição Federal brasileira. São paulo:Saraiva, 1933, p. 404,
APUD Silva, José Afonso. Presidencialismo e Parlamentarismo no Brasil. Revista de Ciência
Política. Rio de Janeiro: FGV, 33(1) 9-32, nov. 1989.
"O Coronelismo resulta da superposição de um amplo regime representativo a uma estrutura econômica e
social inadequada. Manifesta-se em um compromisso, uma troca de favores, entre o poder público, que se
fortalece e a influência social dos chefes locais (poder privado), calcada na estrutura agrária". In Leal, Victor
Nunes. Coronelismo, Enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-
Omega, 1975.
22
retirada da função legiferante do âmbito do Senado - transformado em
um tipo de conselho (ou órgão de controle) cuja atribuição principal
consistia na busca da coordenação dos poderes - trazia conotação
formal que propiciava maior equilíbrio entre os poderes, o que não
logrou ocorrer porquanto as forças políticas dominantes já indicavam o
intuito de manutenção do status quo ante, e o Poder Legislativo
mantinha-se fraco na prática, "dominado que era por tendências
oligárquicas e conservadoras"10.
No período entre 1937 e 1945, sob a égide da chamada
"Constituição Polaca"11, o Senado é substituído por um Conselho de
Estado, instaura-se censura prévia, pena capital, afinal mecanismos
típicos de um período ditatorial, que reforça, obviamente, ainda mais
as competências presidenciais, como deixava claro o art. 73 da
citada Carta de 37:
"art. 73. O Presidente da República,
autoridade suprema do Estado, coordena a
atividade dos órgãos representativos, de
grau superior, dirige a política interna e
externa, promove e orienta a política
legislativa de interesse nacional, e
superintende a administração do país."
O processo de redemocratização do país sacramentada na
Constituição de 1946 foi protagonizado pelo Legislativo e tal papel
10 Silva, José Afonso. Op. cit., p. 18.
23
garantiu um período de estabilidade e equilíbrio na relação entre os
poderes; mas já vigorava uma nova correlação de forças políticas,
com partidos diversos e movimentos alheios às oligarquias
tradicionais, realidade essa que gerou mais tarde ferrenha disputa pelo
poder e substancial instabilidade política, quadro que se manteve
durante a vigência do sistema parlamentarista de governo e impediu
que o Poder Legislativo exercesse na plenitude suas funções de
Estado - salvo as políticas - mesmo que, talvez pela primeira vez na
história deste país, gozasse de prerrogativas formais e materiais para
exercê-las.
Mas não foi pequena a importância do Legislativo no decorrer
das diversas crises políticas vivenciadas nos anos 50 e início dos anos
60. Nesses momentos parecia revelar-se uma oculta força, a se
contrapor à imagem corrente de ineficiência que revestia todas as
casas legislativas. Afonso Arinos, no início dos anos 60, já defendia
que o Congresso deveria "controlar a legislação sem legislar", ao
qualificar a legislação editada pelo Legislativo como 'esparsa, muitas
vezes supérflua, quando não demagógica e desligada das
verdadeiras necessidades públicas"12, o Ministro do Supremo
Tribunal Oswaldo Trigueiro, em seminário realizado pela Universidade
de Brasília sobre a Reforma do Poder Legislativo, também já se
pronunciava pela revisão das funções do Poder Legislativo, em
especial no campo legislativo, criticando a atuação do Congresso :
Boa parte da doutrina nela constatou inspiração da Constituição Polonesa, considerada de natureza fascista.
24
"Ele vota poucas leis, e as poucas que
vota, pelos defeitos do processo legislativo, não
são evidentemente de melhor qualidade"13
Novos ventos favoráveis ao Legislativo somente surgiram com a
"Constituição-cidadã" de 1988 (antes disso, sob o regime militar,
manteve-se a regra de submissão ao Executivo). Considerada um dos
corolários da redemocratização do país e da nova realidade
constitucional, a ampliação da importância do Poder Legislativo na
condução do Estado concretizou-se em princípios e normas
constitucionais.14
Criou-se a expectativa de que o Poder Legislativo seria
verdadeiro co-gestor do Estado, postos a valorização de seu papel na
atividade legislativa - que lhe dá nome - , com a redução do rol de
matérias cuja iniciativa de lei pertence, privativamente, ao Poder
Executivo, bem como nas atividades de fiscalização e controle.
Chegou-se a afirmar que a despeito de se ter ratificado a opção pelo
sistema presidencialista, resultará da discussão um "sistema híbrido",
dados os poderes substanciais deferidos ao parlamento. A prática,
entretanto, afasta tal avaliação.
12 Mello Franco, Afonso Arinos de. Evolução da crise brasileira. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1965, p. 35-36.
13 APUD Marinho, Armando de Oliveira. A Modernização do Poder Legislativo. Revista de Ciência
Política 7 (3): 104. Rio de Janeiro: FGV, 1973.
14É o que explica José Afonso da Silva, in op. c/f., p. 30: "Contudo, a Constituição tentou fortalecer
o Congresso Nacional na busca do equilíbrio dos poderes. Especialmente, ampliou-lhe as
atribuições, devouveu-lhe boa parte do poder financeiro, mormente quanto à iniciativa de leis
nesse campo, e reforçou seu poder de controle sobre oo Executivo e a Administração Federal,
dando, para tanto, maiores poderes às comissões parlamentares e ao sistema de controle externo,
com o auxílio do Tribuna! de Contas."
25
Parece claro hoje que essa valorização propiciada pela
Constituição de 1988 não se fez concretizar, quer por razões relativas
à própria debilidade das instituições e de seus quadros (os agentes
políticos in casu), situação que gera, quanto àquela, uma relação de
subserviência das Casas Legislativas perante o Poder Executivo e,
quanto a estes, conchavos políticos que maculam a independência do
Poder, quer pelos bruscos - considerando o processo histórico -
adventos da chamada era tecnológica e do fenômeno da globalização,
que agravam ainda mais o que se logrou chamar de ingovernabilidade
- segundo Habermas15, uma combinação de "crise de gestão
administrativa com crise de apoio político dos cidadãos", cuja
ocorrência repercute na própria concepção dos Poderes. Os dois
elementos determinaram importantes mudanças de paradigma nas
relações na sociedade como um todo e, como não poderia deixar de
ocorrer, impuseram impacto nas relações desta com o Estado.
Consolida-se, assim, uma tendência que já se alinhavara quando
o Estado assumiu a feição de Estado prestador de serviços (Welfare
State); ao assumir uma bem mais extensa (ou especializada) gama de
atribuições, fez-se imperativo ao Executivo tornar-se mais forte não só
em sua função natural (administrativa), mediante melhoria qualitativa
de seu aparelhamento burocrático e de suas relações com parceiros
privados, mas também na função legislativa, que aos poucos deixa de
ser exclusiva do Poder Legislativo.
15 Habermas Juergen. Raison e Légitimité - problèmes de légitimation dans le capitalisme avance
(1973), trad. fr., Paris, Payot, 1978, p.70
26
Inverte-se, já a partir de então, sem aparente abalo da
democracia e do Estado de Direito, a hierarquia relativa entre Poderes
à qual se refere Gordillo16 - em que o Legislativo seria preeminente
em relação ao Executivo, sedimentando-se a prevalência do Poder
Executivo.
Se por um lado a informação se distribui com mais facilidade e
os instrumentos de participação popular nas ações de governo têm
seu uso difundido, por outro a celeridade imposta pelo mundo
globalizado da chamada era da informação torna inadequado e
ineficaz o atual (antigo) modo de legislar. O processo legislativo é, nos
moldes atuais, lento e não responde à administração de crises. Faz-
se, assim, acirrar a edição de normas e medidas pelo Poder
Executivo, o que, no contexto atual, constitui-se em grande parte em
clara subtração do campo competencial do Legislativo. Mas a
necessidade de rapidez em suas ações não explica tudo; o uso das
Medidas Provisórias pelo Governo Federal, quando indiscriminado e
quando ausentes seus pressupostos constitucionais, representa,
irremediavelmente, grave desrespeito ao princípio da separação entre
os Poderes.
Não se pode deixar de registrar que a inclusão das Medidas
Provisórias na Constituição de 1988 foi intentada pelos constituintes
como meio de equilíbrio entre as duas variáveis, a necessidade de
16
Gordillo, Agustin. Princípios Gerais de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p.
52-57.
27
dotar o Executivo de meio de ação ágil e o refreamento do uso
autoritário, como se pode depreender da otimista afirmativa do
deputado Ferreira Lima, transcrita da obra de Figueiredo e Limongi:
"O decreto-lei, sempre abastardado pelos
regimes autoritários, reconquista a sua
roupagem democrática e os seus fundamentos
históricos como fator de modernização e
rapidez na ação administrativa nos casos de
importância e urgência, tão presentes no
mundo moderno."17
De fato o que se impõe é a revisão do próprio sistema de
separação de Poderes, cabendo ao Legislativo, em especial, encontrar
novo rumo, com valorização das funções de planejamento (formulação
e discussão de políticas públicas), controle e fomento. Essa mudança
insere-se na natural evolução da estrutura de poder do Estado, cuja
organização se altera, ora - como está a ocorrer - ao atribuir funções
(novas) a uma gama maior de órgãos, ora - como se impõe ocorrer -
a rever a estabelecida divisão de funções entre os Poderes.
E seja como reação ao mencionado incremento das iniciativas
legislativas por parte do Executivo, como supõem Abranches e
Soares, ou porque de fato a atividade de controle representar
prioritariamente - ela, sim, e não a atividade legislativa - a função do
17 Figueiredo, Angelina Cheibub & Limongi, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem
constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p.7.
28
Legislativo essencial ao Estado Democrático de Direito, dá-se que é
nesse campo que o Legislativo brasileiro tem obtido maiores tentos.
Aliás, os mesmos Abranches e Soares lembram que "para
Huntington, o Congresso, para subsistir e ser importante, não
precisa legislar. Sua função primordial deve ser o controle da
administração governamental.".
2. A Separação de Poderes
Mesmo que na Antigüidade Aristóteles (384 - 322 a.C), em sua
monumental obra Política, já identificasse e diferenciasse as
chamadas funções estatais ao classificar os atos correspondentes em
três tipos - deliberações sobre assuntos de interesse comum,
organização de cargos e magistraturas e atos judiciais -, por longo
período tal distinção se pôs em plano menor, ocultada pela
preponderância dos monarcas, que as personificavam e exerciam de
forma una.
Somente muitos séculos depois, quando da criação dos grandes
Estados territoriais, o estudo dos poderes do Estado retoma
relevância com a obra do francês Jean Bodin (1530 - 1596), precursor
da dicotomia público-privado e grande teórico da soberania que, não
obstante, nega o equilíbrio (de poderes) ao vislumbrar um poder
predominante (poder soberano - o Estado) e outros subordinados
(funções de governo); também trouxe à baila tal discussão Hobbes,
29
em sua defesa da indivisibilidade do poder e em sua crítica aos
governos mistos18, mesmo repelindo a idéia da separação das funções
do Estado.
Mas foi Montesquieu, em sua concepção de "governos
moderados" - contrapostos a "governos despóticos" - que
efetivamente lapida e formula a teoria da separação de poderes,
considerada baluarte do moderno Estado de Direito. Fê-lo no Livro XI
de "O Espírito das Leis" partilhando o poder soberano segundo suas
funções - executiva, legislativa e judiciária -, o que representou
avanço em relação à citada teoria mista, como bem assevera Bobbio :
"O governo misto deriva de uma
recomposição das três formas clássicas, e
portanto de uma distribuição do poder pelas
três partes componentes da sociedade, entre os
diversos possíveis "sujeitos" do poder, em
particular entre as duas partes antagônicas - os
ricos e os pobres (patrícios e plebeus). O
governo moderado de Monstesquieu deriva,
contudo, da dissociação do poder soberano e
da sua partição com base nas três funções
fundamentais do Estado...'*9
18 Sistema político idealizado por Políbio (séc. II a. C.) na obra clássica História (Livro VI), que
combina as três formas clássicas de governo, na busca do equilíbrio e da contenção do poder.
19 Bobbio, Norberto. A teoria sobre as formas de governo. 10a edição (trad.), p. 70. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 2000.
30
Se a contenção do poder contra o abuso já era objeto da
preocupação de Políbio e, após, entre outros, de Locke, inovou
Montesquieu ao vislumbrar, como destaca Bobbio "ao lado de uma
divisão horizontal do poder...uma divisão vertical"20, atribuindo as
funções do Estado a órgãos diferentes - poderes como instituições -
de forma que "o poder limite o poder"21 (le pouvoir arrete le pouvoir).
Tal idéia (um ideal, até então) inspirou a Revolução francesa e, com
especial reforço da concepção do freios e contrapesos (também
sugerida pelo próprio Montesquieu), a Constituição americana.
Quer seja na qualidade de poder predominante (como
vislumbrado por Bodin e, após, por LocKe22), ou como um dos poderes
autônomos descritos por Montesquieu; quer seja para, como foi objeto
da preocupação desses pensadores, o controle do poder do executivo,
ou para fins de eficiência governamental, como após acrescido nos
artigos federalistas23, o papel do Legislativo no Estado Liberal - cuja
matriz sobreviveria ao Estado contemporâneo - já se delineara,
cabendo-lhe não só formular as leis, mas fiscalizar-lhes a execução
("Mas, se, num Estado livre, o poder legislativo não deve ter o
direito de frear o poder executivo, tem o direito e deve ter a
20 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 136.
21 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de, O Espírito das Leis, p. 166. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
22 "Where the legislative and executive power are in distinct hands, as they are in ali moderated
monarchies and well framed govemments (...) In ali cases whilst the government subsisits, the
legislative is the supreme power...". In Locke, John. Treatises of government. USA: Easton Press,
1991, p. 213 e 207, APUD Silveira, Paulo Fernando, Freios e Contrapesos (Checks and Balances),
Belo Horizonte: DeIRev, 1999, p.75.
23 Série de artigos que antecederam a Constituição americana, mais tarde atribuídos a Hamilton,
Madison e Jay.
31
faculdade de examinar de que maneira as leis que criou foram
executadas...")24.
Qualquer análise sobre a Teoria da Separação de Poderes deve partir
do pressuposto de que não há uma fórmula única, um sistema
aplicável de modo indistinto em todos os Estados. Assim, a
similaridade entre os sistemas de separação de poderes adstringe-se
à idéia da tripartição das funções do Estado, mas mesmo em cada
Estado a forma de partilha varia conforme o momento histórico e a
positivação constitucional que o encerra.
Estabelecido tal pressuposto, cabe lembrar que mesmo que se
reconheça a Aristóteles as primeiras reflexões sobre a idéia de
separação de poderes, sua projeção se deu por intermédio de Locke
e, principalmente, de Monstesquieu, que não só conferiu-lhe um
sistema coerente em seu Espírito das Leis, como encontrou nas
circunstâncias históricas a si contemporâneas sede ideal para sua
proliferação.
Em França, a burguesia via chegada sua hora de se apropriar do
poder político que lhe faltava a complementar seu status social e
econômico, e dessa forma se fez o terceiro estado, o estado burguês:
"Essa identificação de si mesma com a
nação dava à burguesia, ao mesmo tempo,
consciência de sua importância e disposição de
24 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de. Op. cit. p. 174.
32
lutar pela sua ascensão política, pelejar pela
tomada do poder e pela direção efetiva dos
negócios públicos." (Victor Nunes Leal)25
A defender a liberdade econômica e o direito de propriedade, que se
constituíam nas pedras de toque do liberalismo implantado, encaixou-
se perfeitamente o sistema de contenção do poder erigido por
Montesquieu, que "não foge à regra da natureza instrumental das
instituições políticas; é, ao contrário, um exemplo elucidativo
dessa concepção básica."26
Mesmo que autores mais recentes identifiquem uma tendência
conservadora na concepção de Montesquieu, por considerarem-na
instrumento de arrefecimento das reivindicações das massas27, a
verdade é que o princípio da separação de poderes foi alçado à
posição de dogma do sistema democrático, tendo sido abarcado pelos
inúmeros Estados nos quais brotava o constitucionalismo, como nos
Estados Unidos da América, em cuja Carta Constitucional foi
consolidado o sistema de checks and balances, . e na própria
Constituição brasileira outorgada por D. Pedro I em 1824.
Esse sistema de freios e contrapesos, cuja abordagem no
Espírito das Leis de Montesquieu representou inegável contradição à
25, in Cinco Estudos, Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas.
26 Victor Nunes Leal in A Divisão de Poderes no Quadro Político da Burguesia. Revista de Ciência
Política. Rio de Janeiro : 20 (especial): 127-142, 1977.
33
sua formulação primeira, de especialização e monopolização de
funções por cada Poder, conferiu pragmatismo à teoria da separação
de poderes, tanto que seu autor ousou imaginar um sistema perfeito,
calcado no Estado Inglês, em que a contenção do poder ganhava
relevo sobre a especialização de funções.
Nesse ponto, em especial, denota-se a utilidade do princípio da
separação de poderes ao ideário liberal, pois soma-se a idéia de um
estado mínimo à utilização de diversos mecanismos que, sob a égide
da contenção do poder (ou, mais propriamente, do abuso de poder),
acabam por tornar o estado inerte e, dessa forma, propicia-se a
liberdade do indivíduo e a liberdade econômica desejada pela
burguesia, finalidades maiores da doutrina de Montesquieu.
Porém, esse estado letárgico só pôde corresponder às
necessidades de um Estado pré-industrial e suas debilidades logo se
demonstraram, como notou Paulo Bonavides:
"O princípio que requer três ramos
separados e teoricamente coordenados é
menos apropriado ao alarido e excursões da
política do século XX do que era ao ritmo lento
de dezessete décadas atrás'*8
27 ver Paulo Bonavides, in Ciência Política, São Paulo: Malheiros, 10a ed., 2001, e Franz Neumann
in Estado Democrático e Estado Totalitário, Rio de Janeiro, Zahar, 1969p. 156
28 In Do Estado Liberal ao Estado Social, Ed. Saraiva, , São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição,
2001, p. 37
34
Com a evolução do constitucionalismo e com a afirmação do
sistema de checks and balances, afastada portanto qualquer idéia de
soberania dos poderes, restou claro que as funções do Estado
atribuídas aos Poderes constituídos - Executivo, Legislativo e
Judiciário - não se ajustam, como ensina Celso Bastos29 a um critério
orgânico (ou subjetivo) de classificação, segundo o qual, por exemplo,
considerar-se-ia como sendo função legislativa todo ato proveniente
do Poder Legislativo.
É que além dos mecanismos de checks and balances,
destinados ao controle recíproco dos poderes, a realidade demonstrou
claramente que a divisão rígida de funções entre os poderes não se
aplicava, como bem se depreende da lição do citado jurista:
"...a tal ponto que é perfeitamente lícito
afirmar-se que hoje dizer que a função
legislativa é própria do Poder Legislativo é uma
verdade tão-somente relativa porque esse
próprio poder desempenha também funções
administrativas e judiciárias. Do mesmo modo
que também é verdadeiro o fato de o Poder
Executivo e o Judiciário legislarem, ainda que
em pequena escala. Daí porque o nome da
função de cada um dos poderes é o daquela
que eles exercem preponderantemente sobre
29 Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20a ed. atual, p. 345. São Paulo:
Saraiva, 1999.
35
as outras, que ele cumpre a título minoritário e
que não correspondem ao modelo de alocação
feito por Montesquieu e às quais se dá o nome
de funções atípicas."30
Se, de certa forma, a assertiva de Bastos já era verdadeira nos
primórdios do constitucionalismo, a revolução tecnológica e o advento
do Estado do Bem-Estar Social passaram a expor a fragilidade do
sistema, em especial no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, o
que claramente se percebeu no Brasil.
Resta esclarecer, para conferir justiça ao brilhantismo da
construção de Montesquieu, que esta, disseminada como separação
de poderes, sempre teve na divisão de poderes seu foco maior e tal
assertiva não revela qualquer intuito de compartimentalização rígida
de funções, pois prescreve aos Poderes, especialmente ao Executivo
e ao Legislativo( os que considera "visíveis"31) algumas prerrogativas
típicas de outros (o poder de veto ao Executivo, funções jurisdicionais
ao Legislativo).
