O documento discute três pontos principais: 1) Como a linguagem estrutura o sujeito e o inconsciente através da assimilação da "língua do Outro"; 2) Como o desejo é moldado e alienado pela linguagem; 3) Como o inconsciente é estruturado como uma linguagem autônoma que opera segundo suas próprias regras.
2. Parte um – Estrutura: alienação e o
outro
O Eu é um Outro
3. CAP. 1 – LINGUAGEM E ALTERIDADE
Dois tipos de fala:
- fala do eu: fala corriqueira sobre o
que conscientemente pensamos e
acreditamos sobre nós mesmos.
- algum outro tipo de fala.
4. LINGUAGEM E ALTERIDADE
Freud chamou aquele Outro lugar de inconsciente, e
Lacan afirma em termos categóricos que “o inconsciente é
o discurso do Outro”, isto é, o inconsciente consiste
naquelas palavras que surgem de algum outro lugar que
não da fala do eu. Portanto, nesse nível mais básico, o
inconsciente é o discurso do Outro. (p. 20)
Lacan explica como esse Outro discurso “entrou” em
nós: nascemos em um mundo de discurso, um discurso ou
linguagem que precede nosso nascimento e que continuará
após nossa morte.
Ex: A criança antes do nascimento é “falada”, um
nome é escolhido, etc.
5. LINGUAGEM E ALTERIDADE
E a maioria das crianças é obrigada a aprender a língua
falada pelos pais, assim, a fim de expressar seus desejos,
elas são virtualmente obrigadas a irem além do estágio do
choro – um estágio no qual os pais são forçados a
adivinhar o que seus filhos desejam ou precisam – e
tentar dizer o que querem em palavras, isto é, de uma forma
que seja compreensível aos principais responsáveis por ela.
No entanto, seus desejos são moldados naquele mesmo
processo, já que as palavras que são obrigadas a usar não
são suas e não correspondem necessariamente às suas
demandas específicas: seus desejos são moldados na fôrma
da língua ou línguas que aprendem. (p.22)
6. LINGUAGEM E ALTERIDADE
Lacan é mais radical ainda quando diz que não
se pode dizer que uma criança sabe o que quer
antes da assimilação da linguagem: quando um
bebê chora, o sentido desse ato é dado pelos pais ou
pelas pessoas que cuidam dele que tentam nomear a
dor que a criança parece estar expressando (por ex:
“ela deve estar com fome”).
Talvez haja um tipo de desconforto geral, frio
ou dor, mas seu sentido é como que imposto pela
forma como é interpretado pelos pais. (...) Nessa
situação, o sentido é determinado não pelo bebê
mas por outras pessoas, e com base na linguagem
que elas falam.
7. O OUTRO COMO LINGUAGEM
O Outro como linguagem é assimilado pela
maioria das crianças (com exceção das autistas) à
medida que tentam preencher o vácuo entre o
desejo inarticulado, que só pode ser expresso no
choro e interpretado para o que der e vier, e a
articulação do desejo em termos socialmente
compreensíveis, se não aceitáveis.
8. A ALIENAÇÃO DO HOMEM NA
LINGUAGEM
De acordo com Lacan, todo ser humano que
aprende a falar é, dessa forma, um alienado – pois
é a linguagem que, embora permita que o desejo se
realize, dá um nó nesse lugar, e nos faz de tal
forma que podemos desejar e não desejar a
mesma coisa e nunca nos satisfazermos quando
conseguimos o que pensávamos desejar, e assim
por diante.
9. LÍNGUA MATERNA: A LÍNGUA DO
OUTRO
Embora considerada, em geral, inócua e
puramente utilitária por natureza, a linguagem traz
com ela uma forma fundamental de alienação que é
um aspecto essencial da aprendizagem da língua
materna do indivíduo. A própria expressão que
usamos – língua materna – é indicativa do fato de
que é a língua de algum Outro antes, a língua do
Outro materno...
(Mother).
