Água e temperatura como fatores ambientais de sinalização da germinação em biomas brasileiros
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ÁGUA E TEMPERATURA COMO FATORES DE SINALIZAÇÃO DA
GERMINAÇÃO EM BIOMAS BRASILEIROS
Victor J. M. Cardoso
Professor Adjunto III, aposentado, Depto. de Botânica, IB,
UNESP-RC; e-mail: victorjc@rc.unesp.br
Dormência
Água e calor são os principais fatores ambientais responsáveis pela germinação de
sementes. A insuficiência (ou excesso) de um ou outro pode impedir ou retardar o processo
germinativo. Por outro lado, quando água e calor estão presentes em doses adequadas (o nível
de adequação depende muito das características genéticas e fisiológicas da semente), a
semente germina produzindo uma plântula.
Muito cedo o homem compreendeu isso, e a história da domesticação de muitas
plantas que hoje utilizamos como fonte de alimento passa pela seleção de sementes com boa
capacidade de germinação, e que o faça da maneira mais rápida possível. Percebeu-se,
entretanto, que algumas sementes, mesmo em condições aparentemente favoráveis para
germinar, não germinavam ou tardavam em fazê-lo. Tais sementes “difíceis” são atualmente
classificadas como dormentes, o que significa que elas apresentam Dormência que, em
sentido amplo, pode ser definida como um conjunto de caracteres de natureza morfológica
e/ou fisiológica que bloqueia ou retarda a germinação, e que em geral requer estímulos
ambientais específicos para ser quebrada.
A dormência não é, todavia, uma característica negativa, como o leitor poderá
imaginar. Praticamente todas as sementes passam – ao longo de sua formação na planta mãe –
por um estágio de dormência e, se assim não fosse, a semente poderia germinar ainda na
planta, antes mesmo de ser colhida ou de se desprender. Tal fato certamente não seria
positivo, embora em algumas espécies (como o mangue) isso ocorra.
Mas para que serviria a dormência, numa planta? Como biólogo, aprendi que as
plantas podem ajustar seu desenvolvimento face ao conjunto de fatores ambientais, valendo-
se de sua base genético-metabólica. Assim, cada planta tem seu repertório de “soluções” e,
dependendo do ambiente externo, aquelas que apresentarem características que permitam
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respostas apropriadas aos desafios do meio externo irão prosperar nesse ambiente e produzir
descendentes.
Em algumas condições, por exemplo, pode ser desejável à planta que sua progênie (as
sementes) não germine ao mesmo tempo, ou o faça num conjunto de condições ambientais
que assegurem o bom desenvolvimento da plântula. Portanto, seja para sincronizar a
germinação com uma estação de crescimento favorável, seja simplesmente para “espalhar” a
germinação ao longo do tempo, a dormência pode ser fator determinante. Obviamente, o que
irá determinar se a dormência está “servindo” ou não para alguma coisa será o conjunto de
fatores ambientais (água, calor, luz, atmosfera, etc.) ao qual a semente é exposta.
Ambiente e distribuição da dormência
Estudo publicado recentemente (Global biogeography of seed dormancy is determined
by seasonality and seed size: a case study in the legumes. New Phytologist 214: 1527-1536,
2017), de autoria de Rafael Rubio de Casas e colaboradores, concluiu que o fenômeno da
dormência é característico de espécies ou linhagens sujeitas e estações de crescimento curtas,
enquanto que espécies cujas sementes não apresentam dormência distribuem-se em ambientes
onde não há uma estação de crescimento definida, mas as condições são teoricamente
favoráveis por longos períodos do ano, ou mesmo o ano todo. Deve-se ressaltar que esse
estudo foi feito a partir de levantamento bibliográfico com centenas de leguminosas
(Fabaceae) divididas em três classes de tamanho, com ou sem dormência. Além disso, os
autores do trabalho associaram a dormência ao tamanho das sementes, ou seja, sementes
menores tendem a apresentar dormência, enquanto que as maiores não.
Os autores confirmaram sua hipótese de que a distribuição global de espécies com
dormência decorre de seu “valor adaptativo” (o quão adaptada uma espécie está ao meio
ambiente) em prever ambientes sujeitos a flutuações, isto é, ambientes sazonais (com estações
do ano bem marcadas). Em suma, espécies com sementes maiores, não dormentes, devem
predominar em ambientes não sazonais, enquanto que plantas com sementes pequenas e
dormentes dominarão ambientes com estações de crescimento curtas.
