O documento discute a importância da socialização de estudantes em escolas. A Escola Municipal Manoel Monteiro tentou socializar um aluno problemático ensinando-o a respeitar as regras e os direitos dos outros. A educação visa tirar as pessoas da marginalidade ensinando as regras de convivência social, um desafio que remonta aos primórdios da humanidade.
1. A socialização dos educandos na Escola Municipal Manoel Monteiro
Texto de Marco Aurélio Dias
São Lourenço, setembro de 2005
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A SOCIALIZAÇÃO DOS EDUCANDOS
Em 2005, a Escola Municipal Manoel Monteiro, em São Lourenço, no Bairro
Nossa Senhora de Lourdes, tinha, como toda escola, alguns alunos com dificuldade de
adaptação e socialização. Um deles, porém, mais ousado e que vou chamar de Aluno P,
tomava a merenda dos outros alunos, pegava objetos das professoras, batia nos
coleguinhas de classe e chegava até a levar objetos pontiagudos para a sala de aula.
Queria viver sem regras e sem castigos, ameaçando e propondo a lei do mais forte,
exatamente como os homens primitivos viveram por muito tempo dentro das florestas,
mesmo depois que desenvolveram o equilíbrio, ficaram eretos e desceram das árvores.
O que as professoras tentavam fazer era convencer o Aluno P de que ele precisava fazer
parte do grupo. As professoras perguntavam se ele gostaria que as outras crianças da
escola roubassem sua merenda e fizessem com ele a maldade que ele fazia com elas. O
Aluno P respondia que não. Tentava-se, em suma, tirá-lo do estado de selvagem, e,
naqueles momentos, a Escola Municipal Manoel Monteiro era exatamente como a
forma primitiva de escola onde os ensinamentos consistiam em convencer os homens
das cavernas acerca da necessidade de um não fazer ao outro aquilo que não gostaria
que se lhe fizesse, talvez usando os mesmos argumentos que as professoras usaram para
convencer o Aluno P.
Entendo, a partir daí, como escola, também a necessidade social de transmissão
das regras de socialização humana como desafio educacional para tirar as pessoas da
marginalidade, prática esta que caracterizou o fenômeno antropológico de expansão do
homem moderno. Esse desafio é o mesmo de 50 mil anos atrás, e ele aparece nas
cantigas populares como uma forma de linguagem do inconsciente coletivo. Assim
sendo, parece que a educação começou no meio humano como escola de transmissão da
ética de relacionamento, sendo que os pais eram os professores; e os filhos, os alunos,
antes de se institucionalizar como estabelecimento de ensino nos moldes atuais. A
escola, desde as primeiras transmissões das regras de socialização, veio, com o avanço
da Ciência e do conhecimento, adicionando outras disciplinas no currículo escolar, mas
a primeira disciplina foi esse tipo de moral e cívica ou filosofia de relacionamento.
Em muitas cantigas populares essa luta para ensinar, socializar e introduzir os
deveres na vida do educando aparece de forma muito clara, do jeitinho como foi o caso
do Aluno P na Escola Municipal Manoel Monteiro. Uma cantiga folclórica diz que o
“cravo brigou com a rosa de baixo de uma sacada. O cravo saiu ferido e a rosa
despedaçada. O cravo ficou doente. A rosa foi visitá-lo. O cravo pediu desculpas e a
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Observei mais atentamente, durante o tempo que trabalhei na escola Municipal Manoel
Monteiro, que a Educação consiste tanto em disciplinar o educando para o convívio
social, quanto em lhe ensinar as ferramentas de linguagem e conhecimentos
indispensáveis para o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
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2. A socialização dos educandos na Escola Municipal Manoel Monteiro
Texto de Marco Aurélio Dias
São Lourenço, setembro de 2005
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rosa pôs-se a chorar”. Trata-se de um jogo de simbologia bem apropriado. Atentemos
para o fato de que o “cravo” é a flor que representa o fim da vida humana. Até se diz
que “o cravo tem cheiro de defunto”. Em suma, o “cravo” é a flor usada para as pessoas
despedirem-se dos entes queridos. A “rosa”, ao contrário, é a flor que representa a
juventude, a vida, o amor, a paixão, o sonho. Portanto, a “rosa” representa a geração que
surge, a nova geração, o novo, o inovador, a inexperiência, o começo, o educando. O
“cravo” é o adulto consciente da utilidade das regras sociais, das leis – em suam, é a
escola.