10. O INCONSCIENTE
Ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, Lacan não afirmou que o inconsciente é
estruturado exatamente como qualquer língua, mas que a
linguagem, da forma como opera no nível do inconsciente,
opera a um tipo de gramática, ou seja, a um conjunto de
regras que comandam a transformação e o deslizamento
que existe dentro dela. O inconsciente, por exemplo, tem
uma tendência a quebrar as palavras em suas mínimas
unidades – fonemas e letras – e a recombiná-las como pareça
adequado. Ele dá um exemplo (p.26) e conclui dizendo que
“podemos pensar o inconsciente como expressão, através de
suas irrupções na fala cotidiana, de um desejo que é em si
mesmo estranho e inassimilável.
11. Na medida em que o desejo habita a linguagem – e
em uma estrutura lacaniana não há, a rigor, desejo sem
linguagem – podemos dizer que o inconsciente está
repleto de tais desejos estranhos. (ex. do desejo dos pais,
p. 26).
As opiniões e desejos de outras pessoas fluem para
dentro de nós através do discurso. Nesse sentido,
podemos interpretar o enunciado de Lacan de que o
inconsciente é o discurso do Outro, de uma maneira
muito direta: o inconsciente está repleto da fala de
outras pessoas, das conversas de outras pessoas, e dos
objetivos, aspirações e fantasias de outras pessoas (na
medida em que estes são expressos em palavras).
12. QUE(M) É ESSE OUTRO?
Assim, o Outro é essa linguagem estranha que
devemos aprender a falar e que é eufemisticamente
referida como nossa “língua materna”, mas que
seria melhor ser chamada nossa “língua do Outro
materno”: são o discurso e os desejos dos outros a
nossa volta, na medida em que estes são
internalizados. Por “internalizados” não quero
sugerir que eles se tornam nossos; ao contrário, não
obstante internalizados, eles permanecem corpos
estranhos em certo sentido.
13. CORPOS ESTRANHOS
O Outro corresponde ao que é chamado por
estrutura no estruturalismo.
Fink dá exemplos de doenças psicossomáticas
que ilustram a ideia de que o corpo é escrito com
significantes e é, portanto, estranho, Outro. A
linguagem é “cravada nos viventes” (Bergson). O
corpo é sobrescrito/superado pela linguagem.
14. O CORPO E O OUTRO
O corpo é subjugado; “a letra mata” o
corpo. O “vivente” – nossa natureza animal –
morre e a linguagem surge em seu lugar,
vivendo-nos. O corpo é reescrito, de certa
maneira, a fisiologia dá lugar ao
significante, e todos os nossos prazeres
corporais acabam por implicar/envolver uma
relação com o Outro.(p.30)
15. A FANTASIA
Nossas próprias fantasias podem ser estranhas
para nós, pois são estruturadas por uma
linguagem que é apenas assintótica ou
tangencialmente nossa e, no início, elas podem até
ser fantasias de outras pessoas: uma pessoa pode
achar que tem uma fantasia que é na realidade a
fantasia da sua mãe ou do seu pai, e que ela nem
mesmo sabe como apareceu na sua cabeça. Essa é
uma das coisas que as pessoas acreditam ser mais
alienante: mesmo as suas fantasias não parecem
pertencer-lhes. (p.30)
16. O OUTRO CONFORME CONCEBIDO POR
LACAN:
o Outro como linguagem (conjunto de
todos os significantes).
o Outro como demanda.
o Outro como desejo (objeto a).
o Outro como gozo.
17. A NATUREZA DO PENSAMENTO
INCONSCIENTE, OU COMO A OUTRA PARTE
“PENSA”
A linguagem funciona. A linguagem “vive” e
“respira”, independentemente de qualquer sujeito
humano. Os falantes, para além de simplesmente
usarem a linguagem como um instrumento,
também são usados por ela; eles são os joguetes
da linguagem e são ludibriados por ela.
18. COMO A OUTRA PARTE “PENSA”
Certas palavras e expressões se apresentam enquanto
falamos ou escrevemos – nem sempre as que queremos -,
às vezes com tanta persistência que somos quase forçados a
falar ou escrevê-las antes de sermos capazes de prosseguir.
Tais expressões e metáforas são selecionadas em um
Outro lugar que não a consciência. Lacan sugere que
abordemos o processo como aquele em que há duas cadeias
de discurso que caminham aproximadamente paralelas uma
à outra (num sentido figurado), cada uma se “desdobrando”
e se desenvolvendo ao longo de uma linha temporal, uma
das quais as vezes interrompe ou intervém na outra.
