O futuro é já hoje: reflexões sobre utopias e distopias no início do século XXI
1. Carlos Alberto Silva, Professor bibliotecário
O futuro é já hoje
A
inda há duas ou três décadas, o aparentemente Logo, se em 2000 a situação era preocupante, hoje é-o ainda mais, não
longínquo ano 2000 era visto por muitos como obstante alguns esforços para a contrariar…
a data de concretização de um edílico mundo
futurista, paradigma de modernidade, de desen-
P
or outro lado, algumas das piores previsões de George Orwell aca-
volvimento científico e de harmonia social. baram por se concretizar. Nas ruas das grandes cidades, nas super-
Com a queda de algumas ditaduras, de direita e de esquer- fícies comerciais, nas escolas e outros edifícios públicos, as câma-
da - na Península Ibérica, na América do Sul, no Bloco ras de vigilância acompanham quase todos os passos dos cidadãos.
de Leste… -, houve uma breve lufada de ar fresco, que Os documentos de identificação levam ao extremo a preocupa-
reforçou esta outra mítica convicção: o terceiro milé- ção securitária dos governantes, os «chips» chegam aos automóveis e sabe lá
nio seria o tempo da Democracia por excelência. Ten- mais a quê. A rede digital, sendo potencialmente uma fonte de conhecimen-
tava-se assim desmentir a sombria premonição «orwel- to e um espaço de liberdade, é também uma forma de registar os mais pro-
liana» de um futuro concentracionário, onde os cidadãos saicos movimentos dos seus utilizadores…
seriam vigiados e controlados até à exaustão (curiosa- A Economia tornou-se num novo totalitarismo. A chamada «globalização» é,
mente, associada a outra data ainda «longínqua» na principalmente, uma estratégia de Mercado, em que cada ser humano, inde-
época em que o escritor viveu: «1984»). pendentemente do seu contexto cultural específico, se torna num consumi-
A chancela «2000» surgia associada à denominação de pro- dor em potência. Os «big brothers» são agora as grandes corporações, que
jectos, colecções bibliográficas (e até editoras), edifícios, registam e analisam os comportamentos de consumo dos cidadãos. Os novos
produtos comerciais… Enfim: reforçava-se a ideia do ano senhores feudais são os operadores financeiros, que escravizam esses mes-
2000 como o ano de todas as panaceias. mos consumidores às obrigações da «dívida»…
O
ano 2000 chegou há uma década. Com ele,
A
s assimetrias entre os países ditos «desenvolvidos» e os «outros»
chegou também a anedota do famoso «bug» tornam-se ainda mais profundas, criando um «caldo de cultu-
que afectou os equipamentos informáticos. ra» favorável a todo o tipo de fanatismos e extremismos violen-
Das utopias prometidas, pouco ou nada se tos. Os grandes meios de comunicação de massa, em particular
concretizou: não se descobriu ainda a vacina a televisão, debitam todos os dias as crónicas da desgraça em
para o cancro; a SIDA continua incurável, embora se tenham que a humanidade se afunda, tornando-a «espectáculo»…
descoberto meios de a atenuar; as assimetrias sociais, a pobre- Os Homens sempre tiveram a propensão para idealizar num futuro impreci-
za e a fome alastram à escala mundial; os sistemas estatais so os seus desejos e aspirações, as suas utopias. Mas, face à velocidade com
de apoio social ameaçam esgotamento; os conflitos bélicos que o dito «progresso» vai transformando a nossa vida, o que ontem era futu-
agudizaram-se, com formas ainda mais terríveis de espalhar a ro é hoje passado, num estalar de dedos. Como se diz no título deste texto,
morte e o terror; as grandes urbes continuam a atrair massas repetindo um slogan recorrente, «o futuro é já hoje».
incontáveis de deserdados, acumulando problemas de ordem Por isso, é preciso dar corpo à utopia enquanto podemos. É preciso criar
social e ambiental, alguns quase incontroláveis; alguns recursos uma cultura de resistência, lutando contra a estupidificação. E porque
indispensáveis ao nosso actual modo de vida, como o petróleo, é preciso salvaguardar a nossa própria sobrevivência, há que contra-
estão à beira da exaustão; o planeta continua a sofrer, dia após riar o rumo suicidário do «crescimento a todo o custo» ao serviço do
dia, os efeitos depredatórios da Humanidade… «lucro a todo o custo». É preciso inventar uma nova economia, um novo
sistema de produção, de pequenas e múltiplas unidades interdepen-
E
m 2000, a situação ambiental era de tal forma dentes, respeitadoras do Ambiente, ao contrário do gigantismo con-
preocupante, que se realizou, logo em 2002, uma centrador e perdulário do modelo vigente. É preciso recusar o desper-
Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Susten- dício e a depredação do planeta que nos dá guarida. É preciso contrariar
tável, em Joanesburgo. Aqui se instituiu como objec- a concentração de recursos na mão de meia dúzia de privilegiados. É
tivo imediato a redução significativa da taxa de preciso instituir uma ética global, de verdadeira solidariedade, de ver-
perda de biodiversidade a nível mundial, até 2010. Ora, o tercei- dadeira partilha, respeitando a diversidade cultural de cada ser huma-
ro relatório sobre a diversidade biológica da Organização das no, de cada povo, garantindo a qualidade de vida e a dignidade a todos
Nações Unidas (ONU), divulgado há uns dias, conclui que o objec- e a cada um.
tivo não foi cumprido. Por consequência, muitas espécies de plan- E isso começa nos pequenos gestos quotidianos, na maneira como consumi-
tas e animais continuam a extinguir-se ou estão gravemente amea- mos, como nos relacionamos com os outros, como cumprimos os nossos deve-
çadas. Para além disso, e de acordo com o referido relatório, a perda res e obrigações, como exigimos os nossos direitos e defendemos os dos outros
da diversidade biológica é não só constante como se está a agravar. Por muito pouco que seja, eu tento fazer a minha parte. E você?
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Jornal de Leiria . 27 de Maio de 2010