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Livro-reportagem
Jornalismo - Univás
2012
M. E. Borges
De porta
em porta
2012, Universidade do Vale do Sapucaí
Textos:
Márcio Boges
Prefácio:
Patrícia Marques
Fotos:
Márcio Borges
Patrícia Marques
Projeto gráfico:
Márcio Borges
Ilustrações:
Murilo Braga
Orientação:
Profa. Ms. Patrícia do Prado Marques Cordeiro
Banca examinadora:
Profa. Ms. Maria Eunice de Godoy Machado Teixeira
Profa. Ms. Vânia dos Santos Mesquita
BORGES, Márcio Eduardo.
De porta em porta
Pouso Alegre, 2012
Livro-reportagem
Trabalho de Conclusão de Curso
Universidade do Vale do Sapucaí - Univás
Curso de Comunicação Social - Jornalismo
Palavras-chave: 1. livro-reportagem 2. romance-reporta-
gem 3. Pouso Alegre 4. espiritismo
A todos que acreditaram neste projeto.
Agradecer é algo bastante descomplicado, o que não
significa que seja fácil. Portanto, quero dispensar a habi-
tual citação de nomes, para não correr o risco de esquecer
alguém na infindável lista de pessoas que mantêm, cada
uma à sua maneira, um espaço especial e marcante em
minha vida. Portanto, gostaria de deixar registrado o meu
“muito obrigado” a cada um que esteve do meu lado da ca-
minhada inicial até onde estou. Cada palavra, momento ou
ação compartilhada com vocês foi responsável por esculpir
o que me tornei hoje: seja na família, no trabalho, na rua,
nos lugares por onde passei. Cada pessoa que passa por
nossas vidas, deixa um pouco de si conosco e leva um pouco
de nós. Eu espero que o quer que tenham aprendido ou
tomado de mim para vocês seja tão importante quanto o
que adquiri de cada um. Sem vocês eu até poderia chegar,
mas não seria Eu.
Agradecimentos
“Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de
quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e
sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos,
cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o
seu espírito cresce e torna-se forte.”
Carlos Ruiz Zafón
13
Prefácio
Escrever um livro é sempre um desafio, não somente pela
dificuldade do ato da escrita, quem se dispõe a escrever
um livro tem que entregar-se, mergulhar profundamente
na história que está contando, enfim, doar-se a um mundo
que inicialmente só existe em seu interior, em sua mente
e, acima de tudo, acreditar que nas páginas do livro, de
alguma forma, o leitor irá encontrar emoção, conflitos e,
principalmente, algo que se identifique, que o faça ler o
livro inteiro e ainda querer por mais.
Foi assim que eu me senti ao ler De porta em porta. A
cada palavra, a cada página, a cada história de Carmelino
Massafera, sempre uma lição, sempre algo para refletir ou,
até mesmo, colocar em prática. Márcio Borges conseguiu
Patrícia Marques*
14
resgatar a história de um homem simples que por suas
ações de caridade destacou-se em uma época onde o pre-
conceito era predominante na região que morava.
Com palavras de conforto e o seu dom mediúnico, Car-
melino abriu portas para pessoas que estavam à beira da
morte, da solidão, da sociedade. É indiscutível a sua im-
portância para o desenvolvimento da doutrina espírita em
Pouso Alegre, cidade que escolheu para viver com a sua
família. De porta em porta, ele mostrou às pessoas que,
independente do caminho que se escolhe para chegar até
Deus, o importante é segui-lo praticando o bem e em paz
com suas ações.
De porta em porta é para ler, reler e pensar. Traz à tona
um questionamento que vai além de qualquer posiciona-
mento religioso: qual o verdadeiro sentido da palavra ca-
ridade? Acredito que a resposta é facilmente encontrada
neste livro, mais que palavras bonitas, Carmelino oferecia
conforto e alimentos a quem precisasse. Sua ajuda não
se limitava aos que o procuravam, De porta em porta, ele
sempre ajudava o próximo.
A singularidade de um livro-reportagem está na forma
de se contar uma história real em um meio tão conhecido
pelas histórias de ficção que geralmente traz em suas pági-
nas. Ao reunir fragmentos da vida de Carmelino Massafe-
ra, Márcio Borges nos conta histórias reais de um homem
que parece ter saído dos livros de ficção por sua coragem,
15
sensibilidade e preocupação com o próximo, além, claro,
da sua conexão com o universo sobrenatural dos espíritos.
Márcio Borges, por meio de uma escrita impecável so-
mada a uma sensibilidade jornalística surpreendente nos
conduz a uma leitura que nos revela um jornalismo em
profundidade, além da simples menção ao fato. Como diria
o jornalista Marcelo Rech “olhos, ouvidos e, principalmen-
te, coração aberto diante da informação em estado bruto”.
É isso que o autor constrói em seu livro. Boa leitura!
*Patrícia Marques é mestre pela Universidade do Vale do Sapucaí,
instituição onde coordena o curso de Comunicação Social - Jorna-
lismo. É a professora orientadora do livro-reportagem De porta
em porta.
17
Das vertentes de trabalho que o jornalismo possibilita,
nunca tive dúvidas que me enveredaria mais para o lado
do perfil: humano, biográfico, com uma boa dose de pa-
rágrafos literários e uma visão autoral que a prática das
redações diárias impossibilita.
Dessa forma, a única certeza que tive quando entrei
pela primeira vez na sala de aula da graduação foi que sai-
ria de lá como um profissional capacitado o bastante para
atuar em [por que não?] todas as áreas jornalísticas, mas
que meu produto final, aquele que seria o responsável
pelo título de bacharel em comunicação social – jornalis-
mo, seria um livro-reportagem.
Foi uma escolha às avessas. Em geral, o aluno ou equipe
Apresentação
18
levanta um tema e, a partir dele, determina em qual veí-
culo aquela proposta melhor se enquadra. No meu caso,
o desafio seria encontrar a temática. Eu desejava sentir o
gosto inebriante de ver meu nome impresso na capa de
um livro, um sentimento ora egocêntrico ora contumaz.
Carmelino Massafera surgiu em minha vida por meio
de uma conversa informal com a professora Patrícia que,
mais tarde, seria a orientadora do projeto que trouxe à luz
De porta em porta. Tive receio no início. Eu teria que ir
à caça da história de um homem que muita gente sabia
quem era, mas poucos tinham riqueza de detalhes para
contar. Poucos, mas que foram o bastante. Talvez, essa te-
nha sido minha principal dificuldade e, ao mesmo tempo,
sorte.
Quando comecei a remontar parte da história de Car-
melino, me peguei pensando que gostaria de tê-lo co-
nhecido, porque a maneira com que falavam dele deixava
visível o quão importante e inesquecível ele foi. A partir
desta questão é que arquitetei os capítulos do De porta em
porta: um homem que lutou contra o preconceito por ser
espírita e, ironicamente ou não, partiu como um alguém
respeitado. Viveu setenta e oito anos e foi mascate, funcio-
nário da prefeitura, comerciante, dono de olaria, suinocul-
tor, músico e líder espiritual.
A principal proposta é que não seja um livro históri-
co, repleto de datas e acontecimentos, academicamente
19
descritos. Também não gostaria que vissem como um li-
vro voltado somente para o espiritismo. Assim, busquei
na linguagem literária uma forma de deixar a leitura mais
atraente.
Outro artifício, além da forma como o livro é escrito, é a
própria estrutura: em formato de bolso, De porta em por-
ta convida o leitor a levá-lo para qualquer lugar, por ser
prático de carregar. As ilustrações de capa e das páginas
internas foram desenvolvidas pelo artista plástico Murilo
Braga, exclusivamente para o projeto, e remetem à simpli-
cidade de Carmelino, sem deixar de ser original.
O nome, De porta em porta, foi escolhido por manter
uma relação estreita entre autor, obra e leitor. Eu visitei
diversos lugares, entre casas de parentes e museu, para
registrar a história de Carmelino. O próprio personagem
realizou verdadeiras sagas entre o trabalho de vender e
o de ajudar as pessoas e, por fim, os desenhos das portas
que antecedem cada capítulo pedem que o leitor as ultra-
passe e mergulhe na história daquele homem.
De porta em porta é uma viagem na história de um per-
sonagem que muita gente conheceu e poucos se lembram.
Não é um livro de ficção, pois os fatos narrados são frutos
de depoimentos de pessoas que conviveram de perto com
Carmelino Massafera. Não é jornalismo convencional, pois
vai além da proposta de responder a meia dúzia de per-
guntas do lead tradicional.
20
De porta em porta é um romance-reportagem. Pode pa-
recer um termo estranho, mas é o que melhor define esse
conjunto de páginas dividido em dez capítulos.
O livro-reportagem De porta em porta é voltado, sobre-
tudo, para adeptos da doutrina espírita, familiares, ami-
gos e conhecidos do biografado, o que não impede que ele
atinja um público formado por pessoas interessadas na
história de Pouso Alegre, no espiritismo na cidade e tam-
bém leitores que se afeiçoam por reportagens que traba-
lham com uma linguagem humanizada.
De porta em porta não é apenas o resultado de um Pro-
jeto Experimental. É um resgate de histórias que, antes es-
palhadas, agora estarão guardadas no mesmo lugar. É me-
mória de uma gente que já não conseguia guardar consigo
tudo o que sabia sobre Carmelino e tinha sede de contar
para o mundo, mas não sabia como fazer.
O importante para mim não foi detalhar o que fez Car-
melino Massafera em cada dia de sua vida, mas mostrar o
que ele representou para a geração que viveu com ele. Há
viabilidade? Claro. Um homem que fez os outros sorrirem,
que ajudou a por comida no prato de quem já não sabia
quando ia fazer a próxima refeição, que consolou corações
desesperados e que, simplesmente, foi pai, marido, avô,
filho, irmão e amigo merece ter sua história registrada.
Assim, quando esquecermos o que é ser pai, marido, avô,
filho, irmão e amigo tenhamos uma fonte de informações
21
e saibamos como recomeçar.
Para que, quando negarmos ajuda a quem só precisa de
um sorriso tenhamos a certeza de que ainda irá existir um
Carmelino para fazer o bem por nós, porque os Carmeli-
nos estão por toda a parte, onde nossos olhos não alcan-
çam, porque estamos ocupados demais olhando para nós
mesmos.
23
O livro-reportagem De porta em porta ambienta-se na ci-
dade de Pouso Alegre do fim do século XIX e início do XX. O
município, ainda com poucas décadas de existência, vivia
uma fase de mudanças constantes: novas leis eram apro-
vadas, o trem começava a funcionar e os comércios, pe-
quenas indústrias e os automóveis já davam os primeiros
passos para o crescimento que viria décadas mais tarde.
Nesse cenário, Carmelino, nascido em Borda da Mata
no dia 30 de maio de 1896, começava seus estudos para
tornar-se padre. A iniciativa para o sacerdócio tinha vin-
do dos pais, descendentes italianos que acreditavam ser o
único meio de livrar o filho das alucinações que ele sofria.
Desde pequeno, Carmelino ouvia vozes. Às vezes a in-
Introdução
24
tensidade daquela comunicação era tão forte que lhe cau-
sava dores pelo corpo. Receosos da saúde do filho ser pre-
judicada, os dois não tiveram dúvida em mandá-lo para
Pouso Alegre.
Mesmo rodeado por padres e textos religiosos, Car-
melino não deixou de ouvir as vozes que, ora o atormen-
tavam, ora o intrigavam. Então, quando decidiu procurar
uma mulher, que havia conhecido furtivamente na rua, ele
pôde compreender o que se passava consigo. Era um mé-
dium.