19. O ACASO E A MEMÓRIA
Implicação da reflexão feita por Lacan: a massa
cinzenta, ou o sistema nervoso como um todo, é incapaz de
dar conta da natureza eterna e indestrutível dos conteúdos
inconscientes. A massa parece se comportar de tal forma a
conduzir necessariamente a um declínio ou diminuição
gradual da amplitude ou da qualidade das impressões. Ela
não pode ser a garantia de sua eternidade. E em segundo
lugar, em vez de serem lembradas pelo indivíduo (de forma
ativa, isto é, com algum tipo de participação subjetiva), as
coisas são lembradas por ele através da cadeia significante.
20. A LETRA E O INCONSCIENTE
Há uma ligação explícita entre a letra (ou
cadeia significante) e o inconsciente. O
inconsciente não pode esquecer, sendo
composto de “letras” trabalhando, como
fazem, de modo autônomo, automático; ele
preserva no presente o que o afetou no
passado, segurando cada e todo o elemento
eternamente, permanecendo marcado por
todos eles para sempre.
21. O INCONSCIENTE AJUNTA
Freud associa os processos de pensamento
inconscientes com os conscientes, enquanto que, ao
contrário, Lacan insiste em uma dicotomia. O
pensamento consciente se baseia no domínio do
sentido, numa busca para fazer sentido do mundo.
Lacan propõe que os processos inconscientes têm
pouca ou nenhuma relação com o sentido. Parece
ser possível ignorar completamente toda a questão
de sentido, isto é, tudo o que Lacan chama de
significado ou significação ao discutir o
inconsciente.
22. O SABER SEM UM SUJEITO
O inconsciente não é algo que se conhece mas
algo que é sabido. O inconsciente é sabido sem o
saber da “pessoa” em questão: não é algo que se
apreende ativamente”, conscientemente, mas, ao
contrário, algo que é registrado “passivamente”,
inscrito ou contado. E esse saber desconhecido faz
parte da conexão entre significantes; ele consiste
nessa mesma conexão. Esse tipo de saber não tem
sujeito, nem precisa de um.
23. A FUNÇÃO CRIATIVA DA PALAVRA: O
SIMBÓLICO E O REAL
O pensamento começa sempre a partir de
nossa posição dentro da ordem simbólica; em
outras palavras, não podemos deixar de
considerar o suposto “tempo antes da
palavra” de dentro de nossa ordem simbólica,
usando as categorias e os filtros que ela
fornece.
24. “A LETRA MATA”
Lacan diz que “a letra mata”: ela mata o real que
havia antes da letra, antes das palavras, antes da
linguagem.
O real é, por exemplo, o corpo de uma criança
antes do domínio da ordem simbólica, antes de
controlar os esfíncteres e aprender os costumes do
mundo.
25. O SIMBÓLICO
O simbólico cria a realidade entendida como aquilo que
é nomeado pela linguagem e pode, portanto, ser pensado e
falado. A “construção social da realidade” implica em um
mundo que pode ser designado e falado com as palavras
fornecidas pela linguagem de um grupo social (ou subgrupo). O
que não puder ser dito na sua linguagem não é parte da
realidade desse grupo; não existe a rigor.
Na terminologia de Lacan, a existência é um produto da
linguagem: a linguagem cria coisas (tornando-as parte da
realidade humana) que não tinham existência antes de serem
cifradas, simbolizadas ou verbalizadas (p.44). Lacan reserva um
termo emprestado de Heidegger para se referir ao real: ele “ex-
siste”.
26. O REAL X O SIMBÓLICO
O real talvez seja melhor
compreendido como aquilo que ainda
não foi simbolizado, resta ser
simbolizado, ou até resiste à
simbolização; pode perfeitamente existir
“lado a lado” e a despeito da considerável
habilidade linguística de um falante.
27. A INTERPRETAÇÃO ATINGE A CAUSA
Quando Lacan diz que a
“interpretação atinge a causa”, ele quer
dizer que a interpretação atinge aquilo ao
redor do qual o analisando está girando
sem ser capaz de “colocar em palavras”.