Mas a “rosa” não tem consciência de que sua fase é apenas uma iniciação e um
ritual onde está aprendendo a ser guardiã dos arquétipos conservadores da sociedade
organizada pelo direito civil. Daí o conceito de que o idoso tem quer ser respeitado e de
que os textos antigos estão revestidos de sacralidade e infalibilidade. Diria até que a
nossa maneira de pensar acompanha as fases do nosso corpo. Criança pensa como
criança. Adolescente pensa como adolescente. Adulto pensa como adulto. Mas todas as
fases são apenas passagens. O ser humano socializado é uma personalidade em
constante formação. E na ordem natural das coisas, toda criança envelhece... Logo,
como todo adulto se torna conservador, a vitória do conservadorismo será infalível, uma
vez que, por último, todas as pessoas pensam como idoso. Mas acontece que o modelo
racial é quem traça as diretrizes de um povo e pouco importa o que as filosofias
imaginam que seja o ideal. A expansão das relações sociais e do pensamento humano é
determinada pela aceitação do conceito social de busca do melhor para todos, sabendo-
se que no modelo de conduta do estado de natureza o homem busca só o melhor para si,
sem pensar no bem estar do semelhante, sendo necessário, portanto, convencê-lo de que
não pode voltar ao estado de animal, sem lei e sem censura.
Tudo leva a crer que, de alguma forma, o “cravo” (adulto) sai da vida ferido,
imperfeito, sem uma adaptação adequada, pois, em sociedade, lhe é tirada a liberdade
absoluta, o estado de selvagem, que é o natural do antropóide, e o submetem a uma vida
artificial que chamamos de sociedade, a qual tem regras de deveres e respeito. As regras
estabelecidas e que devem ser ensinadas são o melhor que existe para gerenciar o
relacionamento humano, mas não quer dizer que são o melhor para o ser humano. O que
podemos é deduzir pela lógica de que, se a humanidade, em algum ponto da história,
optou por abandonar a lei do mais forte e viver dentro das regras de socialização onde se
garante um meio termo que é o melhor para todos, então admitimos que viver sob
liberdade condicionada ao respeito dos direitos do outro, isto é o melhor para todos. O
homem, no entanto, se adapta ao sistema social momentaneamente e por necessidade de
sobrevivência. Ele se adapta, porém conservando o estado de natureza latente. Ele se
ajusta, mas não se adapta a ponto de perder o instinto natural. Transformamos em
sociedade, através do impulso civilizatório, o que estava destinado para ser apenas
selvagem.
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Observei mais atentamente, durante o tempo que trabalhei na escola Municipal Manoel
Monteiro, que a Educação consiste tanto em disciplinar o educando para o convívio
social, quanto em lhe ensinar as ferramentas de linguagem e conhecimentos
indispensáveis para o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
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Texto de Marco Aurélio Dias
São Lourenço, setembro de 2005
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E a “rosa” (a juventude, o novo, o sonho) sai também despedaçada dessa relação,
pois é obrigada a modificar para uma censura de si mesma o que estava destinado a ser
liberdade absoluta de modos e de expressão, crescendo reprimida e administrando esse
conflito artificial “do que pode ser” e “do que não pode ser”, do que “lhe é proibido” e
do que “lhe é permitido”, tarefa, enfim, que recai parcialmente sobre os educadores.
Razão pela qual o Aluno P, na Escola Municipal Manoel Monteiro, foi várias vezes
conduzido à Diretoria para que a coordenadora pedagógica lhe repetisse as regras:
“...você não pode tomar a merenda dos coleguinhas, tem que respeitar o direito deles...
Você gostaria que algum aluno tirasse algum objeto seu? Então você também não pode
fazer isso!... Então volta para o recreio e brinca direitinho, respeitando seus
coleguinhas...”
As gerações da sociedade organizada, graças ao processo de educação, sempre foram
impedidas de voltar para o estado de natureza primitivo, mesmo tendo-o potencializado
na alma. O negativo do estado de natureza é que a parte poética da liberdade total tem
implícita o comportamento violento da lei do mais forte e a justiça feita pelas próprias
mãos, o que temos que reprimir, principalmente através da educação, e é o que acontece
continuamente desde que os pais deixam as crianças na escola. A Educação, portanto, é
um processo de socialização que tem embutido o ensino da escrita e das outras
disciplinas – enfim, todo o conhecimento acumulado pela humanidade.