30 Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciêncuia Política. 3* ed., p.79. São Paulo:
Saraiva, 1995.
31 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de. Op. cit. p. 284.
36
3. O Princípio da Legalidade
Como, no absolutismo, o monarca, "legitimado" pela vontade divina,
concentrava em si todos os poderes (recorde-se a célebre frase de
Luis XIV: "L'Etatc'est moi"), parece claro que o princípio da legalidade
não poderia então prosperar nesse período em que prevalecia a idéia
do Estado de Polícia.
Foi com o advento da Revolução Francesa, já influenciada pelos ares
do nascente constitucionalismo norte-americano, que a legalidade foi
alçada à posição de importância que até hoje usufrui, de principal
instrumento de submissão dos governos à vontade geral do povo -
mesmo que essa vontade ainda não fosse tão geral assim, dadas as
limitações ao sufrágio ainda reinantes no período revolucionário.
Nesse contexto, assim como o princípio da separação de poderes teve
no sistema de freios e contrapesos seu ponto de equilíbrio, teve na lei
sua expressão de validade, especialmente porque o conceito desta no
Estado Liberal deixa de se restringir a sua dimensão material (a
contemplação do justo e do racional), como pensavam os antigos -
(Platão, Sócrates, Aristóteles, Cícero, S. Tomás; após Hobbes, a lei
assume caráter voluntarista, passa a ser vontade e ordem, e Locke
tratou de vincular esse conteúdo volitivo da lei ao conceito de
liberdade ("não é tanto a limitação, mas sim o guia de um agente livre
37
e inteligente, no seu próprio interesse"32).
Quando Rousseau em seu Contrato Social33 cunha um conceito de lei
fundada na vontade geral, conferindo generalidade à origem (de
todos) e ao próprio objeto (para todos), erige-se em torno dessa idéia
todo um novo sistema, em que a lei impera, como fonte única das
obrigações impingidas ao cidadão. O art. 3o da Constituição Francesa
de 1791 estabelece que " não há na França autoridade superiora da
lei. O rei não reina mais senão por ela e só em nome da lei pode exigir
obediência". A Declaração dos Direitos do Homem já prenunciava em
1789,por seu artigo 5, que "a lei não proíbe senão as ações nocivas à
sociedade. Tudo o que não é vedado pela lei não pode ser impedido e
ninguém pode ser forçado a fazer o que ela não ordena". Estava
consagrado o princípio da legalidade.
Ademais, a generalidade da lei concebida por Rousseau traz ínsito o
princípio da igualdade, o qual, por sua vez, desdobra-se, na lição de
Manoel Gonçalves Ferreira Filho34, em Igualdade de todos perante o
Direito, a obrigatória uniformidade de tratamento dos casos iguais e,
face negativa, a proibição das discriminações"; e a tríade
principiológica conformadora do Estado de Direito completava-se com
o princípio da justicialidade, ou do controle judicial dos atos praticados
pelo poder público.
Essa nova forma de Estado, também denominado Estado Moderno, ou
32 In Macpherson, La Teoria Política dei Individualismo Posesivo, De Hobbes a Locke, p. 169,
APUD J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 818.
33 Do Contrato Social, Livro II, Cap. IV, XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX
34 In Estado de Direito e Constituição, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 27.
38
Estado Constitucional, possuía, pois, como traços marcantes,
ressaltados de forma acurada pela doutrina de Vasquez Jiménes35, (i)
Um estatuto constitucional, o corpo fundamental de leis, que
estabelece e limita os direitos e atribuições do indivíduo e do Estado,
conciliando autoridade e liberdade; (ii) a concepção do princípio da
separação de poderes; (iii) a adoção e vigência dos princípios
fundamentais destinados a garantir a vida, a igualdade e as formas
capitais de igualdade (pensamento, culto, expressão, ir e vir, petição
etc); e (iv) a Plena garantia constitucional dos direitos públicos
subjetivos.
Essa concepção teórica restritiva conferida à legalidade impunha aos
Poderes Executivo e Judiciário papel de meros executores da Lei, e
esse ponto fez claro a distinção dos modelos francês, que a abarcava,
e norte-americano, que prestigiava outras fontes do Direito (common
law).
Não obstante, mesmo nos Estados Europeus que adotaram o sistema
francês, o princípio da legalidade não obteve, perante o Poder
Executivo, o alcance limitador dos tempos recentes e mesmo atuais,
pois então prevalecia a chamada vinculação negativa da
Administração, restando a esta liberdade de ação em todos os pontos
não alcançados pela lei. Alimentada ainda pelos costumes
remanescentes de liberdade de ação gozados pelas monarquias
absolutas antecedentes ao novo regime, operava-se de fato uma
35 Renato Vasquez Jimenes. Princípio da legalidad en Ia ley general de administración pública. San
José, CR.: Editorial Alma Alma, 1985, p. 31-32
39
discricionariedade administrativa, indesejada porque identificada com
o abuso dos monarcas, mas cujo advento foi assim explicado por
Maurice Hauriou:
"A lei foi colocada sobre um pedestal e
uma teoria jurídica foi construída para
reconduzir todo o direito à regra de direito e
para subordinar a esta todo o poder, recusando
ao poder discricionário qualquer relevância
jurídica. Para responder a estes exageros, será
suficiente recordar que mesmo na França pós-
revolucionária, a supremacia da lei escrita
lentamente declinou e que, por um movimento
inverso, restaurou-se lentamente o poder dos
juízos discricionários, a ponto que fosse
restabelecido, entre os dois domínios, um novo
equilíbrio."
No âmbito judiciário, o juiz, como lembra Garcia de Enterría, fora
reduzido a ser apenas "Ia bouche qui prononce les paroles de Ia Io?', e
havia de se limitar a buscar a lei aplicável e extrair dela a
particularização que requeria a solução do caso concreto.36
O Poder Judiciário, porém constatando tal limitação da lei, passou a
privilegiar também a construção jurisprudencial, cuja relevância se
36 Eduardo Garcia de Enterría e Aurélio Menéndez Menéndez. Cuadernos Civitas. Madrid: Civitas
Ediciones, 1997, p. 42-43
40
notava, ampliava e até originava institutos jurídicos, como o fez,
conforme lembra Alexandre Santos de Aragão37, no âmbito do direito
público e do direito privado, com a teoria da imprevisão, com a
vedação ao enriquecimento sem causa, com a responsabilidade civil
do Estado, o abuso de direito, o desvio de finalidade, entre outros.
Esse império da lei, que se desdobrou, no Direito francês, na
implantação, por Napoleâo, de toda uma nova administração e de
uma codificação extensa (Códigos Civil, Comercial, Penal, Processual
Civil e Processual Penal, todos editados entre 1804 e 1810),
demonstrava, contudo, suas fragilidades, à medida que ficava clara a
impossibilidade de uma norma geral abarcar toda a gama de preceitos
que se lhe exigia, mormente porque o sistema era, por natureza, ab-
rogatório de todo o Direito anterior.
Cabe, porém, esclarecer que a legalidade até aqui tratada, de origem
liberal, concerta as idéias de soberania popular e de representação
parlamentar, consubstanciando o princípio da reserva legal, que
visava à proteção, em face do Estado, dos valores burgueses - a
propriedade e a liberdade.
Posta a lei, assim, como instrumento de contenção do Poder
(Executivo) e de garantia de objetivos racionalmente definidos,
consumou-se seu conceito como "eixo de concretização constitucional
do Estado de Direito. Tratava-se de um conceito unitário (não
37 In Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Revista de Direito Administrativo, 225: 109-129, 2001.
41
unilateralmente formal ou material), pois ele continha uma dimensão
material intrínseca e uma dimensão formal-processuaf, ensina
Canotilho38 (mesmo que não lhe agrade a distinção dicotômica desses
aspectos).
Mas o advento do Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social, em
que o Estado viu-se instado a atender a uma extensa gama de
atribuições em prol da coletividade - a busca do interesse público
passa a se constituir em função primordial do Estado, em detrimento
do atendimento de interesses individuais que caracterizou o Estado
Liberal - foi acompanhado também da prevalência da doutrina do
positivismo jurídico, para a qual ao Direito competia apenas determinar
não o conteúdo, nem o fim do Estado, mas a forma mediante a qual o
Estado agia39. Adstringia-se o conceito à legalidade administrativa, no
que Eros Roberto Grau40 chamou de processo de "transformação (na
verdade, involução)" da legalidade:
"Concebida a legalidade como a imposição
de um limite à atuação estatal, originalmente
implicava que todo elemento de um ato da
Administração deveria estar expressamente
previsto como elemento de uma hipótese
normativa, devendo a norma fixar poderes,
direitos, deveres etc, modos e seqüências dos
38 J.J. Gomes Canotilho, in op. Cit., p. 353..
39 F. J. Stahl tornou-se ícone desse pensamento com sua obra Filosofia do Direito .
40 In Algumas Notas Para a Reconstrução do Princípio da Legalidade, Revista da Faculdade de
Direito da USP, n° 78.
42
procedimentos, atos e efeitos em cada um dos
seus componentes e requisitos de cada ato -
do que resultava a concepção do Poder
Executivo como administração e da
Administração como execução".
Nessa linha evolutiva narrada de forma célere - porque o caráter
histórico não é fim desta reflexão -, chega-se ao chamado Estado de
Direito Democrático, em que se recupera a conjugação e mesmo a
confusão, que prefere Canotilho, dos aspectos material e formal do
Estado. No aspecto material, o Estado visa a um ideal de justiça, não
como mera abstração, mas como resultante de uma formulação
normativa de origem jurídico-constitucional. Formalmente, o Estado de
Direito Democrático reveste-se do princípio da divisão funcional dos
poderes, do princípio da legalidade da administração, da
independência dos tribunais e do acesso ao judiciário, segundo
taxionomia de Canotilho.
Se não se deve perder de vista o papel da legalidade como
instrumento da forma jurídica, que Von lhering considerava inimiga
declarada da arbitrariedade e irmão gêmea da liberdade41; é na sua
relação com o aspecto material do Estado de Direito que a legalidade
há de ser compreendida nos tempos atuais. Nem o princípio da
legalidade, nem o conceito de Estado de Direito fazem qualquer
sentido se desvinculados dos objetivos que encerram, vale dizer, das
41 Rudolph von lhering. O Espírito do Direito Romano. V. III. Rio de Janeiro:Alba Editora, 1943, p.
115.
43
próprias funções atribuídas ao Estado.
Se esse Estado Democrático de Direito deve, essencialmente, visar à
justiça social e se sua conformação deve corresponder à existência de
uma sociedade polissistêmica, que assume a primazia do Poder e
que compartilha a busca do interesse público , é nesse contexto que o
princípio da legalidade há de ser posto.
Não há mais porque adstringi-lo ao papel instrumental da divisão de
poderes, cuja concepção original - seja em Locke ou em Montesquieu
-, de natureza orgânica, consubstancia as funções estatais segundo
um critério subjetivo - função Executiva é do Poder Executivo, função
Legislativa é do Poder Legislativo e função judiciária é do Poder
Judiciário.
A simples utilização de taxionomia diversa, como fazem Renato Alessi
e, aqui no Brasil, Eros Grau, conduz à solução diversa a questão da
legalidade. A partir de um critério material, pautado, pois, no objeto da
ação do Estado, as funções deste, sob consenso geral, são a
normativa (produção de normas), a administrativa (execução de
normas) e judicial (aplicação de normas).
Sustentam esses autores que a função normativa é gênero, da qual
são espécies a função legislativa, a função normativa e a função
regimental, e com base nesse entendimento não vislumbram óbices a
uma ampla atividade normativa do Poder Executivo, que, aliás, não
adviria de delegação legislativa, mas de função própria atribuída pela
44
lei, como bem observa Eros Roberto Grau:
"Essa atribuição [normativa] conferida ao
Executivo pelo Legislativo consubstancia
permissão para o exercício de função que é
própria do Executivo, como faculdade
vocacionada à integração do ordenamento
jurídico. Por isso, ela preexiste à atribuição, da
qual podemos dizer cumprir o papel de
instrumento de controle da legalidade daquele
exercício. Assim, a atribuição conferida ao
Executivo para aludido exercício poderia ser
comparada ao tiro de partida que é dado para
que se desenrole uma corrida de 100 metros; a
faculdade de correr velozmente é própria a
quem participa da prova, como é própria ao
Executivo, repito, a função normativa
regulamentar; não obstante, tanto a faculdade
de correr quanto a função normativa
regulamentar não poderão ser desencadeadas
- a atleta a correr, o Executivo a emanar
regulamentos - senão após, respectivamente,
o estampido do tiro de partida e a expedição,
pelo legislativo, daquela atribuição."42
Assim, contra a maior parte da doutrina brasileira, que não admite
espaço para os regulamentos autônomos, mas apenas aos
45
regulamentos executivos, esse autor, de forma consistente, vislumbra
mesmo na Constituição brasileira alguns espaços para a ação
normativa do Poder Executivo, que se situariam, por exemplo, no
espaço distintivo entre o que chama de princípio da legalidade em
termos relativos (CF/88, art. 5o, II) e princípio da legalidade em termos
absolutos (art. 150, I).
A posição de Eros Grau coaduna-se com a percepção de que a visão
da legalidade pelo aspecto puramente da lei formal - emanada do
parlamento - não é garantidora das finalidades do Estado de Direito
Democrático, pois não se preocupa com seu conteúdo (material). Dei
Vecchio já advertia que a mais cruel das injustiças consiste
exatamente naquela que é feita em nome da lei...
Sendo assim, se a contenção da ação estatal em face da liberdade
dos cidadãos e os valores democráticos permanecem resguardados,
nada deve obstar a que a o Estado brasileiro adote, com vistas a uma
ação mais eficiente e eficaz, um modelo de divisão de poderes em
cujo bojo a atribuição normativa seja, em grande medida, atribuída ao
Executivo, desde que se resguarde ao Legislativo a proeminência
legislativa propriamente dita, quer autorizando aquele Poder nas
matérias que a Constituição exige reserva de lei formal (não
normativas), quer na expedição de leis acerca de matérias cuja
relevância e generalidade, amplitude e similaridade de tratamento
(pelo aspecto federativo) demandem sua regulação, como ocorre nos
Códigos (civil, comercial, penal etc), nas leis de normas gerais, nas
42 Op. Cit, p. 250.
46
leis de plano, nas que se referem a direitos sociais, a obrigações
tributárias, nas que instituem crime etc.
Ter-se-ia de forma expressa, tal qual no direito alemão, um rol de
matérias sujeitas à lei formal, cuja normatividade seria integrada pelos
regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, com natureza
autônoma quanto ao conteúdo da norma, o qual agiria, assim,
pretensamente, de forma mais ágil e apropriada (aos casos
concretos); outro rol sujeitar-se-ia também à lei material (com
conteúdo normativo), sem que tal importe em exclusão de capacidade
normativa do Executivo, mas esta se dá mediante os regulamentos
executivos.
Parte-se da consideração de que as leis emanadas do Legislativo
possuem densidades normativas variáveis segundo a predita
relevância que lhes confere o texto constitucional, ou mesmo a
peculiaridade da matéria - matérias mais relevantes são submetidas à
reserva absoluta de lei; matérias de alta complexidade técnica, ou que
demandem particularizações só possíveis no âmbito do administrador,
recebem da lei apenas preceitos gerais (são as lois-cadre do Direito
francês). Serve também a nortear tais divisões a distinção doutrinária43
que considera a existência de leis de arbitragem e leis de impulsão,
aquelas editadas com objetivo de compor interesses inter-individuais,
de manter a ordem interna, e estas com vistas a estabelecer políticas
públicas, conteúdo material que avoca a predominância de
43 Verem Manoel Gonçalves Ferreira Filho, íq Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968,
p. 218 e seguintes.
47
normatividade advinda do Executivo.
Mas que não se considere tais alternativas como derrogatórios do
princípio da separação dos poderes, nem como redutores da
importância do Poder Legislativo, a uma porque, como bem observa
Canotilho, "a separação dos poderes existe em cada direito positivo se
nele contemplada e qual nele tenha sido contemplada"44; a duas,
porque assim como importariam em acréscimo da função normativa do
Executivo, já prevalece hoje a possibilidade de edição, pelo
Legislativo, de leis cuja materialidade é ausente não pela inexistência
de conteúdo prescritivo, mas pela falta de generalidade e abstração,
configurando atuação tipicamente administrativa, própria dos atos
administrativos. São as leis-medida, próprias ao Direito alemão, mas
igualmente encontráveis na Carta brasileira.
No mais, o princípio da subsidiariedade, cuja aplicação cada vez
mais se impõe na implantação da divisão vertical de funções entre os
entes federados, também na seara ora tratada encontra sede própria,
mediante subtração de determinadas matérias do âmbito da Lei
formal, como exercício do fenômeno da deslegalização (]á abarcada
pela Constituição francesa de 1958), que se apresenta, conforme
descreve o eminente professor Diogo de Figueiredo45, sob as formas
da extralegalização, da paralegalização, da sublegalização e do
fomento público.
44 Op. Cit, p. 72-75.
45 Neto, Diogo de Figueireso Moreira. Sociedade, Estado e Administração Pública. Rio de
Janeiro:Topbooks, 1995. p. 88-90.
48
A deslegalização, que consiste na "retirada, pelo próprio
legislador, de certas matérias, do domínio da lei (domaine de Ia loi)
passando-as ao domínio do regulamento (domaine de rordonnance)"46
comporta situações em que a atribuição normativa é distinguida a
entidade estatais ( as agências reguladoras, por exemplo), ou mesmo
a pessoas privadas, neste caso sob a égide da subsidiariedade, que
enuncia a prevalência das medidas tomadas pela própria sociedade e
põe o Estado, por conseguinte, em função subsidiária, o que já vem
ocorrendo no Brasil em relação a diversas profissões, já sujeitas à
auto-regulação.
4. PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: A REVISÃO DAS FUNÇÕES DO
PODER LEGISLATIVO
Como já se demonstrou, nenhuma das funções estatais deve ser
objeto de monopólio de um Poder específico, pois, em alguma medida,
todos exercem atribuições normativas, julgadoras e administrativas. O
que se ora propõe é que haja, mais do que alteração substancial,
clareza normativa quanto, em especial, ao papel do Poder Legislativo.
Esse Poder, antes inexistente ou subjugado, assumiu, com
maior ou menor relevo, nas teorias de Bodin, Locke, Montesquieu e
Kant, entre outros que cunharam a base do Estado de Direito, posição
de extrema importância (proeminência, para Kant, por exemplo), pois
46 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, in Mutações do Direito Administrativo, Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 166.
49
a ele caberia tanto servir de contrapeso ao poder do Executivo, cuja
contenção constituía-se na principal motivação do advento desse novo
modelo de Estado, como representar a vontade geral, na produção da
lei.
A elaboração de leis, assim consideradas as normas genéricas e
abstratas que inovam a ordem jurídica, editadas segundo o
procedimento formal determinado pela Constituição, é função ainda
hoje exercida pelo Poder Legislativo sob a égide do princípio da
reserva legal, que não se confunde com o princípio da legalidade,
como já afirmado. Este determina a submissão à lei, ou a atuação
segundo os ditames da lei, enquanto aquele estabelece o alcance da
lei formal, vale dizer, a fixação, pela Constituição, de um espectro de
matérias cuja normatização compete à lei formal, editada pelo Poder
Legislativo.
Há de se lembrar que a função normativa, compreendida em
sentido amplo, que extrapola os limites da lei formal, é exercida
também pelos demais Poderes, tanto que ao Executivo, segundo a
Constituição brasileira, cabe editar até normas gerais e abstratas, por
Medida Provisória e por Regulamento (mesmo que a edição deste
decorra de anterior previsão em lei). Como função atípica, todos
expedem normas de efeito interno e outras não sujeitas ao princípio da
reserva legal.
Atualmente, no campo legislativo já se vislumbra clara
manifestação da preponderância do Poder Executivo com a utilização
50
das medidas provisórias, mediante as quais, é verdade, tanto (às
vezes) usurpa a função legislativa ao tornar por demais elástico os
conceitos de relevância e urgência, quanto determina a agenda das
Casas Legislativas ao lhes impor apreciação das medidas sob pena de
sobrestamento das demais matérias. Mesmo na tramitação dos
projetos de lei, a força do Executivo se exterioriza, especialmente pela
utilização de práticas tipicamente patrimonialistas - satisfação de
demandas dos parlamentares versus apoio na aprovação de projetos
do interesse do governo.