A doutrina espírita é uma das crenças na qual a mediu-
nidade está presente. O espiritismo teve seu auge por vol-
ta dos anos 1857, quando Allan Kardec, lançou, na França,
O livro dos espíritos. Depois dessa obra, outros quatro vo-
lumes compuseram a base do kardecismo e Kardec ficou
conhecido como o Codificador.
No Brasil, a doutrina espírita está inserida em três ver-
tentes principais: religiosidade, ciência e misticismo, em-
bora a primeira seja a dominante. Depois que deixou o se-
minário e procurou a mulher, Carmelino passou a estudar
e desenvolver de forma correta os seus dons.
Assim como em outros lugares, Pouso Alegre também
estava arraigada na dificuldade em aceitar o que era novo.
No início, o pequeno grupo de pessoas que se reunia em
sessões espíritas na cidade o fazia escondido. A Igreja Ca-
tólica, dominante na época, usava de seu periódico oficial,
25
o jornal Semana Religiosa para persuadir os fiéis a mante-
rem-se afastados de qualquer menção ao espiritismo ou
Kardec.
Além do engajamento na crença que escolheu para sua
vida, Carmelino desempenhou diversas atividades profis-
sionais para cuidar da mulher e dos doze filhos. Sempre
que possível, ele ainda saía com um grupo de amigos do
centro para pedir donativos, com os quais montavam ces-
tas básicas e doavam para famílias carentes.
Quando o preconceito em torno do espiritismo dimi-
nuiu e as pessoas passaram a aceitar outras crenças, os
trabalhos de Carmelino frente ao centro cresceram e, a
partir daí, ele se tornou um verdadeiro Chico Xavier de
Pouso Alegre, como o definiu a Revista do Ano 88, 14 anos
após o seu falecimento.
Além da personagem central, De porta em porta con-
templa algumas histórias de pessoas que ele auxiliou e
pequenas cenas cotidianas que foram resgatadas da me-
mória de parentes e amigos.
O que deveria compreender os anos de 1896 e 1974,
acaba se estendendo até os dias atuais, isso porque a força
das lembranças deixadas pelo personagem permanecem
vívidas.
27
O silêncio seria quase absoluto, não fossem os cachorros
que remexiam o lixo na porta das casas ou o correr das
águas do Mandu, rio que atravessa o bairro. Carmelino
despertou de um sono sem sonhos e estava inquieto. Ao
abrir os olhos pôde intuir que a madrugada ainda impera-
va lá fora, embora as primeiras réstias de luz, daquilo que
seriam raios de sol, já ensaiassem, tímidas, sua aparição
pela fresta da janela.
Pegou o velho rádio-relógio ao lado da cama, que fazia,
às vezes, de despertador, só para confirmar que o menor
ponteiro ainda indicava o número quatro. Como o sono
não ia aparecer de novo e a semana começaria de fato
dentro de duas horas, ele resolveu adiantar as atividades
Prólogo
28
daquela segunda-feira.
Deixou o quarto sem fazer muito barulho. Ainda na
porta, segurando no batente, ele virou-se e contemplou a
esposa dormindo. Poderia ficar parado ali por horas a fio,
velando seu sono e recordando a vida que os dois compar-
tilharam. Foram mais de cinquenta anos juntos e, apesar
de conhecê-la em cada gesto e ter adquirido a capacidade
de compreender qualquer coisa que ela sentia, ainda que
não pronunciasse uma palavra, Carmelino tinha a certeza
de que havia uma Georgina que ele e ninguém poderiam
conhecer.
Receoso para não acordá-la com algum movimento
brusco, ele fechou a porta e, ao caminhar até os fundos
da casa, se deteve diante de um papel pregado na parede.
O calendário, ainda novo, revelava o quatro de fevereiro,
sem o “x” com o qual os outros dias estavam marcados.
Antes que sua mente fosse ocupada pelos receios e
inseguranças que aquela data lhe causava, desvencilhou-
-se de seus pensamentos e continuou à frente. Resolveu
dar comida aos porcos e organizar algumas ferramentas
na olaria. Se os netos ou a esposa o vissem fazendo esses
tipos de tarefas iam brigar, com certeza. Podia até ouvir as
palavras da mulher: “Mas homem, esqueceu que você teve
um infarto e tem mais de 70?”.
Ao pensar na cena, imaginou que esboçaria um sorriso
e continuaria as atividades, sem dar importância ao gênio
29
da esposa. Mas, naquela madrugada, talvez apenas deixas-
se a vassoura de lado e fosse aproveitar o dia.
Pouco mais de uma hora bastaria para que deixasse
tudo em ordem. Os porcos só precisavam ser alimentados
de manhã e no fim da tarde e a produção na olaria estava
baixa. Seria melhor deixar tudo pronto, já que não queria
ninguém em casa durante a tarde.
Sempre que pensava no quatro de fevereiro, imaginava
como seria aquele dia. Sabia que, quanto mais esforço fi-
zesse para parecer como uma segunda-feira qualquer, me-
nos natural sairiam seus gestos, ações e palavras.
Nunca havia sido um homem nervoso. Mesmo quando
enfrentava grandes dificuldades ou momentos que qual-
quer sentimental desabaria em lágrimas, mantinha-se fir-
me. Não porque fosse insensível ou frio, mas porque sabia
que o desespero não resolveria nenhuma situação.
Queria acreditar que ninguém notaria nada fora do co-
mum. No entanto, o mais provável seria que, ao voltar à
cozinha, encontraria a mulher parada em frente ao fogo,
preparando o que comer. Ao vê-la e ao sentir o doce aroma
de um café forte, talvez conseguisse banir o sabor amargo
dos pensamentos nostálgicos.
Possivelmente ela se espantaria ao vê-lo acordado
tão mais cedo que o habitual e por não ter sido desper-
tada com os sussurros dele pronunciando os conhecidos
fragmentos da prece de Cáritas1
. Carmelino tinha uma fé
30
muçulmana: os horários de sua oração, ao acordar, no de-
correr da tarde e ao deitar, eram sagrados. A cena mais
comum da casa era vê-lo ajoelhado aos pés da cama agra-
decendo, pedindo ou simplesmente tomando uma fração
de seu tempo para alimentar a força interior que, ao con-
trário do físico de 78 anos, era de um jovem.
Então ele retornaria ao quarto e, antes mesmo de ter-
minar a última frase de sua oração, já ouviria o tilintar dos
talheres na cozinha anunciando mais uma segunda que
havia começado na casa dos Massafera.
Carmelino terminaria sua oração e se uniria aos outros
para a primeira refeição do dia. Os filhos notariam que
algo estava fora do lugar, pois apesar de sua postura ser
a mesma com a qual estavam habituados, algum vestígio
acabaria escapando. Ele poderia até imaginar que o olha-
riam pelo canto dos olhos e depois para a mãe. Ficaria fá-
cil, até mesmo, supor o diálogo que se seguiria.
- Sei muito bem que estão me observando. Há alguma
coisa que queiram me contar?
- Se um pássaro cantador deixa sua melodia de lado de
uma hora para outra, há de se fazer notar – adiantaria-se
1
Cáritas era um espírito que se comunicava através de uma da
médium Mme. W. Krell - em um grupo de Bordeaux (França),
uma das maiores psicógrafas da História do Espiritismo. A prece
de Cáritas foi psicografada na noite de Natal, 25 de dezembro,
do ano de 1873.
31
dona Georgina, sentindo falta do habitual show de asso-
bios do marido.
- Que dia é hoje? – soltaria, em resposta à mulher.
- Quatro de fevereiro.
- A idade chega e leva alguns velhos hábitos, lembran-
ças e forças embora – diria, olhando para a jovem que sen-
tava ao seu lado.
A filha, Maria de Lourdes, seria a única com quem po-
deria compartilhar um gesto de segredo, que ele compro-
varia piscando para ela. Talvez, depois disso, a jovem con-
tinuasse sua refeição sem se importar, mas o provável é
que esqueceria como comer, brincando com a xícara numa
mão e o pão em outra.
- Ora, deixe de conversa fiada que o dia hoje vai ser
cheio. Eu preciso que...
Carmelino interromperia a esposa, antes que ela come-
çasse a fazer o ritual de distribuição de tarefas domésti-
cas para todos. Seria a oportunidade de pedir para que os
filhos fossem fazer alguns favores no centro da cidade, o
que ocuparia praticamente o dia todo. Para a mulher, po-
deria sugerir que fosse visitar os amigos em Santa Rita do
Sapucaí. Ela pestanejaria quanto pudesse, mas seria ven-
cida pela insistência dele. Ele sempre ganhava.
Com a casa vazia, talvez Carmelino tenha percorrido
todos os cômodos, sem barulho e sem ter que driblar as
vassouras que a mulher insistia em passar, ainda que tudo
32
estivesse limpo.
Seu olhar, distante, como quem se recorda de uma vida
em segundos, talvez parecesse triste ou cansado. Se deita-
ria em sua cama, como de costume, e dormiria.
- É hoje – pronunciaria para si, antes de cair no sono.
Grafira, a menina que a família acolheu como filha, veio
visitá-los naquela tarde. Ao verificar que o pai dormia, foi
até a cozinha, lavou o que ainda estava sujo do almoço e
aproveitou para preparar um bolo, pois sabia que Carme-
lino acordaria com fome e não iria dispensar uma bela fa-
tia.
Já eram quase três da tarde e a porta do quarto conti-
nuava fechada. O bolo já estava frio debaixo do pano de
prato. Como o pai não dava sinal de levantar-se da sesta,
Grafira resolveu bater à porta.
Silêncio.
Abriu devagar e, ao ver o braço dele estendido, quase
tocando o chão, ela percebeu que o bolo continuaria na
cozinha, intocável.
35
As poucas vias que formavam o centro de Pouso Alegre
foram, por anos, tomadas pelo barulho de crianças que di-
vidiam seu tempo entre os estudos e as brincadeiras de
rua. Os espaços que ainda eram de terra viviam cheios de
pequenos sulcos, feitos pela ponta dos piões e o céu divi-
dia espaço entre seu azul e o colorido das pipas.
Mas a expansão dos bairros e a industrialização fizeram
com que o barulho nas ruas fosse substituído por carros e
homens engravatados, vestindo-se como os europeus, na
expectativa de que o pequeno município pudesse, algum
dia, ombrear-se aos grandes centros do estrangeiro.
Era para esse cenário, com intuitos de progresso, que
Carmelino foi enviado pelos pais, para estudar no Semi-
Vozes do
Seminário
36
nário Diocesano. As terras, que hoje formam a cidade de
Borda da Mata, não ofereciam nada além de uma vida que
se resumisse ao trabalho no campo para os homens e a
cuidar da casa e da família para as mulheres. Além disso,
ter um filho sacerdote poderia render à família uma vida
de graças, ou pelo menos era o que pensavam.
Carmelino estava às vésperas de viver seu décimo oita-
vo 30 de maio, quando o lar de padres e seminaristas tor-
nou-se sua nova casa. Seus dias passaram a se resumir em
orações e um debruçar constante sobre livros de teologia,
textos de filosofia e outros tantos escritos de pensadores
que, a seu ver, escreviam sem sequer terem passado pelas
situações às quais falavam de forma tão particular e com
propriedade.