A vida corre do sonho para a realidade, do novo para o velho, da “rosa” para o
“cravo”. Não há outro rumo. A “rosa” (educando) tem como expectativa de futuro ser
apenas o “cravo” (modelo de pessoa socializada). O homem não pode ser mais que
homem, tem que viver seu próprio modelo social, pois a floresta foi abandonada no
passado. Independentemente do conflito das gerações, a nossa relação com a vida o
tempo todo "é de cravo e é de rosa....” No que se refere ainda ao fato de sairmos feridos
e despedaçados das relações sociais, realmente as gerações velhas ficam até doentes de
tanto cuidar das gerações novas. Há casos até em que se diz que os filhos matam os pais
de tanto trabalho que dão (entenda-se a dificuldade que muitos filhos tem para aceitar as
regras). Em contrapartida, a forma de vida social conservadora acaba por despedaçar a
rosa (talvez por ter que abandonar os sonhos da liberdade absoluta do estado de
natureza). Trata-se de um conflito. Muitos desejariam mesmo é passar a vida feito um
leão, assaltando os mais fracos nas horas de necessidade.
A cantiga diz que a “rosa” vai visitar o “cravo” doente. Chega despedaçada. Mas essa
visita simbólica denuncia a grande mudança nas relações das duas gerações. É a hora do
entendimento cordial. O chamado amadurecimento. A gente observa que o “cravo” pede
desculpas (estamos falando de linguagem simbólica) pelas iniciativas que teve que
tomar para realizar o ritual de passagem. E a “rosa” chora. Ela chora porque já não é
mais a “rosa”. Converteu-se num belo “cravo” guardião de todos os arquétipos
conservadores da sociedade civil. É a hora do entendimento. Enfim, as gerações sempre
se encaixam no padrão do pacto social.
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Observei mais atentamente, durante o tempo que trabalhei na escola Municipal Manoel
Monteiro, que a Educação consiste tanto em disciplinar o educando para o convívio
social, quanto em lhe ensinar as ferramentas de linguagem e conhecimentos
indispensáveis para o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
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4. A socialização dos educandos na Escola Municipal Manoel Monteiro
Texto de Marco Aurélio Dias
São Lourenço, setembro de 2005
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Assim parece ser o curso da vida humana: adaptar-se e tornar-se modelo de gente
aceitável dentro do que as normas entendem como gente de bem.
Analisando a cena onde a “jardineira” está triste, olhando “a camélia que caiu no
lago, deu três suspiros e depois morreu”, a gente deduz que ela, a “jardineira”, está num
momento de introspecção e de meditação no qual observa a morte ou o fim de sua
própria fase de sonhos impossíveis (a liberdade absoluta do estado de natureza), o fim
daquela sua vida onírica da infância, e visualiza nitidamente sua “camélia” (suas
concepções de um mundo sem regras) sendo engolida pelo lago das responsabilidades
sociais e do padrão de vida aceito historicamente pela sociedade. A escola cumpre esse
papel de mostrar a realidade social para o educando. Nós todos somos a “jardineira”
triste na mudança de adolescente para adulto, em todas as fases de mudança. A “camélia
que deu três suspiros e depois morreu” no “lago” dos deveres sociais significa apenas
uma fase nova da vida que devemos assumir. É imprescindível abandonar a
adolescência. E em todas as fases da vida temos sempre uma “camélia” suspirando e
morrendo diante de nós. Trata-se daquela mesma linguagem do ritual de passagem ou
adaptação apresentado na visita que a “rosa despedaçada” faz ao “cravo” moribundo
depois da briga que tiveram. A “camélia” que suspira e morre é como a “rosa
despedaçada” em franco processo de metamorfose social, donde surgirá um novo
“cravo”, uma nova fase da vida: a pessoa adulta responsável! É o convencional
momento de entendimento entre as gerações. Passo a passo, ano após ano, série após
série, a escola educa o aluno para a vida social. Na Escola Municipal Manoel Monteiro,
várias vezes vi sendo explicado a certos alunos que a pessoa tem que viver dentro do
grupo, harmoniosamente, e que o modo de se fazer isso é respeitando os direitos do
coleguinha.
Prevendo essa dificuldade natural de adaptação da pessoa livre em pessoa social
com regras e deveres, a escola está sempre antecipando o que vai acontecer mais adiante
na vida do educando: “Se você não obedecer e estudar, não vai ter como arrumar um
bom emprego mais tarde...” Tal é o discurso que a maioria de nós deve ter escutado
dentro da sala de aula: “presta atenção no que estou explicando e para de conversar,
copia logo a lição, para de olhar para o lado, senta aí na sua cadeira e faz o dever...”
Portanto, a disciplina do educando é, o tempo todo, ensinada concomitantemente com o
ensino da escrita, da leitura e dos outros conhecimentos.
Marco Aurélio Dias
São Lourenço, setembro de 2005
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Observei mais atentamente, durante o tempo que trabalhei na escola Municipal Manoel
Monteiro, que a Educação consiste tanto em disciplinar o educando para o convívio
social, quanto em lhe ensinar as ferramentas de linguagem e conhecimentos
indispensáveis para o seu desenvolvimento pessoal e profissional.
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