De fato, como observaram Figueiredo e Limongi, no período de
1989 a 1994, de um total de 1259 leis sancionadas, 85% foram
iniciadas pelo Poder Executivo (excluindo os 7% de leis iniciadas pelo
Judiciário no exercício de sua competência exclusiva). Notaram ainda
os citados pesquisadores que os projetos iniciados no Congresso têm
tempo muito maior de tramitação e são muito mais rejeitados dos que
os oriundos do Poder Executivo.47
Mas obviamente não se propõe aqui que a atividade de
produção normativa caiba apenas ao Poder Executivo, até porque
este, no sistema atual, não recebe para tanto o devido mandato dos
eleitores. Remanescem válidas as idéias de lei como ato de
consentimento dos cidadãos, como instrumento de contenção do
poder do Executivo e como sede autorizativa primária da atuação
administrativa (legalidade administrativa), ensejadoras do princípio da
51
reserva de lei.
Propõe-se aqui uma reordenação da função normativa, com a
adoção de um modelo que propicie um Estado eficiente, sem renúncia
às garantias e direitos intrínsecos ao Estado de Direito Democrático.
Há de se notar que o princípio da reserva legal - vale lembrar, da
exigência de tratamento de determinadas matérias por lei formal
(editada pelo Poder Legislativo) - não encontra mais, como bem
ensina o mestre Canotilho, fundamento na preservação dos valores
liberais de liberdade e propriedade, mas, sim, na preservação e
aplicabilidade dos direitos fundamentais, de forma que só a lei pode
dimensioná-los e determinar o âmbito de sua aplicação.
Assim sendo, é com base na premissa de preservação desse
valor fundamental do Estado de Direito Democrático que a reserva de
lei há de ser considerada quando se visa determinar não só o rol de
matérias a ele submetido, como, dentro deste rol, o quantum de
densidade normativa haverá de ser preenchido pelo próprio Poder
Legislativo e o quanto caberá ao Executivo.
Na fixação do âmbito da reserva de lei, há de guiar pelo
acolhimento de matérias afetas aos "princípios concretizadores do
princípio do Estado de Direito (princípio da confiança e seguranças
jurídicas, princípio da proporcionalidade, princípio da igualdade,
47 Op. Cit.,p. 50-55.
52
princípio da imparcialidade)"48.
Mas a preocupação com uma mais ampla integração normativa
por parte do próprio Legislativo, que deve nortear a delimitação do
sub-âmbito da reserva total à lei (formal e material) há que incidir
sobre um rol diminuto de matérias, em especial as que se refiram a
questões como defesa externa, organização do território, direitos e
responsabilidade políticos, garantias, direitos sociais, tributos, crimes
etc.
No campo das políticas públicas, em que pesa mais fortemente a
capacidade do Executivo de atender às variações de demanda e às
complexidades técnicas, bem como de priorizar os recursos,
conferindo maior agilidade e eficácia à ação governamental, deve
caber ao Legislativo apenas editar leis formais, autorizativas, com
reduzido ou nenhum conteúdo diretivo, como o faz com as leis
orçamentárias, ou fazer ressuscitar a lei delegada, prevista na
Constituição, mas relegada ao esquecimento, alternativa que combina
as exigências de lei formal e a possibilidade de o Executivo impor a
normatividade necessária.
Sem embargo, essas sugestões não demandam sequer
alteração do texto constitucional, mas exigem que o Poder Legislativo
se submeta a um planejamento estratégico, com clara previsão de
suas funções no campo legislativo, julgador e fiscalizatório, pois só
assim poderá recuperar sua importância histórica e permitir que o
48 J. J. Gomes Canotilho, op. Cit. P. 792.
53
Estado seja mais eficiente em suas ações e respostas às crescentes e
mutáveis demandas da sociedade.
Ademais, não é demais lembrar que a função normativa como
um todo está a sofrer alterações decorrentes da revolução tecnológica
em curso, que propicia cada vez mais meios de participação e mesmo
manifestação direta do cidadão acerca da agenda governamental;
também a ampliação da organização e dos espaços de participação
dos segmentos da sociedade civil transforma o processo de produção
normativa, retirando parte do mandato dos parlamentares, que se faz
substituir por meios outros de impulso e intervenção nessa agenda,
que deixa assim de ser apenas governamental para ser pública.
A redução de seu espectro de produção legislativa, ou sua
alteração para uma atuação mais negativa (por sustação ou veto),
como hoje ocorre com as medidas provisórias, otimizaria a ação
parlamentar na função de fiscalização, principalmente.
Esta atribuição do Poder Legislativo relaciona-se com suas
próprias origens e consiste na prerrogativa de fiscalizar os atos
administrativos e políticos praticados no âmbito do Poder Executivo,
mediante requerimentos de informação, constituição de comissões,
inclusive com poderes especiais de investigação (as CPI's),
convocação de ministros, acompanhamento contábil, financeiro,
patrimonial e operacional, auxiliado pelos tribunais de contas, entre
outros mecanismos.
54
Dentre tais instrumentos investigatórios de que dispõe o Poder
Legislativo, destaca-se a instauração de comissões parlamentares de
inquérito, adequadas às situações em que as prerrogativas
corriqueiras de fiscalização não logram resultados, daí a Constituição
Federal atribuir-lhes "poderes de investigação próprios das
autoridades judiciárias". Ademais, a própria forma de instituição da CPI
lhe confere caráter de excepcionalidade, traduzido no direito de uma
minoria (um terço) de decidir por sua instauração, quando, é cediço,
em regra as deliberações legislativas submetem-se à vontade da
maioria.
Há outros tipos de atos praticados pelo Poder Legislativo que
refogem à classificação básica antes enunciada e que representam
verdadeiras formas de ingerência - legítimas, pois são instrumentos
constitucionais de freios e contrapesos - do Poder Legislativo sobre os
demais poderes, em especial o Executivo. Decorrem, segundo
exemplos previstos na Constituição brasileira e em muitas outras, de
competências para aprovar escolha de titulares de determinados
cargos, para sustar atos normativos, efeitos de contratos etc.
Suas funções políticas também não podem ser relegadas a
segundo plano, pois é no âmbito do Poder Legislativo que se
implementam com mais vigor as atividades de mediação de interesses
da sociedade e do Estado, o que bem se pode perceber em
momentos de crises político-institucionais, em que cresce a
importância do Legislativo, como se abordará mais à frente.
55
Cabendo reafirmar-se a importância do Poder Legislativo na
condução do Estado, mediante a reordenação, em especial, de sua
participação na feitura das leis, para tanto se faz mister assumir, sem
amarras dogmáticas, uma revisão da divisão de funções estatais ora
estabelecida, mormente quanto ao alcance do princípio da legalidade.
Justifica-se certo temor quando se pretende rediscutir o princípio
em que se funda o Estado de Direito, assim denominado aquele que
garante proteção do particular frente o Estado - conceito cunhado em
contraposição ao antes predominante Estado de Polícia. Há um dito
popular segundo qual "gato escaldado tem medo de água fria". Não
se quer pôr em risco as conquistas do Estado de Direito, as proteções
cunhadas contra o arbítrio do Executivo, mas, como se procurou
demonstrar, ao menos no Brasil a concepção de (estrita) legalidade
não foi suficiente a determinar o almejado equilíbrio entre os poderes e
sequer governos ditatoriais, ao passo que a ciência política já tem
demonstrado que tal proteção da sociedade (contra o arbítrio do
Estado) se perfaz com a conjugação de determinados fatores sociais e
políticos e não propriamente em função da existência de leis. Tácito,
aliás, já constatara que "As leis abundam nas Repúblicas
corrompidas"49.
Mesmo no âmbito constitucional, restou claro que a distinção da
atividade legislativa não representa, por si, quebra do Estado de
Direito. Bobbio, ao discorrer sobre os "limites internos" a que se
submete o Estado, arrola, ao lado do "governo das leis" e da
56
separação de poderes, a consolidação dos direitos fundamentais do
homem e do cidadão. Constituem, na dicção de Kelsen, limites à
validade material do Estado, como bem ressalta o citado filósofo
italiano:
"Costuma-se chamar de constitucionalismo
à teoria e à prática dos limites do poder: pois
bem, o constitucionalismo encontra a sua plena
expressão nas constituições que estabelecem
limites não só formais mas também materiais
ao poder político, bem representados pela
barreira que os direitos fundamentais, ..."50
Trata-se de cogitar de uma reordenação da produção legislativa,
a se iniciar com a aplicação do festejado princípio da subsidiariedade,
deixando a cargo da sociedade tudo o que estiver a seu alcance
resolver, reduzindo-se, por conseguinte, o espectro da ação estatal e,
pois, da legislação que rege (e limita) o Estado; seguindo-se com a
retirada, do âmbito da lei formal, de determinadas matérias cuja
especificidade técnica ou volaticidade impõem deliberação executiva;
e da ampliação do princípio da legalidade, substituindo-se, como
enfatiza Garcia de Enterria51, a concepção de mero atrelamento a
normas específicas pela noção de regularidade jurídica, de adequação
do Direito como um todo, o que se logrou chamar de "princípio da
49 "Corruptissima republica prurimae /eges(Tácito: Anais, III, 27)
50 Bobbio, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: por uma teoria geral de política, (trad.). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.101.
57
juridicidade".
Procura-se, assim, sem comprometimento do Estado de Direito,
reforçar a atuação do Poder Legislativo nas ações de planejamento e -
mais ainda - nas de controle, sendo de se cogitar, no âmbito da
reformulação proposta, a inserção de novos mecanismos além dos já
existentes, dado que neles residiria boa parte da garantia de estabilidade
democrática e de respeito aos direitos individuais e coletivos que a
sociedade reclama a seus parlamentares.
51 Garcia de Enterría, Eduardo & Fernandes, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 4a
ed. , vol. I , Madrid: Civitas, 1983, p. 413 e ss.
58
CAPÍTULO II: FEDERALISMO À BRASILEIRA
1. O Modelo Federativo Brasileiro
Até o advento da Constituição Norte-Americana de 1787, vigiam no
mundo, basicamente, duas forma de organização do Estado - a
unitária e a confederação - e foi na busca de um sistema
intermediário, que excluísse a indesejada possibilidade de um
centralismo autocrático (como o de Bodin), ao passo que
compartilhasse funções e interesses comuns ao estados originários (a
defesa externa, em especial), sem lhes retirar autonomia, que a
Federação pôs-se a prevalecer em muitos Estados, em todas partes.
Daí o conceito tradicional de Estado Federal, como o de Jellinek,
segundo o qual trata-se de "Estado soberano, formado por uma
pluralidade de Estados, no qual o poder do Estado emana dos
CO
Estados-membros, ligados numa unidade estatal."
Como deixam transparecer tanto o modelo original norte-americano,
quanto o próprio conceito genérico a partir deste erigido, a pre
existência dos estados-membros, - detentores, até então, de
soberania -, sobre o Estado Federal a se conformar parece ser traço
característico do federalismo.
52 G, Jellinek, in Allgemeine Staatslehre, 3a ed... p. 769, APUD Bonavides, Paulo, in Ciência
Política, São Paulo: Malheiros, 10a edição, p. 179.
59
Surge, então, no contexto escolhido para o presente estudo, a questão
da evidente inaplicabilidade de tal preceito ao caso do Brasil, onde
inexistiam estados soberanos (sequer autônomos) e o federalismo,
não obstante, prosperou, mesmo que sua existência jamais tenha sido
serena, imune a crises.
Essa aparente atipicidade do caso brasileiro convola-se, porém, em
apenas uma das diversas facetas assumidas pelo federalismo mundo
afora, diversidade essa que em muito se explica por sua origem em
modelo basicamente empírico, como observou Max Bellof ("the
Federalist was written for a praticai pumose. and to be read bv praticai
me/7.")53. A subjunção do estudo do federalismo a modelos teóricos
pouco ou nada contribui a sua compreensão, dada sua natureza
dinâmica, que o caracteriza, na visão de Alexandre Marc, como "uma
revolução permanente, aperfeiçoado constantemente pela experiência
e pela razão"54.
É fácil perceber que o federalismo é idéia que serve tanto à motivação
originária pela centralização (quando se requer um ente de
agregação), como no caso norte-americano, quanto pela
descentralização, como ocorreu no Brasil, que passou do unitário ao
federal.
53 Tunc, André. Lê Fédéralism. Paris, LGDJ, 1957. p. 10-16. APUD Tavares, Ana Lúcia de Lyra.
Oestado Federal: Delineamentos. Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro: Fundação Getulio
Vargas, v. 22, n° 4, p. 42, 1979.
54 Marc, Alexandre. Révolution Américaine, revolution européenne. Lausane, Centre de
Recherches Européenes, 1977. APUD Tavares, Ana Lúcia de Lyra. Oestado Federal:
Delineamentos. Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, v. 22, n° 4,
p. 48, 1979.
60
Assim é que no Brasil a adoção do Estado Federal não surgiu de
estados pré-existentes, mas de unidades territoriais que adquiriram,
paulatinamente, em processo bem mais fático do que normativo,
relevante autonomia. Porém, tal peculiar contexto histórico não fez do
processo de adoção do federalismo no Brasil algo tão diferenciado dos
demais, posto a incidência de identidade de propósitos políticos. A
idéia do Estado liberal vigorava forte e seu impulsionador, a burguesia,
vislumbrou nesse novel modelo forma eficaz de evitar o despotismo
monárquico, ou sua mais danosa característica - na concepção
burguesa -, o intervencionismo estatal.
Esse citado processo de autonomização espontânea (mas não isenta
de condicionantes externos) das unidades territoriais já se podia
identificar no período das capitaniais hereditárias, daí o fato de muitos
autores, como Clóvis Beviláqua, nele vislumbrarem o embrião do
federalismo brasileiro:
"As capitanias desenharam, no organismo
social, o esboço das futuras províncias e
prepararam a federação dos estados sob a
República"55
A dimensão e a variedade do território brasileiro foram também citados
como fatores motivadores da adoção do federalismo, no Manifesto
Republicano, documento redigido por Quintino Bocaiúva e subscrito
61
por diversos intelectuais, publicado em 1870 e grande impulsionador
do ideal republicano no Brasil. Do manifesto, sobre a federação consta
que:
"No Brasil, antes ainda da idéia
democrática, encarregou-se a natureza de
estabelecer o princípio federativo. A topografia
do nosso território, as zonas diversas em que
ele se divide, os climas vários, as produções
diferentes, as cordilheiras e as águas estavam
indicando a necessidade de modelar a
administração e o governo local
acompanhando e respeitando as próprias
divisões criadas pela natureza física e imposta
pela imensa superfície do nosso território."56
Esse singelo e assistemático relato da adoção do federalismo no
Brasil serve a demonstrar que, em parte, tal se deu por conformações
territoriais (extensão x diversidade) e em outra parte por força do
contexto histórico, em que a luta por descentralização surge como
natural reação ao centralismo imposto por D.Pedro I na Constituição
de 1824. Não obstante, a divisão do território em vinte províncias,
prevista na Carta outorgada, mesmo com dirigentes provinciais
(Presidentes) mantidos sob total controle do Imperador (os nomeava e
demitia ad nutum). já delineava a organização federativa, como, aliás
55 Beviláqua, Clóvis. Estudos Jurídicos, p. 114
56 Cavalcanti, Themístocles. A Federação e a Verdade Democrática no Manifesto Republicano de
1870. Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 4(4): 5-22, out/dez
1970.
62
o fizera antes a Coroa Portuguesa quando de sua instalação no
Brasil, ao valorizar e reforçar o poder das províncias, tornando-as
interlocutoras do Poder Central, assim limitando o mandonismo local
até então em vigor57.
Ao apagar das luzes do período monárquico, o ideal federalista e seu
adjacente efeito (ou causa?) descentralizador representavam
aspirações mais fortes até do que a própria instalação da República.
Poder-se-ia dizer que os conceitos (de federação e de República)
pareciam então indissociáveis (não o eram tempos antes, quando se
discutiu a instauração do federalismo monárquico) mas era a luta por
maior autonomia das províncias que dominava os debates no período
pré-republicano.
A primeira Constituição Republicana, de 1891, adotou então a forma
federativa, consolidando a descentralização política, antes apenas
administrativa. Tal distinção é imprescindível ao conceito de
federação, já que há Estados unitários descentralizados
administrativamente, mas é a descentralização política, representada
em termos formais, na Constituição, por poderes competenciais
distribuídos (para legislar, primordialmente) entre os entes federados,
que lhe dá forma.
Era o federalismo em sua variante organizacional dita dual, em que a
Carta constitucional - e só ela - prescreve rígida repartição de
57 Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.
2a edição. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.
63
competências entre o Estado Federal (a União) e os estados-
federados, excluindo qualquer relação hierárquica, interpenetrações,
ou interferências recíprocas. Procurava responder tal variante às
preocupações quanto a eventual predomínio entre os entes.
Mas se for possível afirmar que há uma disfunção comum a todos os
modelos de Estado Federal, por certo esta é, empiricamente
considerando, a tendência ao predomínio do ente central, da União,
contrariando a expectativa de Tocqueville. A história republicana
brasileira foi irremediavelmente marcada por esse centralismo e nem a
presença de competências distribuídas constitucionalmente, inclusive
aos municípios, serviu a evitar o poder extravagante da União, como
notam Pedro Barros Silva e Vera Cabral Costa:
"A Federação brasileira não se constituiu
como resultado de um processo de
estabilização das relações de poder entre as
unidades subnacionais - relativamente
homogêneas e politicamente equipotentes -
que se unem através de um Governo nacional.
No Brasil, o Governo nacional precede as
instâncias subnacionais e, num movimento
contínuo e célere de centralização, define, em
menos de 50 anos, os rumos do
desenvolvimento e o papel dessas
64
instâncias"5*
O advento do Welfare State, com a assunção, pelo Estado Brasileiro,
da responsabilidade de prestar serviços sociais e implementar
garantias em caráter universal, aliado ao aumento da complexidade
da gestão econômica, que demanda conduta intervencionista (para
qual só o poder central tem recursos) e boa dose de unidade
decisória, explicam, em boa medida, a revalorização do ente nacional,
em detrimento das unidades federadas, processo que encontra
combustível natural na sempre latente tendência centralista brasileira,
advinda do processo de formação do Estado por aqui.
A chamada crise do federalismo, causada pela tendência de
predomínio político e econômico do governo central sobre as unidades
federadas, incide especialmente sobre a autonomia, considerada
componente imprescindível ao sistema federativo. Paulo Bonavides
lembra que George Scelle identifica "dois princípios capitais que são a
chave de todo o sistema federativo: a lei da participação e a lei da
autonomia"59. Mas a participação, consistente na assunção, pelos
estados-membros, de papel relevante no processo de elaboração da
vontade política da Nação, remanesce forte, mantendo consistente o
sistema federal brasileiro.
É bem verdade que, comportando o modelo brasileiro forma
58 Silva, Pedro Luiz Barras & Costa, Vera Lúcia Cabral. Descentralização e Crise da Federação. ]n
A Federação em Perspectiva:ensaios selecionados. São Paulo: FUNDAP, 1995, p. 262-283.
65
tridimensional, com a participação dos municípios, aos quais se fez
transferir boa parte da competência relativa à prestação de serviços à
coletividade, o poder dos estados-membros reduziu-se em termos
econômicos e fez-se carente de legitimidade e representatividade
frente aos anseios da população, mas a base forte das oligarquias
estaduais e a tradição política daí oriunda mantêm fortes os governos
estaduais.
Esse vínculo sólido das instituições políticas federais e estaduais,
acompanhado de relações com o poder local que se afirma como
interlocutor privilegiado da vontade (e pressão) popular, delineiam a
segunda variante de organização do Estado Federal,
concernentemente às competências, o federalismo cooperativo.
Trata-se não de uma panacéia, capaz de resolver todos os males do
federalismo dual, pois se sua essência reside na inexistência de
limites claros e definidos entre as competências dos níveis autônomos
de poder, é perigo inerente a tal modelo a possibilidade do
agravamento da predominância do governo central sobre os demais.