O resultado de Casas e colaboradores é, de fato, esperado. Imaginemos uma planta
cuja floração e frutificação esteja circunscrita à Primavera e Verão, e cujas sementes são
dispersas no final do Verão e início do Outono. Se as sementes dessa planta germinarem
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rapidamente, a plântula poderá não sobreviver às baixas temperaturas do final do Outono e
Inverno. Nesse caso, supondo que a semente tenha dormência, ela permanecerá no solo
durante os meses mais frios, germinando apenas na Primavera seguinte, quando a temperatura
se eleva. O curioso é que o aumento da temperatura favorece a germinação, mas antes foi
preciso interromper-se a dormência, e isso ocorreu graças ao frio invernal. Interrupção da
dormência e germinação são, pois, processos diferentes. Mesmo que tivéssemos colocado
sementes recém colhidas dessa planta para germinar em temperatura favorável, a germinação
não ocorreria porque, antes, a dormência precisaria ser interrompida.
Por outro lado, uma planta de habitat onde a temperatura permanece mais ou menos
estável o ano todo poderia, pelo menos teoricamente, germinar imediatamente após a
dispersão e produzir plântulas vigorosas, capazes de se desenvolver e formar novos
indivíduos.
Latitude e variação térmica
O alinhamento do eixo de rotação da Terra em relação ao plano de sua órbita ao redor
do Sol faz com que, na região do equador, o comprimento do dia e a temperatura fiquem
estáveis ao longo do ano. Quando nos afastamos do equador, seja para o norte seja para o sul,
com o aumento da latitude as estações do ano ficam cada vez mais definidas em termos de
fotoperíodo (duração do período diário de luz) e temperatura. Assim, à medida que nos
deslocamos em direção aos círculos polares (entre 60 e 70° de latitude), os dias se tornam
mais curtos no Inverno e mais longos no Verão, e as temperaturas mais baixas. Como
exemplo, observe, na Figura 1, as variações térmicas anuais na região de Yakutsk (Russia), a
62° de latitude Norte (N), e numa floresta em Belize (América Central), situada a 18° N (fonte:
https://earthobservatory.nasa.gov/Experiments/Biome/graphs.php). Na floresta tropical úmida, em
Belize, a temperatura praticamente não varia ao longo do ano, ao passo que na tundra, na
Rússia, a temperatura varia de -40 °C a 18 °C.
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A variação sazonal da temperatura e do fotoperíodo indicam a aproximação de uma
estação de crescimento favorável ou desfavorável, possibilitando à planta controlar o
desenvolvimento. Embora o fotoperíodo possa afetar a dormência durante o desenvolvimento
da semente, esse fator não tem muita importância na germinação de sementes no solo, ao
contrário da temperatura.
Variação anual da pluviosidade e temperatura em biomas brasileiros
Espera-se que a dormência associada à temperatura predomine em espécies vegetando
em habitats onde esse fator varia acentuadamente entre as estações do ano. Mas vamos
examinar o caso de alguns dos principais biomas brasileiros, a partir da análise de dados de
precipitação e temperatura coletados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET)
(http://www.inmet.gov.br) nas estações indicadas abaixo, no mapa.
Os dados representam as médias mensais no período de Janeiro de 1980 a Dezembro
de 2016. Conforme a Figura 2, em geral as temperaturas médias variam pouco ao longo do
ano, exceto na região do Pampa, em Bagé (RS), situada próximo ao extremo sul do Brasil,
onde a temperatura oscila de 11,5 °C em Julho (Inverno) a 24 °C em Janeiro (Verão).
Observe também que em Triunfo (PE) – região de Caatinga – e Sete Lagoas (MG) – região de
Cerrado – a variação térmica é semelhante, apesar das diferentes latitudes (7,81S em Triunfo
e 19,46S em Sete Lagoas). Nesse caso, deve-se levar em conta também o fator altitude
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temperatura(°C)
Figura 1
Yakutsk Belize
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(1105m em Triunfo e 732m em Sete Lagoas). Em Barcelos (AM), Manicoré (AM) e Matupá
(MT), na região Amazônica, a flutuação térmica ao longo do ano é mínima.
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temperatura(°C)
Figura 2
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triunfo
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Portanto, em todas as localidades da faixa tropical, a temperatura em si não representa
um fator crítico, uma vez que os valores situam-se numa faixa considerada favorável para a
maioria dos processos ligados ao desenvolvimento da planta. Pelo menos teoricamente,
sementes de plantas desses locais não precisariam valer-se de mecanismos de indução ou
quebra de dormência relacionada à temperatura. Por outro lado, seria mais provável
encontrarmos espécies com dormência na região do Pampa, onde a temperatura varia mais ao
longo do ano.