Apesar da rotina monótona e cercada do rudimento
que os senhores da igreja impunham, Carmelino distraía-
-se nas conversas que mantinha com os colegas de quarto
ou os vizinhos de corredor. Embora os assuntos sobre os
quais falassem não fossem mais empolgantes que a pró-
pria vida do celibato, eles ainda tentavam sonhar com um
futuro melhor por detrás daqueles muros protegidos pelo
Pai-Nosso e Ave-Maria.
Mesmo cumprindo suas tarefas com determinação e
pontualidade, Carmelino tinha a sensação de que os dias
se arrastavam a passos mais lentos que a leitura dos tex-
tos menos atrativos do seminário. Por vezes, pensou em
37
deixar aquele lugar, afinal de contas, o celibato era uma
vontade dos pais, não sua.
Só à noite, longe do farfalhar constante de batinas que
se ouvia pelos corredores durante o dia, é que ele conse-
guia dar voz a seus pensamentos. Desde muito pequeno,
quando a idade ainda podia ser contada nos dedos das
mãos, Carmelino parecia ter um ar mais introspectivo do
que qualquer criança que dividisse os dias de brincadei-
ras. A inclinação para a reflexão não atrapalhou a infância
feliz que teve em Borda da Mata, em meio às esperanças
de melhoria de vida que ainda tomavam conta dos cora-
ções de imigrantes, desde o primeiro momento em que
pisaram em terras brasileiras.
A chegada deles tinha sido difícil. Navios que cruza-
vam os mares levando especiarias e outros sinônimos de
riqueza do início do século XIX começaram a transportar
pessoas. Homens, mulheres e crianças dividiam o mesmo
local. Talvez, a maior disputa entre eles não fosse por um
espaço para deitar-se, mas sim, contra as inúmeras enfer-
midades que dizimavam italianos, holandeses, portugue-
ses e mais gente de outras nacionalidades.
O novo mundo descoberto durante as Grandes Navega-
ções abria um verdadeiro leque de possibilidades, dúvidas
e medos. Deixar de lado os costumes, a terra materna, a
língua e aprender a viver num país de riquezas em explo-
ração era um desafio. Até mesmo o sobrenome perdera
38
sua forma: Mazzafera na Itália. Massafera no Brasil.
A família italiana de Carmelino vivia na Calábria, uma
região ao sul do país em forma de bota. Com montanhas
altas e mar de um azul impossível, a península é berço de
antigas civilizações e palco de monumentos históricos e
ruínas arqueológicas.
Antes que a vida, desestruturada pela falta de emprego,
tivesse o mesmo destino destroçado das construções anti-
gas, que foram arruinadas por guerras e disputas de espa-
ço, eles vieram buscar no antigo Pindorama uma oportu-
nidade que não era mais possível em terras italianas, onde
a miséria batia à soleira da porta.
Até conseguirem um pedaço de terra e uma moradia
fixa, os dias foram de intenso trabalho. Eles não estavam
no Brasil para serem senhores, mas para servi-los. Foi as-
sim que cuidaram dos filhos. Foi por isso que insistiram
para Carmelino estudar em um seminário, na expectativa
de que a vida dele pudesse ser menos penosa.
Talvez tenha sido esse histórico de lutas, perdas e ga-
nhos de seus pais o grande responsável por mantê-lo no
claustro. Pelo menos antes de tudo se intensificar.
Acontecia com frequência. Quase toda noite. Quando
tentava dormir, ouvia vozes sem rosto falarem palavras
inaudíveis em seus ouvidos. Era como se fosse outro idio-
ma ou talvez estivessem apenas querendo ser notadas e
não compreendidas.
39
Já havia sentido a mesma sensação inúmeras vezes en-
quanto criança. A mãe, confiante na crença dos benzedo-
res, tentava aliviar as sensações do filho com a ajuda de
curandeiros, orações e amuletos. Nada adiantava.
Às vezes ele pensava que a insistência para que se tor-
nasse um padre ia além da tentativa de uma vida melhor.
Carmelino se perguntava se a família sabia o que estava
acontecendo com ele e estivesse tentando mantê-lo longe
de seus próprios problemas.
Em meio a esse conflito interior, Carmelino perdeu
seus pais. Habituados a trabalhar na lavoura, sob sol quen-
te e por horas a fio, tiveram sua saúde sucumbida precoce-
mente por doenças.
Desde que os pais morreram, ele e os irmãos ficaram
sob os cuidados de Dona Amélia, parenta próxima da fa-
mília. Ela tinha uma bondade sem limites e não poupava
esforços para ajudar quando necessário. Cuidou de Car-
melino e seus irmãos da mesma maneira como cuidou de
sua filha, Carmelina.
Ele procurava não comentar com os religiosos, tam-
pouco com os colegas de estudos sobre o que ouvia. Tinha
receio de que pudesse não ser aceito no local e o expulsas-
sem. A ideia de incomodar Dona Amélia com suas alucina-
ções o atormentava ainda mais do que as próprias vozes.
A qualidade de vida no início do século XX começava a
dar os primeiros passos de avanço. Os pesquisadores das
40
ciências médicas trabalhavam com afinco na busca por
cura de doenças que, há um par de anos, assolava uma co-
munidade e levava à morte famílias inteiras. A escassez de
higiene fazia com que os habitantes de uma cidade fossem
reduzidos aos milhares.
Mas nem os novos métodos de tratamento da medicina
puderam impedir que os pais de Carmelino o deixassem
órfão antes mesmo de terminar os estudos, que por influ-
ência deles havia começado.
O dia em que os dois partiram poderia estar iluminado
por um sol resplandecente num céu sem nuvens, daqueles
em que o calor intenso é compensado pela brisa leve que
toca o rosto, mas seu coração estaria cinza como uma ma-
nhã nublada que anoitece antes da hora.
Durante quatro estações do ano, Carmelino estabele-
ceu uma rotina de estudos e orações mais intensa que a
dos colegas. Apesar da leitura não ser uma atividade pela
qual ele demonstrasse um extremo interesse, era a manei-
ra que encontrava de não ficar a sós consigo.
Ele acabou se afeiçoando às histórias bíblicas. Os textos
sagrados passaram a ser seu livro de cabeceira. Do início
ao fim, Carmelino perdia-se na história da criação do uni-
verso, imaginando se sua vida estaria, naquele momento,
mais próxima do Gênesis ou do Apocalipse.
Numa das noites em que estudava, vozes tornaram a
ensurdecer seus ouvidos. Ele tentou concentrar-se no tex-
42
to, mas as letras desprendiam-se do livro, confusas, sem
sentido. Estreitou os olhos sobre os papeis, mas só serviu
para que uma dor lancinante tomasse conta de sua cabe-
ça. Os sussurros foram aumentando, até que ele passou a
ouvi-los aos berros. Eram gritos que abafariam até mesmo
uma tempestade que pudesse fustigar suas janelas.
Saiu do quarto, pensando que se livraria daquilo, mas,
mesmo depois de alcançar os corredores, os lamentos
continuavam. A dor fazia a vista ficar embaçada, mas con-
seguiu chegar até a cozinha. Um dos padres ainda estava
acordado e, quando o viu, pálido e com as mãos na cabeça,
veio em seu encontro.
- Você não ouve? – foi só o que Carmelino pôde dizer
antes de perder os sentidos.
45
A ansiedade tomava conta de Pouso Alegre na manhã
de vinte e cinco de maio de 1892. Os senhores da vida pú-
blica, que mandavam e desmandavam naquelas terras e
nos distritos vizinhos, tinham um motivo a mais para se
aprumarem logo cedo, vestidos em ternos do melhor teci-
do, as botas ou sapatos mais lustrados e o chapéu que os
deixasse mais destacados em meio à multidão que certa-
mente se formaria no centro da cidade.
Pareciam sentir o cheiro inebriante do progresso a cada
novo documento que liam ou assinavam em seus escritó-
rios. As montanhas brancas de papel borrado, com letras
que muitos deles mal liam ou compreendiam, espalha-
vam-se sobre a mesa de seus gabinetes cotidianamente.
Adeus, Itália
46
Há quase três anos, Pouso Alegre tinha dado um de
seus primeiros passos mais importantes para a chegada
do tal progresso. Era 1892 quando a cidade ganhou uma
importante aliada: a 1ª Lei Orgânica do Município. Um
compêndio quase infindável de artigos, incisos, parágra-
fos e mais tantos termos jurídicos que aparentavam escri-
tos em outra língua.
No discurso da cerimônia que narrou o feito, os sor-
risos, de orelha a orelha, valiam por todos os outros pre-
sentes, que não tinham no rosto outra expressão senão a
dúvida que a tal lei, anunciada com tanta euforia e bem
dizer, fosse mesmo mudar alguma condição na vida deles,
ou seria apenas uma comemoração por uns pares de fo-
lhas a menos para ler e assinar na montanha do escritório.
Sem maiores novidades, três longos anos se arrasta-
ram para o povo que não tinha outra tarefa, senão dividir
seu tempo entre o trabalho na agricultura, no comércio e
nos serviços de casa. A falta de atividades voltadas ao la-
zer e ao incentivo à educação e cultura, fazia crescer uma
cidade sem muito planejamento, com ruas, casas e ideais
tão mal desenvolvidos quanto os nomes dos poucos que
conseguiam desenhá-los no papel.
O calor do final de maio anunciava a chegada das pri-
meiras brisas geladas, que acompanhariam a cidade até
o inverno ceder lugar ao perfume doce e suave das flores
que nasceriam com a primavera.
47
A movimentação que antecedia o evento em Pouso Ale-
gre também mexia com a imaginação e a curiosidade de
quem morava nos distritos pertencentes à cidade-sede.
Naquela manhã, em Borda da Mata, Carmine e Blandi-
na desfrutaram de uma hora a mais de sono. Desde que
tinham aportado em terras brasileiras, a hora de acordar
era, invariavelmente, às cinco da manhã. Do primeiro can-
tar do galo até a lua desenhar no céu sua aparição, o verde
e marrom das lavouras coloriam o cenário de suas vidas.
Vieram da Itália com a mesma esperança que trouxe-
ram outras centenas de famílias com as quais dividiram o
porão dos navios. O cheiro de homens, mulheres, crianças
e suas necessidades só não era mais fétido do que o aro-
ma da miséria que deixaram para trás, quando decidiram
subir no primeiro meio de transporte que tiveram opor-
tunidade.
Já tinham ouvido falar das riquezas do Brasil, por al-
guns vizinhos de outras nacionalidades, que conseguiram
prosperar no país tropical do Novo Mundo. Mas, a reali-
dade que encontraram por aqui, não foi muito diferente
da que deixaram para trás. Ao menos, tinham encontrado
um trabalho. Pesado, contínuo. Mas estavam conseguindo
cuidar dos filhos.
Os dois estavam dispensados do trabalho naquele dia,
assim como todos os outros funcionários da lavoura, do
comércio e do funcionalismo público. Estranharam quan-
48
do o patrão os reuniu no dia anterior para informar do
descanso, já que não deixavam de renovar os calos das
mãos, muitas vezes, nem mesmo em feriados santos.
Só descobriram o motivo de tamanho alarde quando
partiram para o centro da cidade naquele dia. O evento
parecia mesmo ser muito importante, pois, à frente de
um amontoado de pessoas, todos trajando suas roupas de
domingo, o número de senhores de terno e gravata havia
multiplicado.
Como o som da voz do orador que se pronunciava che-
gava aos sussurros no lugar onde estavam, só conseguiram
saber o que acontecia pelos cochichos de outras pessoas.
Souberam da presença de representantes do governo do
estado de Minas Gerais e homens da imprensa.