Paulo Bonavides há muito adverte que "o mal do chamado
'federalismo cooperativo' é a sua unidimensionalidade de fato, o
unilateralismo de decisão. Esse federalismo só tem uma cabeça: a
União."60
Esse modelo cooperativo apresenta, porém, duas vertentes, uma
59 Bonavides, Paulo. Ciência Política
66
autoritária e outra democrática. Aquela, de fato adotada no Brasil
desde a adoção do modelo federal, funda-se exatamente na força do
poder central, que se avoca competências e por isso nega o próprio
princípio federativo; esta advém do livre consentimento de unidades
verdadeiramente autônomas em prol de um pacto comum. Seus
pressupostos são, pois, a garantia da autonomia em todas suas
dimensões - política, administrativa, financeira -, além do fundamento
constitucional, já que só ele pode garantir mecanismos perenes de
inter-relação.
Hoje, no Brasil, não se pode afirmar presente qualquer dos dois
pressupostos citados, já que a autonomia, financeira em especial, não
se alcança ante a manutenção de proeminência da União no sistema
de arrecadação e sua ingerência constante na conformação do "bolo"
tributário do qual se transferem recursos a estados e municípios. É
certo que a redistribuição tributária operada pela Constituição de 1988
não foi capaz de conferir a esses entes, especialmente ao município,
"fatia" suficiente a respaldar a grande gama de atribuições que
assumiram. Remanesce, sem maiores motivos, no âmbito da União
uma grande parcela de recursos que, afinal, são distribuídos a estados
e municípios mediante a prática chamada de "transferência
negociada", a qual propicia campo para as antigas práticas de
clientelismo e patrimonialismo.
Não obstante, faltam ainda mecanismos constitucionais e legislações
60 In Política e Constituição - os caminhos da democracia, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1985, p.
103.
67
complementares reclamadas pela própria Constituição Federal, como
adverte o aqui multicitado mestre do federalismo pátrio, Prof. Paulo
Bonavides:
"Enquanto não chegam as fórmulas
jurídicas capazes de atualizar o problema
federativo e ultrapassar a crise, esta recresce a
cada momento, alteia a face ameaçadora sobre
as instituições e, quem sabe, nos não dará
dentro de pouco o aviso de despedida, se não
acudirmos com a medicação urgente que
requer."
2. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: INSTITUIÇÕES REGIONAIS E
FEDERALISMO
A advertência de Bonavides acerca do estado terminal do modelo
federal em vigor no Brasil, um tanto lúgubre, torna-se aqui desafio e
não permite que o presente texto se veja desprovido de caráter
propositivo, atendo-se ao conforto da análise descritiva e crítica. A
necessária atualização do modelo federativo brasileiro há de se dar
mediante proposições legislativas concretas, ou pela inclusão, dentre
as fórmulas reclamadas pelo autor, de medidas não apenas jurídicas,
mas de políticas públicas que permitam, empiricamente como é da
tradição federalista, dar efetividade à cooperação.
68
Nessa cooperação sem dominação cabem as políticas de
desenvolvimento regional que se anunciam juntamente com o retorno
do planejamento regional. Sob o aspecto espacial, as macrorregiões
pouco ou nada mais significam em termos de locus da aplicação de
políticas, já que as referenciações físico-histórico-culturais que indicam
similitude de carências e potencialidades têm base mais reduzida, cuja
conformação não respeita aqueles limites entre os estados-membros;
sob o aspecto material, se o objeto das políticas públicas é ainda a
desigualdade e a estagnação econômica, seu instrumento não mais se
resume à injeção de recursos - tende, mais, a meios de integração e
aproveitamento do capital endógeno; sob o aspecto subjetivo, a
concentração das atividades de planejamento e execução em uma
instância única, autárquica, federal e com espessas camadas
burocráticas, tampouco responde à concepção equilibrada e
participativa que se requer para o federalismo cooperativo hoje
desejado.
As novas feições, que rompem o paradigma anterior, tem ainda a
região como foco, mas se renova a busca pela delimitação de um
espaço unido por uma amálgama chamada identidade - física e social,
sem dúvida, mas também cultural e de potencial econômico. A
ineficácia da espacialização segundo o modelo anterior de
desenvolvimento regional demonstra-se também na dificuldade de
contemplação de instâncias de articulação adequadas àquela
dimensão.
A institucionalização da Região é demanda que encontra defensores
69
dentre ilustres estudiosos61, que chegam a propor sua inserção na
composição federativa, como unidade dotada de poder político e
autonomia. Compor-se-ia a federação tetradimensional, como refere
Baracho62. Mas para prosperar, essa proposição, dado seu alcance,
careceria antes ampliar o âmbito da discussão, saindo da Academia e
chegando à sociedade, de forma a ingressar na agenda do Congresso
e do próprio Governo.
Mas a institucionalização não requer necessariamente o poder político,
pois sendo sua base a legitimidade, poder-se-á possui-la em
instâncias outras, algumas administrativas e executivas, outras
despersonalizadas e deliberativas. A alternativa administrativa é, aliás,
contemplada na Carta Constitucional em vigor, cujo art. 43 não só se
refere a Regiões, como a organismos regionais. Mantém-se, porém, a
competência apenas da União para instituir Regiões e para elaborar
os planos de desenvolvimento regional a serem executados pelos tais
organismos regionais, instituídos, segundo o texto constitucional, para
essa função específica.
Num federalismo de equilíbrio - terminologia utilizada por Pelayo63 -,
tanto a atividade de planejamento quanto a de execução de políticas
há de ser compartilhada, assertiva que torna válida tanto para o
âmbito das competências expressamente deferidas pela Constituição,
61 Vide Berçovici, Gilberto. Constituição e Superação das Desigualdades Regionais. Direito
Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001.
62 José Alfredo de Oliveira Baracho. In Teoria Geral do Federalismo. Eio de Janeiro: Forense,
1996.
63 Pelayo, Manuel Garcia. Derecho Constitucional Comparado. Madrid:Aliança Universidad. P. 218,
1984.
70
quanto, especialmente, para o campo das competências comuns, que
exigem efetivas articulações intergovernamentais, por meio de
instituições comuns, multitularizadas, ou mediante os tradicionais
convênios de cooperação.
As parcerias regionais entre os entes federados dão-se, também, nos
consórcios intermunicipais, em comitês de bacias e outras formas de
redes federativas, conceito trabalhado por Abrucio e Soares em seu
profundo estudo sobre a experiência de cooperação intermunicipal no
Grande ABC. Nessa mesma obra64, citam Marta Arretche, que recusa
a visão maniqueísta atribuída à discussão sobre a dicotomia
centralização-descentralização e ressalta:
"A concretização dos ideais democráticos
depende menos da escala ou nível de governo
encarregado da gestão das políticas e mais da
natureza das instituições que, em cada nível de
governo, devem processar as decisões."65
Mesmo que a institucionalização das regiões deva comportar diversas
iniciativas cooperadas, ou redes, a existência de uma instância-eixo
para a "rede federativa" na qual desagüem as demais instâncias
parece ser caminho adequado.
64 Abrucio, Fernando & Soares, Marta Miranda. Redes Federativas no Brasil: cooperação
intermunicipal no grande abe. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer. Série Pesquisas, n° 24,
2001.
65 Arretche, Marta. A descentralização das políticas sociais no estado de São Paulo: 1986-94.
Relatório-sínteses. Pesquisa: balanços e perspectivas da descentralização das políticas sociais no
Brasil.
71
Afinal, se muitas vezes nas discussões sobre federalismo no Brasil
acaba-se elegendo como prioridade a questão do equilíbrio fiscal -
imprescindível para funcionamento do modelo -, parece olvidar-se que
para uma adequada definição das fatias de receita que devem caber a
cada unidade e à União, primeiro se impõe definir os específicos
papéis (competências) no rol de atribuições estatais.
Anna Maria Brasileiro, em documento produzido para um Simpósio
sobre Relações Intergovernamentais, promovido pelo IBAM e pela
extinta SAREM, órgão federal de articulação com estados e
municípios, já identificava, dentre o que chamou de "disfunções do
sistema atual", a questão das competências comuns no texto
constitucional.
A Constituição Federal estabelece, quanto ao objeto da atuação dos
entes federados, competências legislativas e materiais; aquelas
referem-se à prerrogativa de elaborar normas legais e estas ao poder-
dever de realizar ações concretas. Foi essa competência material que
a Carta Constitucional, no art. 23, atribuiu a todos os entes, em
comum, vale dizer, todos devem implementar medidas em prol das
matérias arroladas no citado dispositivo.
Previu também o mesmo artigo constitucional a edição de uma lei
complementar que para fixar "normas para a cooperação entre a
União, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista
o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
72
Essa lei jamais foi editada e o que se vê é a geração de ações
superpostas em determinados assuntos e de vazios institucionais em
outros, causando dispersão ou desperdício de recursos humanos e
materiais.
A aparente dificuldade em estabelecer campos definidos de atuação e
modos claros de colaboração poderia ser enfrentada sem maiores
sobressaltos, pois já há uma tendência histórica, afirmada por normas
constitucionais programáticas, de estimular a descentralização no
sentido de atribuir aos municípios a responsabilidade por boa parte
das prestações materiais - a municipalização. A ratificação dessa
diretriz, advém, em verdade, da aplicação final do princípio da
subsidiariedade, que consiste, na esclarecedora explicação de Manoel
Gonçalves Ferreira Filho em:
"...deixar ao homem o que ele pode fazer por
si; em nível mais alto, às comunidades, o que
podem estas realizar; aos grupos, inclusive
empresas, no plano da economia, da saúde, da
assistência, o que lhes está ao alcance; à
sociedade, o que somente esta pode atender;
ao Estado, o que não pode ser bem-feito pelos
círculos menores. E no âmbito deste, ao Poder
Local, o que este pode desempenhar. Apenas
dando ao Poder mais alto o que não pode ser
conduzido a não ser por ele."66
66 In Constituição e Governabilidade - ensaio sobre a (in) governabilidade brasileira. São
Paulo:Saraiva, 1995, p. 129.
73
Esse princípio, a par de delimitar o próprio campo de atuação do
Estado, afirmando a sua não-exclusividade sobre os interesses
públicos (reconhece-se a existência de um espaço público não-
estatal), também concede à regra de cooperação demandada pela
Constituição um critério, que obviamente não isenta os entes maiores
de suas responsabilidades, mas se lhes indica os campos do
planejamento - no âmbito normativo, inclusive - e da contribuição
material e financeira.'
Se, então, no campo das competências materiais comuns, em que a
necessidade de inter-relacionamento entre os Entes estatais é
especialmente necessária, a menção expressa ao princípio da
subsidiariedade no dispositivo constitucional em pauta serviria a
facilitar a delimitação dos papéis de cada qual, o município como
natural executor e os demais a fornecer recursos humanos e
financeiros, sem embargo da necessária formulação conjunta das
políticas.
É claro que a complementariedade pode se dar nas formas
tradicionais, esparsas, mediante convênios de cooperação, mas a
perenização da atuação conjunta requer instrumentos institucionais
igualmente estáveis, como fóruns permanentes e organismos
regionais (na forma do art. 43 da Constituição Federal), por meio dos
quais se possam implementar os convênios e os consórcios
intermunicipais (art. 241 da Constituição Federal).
74
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tese de mestrado

  • 1. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS - RJ ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR UMA REFORMA DOS SISTEMAS HORIZONTAL E VERTICAL DE DIVISÃO DE FUNÇÕES DO ESTADO DISSERTAÇÃO APRESENTADA A ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MAURÍCIO BALESDENT BARREIRA Rio de Janeiro
  • 2. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CENTRO DE FORMAÇÃO ACADÊMICA E PESQUISA CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POR UMA REFORMA DOS SISTEMAS HORIZONTAL E VERTICAL DE DIVISÃO DE FUNÇÕES DO ESTADO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR MAURÍCIO BALESDENT BARREIRA APROVADA EM 2£/õ*> /2-QOJL PELA COMISSÃO EXAMINADORA ProP. Deborah Moraes Zouain Doutora em Engenharia de Produção Prof. Aspásfa Brasileir )outora em Sociolaín Prof. Pauímde Bessa Antunes Doutor em Direito
  • 3. BARREIRA, Maurício Balesdent. Por uma reforma dos sistemas horizontal e vertical de divisão de funções do estado.
  • 4. Não há realização minha que não tenha, direta ou indiretamente, origem em Patrícia, Gabriel e Tiago. A eles dedico esta monografia, como tenho dedicado todo meu viver.
  • 5. Agradeço aos professores da EBAPE, em especial a Aspásia Camargo e Frederico Lustosa, fontes constantes de inspiração, e à Deborah Moraes Zouain, minha orientadora, bem como a todos meus alunos de graduação e pós-graduação, pois de sua avidez por conhecimento nasce a maior parte de meu estímulo para refletir e estudar sempre.
  • 6. SUMARIO Dedicatória 4 Agradecimentos 5 Resumo 7 Abstract 9 Introdução 11 Metodologia 13 Objetivos do Estudo e a Delimitação do Tema 14 Capítulo I: A Reordenação da Divisão Horizontal das Funções do do Estado: O Papel do Poder Legislativo 20 1. O Legislativo no Brasil: um Poder em crise 20 2. A Separação de Poderes 29 3. O Princípio da Legalidade 37 4. Primeira Proposição: A Revisão de Funções do Poder Legislativo 49 Capítulo II: Federalismo à Brasileira 59 1.0 Modelo Federativo Brasileiro 59 2. Segunda Proposição: Instituições Regionais e Federalismo 68 Conclusão 79 Bibliografia 83
  • 7. RESUMO Enquanto muito se discute nos meios acadêmicos e no próprio Congresso Nacional o teor das reformas política, tributária e previdenciária, todas elas, aliás, fundamentais ao país, esta monografia aborda outras dimensões de reforma, relacionadas à organização funcional do Estado Brasileiro. Assim porque a exigência de um Estado eficiente responde não somente a questão de sua legitimidade, mas é, hoje, no ambiente globalizado de intensa competição e de constante instabilidade, imperativo do próprio desenvolvimento de uma nação, especialmente o Brasil, que deve, paralelamente, enfrentar um enorme déficit social acumulado. Procura-se, então, discutir, numa visão prospectiva, uma nova divisão de funções entre os Poderes Executivo e Legislativo, especialmente no que concerne à produção normativa, cujo modelo atual, ainda fundado no dogma da reserva de lei, apresenta-se incapaz de responder com o grau de agilidade e competência que se exige do Estado atual. Remanesce, obviamente, a preocupação com a preservação dos valores democráticos e com a contenção do poder do Executivo, que instruíram a formação dos Estados constitucionais, mas a monopolização, pelo Legislativo, da produção de normas gerais e abstratas não é fator imprescindível ao alcance de tais objetivos e sequer corresponde ao modelo empiricamente em vigor no Brasil.
  • 8. No outro aspecto, da divisão vertical de funções determinada pelo modelo federativo brasileiro, aborda-se a "crise de relacionamento" entre os Entes Federativos, que se nota na dificuldade de adoção de políticas públicas conjuntas, problema que mais se agrava ante à justa demanda da sociedade em encontrar, para seus organismos, espaço de participação nessa mesma seara. Deixando à parte algumas sugestões de reconfiguração federativa, com inclusão ou exclusão de Entes, o presente estudo procura defender a adoção de soluções institucionais para a concretização da cooperação entre os Entes e para participação da sociedade na busca do interesse público.
  • 9. ABSTRACT While discussions go on within academic environment and The National Congress over reforms, be it political, tributary or on social welfare — actual subject in Brazil which is, indeed, primordial — the present monograph reaches into different paradigms on amendments, focusing the functional organization of the Brazilian State. The demand of an efficient State is due to the matter of legitimacy, as well as — within the contemporary globalized world, with intense competition and frequent instability — it is peremptory to the development of a country, particularly Brazil, which should, concomitantly, meet its huge social déficit. Thus, in a prospective point of view, one intends to scrutinize a new division of tasks between the Executive and Legislative; specially concerning normative production, which the current model — still based on the 'reservation of law' dogma — is unable to respond as nimble and proper as nowadays' State may claim. Prevails the apprehension with the preservation of democratic values along with the restraint of the Executive's power — which, both, answer for the development of constitutional State. Nevertheless, the Legislative monopolization of the general and abstract production of norms is not vital to achieve the referred goal; neither does it correspond to the current model in Brazil.