Consideremos agora outro fator essencial para o crescimento da planta e para a
germinação de sementes: a água. Na Figura 3 vemos agora a distribuição das chuvas ao longo
do ano, representando as médias mensais no período de 1980 a 2016. O quadro fica mais
complicado, mas podemos em princípio notar que as variações pluviométricas parecem mais
acentuadas do que as térmicas. Isso é melhor visualizado se tomarmos os respectivos
coeficientes de variação (CV), ou seja, a porcentagem de variação dos dados em relação à
média (Figura 4). Quanto maior CV, mais os valores mensais variaram em relação à média do
ano. Excetuando-se Bagé, em todas as localidades monitoradas a variação pluviométrica é
bem maior do que a térmica. Em Bagé, situada na zona temperada (sub-tropical), ocorre o
inverso, ou seja, a temperatura varia mais do que a precipitação.
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Figura 3
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Se tomarmos como exemplo Porto Nacional (TO), na região do Cerrado, é fácil
observar que a temperatura permanece estável durante o ano, mas os índices pluviométricos
não, ou seja, a disponibilidade de água no solo varia fortemente em diferentes estações do ano
(veja o primeiro dos dois gráficos abaixo). Para efeito de comparação, ao lado temos os dados
mensais de Bagé (RS), no pampa gaúcho, onde a distribuição de chuvas apresenta-se mais
agrupada (a diferença entre a pluviosidade máxima e mínima é menor).
Pluviosidade e germinação
Vamos imaginar agora a semente num meio (por exemplo, na região do Cerrado) em
que a temperatura é relativamente estável, mas a disponibilidade de água no solo varia
fortemente. Tal semente, como mencionado acima, não “precisaria” de mecanismos de
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coeficientedevariação(%)
Figura 4
temperatura precipitação
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Porto Nacional
precipitação temperatura
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Bagé
precipitação temperatura
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indução e/ou quebra de dormência associados à temperatura, além do fato de que, caso ela não
apresentasse dormência, a temperatura em si não impediria sua germinação em nenhuma
estação do ano.
Entretanto, essa semente, sujeita a períodos de seca no solo do Cerrado, deve, antes de
tudo, proteger-se da desidratação. De fato, sementes com tegumentos ou envoltórios mais
espessos e/ou impermeáveis podem sobreviver por longos períodos em ambientes secos.
Essa característica morfológica provavelmente não seria necessária se a
disponibilidade de água não limitasse a germinação de uma semente recém liberada da planta
materna. Entretanto, em ambientes nos quais nem a água nem a temperatura são limitantes,
outros fatores poderiam eventualmente afetar a germinação, como a qualidade da luz (razão
vermelho:vermelho extremo) ou o nitrato do solo. O que determinará afinal a resposta
germinativa será o conjunto de características da própria semente (tamanho, composição
química e metabolismo, dentre outros). Portanto, mesmo num ambiente aparentemente
favorável em termos de água e temperatura, não é possível descartar-se a presença de
mecanismos e/ou processos restritivos à germinação.
Mas voltemos à água. Sementes com envoltórios menos permeáveis perdem menos
água, mas também absorvem menos. Menor absorção significa menor hidratação de
moléculas essenciais ao início do processo germinativo e, conseqüentemente, retardo (ou
impedimento) do crescimento do embrião. Imagine uma semente do Cerrado dispersa no final
do Verão ou início do Outono, quando a disponibilidade de água no solo já está baixa. Graças
ao seu revestimento, ela poderá permanecer no solo seco por semanas ou meses, como uma
verdadeira semente dormente, até que as chuvas regulares voltem e o solo esteja úmido o
suficiente para permitir o desenvolvimento da plântula.
O jatobá (Hymenaea courbaril), por exemplo, apresenta sementes com tegumento
resistente e que demoram para se hidratar (embeber). Com o tempo, desde que a umidade do
solo seja suficiente, a água penetra na semente, seja por aberturas naturais (como a micrópila),
seja por fissuras no próprio tegumento, de modo que a semente embebe e inicia o processo de
germinação.
Concluindo, seja através de dormência, seja através de outros
mecanismos, para a planta é importante que sua semente consiga
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detectar, interpretar e responder adequadamente aos sinais do meio
ambiente. Neste artigo enfoquei os fatores temperatura e,
principalmente, água, tentando mostrar que, mesmo num ambiente
tropical aparentemente mais favorável ao desenvolvimento, outros
fatores – que não a temperatura – podem flutuar sazonalmente e
favorecer mecanismos adaptativos que respondam a eles. Qualquer
modelo que busque descrever “globalmente” a distribuição das
plantas com sementes deve considerar isso.