Pelo que ouviram, a cidade agora faria parte da Rede
Mineira de Viação e aquela comemoração toda era para
celebrar o início do funcionamento da ferrovia, que leva-
ria os pouso-alegrenses para as cidades vizinhas com o
mesmo conforto, rapidez e segurança dos quais desfruta-
vam os moradores da capital.
A partir daquele dia, o barulho do atrito entre as rodas
e o trilho, além do apito agudo, que insistia em ser ouvido,
mesmo a grandes distâncias, se tornaria a trilha sonora de
uma cidade que sonhava com o progresso. Levando cargas
e pessoas, a Maria Fumaça seria como uma celebridade.
Durante uma viagem até o Porto de Sapucaí, primeira
49
estação depois do centro de Pouso Alegre, o maquinista
reparou que a extensão da locomotiva estava menor que
a habitual. Foi então que notou falta em dois vagões. Bu-
fando de insatisfação, teve de engatar a ré e voltar até o
ponto de partida para buscar a carga e os passageiros que,
àquela hora e com todo o atraso, já deviam estar soltando
todo o tipo de xingamentos. Tamanha a impaciência que
tinham adquirido pela Rede Mineira de Viação, criaram,
inclusive, uma frase para referir-se à qualidade dos servi-
ços: “Ruim..., mas vai.”
* * *
Carmine e Blandina, apesar de não entenderem menos
que a metade das expressões de enaltecimento que os di-
rigentes da cidade dispensavam para os convidados, es-
boçaram o mesmo sorriso de quando conseguiram subir
a bordo do navio, ainda na Itália. Era como se uma cha-
ma de esperança, quase nula, voltasse a ter força. Naquela
manhã, eles voltaram a acreditar que pudessem embarcar
nos trilhos de um trem e suas vidas pudessem dar um sal-
to ao progresso, assim como pensavam que a cidade faria.
Mas, seus sonhos se dispersaram tão rápido quanto a
fumaça que saíra do trem em sua primeira viagem. Com
o novo meio de transporte, os fazendeiros puderam ven-
der mais de seus produtos e aumentar os lucros. Para os
50
descendentes de italianos também houve crescimento. De
trabalho. De cansaço. De dores. De filhos.
Desde que vieram da Europa, foram obrigados a pas-
sar pelas mais diversas adaptações. Aprender o português
não foi tarefa fácil. Mas, talvez, o mais doloroso tenha sido
ver suas origens tornarem-se mais longínquas, como se a
distância que os separava de sua terra aumentasse a cada
nova palavra, expressão ou costume aprendido.
Por diversas vezes sentiam-se como estranhos em um
mundo que não lhes pertencia. Era como se estivessem
famintos. Não pela falta do que comer. Mas com fome de
serem o que já foram, o que, como intuíam, jamais volta-
riam a ser.
A perda constante de identidade não poupou nem
mesmo a única coisa que poderiam chamar de seu. O so-
brenome ganhara dois ‘s’ no lugar antes ocupado pelo
mesmo som da pizza. Ao contrário deles, os filhos possu-
íam nomes cujas raízes pertenciam muito mais ao Brasil.
* * *
Um ano depois que os primeiros apitos da Maria Fuma-
ça foram ouvidos por toda Pouso Alegre, os resmungos de
dor de Blandina passaram a ser o barulho que dominava
sua casa. A família dos Massafera ganhava um novo mem-
bro.
51
Carmelino nasceu quando o mês das mães começava a
se despedir, com o frio castigando os trabalhadores rurais
que, desde o primeiro despontar do sol, ficavam com os
dedos enregelados do trabalho na lavoura. O nome, que
podia ser entendido como uma forma de mistura entre o
da mãe e do pai, possuía um significado que talvez os dois
nunca tenham tido conhecimento. De origem hebraica,
Carmelino significa “jardim de Deus”.
Aquele bebê pequeno que a mãe segurava em seus bra-
ços foi o grande responsável por aquecer seu coração do
inverno que se iniciava e por fazê-la ter forças para lutar
quando perderia o marido, quatro anos mais tarde.
Carmelino cresceu junto aos irmãos em Borda da Mata.
A região, à época um distrito de Pouso Alegre, era essen-
cialmente rural. Além dos costumes do homem do campo,
ele também foi criado com as superstições, lendas e tabus
nos quais todos acreditavam.
Certa tarde, enquanto a mãe trabalhava no campo, Car-
melino divertia-se com os irmãos e alguns amigos, depois
de terem ajudado nas tarefas de casa. Sem bola ou brin-
quedos, o esconde-esconde tornava-se a brincadeira mais
atrativa. Era a vez dele fechar os olhos, enquanto os outros
se esconderiam.
A região onde moravam era dominada pelo verde das
plantações. Os grossos troncos das árvores frondosas, que
limitavam a propriedade, também eram ótimos lugares
52
para esconderijos. Os meninos marotos se arranhavam
passando pelas cercas estreitas e subindo nos galhos mais
altos. As meninas espremiam-se debaixo das camas ou
atrás de móveis, dentro de casa.
A contagem que, como haviam combinado, deveria ir
até os cinquenta, não passou dos trinta, quando Carmeli-
no começou a ouvir uma voz que ditava os números junto
com ele.
- Você não vai se esconder? – perguntou, sem tirar os
olhos para ver quem era.
Como não obteve resposta, continuou a contar e outra
vez percebeu que não estava sozinho. Pensou que estavam
tentando pregar uma peça nele. Dessa vez, sem aviso pré-
vio e pronto para dar um susto em quem estivesse atrás,
ergueu a cabeça de súbito.
Ninguém.
Sabia que tinha amigos ágeis, mas nunca havia pensado
que pudessem se superar desse modo. Riu consigo quan-
do pensou que estava ouvindo vozes e foi procurá-los. Me-
nos de cinco minutos bastou para que os encontrasse, um
a um. Agora só faltava um irmão. Antônio.
Pôs a mão na cabeça para olhar na direção do sol e pro-
curar na copa das árvores. Foi atrás do monte de tijolos
da reforma que o pai não teve tempo para fazer. Procurou
perto de onde a mãe trabalhava.
Nada.
53
54
Já ia voltando pronto para desistir quando ouviu:
- Debaixo da sua cama.
- Antônio? – chamou o irmão, girando o corpo à procura
do dono da voz que ouvira. Novamente percebeu que não
havia ninguém perto dele e os outros estavam todos sen-
tados à espera da hora que a brincadeira fosse recomeçar.
- Que cara é essa? – soltou um dos amigos, quando viu
Carmelino voltar.
Estava tão atordoado que sequer ouviu a pergunta.
Sem saber direito o que estava fazendo, entrou em casa,
foi até seu quarto e qual não foi sua surpresa ao ver o ir-
mão encolhido, segurando o riso, debaixo da cama.
Correu.
Mas no lugar de ir até os outros para avisar que o jogo
podia recomeçar, desceu até as plantações. Em seu rosto
seria impossível ler se havia mais medo ou curiosidade. Só
o que conseguiu fazer foi gritar, a plenos pulmões.
- Mãããããããe.
57
Quando acordou estava deitado em sua cama, a camiseta
empapada de suor frio. Uma roda de homens de batina se
fazia ver em torno dele, todos com o olhar preocupado.
Apenas um deles estava menos apreensivo que os outros e
foi o primeiro a se manifestar.
- Convulsão. É só o que pode ser.
Na falta de um médico para realizar os procedimen-
tos de exame clínico, o diagnóstico do sacerdote foi acei-
to como correto e não falaram mais sobre o assunto até o
amanhecer.
Quando uma pessoa era acometida por algum mal que
ninguém sabia definir a causa, consequência ou trata-
mento rotulavam como convulsão, loucura e, até mesmo,
O bilhete
da fuga
58
esquizofrenia, principalmente a igreja, que condenava
práticas que fugissem ao ritual da missa, de seu culto aos
santos mártires e seus dogmas, como o curandeirismo ou
práticas das quais algumas pessoas falavam, que difundia
a ideia de comunicação com o mundo espiritual.
Carmelino levantou-se ainda trôpego, apenas para
trocar de roupa e voltou a deitar-se. O sono não tardou a
encontrar-se com ele.
Sonhou que reencontrava os pais num campo tão bran-
co que chegava a doer a vista. Percebeu que sorriam para
ele, gesticulavam e falavam coisas que ele não entendia. Só
conseguia enxergar os lábios deles se mexerem e um som
sibilante e indistinto chegar aos seus ouvidos.
Desejou estender a mão para tocá-los, mas percebeu
que uma parede invisível os separava; tentou gritar, mas
não o ouviam.
Acordou tão rápido quanto dormiu.
Esticou as mãos até sentir a Bíblia em cima da mesa de
cabeceira. Este livro agora era o seu refúgio. Sempre que
algo o incomodava ou a vontade de abandonar a vida que
levava o afligia de maneira extrema, voltava a seguir os
passos de Jesus e das personagens que ilustram os evan-
gelhos.
Abriu despretensiosamente numa página, quando per-
cebeu que um papel caíra. Sentou na cama e tateou o chão
à procura do bilhete. Estava dobrado em quatro partes e
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trazia um endereço.
Enquanto seus olhos percorriam a caligrafia, lembrou
o dia em que ganhou aquele papel. Foi há poucos meses
antes de ter deixado a casa dos pais e vindo para o semi-
nário. Tinha ido com a mãe até a casa de um senhor. Não
se recordava do nome, talvez porque estivesse assustado
demais para ter prestado atenção ou porque realmente
queria esquecer aquele momento.
A casa dele ficava em Pouso Alegre. Era simples. Mari-
do, mulher e dois filhos dividiam dois quartos, uma cozi-
nha, um banheiro e um pequeno cômodo que faziam de
sala de estar. Esse último era tomado por imagens dos
mais variados santos, feitas de barro, madeira, gesso e
quaisquer outros materiais em que conseguissem perso-
nificar a fé daquela gente.
Era domingo e a mãe de Carmelino o havia levado até
aquele homem por insistência de amigos. Ela vinha de uma
família que não acreditava no poder curativo ou sensitivo
dos quais se gabavam tantos homens e mulheres conhe-
cidos por benzedeiros. No entanto, rendeu-se à tentativa
depois de não conseguir conter as constantes reclamações
do filho sobre as vozes de pessoas invisíveis que conver-
savam com ele.
O ritual foi bem simples. O homem trajava uma roupa
que lembrava vestimentas de um mendigo, mas limpas e
sem furos. Empunhava ramos de alguma erva numa das
60
mãos, enquanto a outra sobrepunha a cabeça de Carme-
lino. A boca pronunciava uma oração quase inaudível. Ele
só conseguiu entender palavras como “afasta”, “mal”, “ex-
pulso”.
Quando saíram da casa, uma mulher que os observava
do outro lado da rua veio ao alcance dos dois e um menear
de cabeça sugeriu um cumprimento sutil.
Blandina conhecia aquela mulher dos comentários que
seus vizinhos faziam. Ouvira dizer, certa vez, que ela era
membro de um grupo secreto de pessoas. Ao que parecia,
eles se encontravam em reuniões fechadas para fazer ex-
periências bizarras, que incluíam práticas de exorcismo e
contato com os mortos.
Mesmo quando estava na Itália, em reuniões da igreja,
tinha ouvido algo a respeito desses trabalhos. O auge foi
por volta de 1857, quando um francês escreveu uma série
de livros a respeito do assunto. Ela lembrava muito bem
dos conselhos dos sacerdotes para não ler nada, não pro-
curar e não crer em tais barbaridades.
Foi o que fez.