  • 10. On the hierarchical division of functions aspect, set by BraziliarTs federative model, the "relationship crisis" between Federative Entities is analyzed. Such crisis points out the obstruction to adopt public policies as a whole — an increasing problem, inasmuch as society strives delegation for its body politic. Not examining possible federative recostructions, such as Entities' omission or comprehension, this essay works on the adoption of institutional solutions to form a coalition between these Entities, and to stimulate the participation of society in public issues. 10
  • 11. INTRODUÇÃO A presente monografia encontra-se sistematizada em quatro partes distintas, com o seguinte teor: Na primeira, caracteriza-se a estrutura e a forma do texto, abordando seus objetivos, a delimitação do tema e a metodologia utilizada. No segunda (Capítulo I), discorre-se sobre o Poder Legislativo e os princípios correlatos a sua função no Estado de Direito. A demonstração de que a Teoria da Separação de Poderes buscava responder a demandas do Estado Liberal erigido no século XVIII, de manutenção do poder pela burguesia (em face do monarca e da própria "massa" popular), e que nesse intento seu caráter instrumental revelou-se mo uso de proteções meramente formais, como o princípio da legalidade, leva à conclusão da inadequação de um sistema em que os poderes são separados. Remanesce, sim, a divisão funcional de competências entre os poderes, sem, no entanto, que tal se dê em regime de monopólio das atribuições que lhes dão nome. Na função de produção normativa, que demanda em si mudança brusca, quer pela retirada do âmbito do Estado de um amplo espectro de matérias, fundada no princípio da subsidiariedade, quer pelo enxugamento do rol de assuntos submetidos à reserva de lei (princípio formal), admitindo-se que
  • 12. apenas as que se refiram aos direitos fundamentais, às garantias democráticas, à segurança jurídica e outros meios essenciais de manutenção de um Estado de Direito Democrático devem a ela adstringir-se, estendendo-se, quanto às demais, a capacidade normativa do Poder Executivo. Na terceira parte (Capítulo II), dá-se a análise da divisão vertical de funções perpetrada na adoção do federalismo, e após rápida análise de sua origem no mundo, parte-se da constatação de que, no Brasil, a dicotomia centralismo-descentralização acompanhou toda sua trajetória histórica e que tal aspecto determinou especial dificuldade de inter-relação entre os entes federados, problema que não encontra solução senão na criação de instâncias institucionais próprias à ação conjunta. Assim, propõe-se a criação de instâncias - algumas personalizadas e outras não personalizadas - titularizadas por União, Estados, Municípios, setor produtivo e pela a sociedade civil organizada, constituindo-se uma simulação da própria vontade geral, em âmbito regional, de forma a otimizar a atividade estatal e mesmo de demonstrar a propriedade da manutenção de um Estado Federal. No último bloco, procura-se um adequado concerto entre as duas proposições cunhadas, a partir da premissa de que tanto a divisão vertical quanto a horizontal devem justificar-se diante do princípio da eficiência, de observância imperiosa ao Estado contemporâneo. 12
  • 13. A METODOLOGIA UTILIZADA Trata-se de monografia de análise teórica, cujo desenvolvimento se dá, como prescrevem Tachizawa e Mendes1, mediante uuma análise crítica ou comparativa de uma teoria ou modelo já existente, a partir de um esquema conceituai bem definido". O meio de investigação utilizado foi fundamentalmente bibliográfico, com o que se procurou determinar, a partir de um estudo exploratório, o quadro de insatisfação quanto aos modelos de divisão de poderes e de federalismo em vigor no Brasil. A partir desse delineamento de correntes doutrinárias atreladas às idéias ora defendidas, foram apresentadas algumas proposições teóricas para mudança dos referidos modelos. 1 Takeshy Tachizawa e Gildásio Mendes. Coma Fazer Monografia na Prática. 6a. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 13
  • 14. OS OBJETIVOS DO ESTUDO E A DELIMITAÇÃO DO TEMA Reforma do Estado é expressão um tanto equívoca, pois sob sua égide têm surgido uma enorme gama de reflexões e propostas, e a maior parte a identifica com apenas uma de suas dimensões (a reforma administrativa, ou a reforma fiscal, por exemplo). De fato, uma verdadeira reforma do Estado não tem como prescindir do enfrentamento de questões políticas, econômicas e administrativas. Mesmo que os paradigmas reinantes nos processos de reforma de Estado já implantados ou em curso no mundo sejam, como nota Sônia Fleury, "o novo gerencialismo e a perspectiva democratizante"2, a abordagem deste trabalho, não obstante compartilhar dos principais objetivos desses dois eixos - a eficiência administrativa e a participação da sociedade -, adota norteamento próprio, na medida em que privilegia a análise de questões que se referem à própria organização do Estado. Para reformar o Estado, porém, há de se ter claro o papel que se deseja para esse Estado, como faz Adam Przeworski segundo seu prisma: "A reforma do Estado deve ser concebida em termos de mecanismos institucionais pelos 2 jn Reforma dei Estado, artigo publicado na Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 35 (5): 16, set/out 2001. 14
  • 15. quais os governos possam controlar o comportamento dos agentes econômicos privados, e os cidadãos possam controlar os governos". Parece óbvio que o objetivo que norteia a idéia de reforma é, via de regra, variável segundo o modelo ideológico que o inspira, como se depreende dos objetivos cunhados por Adam Przeworski, de inspiração neoliberal, que parece prevalecer nas experiências norte- americana, inglesa, australiana e neozelandesa, sob a forma do managerialism, que compreende a idéia de emprestar da administração de empresas técnicas gerenciais, fundadas na flexibilidade, nos processos (e não na estrutura), na delegação de poder, na fixação de metas, no desempenho e na responsabilização (accountability) dos funcionários e no foco no cliente Não obstante a inspiração ideológica, parece igualmente claro que as medidas propostas e tomadas no bojo das reformas têm um fio condutor comum, qual seja, conferir ao Estado mais eficiência e eficácia em suas ações, alcançando o devido equilíbrio entre, de um lado, as limitações fiscais, e de outro, as expectativas dos cidadãos. A Eficiência, que sempre se exigiu do Estado - ao que parece com êxito reduzido -, como ocorre no Brasil agora com expressa elevação do princípio correspondente à égide constitucional (art. 37, caput), ganha contornos ainda mais rígidos, com a parametrização da eficiência privada a se impor, mesmo que a superioridade desta não 15
  • 16. seja sempre um dado de realidade, mas muitas vezes uma mera imagem produzida pela propaganda e pela própria comparação com a combalida administração pública burocrática. De fato, a mudança cultural, fortemente estimulada pela recente revolução tecnológica e pelo fenômeno da globalização, fez ampliar a demanda geral por eficiência dentre os cidadãos, que a exigem do Estado como o fazem, na qualidade de clientes, de seus fornecedores privados. É o que alertam Moreira Neto e Rabello de Castro (1998: 53)3: "E aqui se chega à palavra-chave d globalização: eficiência...Com efeito, as pessoas querem ver seus interesses satisfeitos, pouco importando quem o faça: se será uma empresa ou uma entidade governamental, se nacional, multinacional ou estrangeira." É que, seja qual for o modelo de Estado pretendido, mais ou menos interventor, mais ou menos preocupado com as políticas sociais, há necessidade de modernização dos procedimentos da Administração Pública que o instrumentaliza, preocupação que, de certa forma, sempre permeou os Estados modernos, como se viu na reforma pombalina, ou, no Brasil, na reforma "Daspiniana" de 30, ou na impetrada pelo Decreto-lei 200, em 1967. 16
  • 17. Não se pode negar o acerto das constatações de Abrucio (1999: 175) acerca do modelo de Estado que se esfacelou a partir dos anos 70 a olhos vistos e por todos os lados do mundo - o Estado do Bem- Estar Social, interventor e apoiado no modelo burocrático weberiano4- comprometido pela crise econômica mundial dos anos 70 e 80, cuja face recessiva pôs o Estado frente à forte crise fiscal, a qual, por sua vez, agravou sua incapacidade para responder às demandas dos cidadãos, gerando crise de legitimidade e de governabilidade. É natural que se associe a idéia de reformar o Estado às debilidades do regime burocrático, cujas disfunções suplantam suas qualidades. Não se pode, portanto, negar a necessidade de revisão de diversos mecanismos mediante os quais o Estado se move, boa parte deles relacionados à Administração Pública - termo que designa, pelo critério formal, o complexo de órgãos responsáveis pela função administrativa, e pelo material, o complexo de atividades concretas desempenhadas pelo Estado, visando o atendimento de necessidades coletivas - de forma a que esse Estado adapte-se à nova realidade do mundo globalizado, em que predominam as "regras de mercado" e se torne, quanto ao menos, o que irônica e precisamente denominou o sociólogo Michel Crozier de "Estado Modesto" (1989:10)5. 3Moreira Neto, Diogo de Figueiredo & Rabello de Castro, Paulo. O Futuro do Estado: do pluralismo à desmonopolização do poder. ]n O Estado do Futuro. Ives Gandra da Silva Martins (coordenador) . São Paulo: Pioneira, 1998. 4Abrucio, Fernando Luiz. Artigo. Os avanços e os dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da administração pública à luz da experiência internacional recente. In Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Orgs. Luiz Carlos Bresser Pereira e Peter Kevin Spink. 3a. ed. Rio de Janeiro: Editora FG, 1999. 5Crozier, Michel. Estado modesto, Estado moderno: uma estratégia para uma outra mudança. Tradução de J.M. Villar de Queiroz. Brasília:FUNCEP, 1989. 17
  • 18. Ocorre que as propostas e reflexões que permeiam o tema Reforma do Estado induzem à idéia de que é suficiente, para que o Estado se torne mais eficiente e eficaz, que suas funções e objetivos sejam definidos claramente (o que fazer) e que sua máquina administrativa seja modernizada {como fazer), quando o que pretende demonstrar a presente dissertação é que fatores estruturais do Estado, relacionados à distribuição de suas funções e à própria origem das diretrizes governamentais (a quem compete fazer) deveriam receber tratamento prioritário e antecedente. Destarte, cabe investigar se remanesce válida a premissa de limitação de poder que instruiu os ideais do Estado Moderno, mediante a clássica tripartição de poderes concebida por Locke e Montesquieu, a qual encontra correlação direta com os ditames federalistas (também já vislumbrados por Montesquieu), que igualmente visam a evitar a concentração de poder em uma só pessoa política. Tratou-se de conter o poder mediante separação horizontal (dos Poderes) e vertical (entes federais). Ou, se inadmitindo que ainda caiba ao Estado o monopólio do Poder, que nessa hipótese dissemina-se na sociedade - é o Estado pluriclasse, como conceituado por Massimo Severo Giannini (1988:60)6 -, é a busca da eficiência que se apresenta como elemento norteador dessas divisões verticais e horizontais de funções (não mais de poder) perpetradas pelos princípios da separação de poderes e 18
  • 19. federativo, e dessa forma o ponto ótimo de equilíbrio dessas divisões deve ser intentado tão-somente com vistas a tornar o Estado mais eficaz. Nesse sentido, o presente estudo assume caráter propositivo, ao procurar demonstrar que esses sistemas de divisão de funções devem ser permanentemente flexibilizados, tanto, no que concerne aos poderes constituídos, mediante a redistribuição do rol de atribuições de cada qual, quanto, no âmbito da divisão federativa, por intermédio de alternativas institucionais que permitam uma cooperação sem interferência entre os entes federados. É, pois, por considerar que a relação entre os Poderes e o modelo federativo constituem os eixos sobre os quais se erige o Estado, que o presente estudo pretende abordar suas peculiaridades, os motivos das crises que os cercam e as propostas e perspectivas de mudança que sirvam a propiciar a aplicação das demais dimensões, já amplamente debatidas, da reforma do Estado Brasileiro. In Trattatodi Diritto Amministrativo, Padua, CEDAM, 1988. 19
  • 20. CAPÍTULO I : A Reordenação da Divisão Horizontal das Funções do Estado: O Papel do Poder Legislativo 1. O Legislativo no Brasil: um Poder em crise Desde que o Estado passou a assumir uma maior gama de atribuições, incorporando as chamadas funções sociais, ampliou-se e especializou-se o papel do legislativo, posto a estabelecida precedência da lei ante a atividade executiva, fenômeno que por certo tanto contribuiu para ampliar sua importância, quanto seu questionamento. Já então o poder executivo se pretendia ágil a responder às novas demandas, e para tanto especializava o chamado aparelho de Estado (especialmente a burocracia), processo esse para o qual não contribuía a morosidade e o conservadorismo do legislativo, já ressaltado por Huntington acerca do Congresso americano: "Velhas idéias, velhos valores, velhas crenças custam a morrer no Congresso. A estrutura do Congresso encoraja sua perpetuação"7 7 Huntington, Samuel. Congressional Responses to the Twentieth Century. In Truman, David. Ed. The Congress and America's Future. New York, Prentice-Hall, 1965, p. 16. APUD Abranches, Sérgio Henrique Hudson de & Soares, Gláucio Ary Dillon. As Funções do Legislativo. Revista de Administração Pública, 7(1):p. 74, jan//mar 1973, Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1973. 20
  • 21. A associação do Poder Legislativo à idéia de conservadorismo, de instabilidade, de inoperância, de crise, enfim, praticamente acompanhou toda a história dos parlamentos, e não foi diferente no Brasil. É bem verdade que as câmaras municipais das primeiras vilas do Brasil-colônia até o século XVII gozavam de grande autonomia de fato, em razão da ausência de maior controle da metrópole, mas esses tempos já vão longe e há de se notar que tais instituições ainda exerciam funções policiais, judiciárias e administrativas - não havia separação de poderes. Desde então, até a outorga da primeira constituição brasileira, em 1824, o Poder Legislativo manteve-se, como as demais instituições, sob dependência dos monarcas, como sói ocorrer em regimes como o aqui então em vigor. A inauguração de nosso período constitucional deu-se sob a influência dos ventos liberais da Constituição americana, mas, permanecendo o regime monárquico, preservou-se o poder do imperador mediante a inserção de um quarto poder, o moderador, que exercido conjuntamente com o Executivo, excluía o Legislativo de qualquer esfera decisória. O advento da república não alterou a correlação de forças entre os poderes, com a adoção do presidencialismo justificada pela tese da incompatibilidade entre parlamentarismo e federalismo, encampada 21
  • 22. por Rui Barbosa8. Prevalecia o Poder Executivo, sustentado na política dos governadores e no coronelismo9, sistema que se manteve por muito tempo e excluía qualquer participação dos demais poderes, como bem ressalta José Afonso da Silva acerca da Primeira República (1889-1930): "A Constituição enumerava, é verdade, as matérias de competência presidencial, mas isso não tinha maior significado, porque o poder estava para além (ou para aquém, segundo as circunstâncias) do formalismo constitucional. A realidade forjou um presidencialismo de mando, sem freio e sem contrapeso constitucional." A Segunda República, iniciada com a revolução de 1930 sob liderança de Getulio Vargas, pôs por terra qualquer eventual aspiração de retomada de força do Poder Legislativo; foi, aliás, anulado pelo Governo Provisório, que avocou para o Poder Executivo a própria função legislativa, até que eleita a Assembléia Constituinte. A Constituição de 1934, mesmo alterando a estrutura do Poder Legislativo, com o abandono do bicameralismo puro mediante a Barbosa, Rui. Comentários à Constituição Federal brasileira. São paulo:Saraiva, 1933, p. 404, APUD Silva, José Afonso. Presidencialismo e Parlamentarismo no Brasil. Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro: FGV, 33(1) 9-32, nov. 1989. "O Coronelismo resulta da superposição de um amplo regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Manifesta-se em um compromisso, uma troca de favores, entre o poder público, que se fortalece e a influência social dos chefes locais (poder privado), calcada na estrutura agrária". In Leal, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa- Omega, 1975. 22
  • 23. retirada da função legiferante do âmbito do Senado - transformado em um tipo de conselho (ou órgão de controle) cuja atribuição principal consistia na busca da coordenação dos poderes - trazia conotação formal que propiciava maior equilíbrio entre os poderes, o que não logrou ocorrer porquanto as forças políticas dominantes já indicavam o intuito de manutenção do status quo ante, e o Poder Legislativo mantinha-se fraco na prática, "dominado que era por tendências oligárquicas e conservadoras"10. No período entre 1937 e 1945, sob a égide da chamada "Constituição Polaca"11, o Senado é substituído por um Conselho de Estado, instaura-se censura prévia, pena capital, afinal mecanismos típicos de um período ditatorial, que reforça, obviamente, ainda mais as competências presidenciais, como deixava claro o art. 73 da citada Carta de 37: "art. 73. O Presidente da República, autoridade suprema do Estado, coordena a atividade dos órgãos representativos, de grau superior, dirige a política interna e externa, promove e orienta a política legislativa de interesse nacional, e superintende a administração do país." O processo de redemocratização do país sacramentada na Constituição de 1946 foi protagonizado pelo Legislativo e tal papel 10 Silva, José Afonso. Op. cit., p. 18. 23
  • 24. garantiu um período de estabilidade e equilíbrio na relação entre os poderes; mas já vigorava uma nova correlação de forças políticas, com partidos diversos e movimentos alheios às oligarquias tradicionais, realidade essa que gerou mais tarde ferrenha disputa pelo poder e substancial instabilidade política, quadro que se manteve durante a vigência do sistema parlamentarista de governo e impediu que o Poder Legislativo exercesse na plenitude suas funções de Estado - salvo as políticas - mesmo que, talvez pela primeira vez na história deste país, gozasse de prerrogativas formais e materiais para exercê-las. Mas não foi pequena a importância do Legislativo no decorrer das diversas crises políticas vivenciadas nos anos 50 e início dos anos 60. Nesses momentos parecia revelar-se uma oculta força, a se contrapor à imagem corrente de ineficiência que revestia todas as casas legislativas. Afonso Arinos, no início dos anos 60, já defendia que o Congresso deveria "controlar a legislação sem legislar", ao qualificar a legislação editada pelo Legislativo como 'esparsa, muitas vezes supérflua, quando não demagógica e desligada das verdadeiras necessidades públicas"12, o Ministro do Supremo Tribunal Oswaldo Trigueiro, em seminário realizado pela Universidade de Brasília sobre a Reforma do Poder Legislativo, também já se pronunciava pela revisão das funções do Poder Legislativo, em especial no campo legislativo, criticando a atuação do Congresso : Boa parte da doutrina nela constatou inspiração da Constituição Polonesa, considerada de natureza fascista. 24
  • 25. "Ele vota poucas leis, e as poucas que vota, pelos defeitos do processo legislativo, não são evidentemente de melhor qualidade"13 Novos ventos favoráveis ao Legislativo somente surgiram com a "Constituição-cidadã" de 1988 (antes disso, sob o regime militar, manteve-se a regra de submissão ao Executivo). Considerada um dos corolários da redemocratização do país e da nova realidade constitucional, a ampliação da importância do Poder Legislativo na condução do Estado concretizou-se em princípios e normas constitucionais.14 Criou-se a expectativa de que o Poder Legislativo seria verdadeiro co-gestor do Estado, postos a valorização de seu papel na atividade legislativa - que lhe dá nome - , com a redução do rol de matérias cuja iniciativa de lei pertence, privativamente, ao Poder Executivo, bem como nas atividades de fiscalização e controle. Chegou-se a afirmar que a despeito de se ter ratificado a opção pelo sistema presidencialista, resultará da discussão um "sistema híbrido", dados os poderes substanciais deferidos ao parlamento. A prática, entretanto, afasta tal avaliação. 12 Mello Franco, Afonso Arinos de. Evolução da crise brasileira. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965, p. 35-36. 13 APUD Marinho, Armando de Oliveira. A Modernização do Poder Legislativo. Revista de Ciência Política 7 (3): 104. Rio de Janeiro: FGV, 1973. 14É o que explica José Afonso da Silva, in op. c/f., p. 30: "Contudo, a Constituição tentou fortalecer o Congresso Nacional na busca do equilíbrio dos poderes. Especialmente, ampliou-lhe as atribuições, devouveu-lhe boa parte do poder financeiro, mormente quanto à iniciativa de leis nesse campo, e reforçou seu poder de controle sobre oo Executivo e a Administração Federal, dando, para tanto, maiores poderes às comissões parlamentares e ao sistema de controle externo, com o auxílio do Tribuna! de Contas." 25
  • 26. Parece claro hoje que essa valorização propiciada pela Constituição de 1988 não se fez concretizar, quer por razões relativas à própria debilidade das instituições e de seus quadros (os agentes políticos in casu), situação que gera, quanto àquela, uma relação de subserviência das Casas Legislativas perante o Poder Executivo e, quanto a estes, conchavos políticos que maculam a independência do Poder, quer pelos bruscos - considerando o processo histórico - adventos da chamada era tecnológica e do fenômeno da globalização, que agravam ainda mais o que se logrou chamar de ingovernabilidade - segundo Habermas15, uma combinação de "crise de gestão administrativa com crise de apoio político dos cidadãos", cuja ocorrência repercute na própria concepção dos Poderes. Os dois elementos determinaram importantes mudanças de paradigma nas relações na sociedade como um todo e, como não poderia deixar de ocorrer, impuseram impacto nas relações desta com o Estado. Consolida-se, assim, uma tendência que já se alinhavara quando o Estado assumiu a feição de Estado prestador de serviços (Welfare State); ao assumir uma bem mais extensa (ou especializada) gama de atribuições, fez-se imperativo ao Executivo tornar-se mais forte não só em sua função natural (administrativa), mediante melhoria qualitativa de seu aparelhamento burocrático e de suas relações com parceiros privados, mas também na função legislativa, que aos poucos deixa de ser exclusiva do Poder Legislativo. 15 Habermas Juergen. Raison e Légitimité - problèmes de légitimation dans le capitalisme avance (1973), trad. fr., Paris, Payot, 1978, p.70 26
