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Plínio de Paula Simões Filho – Relatório de curso de teatro.
Teatro-Escola Macunaíma. Aula de Teoria PA2


           Relatório da peça Roberto Zucco de Bernard-Marie Koltès
    Em Alumbramento seria talvez a palavra mais cabível com o desenrolar da peça
assim que a platéia se sente de certa maneira jogada, ou melhor, atirada junto dos
atores que com precisão atuam de maneira brilhante.
    Se outrora Bertolt Brecht quando desenvolveu a denominada quarta parede,
certamente pensava que dramaturgos futuros, não o reproduzissem fielmente, mas
desenvolvessem este conceito, e na arte contemporânea, o teatro não ficando de fora,
o desdobramento de um conceito é muito além do pensamento subjetivo de um grupo,
de um ator, ou do próprio dramaturgo, e sim, com a platéia sendo arrastadas as cenas
que se desenvolvem, de certa maneira se interagindo. Ficamos quase que
exclusivamente no epicentro de um tremor ou no olho dum furacão quando na primeira
cena com os alarmes, os gritos, Roberto Zucco fugindo pelo telhado, por meio das
arquibancadas-móveis, todos estão vendo-se no meio de tudo, no centro do cenário,
por que ora cá as cenas são na direita, na esquerda, na frente ou atrás, ou ora lá, aos
lados diagonais com os personagens encurralados no canto angular duma parede,
sufocados pela assistência e seu existencialismo.
    Entrementes este seria um ponto irrelevante se não fosse as excelentes atuações
de todo o elenco em exclusividade o ganhador do prêmio Shell Rodolfo García
Vázquez na direção da peça. Temos cenários que se desdobram, cores que se
misturam, cacófatos que nos transtornam, sombras opacas que dialogam com o
telespectador sempre quando alguém perde a virgindade por detrás de cortinas ou
apenas indo-se embora com a sombra ficando sua imagem tatuada nas paredes para
dizer um último adeus antes desvanecer-se. Sem falar nas misturas de linguagens
utilizadas na peça como o auxilio de um vídeo, uma gravação de aspecto tosco
propositalmente usado para nos mostrar como são as imagens contemporâneas. As
maquiagens, em especifico de cor branca na face dos personas, uma representação
pálida da vida humana. O que se torna mais vivo quando personagens brilham em
comunhão ou mesmo em suas circunstâncias presentes, talvez o maior ápice de
comunhão na peça é justamente a última cena em que vários personagens estão
sentados ao chão e Zucco no alto duma escada antes de apagar a luz pela última vez,
ali as falas são quase como uma orquestra muito bem afinada e entrosada, são
disparadas com palavras ambíguas num desenrolar trágico; já as circunstâncias estão
nítidas quando em momentos a família da garota que perde a virgindade e foge de
casa em busca do protagonista, os dos que trabalham na prostituição e a espetacular
cena do parque, todos demonstram o quão bem são profissionais, sobretudo atores
criativos.
    O texto da peça não poderia ser mais contemporâneo, mais vivo e presente em
sociedades como a nossa, em que o sensacionalismo torna a tragédia humana num
verdadeiro espetáculo, amalgamado por nossa extinta Ética, nesta sociedade em que
é mais importante julgar, ou mesmo atirar a pedra antes mesmo de se terminaram as
investigações deste crime ou o julgamento daquele caso, e o personagem Zucco,
quase uma releitura de Sartre e uma visão dostoievskiana, que se desencontra, não
tem mais aquelas explicações clichês para explicar que o serial killer matou porque
tivera apanhado na infância, fora abusado sexualmente ou tem alguma patologia,
Zucco não se explica, vivencia cada momento em cada cena da peça, como se fosse
o algo mais além, daquele que ainda está há se encontrar com não sabe o que, um
ensaio desta vida que perdemo-nos, vivemos arquétipos e prisões invisíveis de nós
mesmo, pois Zucco é apenas aquele que estrangula, aperta o gatilho duma arma, só
que a medida que se interage com os personagens ou mesmo com a platéia, ele nos
prova, por intermédio da excelente atuação, que quão como todos nós podemos ser
idênticos a este personagem, que mais seria uma metáfora de nossas vidas nestas
sociedades sobrecarregadas por informações e, mesmo assim tão dócil, honesto
consigo mesmo e numa das cenas por obséquio ajuda um senhor de idade numa
situação verossímil a ele. Eis ai o ser humano, uma confusão de si próprio.