Antes de a conhecida pronunciar qualquer palavra, ela
adiantou-se e se colocou à frente de Carmelino, um típico
gesto maternal, como se estivessem diante de um perigo e
ela precisasse proteger seu filho.
A mulher percebeu o medo e a fúria que emanavam
dos olhos de Blandina e procurou se afastar; não sem an-
61
tes estender a mão a Carmelino com um pedaço de papel.
O rapaz foi mais rápido que a mãe e, desvencilhou-se da
tentativa dela de pegar o bilhete, fingiu que o jogava fora,
colocando-o no bolso da calça.
Ao retornarem, as ocupações de dona de casa da mãe
impossibilitaram que ela tivesse tempo para pensar em
tudo que havia acontecido. A mulher, o bilhete e todo o
resto sumiram de sua mente tão rápido quanto a lenha
que queimava no fogão enquanto preparava o jantar.
* * *
De volta ao presente, Carmelino lembrou que estavam
próximos de um feriado, comemorado no início da sema-
na. Como não era dia santo e as obrigações com os estudos
estavam cumpridas, decidiu que ia procurar a mulher.
A semana transcorreu relativamente calma. As ativida-
des não foram diferentes do que estava acostumado: a ro-
tineira série de orações e textos sagrados e filosóficos. Por
diversas vezes se perguntou se aqueles autores sabiam
realmente sobre o que escreviam ou se apenas colocavam
no papel suposições nas quais as pessoas acreditavam ce-
gamente.
Apesar da tranquilidade, Carmelino estava em conflito
interno. A ideia de visitar uma desconhecida, anos depois,
sem sequer saber direito com que propósito o faria, era
62
assustadora. No tempo de uma semana encorajou-se e de-
sistiu de ir infinitas vezes.
Quis o acaso que Carmelino recebesse a recomendação
de participar de uma missa na igreja do centro da cidade,
a última que seria celebrada antes do feriado, a oportuni-
dade perfeita para a execução de sua fuga.
65
Fazia apenas vinte e cinco dias que os pouso-alegrenses
haviam comemorado a chegada de 1919 quando Carme-
lino e Georgina tornaram-se um só, perante a lei de Deus.
O casamento foi celebrado em Pouso Alegre e, logo depois,
foram viver em Borda da Mata, local em que ele tinha nas-
cido e crescido, antes de vir para o seminário.
A união dos dois jovens não teve nenhum empecilho da
família, embora os pais da noiva não fossem complacentes
com a ideia de o genro manter contato com o grupo que
praticava a doutrina espírita. Mas como Carmelino nunca
demonstrou nenhuma mudança em seu comportamento,
não impediram o enlace.
Os pais de Georgina também eram imigrantes italianos,
Preconceito e
revolução
66
vindos da Toscana, outra região do país sul europeu e, en-
quanto ela havia herdado o temperamento forte daquele
povo, na maneira de expressar com gestos, não economi-
zando verbos de escárnio contra desordeiros e não levan-
do desaforo para casa, Carmelino era o oposto.
A voz grave e o andar firme eram uma verdadeira más-
cara do homem calmo, complacente, atencioso e, em cujo
rosto, o sorriso só desaparecia para dar lugar aos assobios
com os quais saudava familiares e amigos, a todo o mo-
mento.
Depois que abandonou os estudos para se tornar um
sacerdote, poucos meses antes de se casar, Carmelino ain-
da recordava como havia sido difícil a vida no seminário.
Às vezes, quando ficava sozinho, lembrava os inúmeros
momentos em que sofreu calado, por falta de informação
e por medo do que pudessem pensar. Seria eternamente
grato à família que o ofereceu auxílio e apresentou um ca-
minho para compreender o que se passava consigo. Ago-
ra, seus dons não o preocupavam, nem afligiam, apenas
contribuíam para que pudesse amar e ajudar ao próximo.
Era engraçado pensar que continuava sendo um homem
de Deus, mas sem a batina.
Mesmo fora do catolicismo, Carmelino manteve uma
amizade bastante próxima de ex-colegas de seminário.
Embora as conversas que tinham não passassem de sin-
gelos cumprimentos corriqueiros e uma troca de palavras
67
previsíveis, dava para perceber como havia um vínculo
que os mantinha unidos. Talvez fosse a fé, as dificuldades
divididas na escola de padres, ou então, apenas o respeito
que devotavam um pelo outro. Mas esse contato era vela-
do, quase às escondidas, sobretudo depois que se tornou
público seu envolvimento com o grupo de espíritas na ci-
dade que, toda vez, ao ser citado, vinha acompanhado dos
piores adjetivos.
O preconceito que rondava a sociedade do início do sé-
culo XX estava alvoroçado. Quase três décadas já haviam
se passado da assinatura da Lei Áurea e os negros ainda
eram eternos escravos do preconceito, vivendo à margem
dos direitos e separados do resto do mundo, como se fos-
sem a razão dos males que qualquer um enfrentasse.
Não era diferente na religião. Com o monopólio de fiéis,
a Igreja Católica tinha tanta força como um poder cons-
tituído. Com isso, qualquer grupo que se mostrasse insa-
tisfeito com os dogmas que ela pregava era impedido de
frequentar não apenas os seus domínios, mas quase que
toda a sociedade.
Quando começou a estudar sobre a doutrina espírita,
Carmelino passou a entender a origem dos fenômenos
que o acometiam desde a infância. As dúvidas, inseguran-
ças e medos foram sanados a cada página lida e refletida.
Além do material elaborado por Allan Kardec, ele nunca
deixava de lado seu livro favorito, que aprendeu a gostar
68
desde o seminário: a Bíblia. Companheira constante, ela
era até motivo de discussão entre Carmelino e a esposa,
sobretudo quando ele a encontrava lendo alguma revista
de fotonovela.
- Vá ler o Evangelho, mulher – reclamava.
* * *
O preconceito contra raça ou religião não era o úni-
co mal que assombrava o mundo naquela época. Depois
de terem acompanhado os horrores da Primeira Guerra
Mundial, os brasileiros viam seu país sendo destroçado,
de região em região, por grupos que lutavam contra o go-
verno, por salários e condições de trabalho melhores ou
por autonomia em suas decisões políticas.
Foi numa dessas batalhas, em 1932, que Carmelino
Massafera marcou a vida de dezenas de pessoas. O país
assistia São Paulo rebelar-se contra o governo da época,
no episódio que ficou conhecido como a Revolução Cons-
titucionalista.
A insatisfação dos revolucionários era com o governo
provisório do presidente Getúlio Vargas. Eles também rei-
vindicavam uma constituição. Os combates avançaram os
limites do estado paulista e chegaram até Pouso Alegre.
Em Borda da Mata, Carmelino arriscava-se ao ajudar fe-
ridos.
69
70
- Têm crianças, feridas, ensanguentadas. Não posso fi-
car sem fazer nada – era o que dizia, toda vez que chegava
em casa com algum novo ferido para que a mulher e as
filhas ajudassem a tratar.
Em meio à guerra, Carmelino não escolheu um lado
para lutar, foi em defesa dos dois. Mesmo correndo sérios
riscos de ser pego, torturado ou morto, ele não deixou de
se arriscar e contribuir como podia para mostrar que, em
meio ao ódio, ainda havia esperança de paz.
Dona Georgina não se queixava pelo trabalho de dar
banho e cuidar de machucados e hematomas profundos
de homens e meninos que, às vezes, apareciam até mes-
mo mutilados. Sua maior preocupação era que o marido
pudesse ser acusado de algum envolvimento com o grupo
revoltante e detido pelos militares.
Mas no lugar do governo vir à procura de Carmelino
Massafera, quem veio a seu encontro foi outra figura que
se tornou um aliado importante em todas as ações dele.
73
Depois de colocar um filho no mundo, os pais passam a
ter uma responsabilidade eterna. É preciso ensinar a falar,
a comer, a andar, a comportar-se. O novo membro da fa-
mília necessita, sobretudo, de proteção e carinho. Os pais
também são responsáveis por transmitir os valores e as
tradições.
Apesar de terem vindo como imigrantes da Itália, a
crença religiosa dos Massafera não era diferente da maio-
ria da população brasileira. Os fiéis católicos cultuavam
a Deus participando das missas e celebrações na igreja e
seguiam, alguns à risca, outros nem tanto, os dez manda-
mentos e o que mais o clero e a Bíblia pedissem.
Mas, diferente da religião dominante, um grupo se
Quatro de
fevereiro
74
destacava por sua peculiar maneira de entender a vida, a
morte e a relação do humano com o divino. Formado por
pessoas do comércio, da música e alguns poucos intelectu-
ais, essas pessoas estudavam a obra escrita por Hippolyte
Léon Denizard Rivail.
O pedagogo francês interessou-se pelo fenômeno das
mesas girantes que se alastrava como chamas acaloradas
por toda a Europa. A possibilidade de contato com pesso-
as que já haviam deixado de habitar a terra, a ciência e a
crença por trás disso fascinaram o estudioso. Não demo-
rou muito para que ele começasse a se debruçar sobre o
assunto e, com o pseudônimo de Allan Kardec, publicou
uma série de cinco livros e passou a ser conhecido como o
Codificador da Doutrina Espírita.
Os ensinamentos pregados pelo espiritismo foram tão
aceitos quanto os negros na sociedade, logo após a abo-
lição da escravatura. Os rumores sobre o que diziam e o
que praticavam as pessoas que seguiam a doutrina eram
abafados pela Igreja Católica, que usava de seu periódico
oficial para combater tudo o que incitasse aos conceitos
espíritas.
Era no jornal Semana Religiosa que os padres reforça-
vam todos os conselhos que faziam questão de enfatizar
nas missas e celebrações. Ocupando manchetes inteiras
ou pequenas notas de página, sempre havia um texto
referindo-se ao espiritismo como loucura ou brincadeira
75
com consequências desagradáveis. A Igreja interferia até
mesmo no que as pessoas viam na televisão ou cinema, in-
dicando filmes que não deveriam ser vistos por católicos.
Mesmo com toda a repressão, as sessões espíritas eram
realizadas normalmente, ainda que quase às escondidas.
A curiosidade das pessoas acabou atraindo mais gente
para a doutrina, do que as proibições da Igreja afastavam.
Mas, diferente dos curiosos, Carmelino Massafera pro-
curou o espiritismo como forma de libertação ou redesco-
berta de si.
O local onde se reunia com o grupo ficava numa rua no
centro da cidade. Como o preconceito estava impregnado
no ar, os encontros eram quase secretos e falar sobre es-
piritismo na rua era como infringir os dez mandamentos
de uma só vez.
A cada novo encontro, Carmelino compreendia melhor
os fenômenos incomuns que ocorriam com ele. Começava
a encontrar soluções para os seus problemas espirituais.
Enfim, conseguia entender o que se passava dentro de si.
Com a dedicação à leitura e a assiduidade nas sessões
que o grupo realizava, se tornou um membro respeitado
do Centro Espírita Amor e Humildade, onde chegou a ser
presidente por mais de uma vez consecutiva.
Enquanto frequentador do centro, Carmelino desen-
volveu uma sensibilidade tão apurada que, de ajudante
nas sessões a líder espiritual foram apenas poucos meses.
76
Além do dom natural que ficava evidente a cada pas-
se2
realizado por ele, Carmelino ainda tinha uma forma
de falar grave, mas calmo e um ar tão tranquilizador que
as pessoas passaram a procurá-lo até mesmo fora do cen-
tro, muitas delas, às vezes, apenas para conversar ou pedir
conselhos.