  • 27. Inverte-se, já a partir de então, sem aparente abalo da democracia e do Estado de Direito, a hierarquia relativa entre Poderes à qual se refere Gordillo16 - em que o Legislativo seria preeminente em relação ao Executivo, sedimentando-se a prevalência do Poder Executivo. Se por um lado a informação se distribui com mais facilidade e os instrumentos de participação popular nas ações de governo têm seu uso difundido, por outro a celeridade imposta pelo mundo globalizado da chamada era da informação torna inadequado e ineficaz o atual (antigo) modo de legislar. O processo legislativo é, nos moldes atuais, lento e não responde à administração de crises. Faz- se, assim, acirrar a edição de normas e medidas pelo Poder Executivo, o que, no contexto atual, constitui-se em grande parte em clara subtração do campo competencial do Legislativo. Mas a necessidade de rapidez em suas ações não explica tudo; o uso das Medidas Provisórias pelo Governo Federal, quando indiscriminado e quando ausentes seus pressupostos constitucionais, representa, irremediavelmente, grave desrespeito ao princípio da separação entre os Poderes. Não se pode deixar de registrar que a inclusão das Medidas Provisórias na Constituição de 1988 foi intentada pelos constituintes como meio de equilíbrio entre as duas variáveis, a necessidade de 16 Gordillo, Agustin. Princípios Gerais de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 52-57. 27
  • 28. dotar o Executivo de meio de ação ágil e o refreamento do uso autoritário, como se pode depreender da otimista afirmativa do deputado Ferreira Lima, transcrita da obra de Figueiredo e Limongi: "O decreto-lei, sempre abastardado pelos regimes autoritários, reconquista a sua roupagem democrática e os seus fundamentos históricos como fator de modernização e rapidez na ação administrativa nos casos de importância e urgência, tão presentes no mundo moderno."17 De fato o que se impõe é a revisão do próprio sistema de separação de Poderes, cabendo ao Legislativo, em especial, encontrar novo rumo, com valorização das funções de planejamento (formulação e discussão de políticas públicas), controle e fomento. Essa mudança insere-se na natural evolução da estrutura de poder do Estado, cuja organização se altera, ora - como está a ocorrer - ao atribuir funções (novas) a uma gama maior de órgãos, ora - como se impõe ocorrer - a rever a estabelecida divisão de funções entre os Poderes. E seja como reação ao mencionado incremento das iniciativas legislativas por parte do Executivo, como supõem Abranches e Soares, ou porque de fato a atividade de controle representar prioritariamente - ela, sim, e não a atividade legislativa - a função do 17 Figueiredo, Angelina Cheibub & Limongi, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p.7. 28
  • 29. Legislativo essencial ao Estado Democrático de Direito, dá-se que é nesse campo que o Legislativo brasileiro tem obtido maiores tentos. Aliás, os mesmos Abranches e Soares lembram que "para Huntington, o Congresso, para subsistir e ser importante, não precisa legislar. Sua função primordial deve ser o controle da administração governamental.". 2. A Separação de Poderes Mesmo que na Antigüidade Aristóteles (384 - 322 a.C), em sua monumental obra Política, já identificasse e diferenciasse as chamadas funções estatais ao classificar os atos correspondentes em três tipos - deliberações sobre assuntos de interesse comum, organização de cargos e magistraturas e atos judiciais -, por longo período tal distinção se pôs em plano menor, ocultada pela preponderância dos monarcas, que as personificavam e exerciam de forma una. Somente muitos séculos depois, quando da criação dos grandes Estados territoriais, o estudo dos poderes do Estado retoma relevância com a obra do francês Jean Bodin (1530 - 1596), precursor da dicotomia público-privado e grande teórico da soberania que, não obstante, nega o equilíbrio (de poderes) ao vislumbrar um poder predominante (poder soberano - o Estado) e outros subordinados (funções de governo); também trouxe à baila tal discussão Hobbes, 29
  • 30. em sua defesa da indivisibilidade do poder e em sua crítica aos governos mistos18, mesmo repelindo a idéia da separação das funções do Estado. Mas foi Montesquieu, em sua concepção de "governos moderados" - contrapostos a "governos despóticos" - que efetivamente lapida e formula a teoria da separação de poderes, considerada baluarte do moderno Estado de Direito. Fê-lo no Livro XI de "O Espírito das Leis" partilhando o poder soberano segundo suas funções - executiva, legislativa e judiciária -, o que representou avanço em relação à citada teoria mista, como bem assevera Bobbio : "O governo misto deriva de uma recomposição das três formas clássicas, e portanto de uma distribuição do poder pelas três partes componentes da sociedade, entre os diversos possíveis "sujeitos" do poder, em particular entre as duas partes antagônicas - os ricos e os pobres (patrícios e plebeus). O governo moderado de Monstesquieu deriva, contudo, da dissociação do poder soberano e da sua partição com base nas três funções fundamentais do Estado...'*9 18 Sistema político idealizado por Políbio (séc. II a. C.) na obra clássica História (Livro VI), que combina as três formas clássicas de governo, na busca do equilíbrio e da contenção do poder. 19 Bobbio, Norberto. A teoria sobre as formas de governo. 10a edição (trad.), p. 70. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2000. 30
  • 31. Se a contenção do poder contra o abuso já era objeto da preocupação de Políbio e, após, entre outros, de Locke, inovou Montesquieu ao vislumbrar, como destaca Bobbio "ao lado de uma divisão horizontal do poder...uma divisão vertical"20, atribuindo as funções do Estado a órgãos diferentes - poderes como instituições - de forma que "o poder limite o poder"21 (le pouvoir arrete le pouvoir). Tal idéia (um ideal, até então) inspirou a Revolução francesa e, com especial reforço da concepção do freios e contrapesos (também sugerida pelo próprio Montesquieu), a Constituição americana. Quer seja na qualidade de poder predominante (como vislumbrado por Bodin e, após, por LocKe22), ou como um dos poderes autônomos descritos por Montesquieu; quer seja para, como foi objeto da preocupação desses pensadores, o controle do poder do executivo, ou para fins de eficiência governamental, como após acrescido nos artigos federalistas23, o papel do Legislativo no Estado Liberal - cuja matriz sobreviveria ao Estado contemporâneo - já se delineara, cabendo-lhe não só formular as leis, mas fiscalizar-lhes a execução ("Mas, se, num Estado livre, o poder legislativo não deve ter o direito de frear o poder executivo, tem o direito e deve ter a 20 Bobbio, Norberto. Op. cit., p. 136. 21 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de, O Espírito das Leis, p. 166. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 22 "Where the legislative and executive power are in distinct hands, as they are in ali moderated monarchies and well framed govemments (...) In ali cases whilst the government subsisits, the legislative is the supreme power...". In Locke, John. Treatises of government. USA: Easton Press, 1991, p. 213 e 207, APUD Silveira, Paulo Fernando, Freios e Contrapesos (Checks and Balances), Belo Horizonte: DeIRev, 1999, p.75. 23 Série de artigos que antecederam a Constituição americana, mais tarde atribuídos a Hamilton, Madison e Jay. 31
  • 32. faculdade de examinar de que maneira as leis que criou foram executadas...")24. Qualquer análise sobre a Teoria da Separação de Poderes deve partir do pressuposto de que não há uma fórmula única, um sistema aplicável de modo indistinto em todos os Estados. Assim, a similaridade entre os sistemas de separação de poderes adstringe-se à idéia da tripartição das funções do Estado, mas mesmo em cada Estado a forma de partilha varia conforme o momento histórico e a positivação constitucional que o encerra. Estabelecido tal pressuposto, cabe lembrar que mesmo que se reconheça a Aristóteles as primeiras reflexões sobre a idéia de separação de poderes, sua projeção se deu por intermédio de Locke e, principalmente, de Monstesquieu, que não só conferiu-lhe um sistema coerente em seu Espírito das Leis, como encontrou nas circunstâncias históricas a si contemporâneas sede ideal para sua proliferação. Em França, a burguesia via chegada sua hora de se apropriar do poder político que lhe faltava a complementar seu status social e econômico, e dessa forma se fez o terceiro estado, o estado burguês: "Essa identificação de si mesma com a nação dava à burguesia, ao mesmo tempo, consciência de sua importância e disposição de 24 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de. Op. cit. p. 174. 32
  • 33. lutar pela sua ascensão política, pelejar pela tomada do poder e pela direção efetiva dos negócios públicos." (Victor Nunes Leal)25 A defender a liberdade econômica e o direito de propriedade, que se constituíam nas pedras de toque do liberalismo implantado, encaixou- se perfeitamente o sistema de contenção do poder erigido por Montesquieu, que "não foge à regra da natureza instrumental das instituições políticas; é, ao contrário, um exemplo elucidativo dessa concepção básica."26 Mesmo que autores mais recentes identifiquem uma tendência conservadora na concepção de Montesquieu, por considerarem-na instrumento de arrefecimento das reivindicações das massas27, a verdade é que o princípio da separação de poderes foi alçado à posição de dogma do sistema democrático, tendo sido abarcado pelos inúmeros Estados nos quais brotava o constitucionalismo, como nos Estados Unidos da América, em cuja Carta Constitucional foi consolidado o sistema de checks and balances, . e na própria Constituição brasileira outorgada por D. Pedro I em 1824. Esse sistema de freios e contrapesos, cuja abordagem no Espírito das Leis de Montesquieu representou inegável contradição à 25, in Cinco Estudos, Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas. 26 Victor Nunes Leal in A Divisão de Poderes no Quadro Político da Burguesia. Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro : 20 (especial): 127-142, 1977. 33
  • 34. sua formulação primeira, de especialização e monopolização de funções por cada Poder, conferiu pragmatismo à teoria da separação de poderes, tanto que seu autor ousou imaginar um sistema perfeito, calcado no Estado Inglês, em que a contenção do poder ganhava relevo sobre a especialização de funções. Nesse ponto, em especial, denota-se a utilidade do princípio da separação de poderes ao ideário liberal, pois soma-se a idéia de um estado mínimo à utilização de diversos mecanismos que, sob a égide da contenção do poder (ou, mais propriamente, do abuso de poder), acabam por tornar o estado inerte e, dessa forma, propicia-se a liberdade do indivíduo e a liberdade econômica desejada pela burguesia, finalidades maiores da doutrina de Montesquieu. Porém, esse estado letárgico só pôde corresponder às necessidades de um Estado pré-industrial e suas debilidades logo se demonstraram, como notou Paulo Bonavides: "O princípio que requer três ramos separados e teoricamente coordenados é menos apropriado ao alarido e excursões da política do século XX do que era ao ritmo lento de dezessete décadas atrás'*8 27 ver Paulo Bonavides, in Ciência Política, São Paulo: Malheiros, 10a ed., 2001, e Franz Neumann in Estado Democrático e Estado Totalitário, Rio de Janeiro, Zahar, 1969p. 156 28 In Do Estado Liberal ao Estado Social, Ed. Saraiva, , São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição, 2001, p. 37 34
  • 35. Com a evolução do constitucionalismo e com a afirmação do sistema de checks and balances, afastada portanto qualquer idéia de soberania dos poderes, restou claro que as funções do Estado atribuídas aos Poderes constituídos - Executivo, Legislativo e Judiciário - não se ajustam, como ensina Celso Bastos29 a um critério orgânico (ou subjetivo) de classificação, segundo o qual, por exemplo, considerar-se-ia como sendo função legislativa todo ato proveniente do Poder Legislativo. É que além dos mecanismos de checks and balances, destinados ao controle recíproco dos poderes, a realidade demonstrou claramente que a divisão rígida de funções entre os poderes não se aplicava, como bem se depreende da lição do citado jurista: "...a tal ponto que é perfeitamente lícito afirmar-se que hoje dizer que a função legislativa é própria do Poder Legislativo é uma verdade tão-somente relativa porque esse próprio poder desempenha também funções administrativas e judiciárias. Do mesmo modo que também é verdadeiro o fato de o Poder Executivo e o Judiciário legislarem, ainda que em pequena escala. Daí porque o nome da função de cada um dos poderes é o daquela que eles exercem preponderantemente sobre 29 Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 20a ed. atual, p. 345. São Paulo: Saraiva, 1999. 35
  • 36. as outras, que ele cumpre a título minoritário e que não correspondem ao modelo de alocação feito por Montesquieu e às quais se dá o nome de funções atípicas."30 Se, de certa forma, a assertiva de Bastos já era verdadeira nos primórdios do constitucionalismo, a revolução tecnológica e o advento do Estado do Bem-Estar Social passaram a expor a fragilidade do sistema, em especial no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, o que claramente se percebeu no Brasil. Resta esclarecer, para conferir justiça ao brilhantismo da construção de Montesquieu, que esta, disseminada como separação de poderes, sempre teve na divisão de poderes seu foco maior e tal assertiva não revela qualquer intuito de compartimentalização rígida de funções, pois prescreve aos Poderes, especialmente ao Executivo e ao Legislativo( os que considera "visíveis"31) algumas prerrogativas típicas de outros (o poder de veto ao Executivo, funções jurisdicionais ao Legislativo). 30 Bastos, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciêncuia Política. 3* ed., p.79. São Paulo: Saraiva, 1995. 31 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de. Op. cit. p. 284. 36
  • 37. 3. O Princípio da Legalidade Como, no absolutismo, o monarca, "legitimado" pela vontade divina, concentrava em si todos os poderes (recorde-se a célebre frase de Luis XIV: "L'Etatc'est moi"), parece claro que o princípio da legalidade não poderia então prosperar nesse período em que prevalecia a idéia do Estado de Polícia. Foi com o advento da Revolução Francesa, já influenciada pelos ares do nascente constitucionalismo norte-americano, que a legalidade foi alçada à posição de importância que até hoje usufrui, de principal instrumento de submissão dos governos à vontade geral do povo - mesmo que essa vontade ainda não fosse tão geral assim, dadas as limitações ao sufrágio ainda reinantes no período revolucionário. Nesse contexto, assim como o princípio da separação de poderes teve no sistema de freios e contrapesos seu ponto de equilíbrio, teve na lei sua expressão de validade, especialmente porque o conceito desta no Estado Liberal deixa de se restringir a sua dimensão material (a contemplação do justo e do racional), como pensavam os antigos - (Platão, Sócrates, Aristóteles, Cícero, S. Tomás; após Hobbes, a lei assume caráter voluntarista, passa a ser vontade e ordem, e Locke tratou de vincular esse conteúdo volitivo da lei ao conceito de liberdade ("não é tanto a limitação, mas sim o guia de um agente livre 37
  • 38. e inteligente, no seu próprio interesse"32). Quando Rousseau em seu Contrato Social33 cunha um conceito de lei fundada na vontade geral, conferindo generalidade à origem (de todos) e ao próprio objeto (para todos), erige-se em torno dessa idéia todo um novo sistema, em que a lei impera, como fonte única das obrigações impingidas ao cidadão. O art. 3o da Constituição Francesa de 1791 estabelece que " não há na França autoridade superiora da lei. O rei não reina mais senão por ela e só em nome da lei pode exigir obediência". A Declaração dos Direitos do Homem já prenunciava em 1789,por seu artigo 5, que "a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo o que não é vedado pela lei não pode ser impedido e ninguém pode ser forçado a fazer o que ela não ordena". Estava consagrado o princípio da legalidade. Ademais, a generalidade da lei concebida por Rousseau traz ínsito o princípio da igualdade, o qual, por sua vez, desdobra-se, na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho34, em Igualdade de todos perante o Direito, a obrigatória uniformidade de tratamento dos casos iguais e, face negativa, a proibição das discriminações"; e a tríade principiológica conformadora do Estado de Direito completava-se com o princípio da justicialidade, ou do controle judicial dos atos praticados pelo poder público. Essa nova forma de Estado, também denominado Estado Moderno, ou 32 In Macpherson, La Teoria Política dei Individualismo Posesivo, De Hobbes a Locke, p. 169, APUD J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 818. 33 Do Contrato Social, Livro II, Cap. IV, XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX 34 In Estado de Direito e Constituição, São Paulo, Saraiva, 1988, p. 27. 38
  • 39. Estado Constitucional, possuía, pois, como traços marcantes, ressaltados de forma acurada pela doutrina de Vasquez Jiménes35, (i) Um estatuto constitucional, o corpo fundamental de leis, que estabelece e limita os direitos e atribuições do indivíduo e do Estado, conciliando autoridade e liberdade; (ii) a concepção do princípio da separação de poderes; (iii) a adoção e vigência dos princípios fundamentais destinados a garantir a vida, a igualdade e as formas capitais de igualdade (pensamento, culto, expressão, ir e vir, petição etc); e (iv) a Plena garantia constitucional dos direitos públicos subjetivos. Essa concepção teórica restritiva conferida à legalidade impunha aos Poderes Executivo e Judiciário papel de meros executores da Lei, e esse ponto fez claro a distinção dos modelos francês, que a abarcava, e norte-americano, que prestigiava outras fontes do Direito (common law). Não obstante, mesmo nos Estados Europeus que adotaram o sistema francês, o princípio da legalidade não obteve, perante o Poder Executivo, o alcance limitador dos tempos recentes e mesmo atuais, pois então prevalecia a chamada vinculação negativa da Administração, restando a esta liberdade de ação em todos os pontos não alcançados pela lei. Alimentada ainda pelos costumes remanescentes de liberdade de ação gozados pelas monarquias absolutas antecedentes ao novo regime, operava-se de fato uma 35 Renato Vasquez Jimenes. Princípio da legalidad en Ia ley general de administración pública. San José, CR.: Editorial Alma Alma, 1985, p. 31-32 39
  • 40. discricionariedade administrativa, indesejada porque identificada com o abuso dos monarcas, mas cujo advento foi assim explicado por Maurice Hauriou: "A lei foi colocada sobre um pedestal e uma teoria jurídica foi construída para reconduzir todo o direito à regra de direito e para subordinar a esta todo o poder, recusando ao poder discricionário qualquer relevância jurídica. Para responder a estes exageros, será suficiente recordar que mesmo na França pós- revolucionária, a supremacia da lei escrita lentamente declinou e que, por um movimento inverso, restaurou-se lentamente o poder dos juízos discricionários, a ponto que fosse restabelecido, entre os dois domínios, um novo equilíbrio." No âmbito judiciário, o juiz, como lembra Garcia de Enterría, fora reduzido a ser apenas "Ia bouche qui prononce les paroles de Ia Io?', e havia de se limitar a buscar a lei aplicável e extrair dela a particularização que requeria a solução do caso concreto.36 O Poder Judiciário, porém constatando tal limitação da lei, passou a privilegiar também a construção jurisprudencial, cuja relevância se 36 Eduardo Garcia de Enterría e Aurélio Menéndez Menéndez. Cuadernos Civitas. Madrid: Civitas Ediciones, 1997, p. 42-43 40
  • 41. notava, ampliava e até originava institutos jurídicos, como o fez, conforme lembra Alexandre Santos de Aragão37, no âmbito do direito público e do direito privado, com a teoria da imprevisão, com a vedação ao enriquecimento sem causa, com a responsabilidade civil do Estado, o abuso de direito, o desvio de finalidade, entre outros. Esse império da lei, que se desdobrou, no Direito francês, na implantação, por Napoleâo, de toda uma nova administração e de uma codificação extensa (Códigos Civil, Comercial, Penal, Processual Civil e Processual Penal, todos editados entre 1804 e 1810), demonstrava, contudo, suas fragilidades, à medida que ficava clara a impossibilidade de uma norma geral abarcar toda a gama de preceitos que se lhe exigia, mormente porque o sistema era, por natureza, ab- rogatório de todo o Direito anterior. Cabe, porém, esclarecer que a legalidade até aqui tratada, de origem liberal, concerta as idéias de soberania popular e de representação parlamentar, consubstanciando o princípio da reserva legal, que visava à proteção, em face do Estado, dos valores burgueses - a propriedade e a liberdade. Posta a lei, assim, como instrumento de contenção do Poder (Executivo) e de garantia de objetivos racionalmente definidos, consumou-se seu conceito como "eixo de concretização constitucional do Estado de Direito. Tratava-se de um conceito unitário (não 37 In Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contemporâneo. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, 225: 109-129, 2001. 41
  • 42. unilateralmente formal ou material), pois ele continha uma dimensão material intrínseca e uma dimensão formal-processuaf, ensina Canotilho38 (mesmo que não lhe agrade a distinção dicotômica desses aspectos). Mas o advento do Estado Social, ou Estado do Bem-Estar Social, em que o Estado viu-se instado a atender a uma extensa gama de atribuições em prol da coletividade - a busca do interesse público passa a se constituir em função primordial do Estado, em detrimento do atendimento de interesses individuais que caracterizou o Estado Liberal - foi acompanhado também da prevalência da doutrina do positivismo jurídico, para a qual ao Direito competia apenas determinar não o conteúdo, nem o fim do Estado, mas a forma mediante a qual o Estado agia39. Adstringia-se o conceito à legalidade administrativa, no que Eros Roberto Grau40 chamou de processo de "transformação (na verdade, involução)" da legalidade: "Concebida a legalidade como a imposição de um limite à atuação estatal, originalmente implicava que todo elemento de um ato da Administração deveria estar expressamente previsto como elemento de uma hipótese normativa, devendo a norma fixar poderes, direitos, deveres etc, modos e seqüências dos 38 J.J. Gomes Canotilho, in op. Cit., p. 353.. 39 F. J. Stahl tornou-se ícone desse pensamento com sua obra Filosofia do Direito . 40 In Algumas Notas Para a Reconstrução do Princípio da Legalidade, Revista da Faculdade de Direito da USP, n° 78. 42