29. O sujeito lacaniano não é o “indivíduo” ou o
sujeito consciente da filosofia anglo-americana
Quando, de maneira geral, nos referimos
ao eu ou self ao dizermos “Eu acho que...” ou
“Eu sou o tipo de pessoa que...”, esse “Eu” é
tudo menos o sujeito lacaniano: não é mais do
que o sujeito do enunciado.
30. O SUJEITO LACANIANO NÃO É O SUJEITO
DO ENUNCIADO
O pronome pessoal “eu” designa a pessoa
que identifica o seu self com uma imagem
ideal específica. Dessa maneira, o eu é aquilo
que é representado pelo sujeito do enunciado.
O que é então da instância ou agência que
interrompe os enunciados precisos do eu, ou os
“estraga”?
31. A TRANSITORIEDADE DO SUJEITO
O sujeito do inconsciente manifesta-se no
cotidiano como uma irrupção transitória de algo
estranho ou extrínseco. Em termos temporais, o
sujeito aparece apenas como uma pulsação, um
impulso ou interrupção ocasional que
imediatamente se desvanece ou se apaga,
“expressando-se”, desta maneira, por meio do
significante.
32. O SUJEITO FREUDIANO
Freud x Lacan
Lacan nunca faz do inconsciente uma instância; este
permanece um discurso divorciado do consciente e do
envolvimento subjetivo – o discurso do Outro – mesmo
quando ele interrompe o discurso do eu que está baseado em
um falso sentido de self. Ao encarar a subjetividade no
inconsciente de Freud como um furo, interrupção ou
irrupção no discurso e em outras atividades “intencionais”,
de forma alguma trata-se da especificidade do sujeito de
Lacan.
33. O SUJEITO CARTESIANO E SEU
INVERSO
O que é mais notável a respeito do sujeito freudiano é que
ele desponta apenas para desaparecer quase instantaneamente.
Lacan ressalta que o sujeito de Descartes – o cogito – tem
uma existência igualmente efêmera. O sujeito cartesiano conclui
que ele é toda vez que diz para si mesmo, “Eu penso”. Ele
precisa repetir isso para convencer-se de que existe. E, tão logo,
pare de repetir essas palavras, sua convicção inevitavelmente se
evapora. Descartes é capaz de assegurar uma existência mais
permanente para o sujeito através da introdução de Deus – a
garantia de tantas coisas no universo cartesiano – mas Lacan
concentra sua análise na natureza pontual e evanescente do
sujeito cartesiano.
34. O sujeito cartesiano e seu inverso
Lacan vira Descartes de cabeça para baixo: o
pensamento do eu é mera racionalização consciente
(a tentativa do eu de legitimar declarações erradas e
involuntárias através de explicações pós-fato que se
enquadram na auto-imagem ideal), e o ser então
gerado pode ser categorizado apenas como falso ou
como fraude.
35. O SUJEITO DIVIDIDO DE LACAN
Lacan: “eu sou sem-ser”.
O sujeito não é senão sua própria divisão. A
variedade de expressões como “sujeito fendido”, “sujeito
dividido” ou “sujeito barrado” cunhadas por Lacan – todas
escritas com o mesmo símbolo S barrado – consiste
inteiramente no fato de que as duas “partes” ou avatares de
um ser falante não têm nenhum traço em comum: elas estão
separadas de forma radical (o eu ou falso ser exige uma
negação dos pensamentos inconscientes, o pensamento
inconsciente sem nenhuma preocupação que seja com a
opinião positiva do eu sobre si mesmo).
36. O sujeito dividido de Lacan
A clivagem do Eu em eu (falso self) e
inconsciente gera uma superfície num certo sentido
com dois lados: um que é exposto e um que é
escondido. Embora os dois lados possam não ser
constituídos, em essência, de materiais radicalmente
diferentes – linguísticos por natureza – em qualquer
ponto ao longo da superfície há uma frente e um
verso, uma face visível e uma invisível.
37. ALÉM DO SUJEITO DIVIDIDO
O sujeito dividido não é de forma alguma
a última palavra de Lacan a respeito da
subjetividade.
Em Escritos, Ciência e Verdade, Lacan
sustenta que “sempre se é responsável por sua
posição como sujeito”. (componente ético)