Quem conhecia Carmelino, o queria bem. Além dos ne-
tos, que passavam a maior parte de suas tardes na com-
panhia do avô, outras crianças também o faziam, como
João Antônio Reis. Conhecido por Nenê, o menino passou
sua infância rodeado dos Massafera e, depois de adulto,
encheu-se de orgulho ao conceder entrevista para uma
reportagem que falou sobre Carmelino. “Todos queriam
bem a Carmelino. Eu era menino, mas gostava de procurá-
-lo e me sentia muito bem ao lado dele”. Essas foram as
palavras de Nenê que ficaram registradas no periódico.
Além dos amigos de espiritismo, Carmelino passou a
receber uma ajuda especial, que o auxiliou em diversos
momentos de dúvida. As lembranças de como o índio Ubi-
ratã entrou em sua vida partiram com ele, quando deixou
de viver na Terra, talvez porque Carmelino achasse desne-
2
Define-se como uma espécie de transfusão de energias espirituais,
que são transferidas do passista para quem recebe o passe, tanto
mais quanto mais este esteja numa situação de receptividade. E
tudo isso através da imposição das mãos, como fazia Jesus.
77
cessário que todos soubessem de um detalhe tão particu-
lar de sua vida espiritual, ou ainda, porque tenha confiado
suas histórias a pessoas que guardaram tão bem que até
se esqueceram.
Mais que um mentor, Ubiratã foi responsável por auxi-
liar Carmelino a traçar sua própria vida, quando revelou
a ele o quatro de fevereiro de 1974 como o dia em que
deixaria de habitar o mundo material. Assim como Em-
manuel, o guia do mais célebre médium brasileiro, Chico
Xavier, o índio Ubiratã também contribuiu com Carmelino
durante toda sua jornada terrena.
Aquela revelação o pegou de surpresa. Antes vivia uma
vida regada de amor e carinho que devotava a Deus, à fa-
mília e amigos, trabalhava para manter a casa, buscava
ajudar, como podia, todos que o procurassem. A humilda-
de e a doação que a doutrina pregava eram princípios que
nunca deixava de lado, mas depois da revelação, era como
se seu tempo estivesse mais limitado do que o de qualquer
pessoa.
Carmelino só encontrou sentido para prosseguir quan-
do percebeu o quanto era importante para as pessoas a
seu redor. Cada sorriso de agradecimento que recebia era
como se ganhasse algumas horas a mais de vida.
* * *
78
Pouso Alegre começava a dar os primeiros passos para
se tornar uma cidade referência no sul do estado. A região
privilegiada, com passagem obrigatória para o eixo Belo
Horizonte – São Paulo, fez o município atrair investimen-
tos importantes. O crescimento era proporcional. Aumen-
tavam a população, as empresas, as riquezas, mas também
a pobreza.
Preocupado em auxiliar os mais necessitados, Carmeli-
no chegou a fazer sua casa de albergue, acolhendo pessoas
que estivessem passando por dificuldades, até que resol-
vessem seus problemas e voltassem a ter condições de an-
dar com as próprias pernas.
Quando se tornou inviável levar moradores temporá-
rios para dividir seu teto, Carmelino engajou-se em cam-
panhas para angariar fundos. Junto dele, outros colegas
espíritas percorriam ruas e ruas pedindo donativos com
os quais montavam cestas básicas e entregavam para fa-
mílias carentes. Esta peregrinação, em busca de alimentos
para doar, fazia as pessoas se lembrarem da época em que
Carmelino vendia tecidos. Se antes ele ia de porta em por-
ta para conseguir o próprio sustento, agora ele refazia os
mesmos caminhos para ajudar o próximo.
Como já era conhecido pelo período em que foi mascate
e por pedir doações para as cestas básicas, não demorou
para que a fama do Carmelino médium também se espa-
lhasse. Com poucos recursos em habitação e um desen-
79
volvimento longe de se tornar emergente, as cidadezinhas
daquela época possuíam, em sua maioria, um sistema de
comunicação tão eficaz que faria concorrência acirrada
com qualquer empresa avançada de telecomunicações: a
língua do povo.
As conversas na beira da rua, nos portões ou entre os
muros e cercas que separavam as casas, faziam as notí-
cias circularem mais rápido que os poucos periódicos que
existiam à época. Foi assim que Carmelino Massafera ficou
conhecido pelos dons de mediunidade. Mas, o preconcei-
to que rondava os praticantes da doutrina fazia com que
muitas pessoas o procurassem às escondidas. Mesmo vi-
vendo sua crença sem qualquer segredo, Carmelino aca-
bava auxiliando pessoas com discrição, para que elas não
se complicassem com a família ou com suas próprias cren-
ças.
Como foi o caso de uma família tradicional de Pouso
Alegre. Um homem muito educado começou a ter feridas
pelo corpo, vomitar e xingar. Os parentes, desesperados
pela situação em que ele se encontrava e depois de terem
insistido para que procurassem um benzedeiro, por fim,
resolveram chamar por Carmelino. Quando havia algum
problema que pensavam ser de origem espiritual, ele era
a pessoa em quem confiavam ter a solução. A família foi
contra seus próprios preconceitos e os impedimentos da
Igreja.
80
Ao chegar na casa da família, Carmelino começou os
trabalhos rezando a Prece de Cáritas. Escondida atrás da
porta, Elza, sobrinha do homem, ouviu a risada fazer coro
com a oração, a voz só não era mais assustadora do que a
aparência dele. O rosto estava coberto de feridas; no olhar,
apesar de estar vidrado, era possível ler um pedido de so-
corro.
Quando Carmelino terminou sua oração não teve dúvi-
das: espíritos parasitas e opressores haviam tomado con-
ta do corpo do homem e só um exorcismo poderia salvá-
-lo. Com a permissão dos familiares que ali estavam, ele
invocou seu guia e juntos conseguiram expulsar do corpo
do homem todo o mal que o possuía.
O trabalho não foi fácil. Os espíritos eram fortes, riam
e zombavam de Carmelino, lembravam-no de episódios
tristes da vida dele, na tentativa de enfraquecê-lo e impe-
dir que ele obtivesse sucesso.
No dia seguinte, as lembranças de tudo haviam presen-
ciado era a única coisa que restou da cena e o homem es-
tava normal. Elza assistiu toda a ação de Carmelino e nem
podia imaginar que ele era o avô daquele que, anos mais
tarde, seria seu marido.
Os mais céticos desacreditavam que um homem que
se mostrava tão sábio e correto como ele pudesse estar
envolvido com este tipo de atividade. Mas, na falta de cora-
gem para questioná-lo, continuavam agindo como se nada
81
82
estivesse fora do normal. Porém, Carmelino não tinha
receio de agir conforme o que a doutrina ensinava, tam-
pouco tinha vergonha ou medo de falar sobre espiritismo
com qualquer pessoa. A partir do momento em que perce-
beram que a doutrina era fundamentada muito mais em
princípios de caridade, a intolerância foi cedendo espaço
à aceitação.
Quando Carmelino se tornou conhecido, as atividades
no Centro Espírita Amor e Humildade começaram a se
intensificar. Até mesmo pessoas de cidades vizinhas apa-
reciam nas sessões para falar com ele e, quando tinham
algum problema, não hesitavam em pedir para que ele fos-
se visitá-las, independente do dia ou horário que solicitas-
sem, ele sempre estava disponível. Foi assim que ampliou
seu círculo de amigos em Santa Rita do Sapucaí.
Para viajar, contava com os serviços da Rede Mineira
de Viação. Mais tarde, Carmelino ganhou o apoio do Dito
Brito e Juarez, dois amigos que possuíam automóveis e
que passaram a se sentir verdadeiros discípulos de um
homem que viajava pregando o evangelho, a humildade e
o temor a Deus.
85
Depois que os horrores da Revolução Constitucionalista
passaram, as lembranças da guerra ainda transformavam
muitas noites de sono em verdadeiros pesadelos épicos,
em que homens fardados lutavam sem cessar, muitas ve-
zes até a morte. O pior não era dividir as trincheiras com
corpos inertes, mas sim ocupar o mesmo espaço arenoso
e íngreme com verdadeiros cadáveres em vida.
Com isso, não demorou muito para que Carmelino to-
masse a decisão de voltar para Pouso Alegre. Os amigos
que conquistou por lá não tardaram a se manifestar e, logo
que retornou, já havia um emprego e uma casa à sua espe-
ra. Pela amizade que teve com o então prefeito da cidade,
Tuany Toledo, Carmelino foi convidado para trabalhar na
Vá com Deus
86
bomba de energia elétrica.
O serviço, apesar de parecer simples, tomava a maior
parte de seu dia. Era preciso cuidar para que a bomba fun-
cionasse corretamente. Ela consistia em um mecanismo
engenhoso no qual o movimento da água gerava energia
elétrica suficiente para abastecer a maior parte da cidade.
Uma distração e Carmelino poderia sofrer algum acidente.
Foi o que aconteceu certa manhã de trabalho, enquanto
ele manipulava as alavancas e fiações da bomba. Distraiu-
-se por alguns segundos e acabou levando um choque elé-
trico. De imediato, nada aconteceu com a saúde dele, mas
os impactos daquela corrente de energia percorrendo seu
corpo seriam sentidos mais tarde.
A rotina na casa dos Massafera era bem delimitada.
Dona Georgina tinha a ajuda dos filhos para manter os cô-
modos em ordem. Tão exigente ela era que passava quase
o dia inteiro com vassoura e espanador na mão, prontos
para serem usados, ainda que nada estivesse fora do lugar.
Hercília, a filha mais velha, era quem se encarregava
de ficar com os irmãos. A menina cuidava dos outros sem
reclamar muito, mas detestava ser responsabilizada pelas
artes que os pequenos aprontavam.
Já Carmelino era fiel às suas orações e ao trabalho. Le-
vantava bem cedo e a primeira ação do dia era prostrar-se
de joelhos aos pés da cama e conversar com Deus. A admi-
ração pela Bíblia, ainda no seminário, e o conhecimento
87
trazido pelos amigos da doutrina só fizeram aumentar sua
devoção por Àquele que considerava o grande responsá-
vel pelo mistério da vida e do universo.
Quando os joelhos tocavam o solo e as mãos impu-
nham-se para rezar, a voz que falava era a do coração. Mais
que um momento de agradecer, era o tempo que tinha
para refletir sobre a vida, ajustar os sentimentos, pensar
nas tarefas inacabadas, conhecer mais ao Pai e a si. Tão
importantes eram esses momentos que os tinha, categori-
camente, três vezes ao dia.
Dai-nos a força de ajudar o progresso a fim de subirmos até
Vós.
Dai-nos a caridade pura.
Dai-nos a fé e a razão.
Dai-nos a simplicidade que fará de nossas almas
Um espelho onde se refletirá a Vossa santa e
misericordiosa imagem.
Às vezes, esses eram alguns dos versos que o ar fur-
tava de sua prece e carregava por toda a casa. A calma e
a paz que sua voz transmitia pronunciando-as poderiam
ser capazes de aquietar grandes preocupações. Carmelino
parecia emanar uma energia positiva por onde quer que
passasse, era o que os amigos diziam. Talvez por isso, vez
ou outra, sua casa ficava ainda mais cheia, pois, além da
88
família, muitos conhecidos o visitavam com frequência,
para jogar conversa fora ou simplesmente ouvir Carmeli-
no falar sobre a vida e o evangelho, conhecimentos que ele
aprendeu com o tempo e adorava compartilhar com quem
pudesse.