  • 43. procedimentos, atos e efeitos em cada um dos seus componentes e requisitos de cada ato - do que resultava a concepção do Poder Executivo como administração e da Administração como execução". Nessa linha evolutiva narrada de forma célere - porque o caráter histórico não é fim desta reflexão -, chega-se ao chamado Estado de Direito Democrático, em que se recupera a conjugação e mesmo a confusão, que prefere Canotilho, dos aspectos material e formal do Estado. No aspecto material, o Estado visa a um ideal de justiça, não como mera abstração, mas como resultante de uma formulação normativa de origem jurídico-constitucional. Formalmente, o Estado de Direito Democrático reveste-se do princípio da divisão funcional dos poderes, do princípio da legalidade da administração, da independência dos tribunais e do acesso ao judiciário, segundo taxionomia de Canotilho. Se não se deve perder de vista o papel da legalidade como instrumento da forma jurídica, que Von lhering considerava inimiga declarada da arbitrariedade e irmão gêmea da liberdade41; é na sua relação com o aspecto material do Estado de Direito que a legalidade há de ser compreendida nos tempos atuais. Nem o princípio da legalidade, nem o conceito de Estado de Direito fazem qualquer sentido se desvinculados dos objetivos que encerram, vale dizer, das 41 Rudolph von lhering. O Espírito do Direito Romano. V. III. Rio de Janeiro:Alba Editora, 1943, p. 115. 43
  • 44. próprias funções atribuídas ao Estado. Se esse Estado Democrático de Direito deve, essencialmente, visar à justiça social e se sua conformação deve corresponder à existência de uma sociedade polissistêmica, que assume a primazia do Poder e que compartilha a busca do interesse público , é nesse contexto que o princípio da legalidade há de ser posto. Não há mais porque adstringi-lo ao papel instrumental da divisão de poderes, cuja concepção original - seja em Locke ou em Montesquieu -, de natureza orgânica, consubstancia as funções estatais segundo um critério subjetivo - função Executiva é do Poder Executivo, função Legislativa é do Poder Legislativo e função judiciária é do Poder Judiciário. A simples utilização de taxionomia diversa, como fazem Renato Alessi e, aqui no Brasil, Eros Grau, conduz à solução diversa a questão da legalidade. A partir de um critério material, pautado, pois, no objeto da ação do Estado, as funções deste, sob consenso geral, são a normativa (produção de normas), a administrativa (execução de normas) e judicial (aplicação de normas). Sustentam esses autores que a função normativa é gênero, da qual são espécies a função legislativa, a função normativa e a função regimental, e com base nesse entendimento não vislumbram óbices a uma ampla atividade normativa do Poder Executivo, que, aliás, não adviria de delegação legislativa, mas de função própria atribuída pela 44
  • 45. lei, como bem observa Eros Roberto Grau: "Essa atribuição [normativa] conferida ao Executivo pelo Legislativo consubstancia permissão para o exercício de função que é própria do Executivo, como faculdade vocacionada à integração do ordenamento jurídico. Por isso, ela preexiste à atribuição, da qual podemos dizer cumprir o papel de instrumento de controle da legalidade daquele exercício. Assim, a atribuição conferida ao Executivo para aludido exercício poderia ser comparada ao tiro de partida que é dado para que se desenrole uma corrida de 100 metros; a faculdade de correr velozmente é própria a quem participa da prova, como é própria ao Executivo, repito, a função normativa regulamentar; não obstante, tanto a faculdade de correr quanto a função normativa regulamentar não poderão ser desencadeadas - a atleta a correr, o Executivo a emanar regulamentos - senão após, respectivamente, o estampido do tiro de partida e a expedição, pelo legislativo, daquela atribuição."42 Assim, contra a maior parte da doutrina brasileira, que não admite espaço para os regulamentos autônomos, mas apenas aos 45
  • 46. regulamentos executivos, esse autor, de forma consistente, vislumbra mesmo na Constituição brasileira alguns espaços para a ação normativa do Poder Executivo, que se situariam, por exemplo, no espaço distintivo entre o que chama de princípio da legalidade em termos relativos (CF/88, art. 5o, II) e princípio da legalidade em termos absolutos (art. 150, I). A posição de Eros Grau coaduna-se com a percepção de que a visão da legalidade pelo aspecto puramente da lei formal - emanada do parlamento - não é garantidora das finalidades do Estado de Direito Democrático, pois não se preocupa com seu conteúdo (material). Dei Vecchio já advertia que a mais cruel das injustiças consiste exatamente naquela que é feita em nome da lei... Sendo assim, se a contenção da ação estatal em face da liberdade dos cidadãos e os valores democráticos permanecem resguardados, nada deve obstar a que a o Estado brasileiro adote, com vistas a uma ação mais eficiente e eficaz, um modelo de divisão de poderes em cujo bojo a atribuição normativa seja, em grande medida, atribuída ao Executivo, desde que se resguarde ao Legislativo a proeminência legislativa propriamente dita, quer autorizando aquele Poder nas matérias que a Constituição exige reserva de lei formal (não normativas), quer na expedição de leis acerca de matérias cuja relevância e generalidade, amplitude e similaridade de tratamento (pelo aspecto federativo) demandem sua regulação, como ocorre nos Códigos (civil, comercial, penal etc), nas leis de normas gerais, nas 42 Op. Cit, p. 250. 46
  • 47. leis de plano, nas que se referem a direitos sociais, a obrigações tributárias, nas que instituem crime etc. Ter-se-ia de forma expressa, tal qual no direito alemão, um rol de matérias sujeitas à lei formal, cuja normatividade seria integrada pelos regulamentos expedidos pelo Poder Executivo, com natureza autônoma quanto ao conteúdo da norma, o qual agiria, assim, pretensamente, de forma mais ágil e apropriada (aos casos concretos); outro rol sujeitar-se-ia também à lei material (com conteúdo normativo), sem que tal importe em exclusão de capacidade normativa do Executivo, mas esta se dá mediante os regulamentos executivos. Parte-se da consideração de que as leis emanadas do Legislativo possuem densidades normativas variáveis segundo a predita relevância que lhes confere o texto constitucional, ou mesmo a peculiaridade da matéria - matérias mais relevantes são submetidas à reserva absoluta de lei; matérias de alta complexidade técnica, ou que demandem particularizações só possíveis no âmbito do administrador, recebem da lei apenas preceitos gerais (são as lois-cadre do Direito francês). Serve também a nortear tais divisões a distinção doutrinária43 que considera a existência de leis de arbitragem e leis de impulsão, aquelas editadas com objetivo de compor interesses inter-individuais, de manter a ordem interna, e estas com vistas a estabelecer políticas públicas, conteúdo material que avoca a predominância de 43 Verem Manoel Gonçalves Ferreira Filho, íq Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 218 e seguintes. 47
  • 48. normatividade advinda do Executivo. Mas que não se considere tais alternativas como derrogatórios do princípio da separação dos poderes, nem como redutores da importância do Poder Legislativo, a uma porque, como bem observa Canotilho, "a separação dos poderes existe em cada direito positivo se nele contemplada e qual nele tenha sido contemplada"44; a duas, porque assim como importariam em acréscimo da função normativa do Executivo, já prevalece hoje a possibilidade de edição, pelo Legislativo, de leis cuja materialidade é ausente não pela inexistência de conteúdo prescritivo, mas pela falta de generalidade e abstração, configurando atuação tipicamente administrativa, própria dos atos administrativos. São as leis-medida, próprias ao Direito alemão, mas igualmente encontráveis na Carta brasileira. No mais, o princípio da subsidiariedade, cuja aplicação cada vez mais se impõe na implantação da divisão vertical de funções entre os entes federados, também na seara ora tratada encontra sede própria, mediante subtração de determinadas matérias do âmbito da Lei formal, como exercício do fenômeno da deslegalização (]á abarcada pela Constituição francesa de 1958), que se apresenta, conforme descreve o eminente professor Diogo de Figueiredo45, sob as formas da extralegalização, da paralegalização, da sublegalização e do fomento público. 44 Op. Cit, p. 72-75. 45 Neto, Diogo de Figueireso Moreira. Sociedade, Estado e Administração Pública. Rio de Janeiro:Topbooks, 1995. p. 88-90. 48
  • 49. A deslegalização, que consiste na "retirada, pelo próprio legislador, de certas matérias, do domínio da lei (domaine de Ia loi) passando-as ao domínio do regulamento (domaine de rordonnance)"46 comporta situações em que a atribuição normativa é distinguida a entidade estatais ( as agências reguladoras, por exemplo), ou mesmo a pessoas privadas, neste caso sob a égide da subsidiariedade, que enuncia a prevalência das medidas tomadas pela própria sociedade e põe o Estado, por conseguinte, em função subsidiária, o que já vem ocorrendo no Brasil em relação a diversas profissões, já sujeitas à auto-regulação. 4. PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: A REVISÃO DAS FUNÇÕES DO PODER LEGISLATIVO Como já se demonstrou, nenhuma das funções estatais deve ser objeto de monopólio de um Poder específico, pois, em alguma medida, todos exercem atribuições normativas, julgadoras e administrativas. O que se ora propõe é que haja, mais do que alteração substancial, clareza normativa quanto, em especial, ao papel do Poder Legislativo. Esse Poder, antes inexistente ou subjugado, assumiu, com maior ou menor relevo, nas teorias de Bodin, Locke, Montesquieu e Kant, entre outros que cunharam a base do Estado de Direito, posição de extrema importância (proeminência, para Kant, por exemplo), pois 46 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, in Mutações do Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 166. 49
  • 50. a ele caberia tanto servir de contrapeso ao poder do Executivo, cuja contenção constituía-se na principal motivação do advento desse novo modelo de Estado, como representar a vontade geral, na produção da lei. A elaboração de leis, assim consideradas as normas genéricas e abstratas que inovam a ordem jurídica, editadas segundo o procedimento formal determinado pela Constituição, é função ainda hoje exercida pelo Poder Legislativo sob a égide do princípio da reserva legal, que não se confunde com o princípio da legalidade, como já afirmado. Este determina a submissão à lei, ou a atuação segundo os ditames da lei, enquanto aquele estabelece o alcance da lei formal, vale dizer, a fixação, pela Constituição, de um espectro de matérias cuja normatização compete à lei formal, editada pelo Poder Legislativo. Há de se lembrar que a função normativa, compreendida em sentido amplo, que extrapola os limites da lei formal, é exercida também pelos demais Poderes, tanto que ao Executivo, segundo a Constituição brasileira, cabe editar até normas gerais e abstratas, por Medida Provisória e por Regulamento (mesmo que a edição deste decorra de anterior previsão em lei). Como função atípica, todos expedem normas de efeito interno e outras não sujeitas ao princípio da reserva legal. Atualmente, no campo legislativo já se vislumbra clara manifestação da preponderância do Poder Executivo com a utilização 50
  • 51. das medidas provisórias, mediante as quais, é verdade, tanto (às vezes) usurpa a função legislativa ao tornar por demais elástico os conceitos de relevância e urgência, quanto determina a agenda das Casas Legislativas ao lhes impor apreciação das medidas sob pena de sobrestamento das demais matérias. Mesmo na tramitação dos projetos de lei, a força do Executivo se exterioriza, especialmente pela utilização de práticas tipicamente patrimonialistas - satisfação de demandas dos parlamentares versus apoio na aprovação de projetos do interesse do governo. De fato, como observaram Figueiredo e Limongi, no período de 1989 a 1994, de um total de 1259 leis sancionadas, 85% foram iniciadas pelo Poder Executivo (excluindo os 7% de leis iniciadas pelo Judiciário no exercício de sua competência exclusiva). Notaram ainda os citados pesquisadores que os projetos iniciados no Congresso têm tempo muito maior de tramitação e são muito mais rejeitados dos que os oriundos do Poder Executivo.47 Mas obviamente não se propõe aqui que a atividade de produção normativa caiba apenas ao Poder Executivo, até porque este, no sistema atual, não recebe para tanto o devido mandato dos eleitores. Remanescem válidas as idéias de lei como ato de consentimento dos cidadãos, como instrumento de contenção do poder do Executivo e como sede autorizativa primária da atuação administrativa (legalidade administrativa), ensejadoras do princípio da 51
  • 52. reserva de lei. Propõe-se aqui uma reordenação da função normativa, com a adoção de um modelo que propicie um Estado eficiente, sem renúncia às garantias e direitos intrínsecos ao Estado de Direito Democrático. Há de se notar que o princípio da reserva legal - vale lembrar, da exigência de tratamento de determinadas matérias por lei formal (editada pelo Poder Legislativo) - não encontra mais, como bem ensina o mestre Canotilho, fundamento na preservação dos valores liberais de liberdade e propriedade, mas, sim, na preservação e aplicabilidade dos direitos fundamentais, de forma que só a lei pode dimensioná-los e determinar o âmbito de sua aplicação. Assim sendo, é com base na premissa de preservação desse valor fundamental do Estado de Direito Democrático que a reserva de lei há de ser considerada quando se visa determinar não só o rol de matérias a ele submetido, como, dentro deste rol, o quantum de densidade normativa haverá de ser preenchido pelo próprio Poder Legislativo e o quanto caberá ao Executivo. Na fixação do âmbito da reserva de lei, há de guiar pelo acolhimento de matérias afetas aos "princípios concretizadores do princípio do Estado de Direito (princípio da confiança e seguranças jurídicas, princípio da proporcionalidade, princípio da igualdade, 47 Op. Cit.,p. 50-55. 52
  • 53. princípio da imparcialidade)"48. Mas a preocupação com uma mais ampla integração normativa por parte do próprio Legislativo, que deve nortear a delimitação do sub-âmbito da reserva total à lei (formal e material) há que incidir sobre um rol diminuto de matérias, em especial as que se refiram a questões como defesa externa, organização do território, direitos e responsabilidade políticos, garantias, direitos sociais, tributos, crimes etc. No campo das políticas públicas, em que pesa mais fortemente a capacidade do Executivo de atender às variações de demanda e às complexidades técnicas, bem como de priorizar os recursos, conferindo maior agilidade e eficácia à ação governamental, deve caber ao Legislativo apenas editar leis formais, autorizativas, com reduzido ou nenhum conteúdo diretivo, como o faz com as leis orçamentárias, ou fazer ressuscitar a lei delegada, prevista na Constituição, mas relegada ao esquecimento, alternativa que combina as exigências de lei formal e a possibilidade de o Executivo impor a normatividade necessária. Sem embargo, essas sugestões não demandam sequer alteração do texto constitucional, mas exigem que o Poder Legislativo se submeta a um planejamento estratégico, com clara previsão de suas funções no campo legislativo, julgador e fiscalizatório, pois só assim poderá recuperar sua importância histórica e permitir que o 48 J. J. Gomes Canotilho, op. Cit. P. 792. 53
  • 54. Estado seja mais eficiente em suas ações e respostas às crescentes e mutáveis demandas da sociedade. Ademais, não é demais lembrar que a função normativa como um todo está a sofrer alterações decorrentes da revolução tecnológica em curso, que propicia cada vez mais meios de participação e mesmo manifestação direta do cidadão acerca da agenda governamental; também a ampliação da organização e dos espaços de participação dos segmentos da sociedade civil transforma o processo de produção normativa, retirando parte do mandato dos parlamentares, que se faz substituir por meios outros de impulso e intervenção nessa agenda, que deixa assim de ser apenas governamental para ser pública. A redução de seu espectro de produção legislativa, ou sua alteração para uma atuação mais negativa (por sustação ou veto), como hoje ocorre com as medidas provisórias, otimizaria a ação parlamentar na função de fiscalização, principalmente. Esta atribuição do Poder Legislativo relaciona-se com suas próprias origens e consiste na prerrogativa de fiscalizar os atos administrativos e políticos praticados no âmbito do Poder Executivo, mediante requerimentos de informação, constituição de comissões, inclusive com poderes especiais de investigação (as CPI's), convocação de ministros, acompanhamento contábil, financeiro, patrimonial e operacional, auxiliado pelos tribunais de contas, entre outros mecanismos. 54
  • 55. Dentre tais instrumentos investigatórios de que dispõe o Poder Legislativo, destaca-se a instauração de comissões parlamentares de inquérito, adequadas às situações em que as prerrogativas corriqueiras de fiscalização não logram resultados, daí a Constituição Federal atribuir-lhes "poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias". Ademais, a própria forma de instituição da CPI lhe confere caráter de excepcionalidade, traduzido no direito de uma minoria (um terço) de decidir por sua instauração, quando, é cediço, em regra as deliberações legislativas submetem-se à vontade da maioria. Há outros tipos de atos praticados pelo Poder Legislativo que refogem à classificação básica antes enunciada e que representam verdadeiras formas de ingerência - legítimas, pois são instrumentos constitucionais de freios e contrapesos - do Poder Legislativo sobre os demais poderes, em especial o Executivo. Decorrem, segundo exemplos previstos na Constituição brasileira e em muitas outras, de competências para aprovar escolha de titulares de determinados cargos, para sustar atos normativos, efeitos de contratos etc. Suas funções políticas também não podem ser relegadas a segundo plano, pois é no âmbito do Poder Legislativo que se implementam com mais vigor as atividades de mediação de interesses da sociedade e do Estado, o que bem se pode perceber em momentos de crises político-institucionais, em que cresce a importância do Legislativo, como se abordará mais à frente. 55
  • 56. Cabendo reafirmar-se a importância do Poder Legislativo na condução do Estado, mediante a reordenação, em especial, de sua participação na feitura das leis, para tanto se faz mister assumir, sem amarras dogmáticas, uma revisão da divisão de funções estatais ora estabelecida, mormente quanto ao alcance do princípio da legalidade. Justifica-se certo temor quando se pretende rediscutir o princípio em que se funda o Estado de Direito, assim denominado aquele que garante proteção do particular frente o Estado - conceito cunhado em contraposição ao antes predominante Estado de Polícia. Há um dito popular segundo qual "gato escaldado tem medo de água fria". Não se quer pôr em risco as conquistas do Estado de Direito, as proteções cunhadas contra o arbítrio do Executivo, mas, como se procurou demonstrar, ao menos no Brasil a concepção de (estrita) legalidade não foi suficiente a determinar o almejado equilíbrio entre os poderes e sequer governos ditatoriais, ao passo que a ciência política já tem demonstrado que tal proteção da sociedade (contra o arbítrio do Estado) se perfaz com a conjugação de determinados fatores sociais e políticos e não propriamente em função da existência de leis. Tácito, aliás, já constatara que "As leis abundam nas Repúblicas corrompidas"49. Mesmo no âmbito constitucional, restou claro que a distinção da atividade legislativa não representa, por si, quebra do Estado de Direito. Bobbio, ao discorrer sobre os "limites internos" a que se submete o Estado, arrola, ao lado do "governo das leis" e da 56
  • 57. separação de poderes, a consolidação dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. Constituem, na dicção de Kelsen, limites à validade material do Estado, como bem ressalta o citado filósofo italiano: "Costuma-se chamar de constitucionalismo à teoria e à prática dos limites do poder: pois bem, o constitucionalismo encontra a sua plena expressão nas constituições que estabelecem limites não só formais mas também materiais ao poder político, bem representados pela barreira que os direitos fundamentais, ..."50 Trata-se de cogitar de uma reordenação da produção legislativa, a se iniciar com a aplicação do festejado princípio da subsidiariedade, deixando a cargo da sociedade tudo o que estiver a seu alcance resolver, reduzindo-se, por conseguinte, o espectro da ação estatal e, pois, da legislação que rege (e limita) o Estado; seguindo-se com a retirada, do âmbito da lei formal, de determinadas matérias cuja especificidade técnica ou volaticidade impõem deliberação executiva; e da ampliação do princípio da legalidade, substituindo-se, como enfatiza Garcia de Enterria51, a concepção de mero atrelamento a normas específicas pela noção de regularidade jurídica, de adequação do Direito como um todo, o que se logrou chamar de "princípio da 49 "Corruptissima republica prurimae /eges(Tácito: Anais, III, 27) 50 Bobbio, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: por uma teoria geral de política, (trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.101. 57
  • 58. juridicidade". Procura-se, assim, sem comprometimento do Estado de Direito, reforçar a atuação do Poder Legislativo nas ações de planejamento e - mais ainda - nas de controle, sendo de se cogitar, no âmbito da reformulação proposta, a inserção de novos mecanismos além dos já existentes, dado que neles residiria boa parte da garantia de estabilidade democrática e de respeito aos direitos individuais e coletivos que a sociedade reclama a seus parlamentares. 51 Garcia de Enterría, Eduardo & Fernandes, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 4a ed. , vol. I , Madrid: Civitas, 1983, p. 413 e ss. 58