    Peça montada no espaço cênico Satyros no ano de 2011.

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Roberto zucco

  • 1. Plínio de Paula Simões Filho – Relatório de curso de teatro. Teatro-Escola Macunaíma. Aula de Teoria PA2 Relatório da peça Roberto Zucco de Bernard-Marie Koltès Em Alumbramento seria talvez a palavra mais cabível com o desenrolar da peça assim que a platéia se sente de certa maneira jogada, ou melhor, atirada junto dos atores que com precisão atuam de maneira brilhante. Se outrora Bertolt Brecht quando desenvolveu a denominada quarta parede, certamente pensava que dramaturgos futuros, não o reproduzissem fielmente, mas desenvolvessem este conceito, e na arte contemporânea, o teatro não ficando de fora, o desdobramento de um conceito é muito além do pensamento subjetivo de um grupo, de um ator, ou do próprio dramaturgo, e sim, com a platéia sendo arrastadas as cenas que se desenvolvem, de certa maneira se interagindo. Ficamos quase que exclusivamente no epicentro de um tremor ou no olho dum furacão quando na primeira cena com os alarmes, os gritos, Roberto Zucco fugindo pelo telhado, por meio das arquibancadas-móveis, todos estão vendo-se no meio de tudo, no centro do cenário, por que ora cá as cenas são na direita, na esquerda, na frente ou atrás, ou ora lá, aos lados diagonais com os personagens encurralados no canto angular duma parede, sufocados pela assistência e seu existencialismo. Entrementes este seria um ponto irrelevante se não fosse as excelentes atuações de todo o elenco em exclusividade o ganhador do prêmio Shell Rodolfo García Vázquez na direção da peça. Temos cenários que se desdobram, cores que se misturam, cacófatos que nos transtornam, sombras opacas que dialogam com o telespectador sempre quando alguém perde a virgindade por detrás de cortinas ou apenas indo-se embora com a sombra ficando sua imagem tatuada nas paredes para dizer um último adeus antes desvanecer-se. Sem falar nas misturas de linguagens utilizadas na peça como o auxilio de um vídeo, uma gravação de aspecto tosco propositalmente usado para nos mostrar como são as imagens contemporâneas. As maquiagens, em especifico de cor branca na face dos personas, uma representação pálida da vida humana. O que se torna mais vivo quando personagens brilham em comunhão ou mesmo em suas circunstâncias presentes, talvez o maior ápice de comunhão na peça é justamente a última cena em que vários personagens estão sentados ao chão e Zucco no alto duma escada antes de apagar a luz pela última vez, ali as falas são quase como uma orquestra muito bem afinada e entrosada, são disparadas com palavras ambíguas num desenrolar trágico; já as circunstâncias estão nítidas quando em momentos a família da garota que perde a virgindade e foge de
  • 2. casa em busca do protagonista, os dos que trabalham na prostituição e a espetacular cena do parque, todos demonstram o quão bem são profissionais, sobretudo atores criativos. O texto da peça não poderia ser mais contemporâneo, mais vivo e presente em sociedades como a nossa, em que o sensacionalismo torna a tragédia humana num verdadeiro espetáculo, amalgamado por nossa extinta Ética, nesta sociedade em que é mais importante julgar, ou mesmo atirar a pedra antes mesmo de se terminaram as investigações deste crime ou o julgamento daquele caso, e o personagem Zucco, quase uma releitura de Sartre e uma visão dostoievskiana, que se desencontra, não tem mais aquelas explicações clichês para explicar que o serial killer matou porque tivera apanhado na infância, fora abusado sexualmente ou tem alguma patologia, Zucco não se explica, vivencia cada momento em cada cena da peça, como se fosse o algo mais além, daquele que ainda está há se encontrar com não sabe o que, um ensaio desta vida que perdemo-nos, vivemos arquétipos e prisões invisíveis de nós mesmo, pois Zucco é apenas aquele que estrangula, aperta o gatilho duma arma, só que a medida que se interage com os personagens ou mesmo com a platéia, ele nos prova, por intermédio da excelente atuação, que quão como todos nós podemos ser idênticos a este personagem, que mais seria uma metáfora de nossas vidas nestas sociedades sobrecarregadas por informações e, mesmo assim tão dócil, honesto consigo mesmo e numa das cenas por obséquio ajuda um senhor de idade numa situação verossímil a ele. Eis ai o ser humano, uma confusão de si próprio. Peça montada no espaço cênico Satyros no ano de 2011.