Só depois de renovada sua fé é que o seu dia realmente
começava. Tomava um café da manhã rápido e partia para
o trabalho. Mesmo morando numa parte da cidade que era
praticamente rural, Carmelino vestia-se com certa forma-
lidade. As roupas de domingo e as que usava durante toda
a semana não tinham muita diferença ou novidade. Era
uma calça de linho, azul, de preferência, ou preta, uma ca-
misa versátil o bastante para que pudesse usá-la no inver-
no ou verão e seus sapatos. Se havia um hábito que ele não
tinha era o de andar descalço; a ideia de que a sola dos pés
tocasse o chão mais tempo que o necessário o repugnava.
Ele só mudou um pouco o modo de vestir quando co-
meçou a cultivar arroz próximo à sua casa. Como morava
perto do trabalho e havia um espaço onde ele percebeu
ser possível plantar, não pensou duas vezes em iniciar o
plantio do cereal. O que colhia era o suficiente para suprir
as necessidades de casa. Toda a parte que ainda sobrava
ele distribuía para os irmãos e conhecidos. Carmelino não
pensava duas vezes antes de dividir. Uma das maiores ale-
grias de sua vida era contribuir com o que precisassem.
Além de alimentos, Carmelino também se doava.
89
Assim transcorriam as semanas da família, entre o tra-
balho, a plantação, as conversas entre amigos, as orações
e as noites em que dormiam cedo porque estavam cansa-
dos, ou mesmo pela falta de outra atividade que pudesse
mantê-los distraídos por um tempo maior.
Era apenas nos finais de semana e dias de folga que a
rotina saía um pouco do convencional. Carmelino pegava
esposa e filhos pelos braços e os levavam para uma ver-
dadeira aventura: subiam montes, se espremiam entre
cercas, desviando de poças de lama e valas. Com um facão
numa das mãos e um embornal nos ombros, eles passa-
vam quase todo o dia à procura de plantas medicinais. Ele
conhecia uma infinidade delas e sabia identificá-las pela
forma, cor e cheiro.
As plantas medicinais que colhia serviam para o prepa-
ro de chás e para Carmelino entregar às mães de crianças
que ele benzia, para que elas também preparassem a bebi-
da, ou então, para banhos.
Com certeza, Carmelino ficava bastante atento aos fi-
lhos para que não colhessem qualquer tipo de mato. Afinal
de contas, nem tudo o que cresce na terra faz bem, a mes-
ma natureza que oferece tanto alimento, também coloca à
disposição coisas que podem levar à enfermidade. Carme-
lino sabia muito bem disso. O mundo das plantas era como
o mundo do ser humano, cheio de pessoas da melhor e
pior espécie, há aqueles que ajudam, ouvem, curam, mas
90
também os que atrapalham, ferem, matam.
* * *
Não demorou para que uma companhia tomasse para
si o trabalho de iluminar Pouso Alegre, principalmente,
porque a energia elétrica vinda da bomba já não era sufi-
ciente para fornecer a demanda de luz que a cidade come-
çava a precisar.
Quando isso aconteceu, a rotina dos Massafera mudou
de endereço e sofreu algumas modificações. Carmelino e
Georgina já eram chamados de vô e vó por crianças que
nasceram após o casamento dos filhos mais velhos, mas
que continuaram a viver com os pais por algum tempo.
Das proximidades da bomba, Carmelino foi morar com
a família numa chácara. O local só formaria um bairro anos
mais tarde, resultado do crescimento da cidade, e levaria o
nome de Jardim Yara.
A região era uma imensa área verde. À frente, um quin-
tal de terra batida servia como parque de diversões para
as crianças travessas. Nos fundos, uma mina d’água jorra-
va o líquido cristalino direto da fonte. A casa deles era a
única moradia naquelas bandas.
O aspecto negativo da chácara ficava por conta das
cheias em época de chuva intensa. A proximidade com
áreas alagáveis despertava um certo receio na família, so-
91
bretudo entre os meses de dezembro e fevereiro, quando
as águas do verão apareciam.
Enquanto morava próximo a seu antigo trabalho, Car-
melino nunca ficava apenas com a família em casa. Os
amigos iam visitá-lo para conversar, pedir conselhos e até
mesmo alguma ajuda. Mas, após a mudança, a distância
que as pessoas teriam de percorrer para chegar até ele,
também fez com que as constantes visitas que recebia ti-
vessem uma queda considerável.
Nessa época, Carmelino já era bastante conhecido por
seus dons. O preconceito em torno do espiritismo conti-
nuava presente, mas os amigos e conhecidos não acredita-
vam que ele seria capaz de se envolver em atividades que
fossem fazer mal a qualquer pessoa.
O problema de enchentes no período chuvoso, a falta
que as visitas dos amigos faziam, o desejo de continuar
ajudando as pessoas com seu dom e o crescimento da fa-
mília fizeram com que Carmelino mudasse mais uma vez
de endereço. Eles foram para o centro da cidade, na rua
que, mais tarde, levaria o nome de Coronel José Inácio. Na
nova casa, os netos que nasceram puderam ter um amplo
espaço para brincar, dona Georgina pôde cultivar suas
plantas e ele pôde voltar a se alegrar com os amigos o vi-
sitando. Quando souberam que Carmelino estava de casa
nova e de acesso mais fácil que a anterior, voltaram a pro-
curar pela ajuda dele com mais frequência.
92
Carmelino percebia que, mesmo com Pouso Alegre em
vias de um notável crescimento, com o cenário urbano em
expansão, tomando conta de todas as regiões, sua vida pa-
recia sempre levá-lo para locais onde podia manter con-
tato com a natureza e ficava extremamente satisfeito com
isso.
Em sua nova residência não foi diferente. Como dona
Georgina sempre gostou de cultivar plantas, a varanda da
casa ficava repleta de flores. Ela ouvia o marido brincar,
de vez em quando, que estava ansioso, à espera do dia em
que aparecesse alguma onça ou outro animal silvestre
para habitar aquela verdadeira selva.
Dentro de casa, a mesa da copa era como a do refeitório
de uma corporação de militares: extensa, para comportar
toda a família, que só crescia. Carmelino teve doze filhos e
os netos, ele parou de contar. Além dos parentes, ele che-
gou a abrigar muitas pessoas que o procuravam por sua
ajuda e ficavam hospedados em sua casa por alguns dias,
até que resolvessem suas vidas. A panela em cima do fo-
gão estava sempre cheia.
- Se chegar dez, dez comem - era o que ele dizia com
frequência.
De frente para a mesa ficava uma janela grande e bem
baixa. Qualquer um que estivesse no quintal poderia saber
se a comida já estava à mesa ou então espiavam para ver
se algum espertinho havia corrido na frente, para comer
93
antes dos outros.
O lar dos Massafera vivia cheio. Ele abrigava pessoas,
sonhos, esperanças. Carmelino jamais permitiu que a es-
posa, os filhos, os netos e os amigos tivessem fome, física
ou espiritual.
Na tentativa de oferecer uma profissão aos filhos, Car-
melino tentou montar uma oficina de conserto de sapatos
e fabricação de chinelos. Seu empreendedorismo fez com
que o negócio fosse aberto, mas a falta de vontade dos fi-
lhos em manter a atividade acabou baixando as portas. Os
sapatos de quem dependesse dos filhos Massafera conti-
nuariam sem conserto.
Para sustentar a casa sempre cheia, Carmelino investiu
na venda de tecidos. Viajava de trem até as cidades vizi-
nhas e trazia uma grande quantidade de panos de quali-
dade inegável. Inicialmente ele construiu uma prateleira
em casa para que seus clientes, na maioria mulheres, en-
cantadas com a diversidade de cores e tecidos para seus
vestidos, pudessem ver, sentir e comprar. Mais tarde, Car-
melino passou a inovar e levou os tecidos até seus com-
pradores. De porta em porta, trabalhou como mascate: o
homem dos tecidos.
O jeito de andar, balançando os braços de um lado para
outro, o rosto sempre estampado com um sorriso daque-
la felicidade serena eram inconfundíveis. Carmelino tinha
uma presença tão notável que, às vezes, compravam mes-
94
mo sem precisarem de tecidos.
Com a profissão de mascate ele ampliou seu círculo
de amizades e construiu um público fiel que sentiu falta
quando ele deu por encerrada sua carreira de vendedor
de tecidos e migrou para outro ramo.
* * *
Antes de iniciar as novas atividades, Carmelino teve de
lutar para manter-se forte. Poucas vezes o sorriso sumiu
do olhar dele. Ligado à família e aos amigos de maneira
intensa, sentia-se impotente nos momentos em que não
havia ação que fizesse para mudar o destino que estava
para ser cumprido. Um dos episódios que mais o marca-
ram foi com o filho que levou seu nome.
Quando uma mulher fica grávida, o instinto materno
toma conta dela. O desejo de proteger a criança vai além
dos nove meses em que ela o carrega em seu ventre, nu-
trindo-a e preparando o mundo para receber seu mais
novo integrante. Ao homem, menos sensível por nature-
za, cabe a função de estruturar um lar e todos os recursos
que mãe e bebê possam precisar. Uma das únicas emoções
mais fortes, que dividem com as esposas, é causada pela
dúvida se o bebê será um menino ou menina.
Na casa de Carmelino, assim como em outros lares, dar
o nome do pai ao filho era uma prática comum. Foi assim
95
que a família Massafera recebeu Carmelino, o filho.
Com o instinto empreendedor do pai e um pouco do
gênio da mãe, Carmo, como o chamavam em casa, estava
com dezessete anos quando se apaixonou por uma meni-
na que morava próxima à casa deles, no centro da cidade.
Era um amor adolescente, daqueles que faz com que os
pensamentos sejam completamente dominados pela pes-
soa amada, que as pernas tremam quando se está perto e
o estômago se revire com as tais borboletas.
Certa tarde, enquanto voltava para a casa, avistou a
moça caminhando sozinha na rua. No tempo de um mi-
nuto, ensaiou uma conversa, deu alguns passos na direção
dela, mas retrocedia. Pensou bem. Ele tinha que criar cora-
gem, afinal de contas ela poderia aceitar um convite para
que os dois pudessem sair juntos e tomar um sorvete ou
apenas sentar na pracinha. Encheu-se de iniciativa e foi.
A menina podia apenas ter dito não, mas preferiu fazer
com que a negativa fosse acompanhada de uma enxurra-
da de palavras que Carmo não estava preparado e sequer
precisava ouvir. Do jeito que ela o tratou, era como se ele
fosse alguém que ela odiasse e não quisesse ver em sua
frente.
Decepcionado, voltou para casa com uma decisão to-
mada: não ficaria mais em Pouso Alegre. Longe do pai e
da mãe, entrou em contato com uns conhecidos dele, que
moravam em São Paulo. Já que a menina que o seu coração
96
decidiu amar não o queria por perto, ele ia partir para evi-
tar encontrá-la e sofrer todos os dias ao saber que jamais
ficariam juntos.
Uma noite em que estava no quarto organizando do-
cumentos e outros papéis, Carmelino entrou sem bater
e sentou-se na cama, ao lado do filho. Ele já sabia o que
ia acontecer. Estava claro que o filho pretendia deixá-los.
Assim, dispensou qualquer pergunta introdutória e foi di-
reto ao assunto.
- Sei que quer se mudar, meu filho. Eu não vou me opor,
mas sabe muito bem que sua mãe vai fazer de tudo para
que você mude de ideia e, mesmo que eu converse com ela
e explique a importância de permitir que você siga o desti-
no que escolheu, ela não vai aceitar de bom grado.