  • 59. CAPÍTULO II: FEDERALISMO À BRASILEIRA 1. O Modelo Federativo Brasileiro Até o advento da Constituição Norte-Americana de 1787, vigiam no mundo, basicamente, duas forma de organização do Estado - a unitária e a confederação - e foi na busca de um sistema intermediário, que excluísse a indesejada possibilidade de um centralismo autocrático (como o de Bodin), ao passo que compartilhasse funções e interesses comuns ao estados originários (a defesa externa, em especial), sem lhes retirar autonomia, que a Federação pôs-se a prevalecer em muitos Estados, em todas partes. Daí o conceito tradicional de Estado Federal, como o de Jellinek, segundo o qual trata-se de "Estado soberano, formado por uma pluralidade de Estados, no qual o poder do Estado emana dos CO Estados-membros, ligados numa unidade estatal." Como deixam transparecer tanto o modelo original norte-americano, quanto o próprio conceito genérico a partir deste erigido, a pre existência dos estados-membros, - detentores, até então, de soberania -, sobre o Estado Federal a se conformar parece ser traço característico do federalismo. 52 G, Jellinek, in Allgemeine Staatslehre, 3a ed... p. 769, APUD Bonavides, Paulo, in Ciência Política, São Paulo: Malheiros, 10a edição, p. 179. 59
  • 60. Surge, então, no contexto escolhido para o presente estudo, a questão da evidente inaplicabilidade de tal preceito ao caso do Brasil, onde inexistiam estados soberanos (sequer autônomos) e o federalismo, não obstante, prosperou, mesmo que sua existência jamais tenha sido serena, imune a crises. Essa aparente atipicidade do caso brasileiro convola-se, porém, em apenas uma das diversas facetas assumidas pelo federalismo mundo afora, diversidade essa que em muito se explica por sua origem em modelo basicamente empírico, como observou Max Bellof ("the Federalist was written for a praticai pumose. and to be read bv praticai me/7.")53. A subjunção do estudo do federalismo a modelos teóricos pouco ou nada contribui a sua compreensão, dada sua natureza dinâmica, que o caracteriza, na visão de Alexandre Marc, como "uma revolução permanente, aperfeiçoado constantemente pela experiência e pela razão"54. É fácil perceber que o federalismo é idéia que serve tanto à motivação originária pela centralização (quando se requer um ente de agregação), como no caso norte-americano, quanto pela descentralização, como ocorreu no Brasil, que passou do unitário ao federal. 53 Tunc, André. Lê Fédéralism. Paris, LGDJ, 1957. p. 10-16. APUD Tavares, Ana Lúcia de Lyra. Oestado Federal: Delineamentos. Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, v. 22, n° 4, p. 42, 1979. 54 Marc, Alexandre. Révolution Américaine, revolution européenne. Lausane, Centre de Recherches Européenes, 1977. APUD Tavares, Ana Lúcia de Lyra. Oestado Federal: Delineamentos. Revista de Ciência Política, Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, v. 22, n° 4, p. 48, 1979. 60
  • 61. Assim é que no Brasil a adoção do Estado Federal não surgiu de estados pré-existentes, mas de unidades territoriais que adquiriram, paulatinamente, em processo bem mais fático do que normativo, relevante autonomia. Porém, tal peculiar contexto histórico não fez do processo de adoção do federalismo no Brasil algo tão diferenciado dos demais, posto a incidência de identidade de propósitos políticos. A idéia do Estado liberal vigorava forte e seu impulsionador, a burguesia, vislumbrou nesse novel modelo forma eficaz de evitar o despotismo monárquico, ou sua mais danosa característica - na concepção burguesa -, o intervencionismo estatal. Esse citado processo de autonomização espontânea (mas não isenta de condicionantes externos) das unidades territoriais já se podia identificar no período das capitaniais hereditárias, daí o fato de muitos autores, como Clóvis Beviláqua, nele vislumbrarem o embrião do federalismo brasileiro: "As capitanias desenharam, no organismo social, o esboço das futuras províncias e prepararam a federação dos estados sob a República"55 A dimensão e a variedade do território brasileiro foram também citados como fatores motivadores da adoção do federalismo, no Manifesto Republicano, documento redigido por Quintino Bocaiúva e subscrito 61
  • 62. por diversos intelectuais, publicado em 1870 e grande impulsionador do ideal republicano no Brasil. Do manifesto, sobre a federação consta que: "No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo. A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários, as produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local acompanhando e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e imposta pela imensa superfície do nosso território."56 Esse singelo e assistemático relato da adoção do federalismo no Brasil serve a demonstrar que, em parte, tal se deu por conformações territoriais (extensão x diversidade) e em outra parte por força do contexto histórico, em que a luta por descentralização surge como natural reação ao centralismo imposto por D.Pedro I na Constituição de 1824. Não obstante, a divisão do território em vinte províncias, prevista na Carta outorgada, mesmo com dirigentes provinciais (Presidentes) mantidos sob total controle do Imperador (os nomeava e demitia ad nutum). já delineava a organização federativa, como, aliás 55 Beviláqua, Clóvis. Estudos Jurídicos, p. 114 56 Cavalcanti, Themístocles. A Federação e a Verdade Democrática no Manifesto Republicano de 1870. Revista de Ciência Política. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 4(4): 5-22, out/dez 1970. 62
  • 63. o fizera antes a Coroa Portuguesa quando de sua instalação no Brasil, ao valorizar e reforçar o poder das províncias, tornando-as interlocutoras do Poder Central, assim limitando o mandonismo local até então em vigor57. Ao apagar das luzes do período monárquico, o ideal federalista e seu adjacente efeito (ou causa?) descentralizador representavam aspirações mais fortes até do que a própria instalação da República. Poder-se-ia dizer que os conceitos (de federação e de República) pareciam então indissociáveis (não o eram tempos antes, quando se discutiu a instauração do federalismo monárquico) mas era a luta por maior autonomia das províncias que dominava os debates no período pré-republicano. A primeira Constituição Republicana, de 1891, adotou então a forma federativa, consolidando a descentralização política, antes apenas administrativa. Tal distinção é imprescindível ao conceito de federação, já que há Estados unitários descentralizados administrativamente, mas é a descentralização política, representada em termos formais, na Constituição, por poderes competenciais distribuídos (para legislar, primordialmente) entre os entes federados, que lhe dá forma. Era o federalismo em sua variante organizacional dita dual, em que a Carta constitucional - e só ela - prescreve rígida repartição de 57 Leal, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2a edição. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. 63
  • 64. competências entre o Estado Federal (a União) e os estados- federados, excluindo qualquer relação hierárquica, interpenetrações, ou interferências recíprocas. Procurava responder tal variante às preocupações quanto a eventual predomínio entre os entes. Mas se for possível afirmar que há uma disfunção comum a todos os modelos de Estado Federal, por certo esta é, empiricamente considerando, a tendência ao predomínio do ente central, da União, contrariando a expectativa de Tocqueville. A história republicana brasileira foi irremediavelmente marcada por esse centralismo e nem a presença de competências distribuídas constitucionalmente, inclusive aos municípios, serviu a evitar o poder extravagante da União, como notam Pedro Barros Silva e Vera Cabral Costa: "A Federação brasileira não se constituiu como resultado de um processo de estabilização das relações de poder entre as unidades subnacionais - relativamente homogêneas e politicamente equipotentes - que se unem através de um Governo nacional. No Brasil, o Governo nacional precede as instâncias subnacionais e, num movimento contínuo e célere de centralização, define, em menos de 50 anos, os rumos do desenvolvimento e o papel dessas 64
  • 65. instâncias"5* O advento do Welfare State, com a assunção, pelo Estado Brasileiro, da responsabilidade de prestar serviços sociais e implementar garantias em caráter universal, aliado ao aumento da complexidade da gestão econômica, que demanda conduta intervencionista (para qual só o poder central tem recursos) e boa dose de unidade decisória, explicam, em boa medida, a revalorização do ente nacional, em detrimento das unidades federadas, processo que encontra combustível natural na sempre latente tendência centralista brasileira, advinda do processo de formação do Estado por aqui. A chamada crise do federalismo, causada pela tendência de predomínio político e econômico do governo central sobre as unidades federadas, incide especialmente sobre a autonomia, considerada componente imprescindível ao sistema federativo. Paulo Bonavides lembra que George Scelle identifica "dois princípios capitais que são a chave de todo o sistema federativo: a lei da participação e a lei da autonomia"59. Mas a participação, consistente na assunção, pelos estados-membros, de papel relevante no processo de elaboração da vontade política da Nação, remanesce forte, mantendo consistente o sistema federal brasileiro. É bem verdade que, comportando o modelo brasileiro forma 58 Silva, Pedro Luiz Barras & Costa, Vera Lúcia Cabral. Descentralização e Crise da Federação. ]n A Federação em Perspectiva:ensaios selecionados. São Paulo: FUNDAP, 1995, p. 262-283. 65
  • 66. tridimensional, com a participação dos municípios, aos quais se fez transferir boa parte da competência relativa à prestação de serviços à coletividade, o poder dos estados-membros reduziu-se em termos econômicos e fez-se carente de legitimidade e representatividade frente aos anseios da população, mas a base forte das oligarquias estaduais e a tradição política daí oriunda mantêm fortes os governos estaduais. Esse vínculo sólido das instituições políticas federais e estaduais, acompanhado de relações com o poder local que se afirma como interlocutor privilegiado da vontade (e pressão) popular, delineiam a segunda variante de organização do Estado Federal, concernentemente às competências, o federalismo cooperativo. Trata-se não de uma panacéia, capaz de resolver todos os males do federalismo dual, pois se sua essência reside na inexistência de limites claros e definidos entre as competências dos níveis autônomos de poder, é perigo inerente a tal modelo a possibilidade do agravamento da predominância do governo central sobre os demais. Paulo Bonavides há muito adverte que "o mal do chamado 'federalismo cooperativo' é a sua unidimensionalidade de fato, o unilateralismo de decisão. Esse federalismo só tem uma cabeça: a União."60 Esse modelo cooperativo apresenta, porém, duas vertentes, uma 59 Bonavides, Paulo. Ciência Política 66
  • 67. autoritária e outra democrática. Aquela, de fato adotada no Brasil desde a adoção do modelo federal, funda-se exatamente na força do poder central, que se avoca competências e por isso nega o próprio princípio federativo; esta advém do livre consentimento de unidades verdadeiramente autônomas em prol de um pacto comum. Seus pressupostos são, pois, a garantia da autonomia em todas suas dimensões - política, administrativa, financeira -, além do fundamento constitucional, já que só ele pode garantir mecanismos perenes de inter-relação. Hoje, no Brasil, não se pode afirmar presente qualquer dos dois pressupostos citados, já que a autonomia, financeira em especial, não se alcança ante a manutenção de proeminência da União no sistema de arrecadação e sua ingerência constante na conformação do "bolo" tributário do qual se transferem recursos a estados e municípios. É certo que a redistribuição tributária operada pela Constituição de 1988 não foi capaz de conferir a esses entes, especialmente ao município, "fatia" suficiente a respaldar a grande gama de atribuições que assumiram. Remanesce, sem maiores motivos, no âmbito da União uma grande parcela de recursos que, afinal, são distribuídos a estados e municípios mediante a prática chamada de "transferência negociada", a qual propicia campo para as antigas práticas de clientelismo e patrimonialismo. Não obstante, faltam ainda mecanismos constitucionais e legislações 60 In Política e Constituição - os caminhos da democracia, Rio de Janeiro, ed. Forense, 1985, p. 103. 67
  • 68. complementares reclamadas pela própria Constituição Federal, como adverte o aqui multicitado mestre do federalismo pátrio, Prof. Paulo Bonavides: "Enquanto não chegam as fórmulas jurídicas capazes de atualizar o problema federativo e ultrapassar a crise, esta recresce a cada momento, alteia a face ameaçadora sobre as instituições e, quem sabe, nos não dará dentro de pouco o aviso de despedida, se não acudirmos com a medicação urgente que requer." 2. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: INSTITUIÇÕES REGIONAIS E FEDERALISMO A advertência de Bonavides acerca do estado terminal do modelo federal em vigor no Brasil, um tanto lúgubre, torna-se aqui desafio e não permite que o presente texto se veja desprovido de caráter propositivo, atendo-se ao conforto da análise descritiva e crítica. A necessária atualização do modelo federativo brasileiro há de se dar mediante proposições legislativas concretas, ou pela inclusão, dentre as fórmulas reclamadas pelo autor, de medidas não apenas jurídicas, mas de políticas públicas que permitam, empiricamente como é da tradição federalista, dar efetividade à cooperação. 68
  • 69. Nessa cooperação sem dominação cabem as políticas de desenvolvimento regional que se anunciam juntamente com o retorno do planejamento regional. Sob o aspecto espacial, as macrorregiões pouco ou nada mais significam em termos de locus da aplicação de políticas, já que as referenciações físico-histórico-culturais que indicam similitude de carências e potencialidades têm base mais reduzida, cuja conformação não respeita aqueles limites entre os estados-membros; sob o aspecto material, se o objeto das políticas públicas é ainda a desigualdade e a estagnação econômica, seu instrumento não mais se resume à injeção de recursos - tende, mais, a meios de integração e aproveitamento do capital endógeno; sob o aspecto subjetivo, a concentração das atividades de planejamento e execução em uma instância única, autárquica, federal e com espessas camadas burocráticas, tampouco responde à concepção equilibrada e participativa que se requer para o federalismo cooperativo hoje desejado. As novas feições, que rompem o paradigma anterior, tem ainda a região como foco, mas se renova a busca pela delimitação de um espaço unido por uma amálgama chamada identidade - física e social, sem dúvida, mas também cultural e de potencial econômico. A ineficácia da espacialização segundo o modelo anterior de desenvolvimento regional demonstra-se também na dificuldade de contemplação de instâncias de articulação adequadas àquela dimensão. A institucionalização da Região é demanda que encontra defensores 69
  • 70. dentre ilustres estudiosos61, que chegam a propor sua inserção na composição federativa, como unidade dotada de poder político e autonomia. Compor-se-ia a federação tetradimensional, como refere Baracho62. Mas para prosperar, essa proposição, dado seu alcance, careceria antes ampliar o âmbito da discussão, saindo da Academia e chegando à sociedade, de forma a ingressar na agenda do Congresso e do próprio Governo. Mas a institucionalização não requer necessariamente o poder político, pois sendo sua base a legitimidade, poder-se-á possui-la em instâncias outras, algumas administrativas e executivas, outras despersonalizadas e deliberativas. A alternativa administrativa é, aliás, contemplada na Carta Constitucional em vigor, cujo art. 43 não só se refere a Regiões, como a organismos regionais. Mantém-se, porém, a competência apenas da União para instituir Regiões e para elaborar os planos de desenvolvimento regional a serem executados pelos tais organismos regionais, instituídos, segundo o texto constitucional, para essa função específica. Num federalismo de equilíbrio - terminologia utilizada por Pelayo63 -, tanto a atividade de planejamento quanto a de execução de políticas há de ser compartilhada, assertiva que torna válida tanto para o âmbito das competências expressamente deferidas pela Constituição, 61 Vide Berçovici, Gilberto. Constituição e Superação das Desigualdades Regionais. Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. 62 José Alfredo de Oliveira Baracho. In Teoria Geral do Federalismo. Eio de Janeiro: Forense, 1996. 63 Pelayo, Manuel Garcia. Derecho Constitucional Comparado. Madrid:Aliança Universidad. P. 218, 1984. 70
  • 71. quanto, especialmente, para o campo das competências comuns, que exigem efetivas articulações intergovernamentais, por meio de instituições comuns, multitularizadas, ou mediante os tradicionais convênios de cooperação. As parcerias regionais entre os entes federados dão-se, também, nos consórcios intermunicipais, em comitês de bacias e outras formas de redes federativas, conceito trabalhado por Abrucio e Soares em seu profundo estudo sobre a experiência de cooperação intermunicipal no Grande ABC. Nessa mesma obra64, citam Marta Arretche, que recusa a visão maniqueísta atribuída à discussão sobre a dicotomia centralização-descentralização e ressalta: "A concretização dos ideais democráticos depende menos da escala ou nível de governo encarregado da gestão das políticas e mais da natureza das instituições que, em cada nível de governo, devem processar as decisões."65 Mesmo que a institucionalização das regiões deva comportar diversas iniciativas cooperadas, ou redes, a existência de uma instância-eixo para a "rede federativa" na qual desagüem as demais instâncias parece ser caminho adequado. 64 Abrucio, Fernando & Soares, Marta Miranda. Redes Federativas no Brasil: cooperação intermunicipal no grande abe. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer. Série Pesquisas, n° 24, 2001. 65 Arretche, Marta. A descentralização das políticas sociais no estado de São Paulo: 1986-94. Relatório-sínteses. Pesquisa: balanços e perspectivas da descentralização das políticas sociais no Brasil. 71
  • 72. Afinal, se muitas vezes nas discussões sobre federalismo no Brasil acaba-se elegendo como prioridade a questão do equilíbrio fiscal - imprescindível para funcionamento do modelo -, parece olvidar-se que para uma adequada definição das fatias de receita que devem caber a cada unidade e à União, primeiro se impõe definir os específicos papéis (competências) no rol de atribuições estatais. Anna Maria Brasileiro, em documento produzido para um Simpósio sobre Relações Intergovernamentais, promovido pelo IBAM e pela extinta SAREM, órgão federal de articulação com estados e municípios, já identificava, dentre o que chamou de "disfunções do sistema atual", a questão das competências comuns no texto constitucional. A Constituição Federal estabelece, quanto ao objeto da atuação dos entes federados, competências legislativas e materiais; aquelas referem-se à prerrogativa de elaborar normas legais e estas ao poder- dever de realizar ações concretas. Foi essa competência material que a Carta Constitucional, no art. 23, atribuiu a todos os entes, em comum, vale dizer, todos devem implementar medidas em prol das matérias arroladas no citado dispositivo. Previu também o mesmo artigo constitucional a edição de uma lei complementar que para fixar "normas para a cooperação entre a União, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. 72
  • 73. Essa lei jamais foi editada e o que se vê é a geração de ações superpostas em determinados assuntos e de vazios institucionais em outros, causando dispersão ou desperdício de recursos humanos e materiais. A aparente dificuldade em estabelecer campos definidos de atuação e modos claros de colaboração poderia ser enfrentada sem maiores sobressaltos, pois já há uma tendência histórica, afirmada por normas constitucionais programáticas, de estimular a descentralização no sentido de atribuir aos municípios a responsabilidade por boa parte das prestações materiais - a municipalização. A ratificação dessa diretriz, advém, em verdade, da aplicação final do princípio da subsidiariedade, que consiste, na esclarecedora explicação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho em: "...deixar ao homem o que ele pode fazer por si; em nível mais alto, às comunidades, o que podem estas realizar; aos grupos, inclusive empresas, no plano da economia, da saúde, da assistência, o que lhes está ao alcance; à sociedade, o que somente esta pode atender; ao Estado, o que não pode ser bem-feito pelos círculos menores. E no âmbito deste, ao Poder Local, o que este pode desempenhar. Apenas dando ao Poder mais alto o que não pode ser conduzido a não ser por ele."66 66 In Constituição e Governabilidade - ensaio sobre a (in) governabilidade brasileira. São Paulo:Saraiva, 1995, p. 129. 73
  • 74. Esse princípio, a par de delimitar o próprio campo de atuação do Estado, afirmando a sua não-exclusividade sobre os interesses públicos (reconhece-se a existência de um espaço público não- estatal), também concede à regra de cooperação demandada pela Constituição um critério, que obviamente não isenta os entes maiores de suas responsabilidades, mas se lhes indica os campos do planejamento - no âmbito normativo, inclusive - e da contribuição material e financeira.' Se, então, no campo das competências materiais comuns, em que a necessidade de inter-relacionamento entre os Entes estatais é especialmente necessária, a menção expressa ao princípio da subsidiariedade no dispositivo constitucional em pauta serviria a facilitar a delimitação dos papéis de cada qual, o município como natural executor e os demais a fornecer recursos humanos e financeiros, sem embargo da necessária formulação conjunta das políticas. É claro que a complementariedade pode se dar nas formas tradicionais, esparsas, mediante convênios de cooperação, mas a perenização da atuação conjunta requer instrumentos institucionais igualmente estáveis, como fóruns permanentes e organismos regionais (na forma do art. 43 da Constituição Federal), por meio dos quais se possam implementar os convênios e os consórcios intermunicipais (art. 241 da Constituição Federal). 74