Sem saber o que dizer ao pai, Carmo apenas desviou-se
do olhar paterno e voltou a mexer com seus papéis. Car-
melino continuou aos pés da cama por alguns minutos, ab-
sorvido pela calma com que o filho organizava suas coisas.
Naquele momento, ele estava orgulhoso por seu menino
estar tão seguro de suas ações. Ele se via um pouco em
Carmo. Lembrou da semana que antecedeu sua saída do
seminário. Não tinha sido uma decisão fácil abandonar o
celibato e correr o risco de magoar toda a família.
A vida é como um livro de páginas em branco, em que
cada dia se escreve um novo capítulo. Às vezes, como
numa história fantástica, o enredo parece conduzir para
97
um final previsível, mas surpreende. Se o filho pretendia
começar seu novo capítulo longe de Pouso Alegre, Carme-
lino não poderia colocar um ponto final, interrompendo o
fluxo do verdadeiro autor e não o fez.
Apenas a alguns meses de completar os dezoito anos
e sem sequer ter se alistado no serviço militar, Carmelino
Massafera, o filho, deixava a família e partia em busca de
um novo começo na cidade de São Paulo.
A partida não tinha sido fácil. Assim como combinou
com o pai, o rapaz só comunicou a mãe quando as passa-
gens e a moradia já estavam arrumadas. Dona Georgina
chorou e não esperavam outra atitude dela. Apesar de pa-
recer durona a maior parte do tempo, o sentimentalismo
sempre tomava conta quando o assunto era sua família.
Mas Carmelino estava com ela, como sempre esteve. Ele a
convenceu de que era necessário permitir que o filho fosse
em busca da concretização de seus sonhos, onde quer que
estivessem.
* * *
São Paulo. O céu da cidade grande exibia uma cortina
cinza encobrindo o azul original, formada pela fumaça das
indústrias e os poluentes dos automóveis, que se multipli-
cavam pelas ruas daquela que viria a ser a maior cidade
do país.
98
Fazia pouco mais de três meses que Carmo havia mu-
dado para lá. Deixou Pouso Alegre, os pais e a menina que
poderia ter sido sua namorada, mas não foi, por algum
motivo que ele desconhecia.
Tinha acordado bem disposto naquela manhã. Ia apro-
veitar o ar fresco para sair de casa e procurar um empre-
go, pois suas economias não durariam por muito tempo e
não teria outra forma de se manter na cidade se não fosse
trabalhando.
Antes de iniciar a jornada em busca dos anúncios de
“precisa-se”, permitiu-se parar numa padaria e comprar
algo para comer. Antes de pedir um café, notou que havia
uma movimentação na rua, perto de onde estava. As pes-
soas, curiosas, começavam a se aglomerar em pequenos
grupos e o burburinho que saía de todos eles, juntos, im-
possibilitava que ele compreendesse o que estava aconte-
cendo.
Desistiu de tentar entender, pediu seu café, foi até o ou-
tro lado do balcão com a ficha presa entre os dedos. Ao
estender a mão para pegar a bebida, ouviu um barulho
ensurdecedor aproximando-se de seus ouvidos, como se
um foguete tivesse estourado ao seu lado. A xícara caiu de
sua mão, partindo-se em mil pedaços de porcelana branca
e ensopando de café o chão no qual, segundos depois, ja-
zeria seu corpo, inerte, com uma bala atravessada em sua
cabeça. Era o fim de um capítulo que mal havia começado.
99
A aglomeração nas ruas da cidade comentava sobre um
assalto cometido há pouco numa localidade próxima. A
polícia perseguia os bandidos e uma troca de tiros entre
os militares e os infratores não demorou a começar. As ba-
las atingiram muros de casas, carros e o filho de Carmelino
Massafera, que comprava seu café naquela trágica manhã.
* * *
- Ele cumpriu seu destino.
Carmelino repetia isso a todo o momento. Talvez qui-
sesse amenizar a dor que a mulher sentia ou quisesse con-
vencer a si de que aquela era a única razão por perder seu
filho, aquele em quem havia dado seu nome.
Foi um dos episódios de sua vida em que ele mais quis
se agarrar aos ensinamentos da doutrina, como forma
de superar a dor. Afinal de contas, mesmo para ele, que
acreditava na continuação da vida após a morte do corpo
físico, não era fácil saber que do filho só restariam as lem-
branças.
* * *
A cidade de Pouso Alegre celebrou seu primeiro cen-
tenário nos anos finais da década de 40. Menos de trinta
mil habitantes viviam na sede, enquanto outras centenas
100
moravam em Congonhal e Estiva, na época, ainda perten-
centes ao município.
São Geraldo, Faisqueira e São João eram os três bairros
principais. Apesar de urbanizadas, essas regiões dividiam
espaço entre as atividades do comércio, das poucas deze-
nas de indústrias que começavam a surgir e da agricultura
e pecuária, ainda muito presentes.
Carmelino ouviu de alguns amigos que a suinocultura
era a atividade do momento. Os porcos eram animais fá-
ceis de criar e deles praticamente tudo se aproveitava e a
preços muito bons no mercado.
Como vender tecidos rendia muito mais amizades do
que riqueza em espécie, ele decidiu consultar mais uma
pessoa sobre o assunto. Não que tivesse dúvidas sobre o
que queria, porque, quando colocava uma ideia na cabeça,
só desistia ao vê-la concretizada.
Procurou Antônio, seu irmão. Da família, era com quem
Carmelino mantinha mais contato. Os dois sempre esta-
vam perto um do outro, dividindo horas de lazer. Ao con-
trário das crises e brigas entre irmãos, os dois foram a
personificação da amizade que pode ser construída entre
pessoas do mesmo sangue.
Antônio trabalhou, por muitos anos, no Palácio Episco-
pal de Pouso Alegre, cuidando do lar dos bispos e arcebis-
pos da cidade. Ele, assim como toda a família, era de uma
fé católica fervorosa, mas não se opôs ao caminho que o
101
102
irmão decidiu tomar, apesar de sempre ouvir dos homens
da igreja que o tal kardecismo estava tentando tomar con-
ta da cidade. Eles também procuravam levar as pessoas a
acreditarem que estudar o espiritismo era errado e fazia
mal.
Quando procurou por Antônio, Carmelino já estava
muito tentado a criar porcos. Como o irmão também gos-
tou da ideia, a decisão estava mais que tomada. No entan-
to, o único impedimento era o lugar. A casa onde morava
não oferecia suporte nenhum para que pudesse colocar
uma meia dúzia de animais no quintal.
Entre conversas e acertos, Carmelino conseguiu trocar
seu imóvel por uma casa no bairro São Geraldo, na mesma
rua e ao lado dos dois filhos que já moravam lá. Era um
novo capítulo que ia começar para os Massafera.
105
A decisão
Quando decidiu desenvolver sua mediunidade, Carmelino
mostrou-se muito dedicado e fiel a tudo que o ensinavam.
Uma das orientações que recebeu, logo no início, era a de
manter-se afastado das atividades espíritas quando não
estivesse no centro.
A medida era importante para que Carmelino não fos-
se enganado por sua imaginação, tampouco caísse em
obsessão pelos fenômenos, característica que sucumbiu
grandes potenciais espíritas a uma vida desregrada, longe
dos princípios da humildade e que acabaram por usufruir
de seus dons para prejudicar outras pessoas e até mesmo
para fins comerciais. O preconceito que rondava as práti-
cas também fazia com que muitas das atividades tivessem
106
de ser veladas.
Mesmo sem realizar procedimentos como o passe mag-
nético fora das sessões espíritas, Carmelino não deixou de
praticar a caridade, outro conceito prioritário da doutrina
que só começou a ser praticado com maior intensidade
depois que ele se tornou membro do centro. Os frequen-
tadores antigos não ousavam organizar nenhum tipo de
ação em prol de pessoas necessitadas, pois tinham medo
ou vergonha da rejeição. Mas Carmelino não se importava
com os “nãos” que poderia ouvir, ia de porta em porta con-
quistando doações.
Por sua dedicação, pela rapidez com que ia absorvendo
todos os conceitos pregados pela doutrina, pela sensibi-
lidade que lhe era aflorada e por sua coragem e ousadia,
não demorou muito para que Carmelino se tornasse um
dos líderes espirituais do centro.
Fora das sessões e dos encontros semanais que tinha
junto a seus colegas de doutrina, Carmelino dividia seu
tempo entre as atividades de trabalho, as orações e a uma
leitura minuciosa dos escritos de Kardec. Por vezes, ele
parava em determinado trecho e deixava o olhar absorver
o vazio de seu quarto, da sala ou de qualquer outro cômo-
do onde estivesse livre o bastante para ler e refletir, sem
interrupções.
Numa determinada noite, Carmelino se preparava para
dormir. Quando as cortinas balançavam, dava para ver
107
a luz bruxuleante dos poucos postes que iluminavam as
ruas lá fora e uma brisa fria esfriava o quarto.
Sem cerimônia, ele ajoelhou-se, posicionou as mãos,
como sempre fazia, enquanto a boca mexia-se sucinta-
mente revelando a oração. Enquanto repetia os versos que
tão bem conhecia, Carmelino deteve-se em lembranças.
No dia em que resolveu deixar o seminário, quase dois
anos depois de iniciar os estudos para tornar-se um padre,
ele procurou a mulher que havia dado a ele o papel com
um endereço. Ele lembrava com certa amargura desse mo-
mento, pois havia mentido para os padres, prática que ele
nunca havia feito, mas, naquele dia tinha sido necessário.
A rua que a caligrafia da mulher indicava o levou até
o centro de Pouso Alegre, a uma via estreita, como quase
todas as outras. A formação daquele lugar era, no mínimo,
curiosa: uma casa, mato, casa e assim seguia até a rua ter-
minar com um barzinho na esquina.
Carmelino estava tão nervoso que quase não notou o
número pregado numa parede, idêntico àquele escrito no
papel que trazia consigo. Ele estava eufórico, com um pou-
co de medo, afinal de contas, não sabia o que iria dizer,
nem quem encontraria.
Era loucura, pensou. Girou corpo numa meia volta,
pronto para retornar ao seminário e confessar sua men-
tira para que se livrasse daquela culpa que o castigava a
todo segundo.
108
Foi então que a porta se abriu.
Antes que Carmelino tivesse tempo de decidir se afun-
daria o rosto lá dentro para ver ou se dava continuidade
à sua desistência, uma mulher surgiu e, ao vê-lo, deu um
sorriso de tamanho contentamento que fez o jovem enru-
bescer. Pelo visto, ela ainda se lembrava dele, mesmo que
bons pares de meses tivessem passado.
- Esperávamos por você, Carmelino.
Mesmo que estivesse disposto a ser o mais cordial pos-
sível e cumprimentá-la, não conseguiria. Ele tentou dizer
algo, mas o som parecia ter esquecido como sair de sua
boca. Apenas estendeu à mulher o bilhete que tinha nas
mãos e a seguiu, quando ela entrou indicando para que ele
fizesse o mesmo.
Diferente do que havia pensado minutos antes, a casa
era até bastante aconchegante. Uma sala de estar simples,
com sofá, uma poltrona e uma mesa de centro dividia es-
paço com uma prateleira com algumas fotografias e uma
baixela de porcelana, daquelas que só se vê em casa de
pessoas de bom poder aquisitivo, ou então que se ganha
como presente de casamento.
Caminhando mais um pouco, Carmelino reparou num
quarto. Supôs que a mulher fosse casada, pois a cama era
de casal e embaixo dela havia dois pares de sapato, um
deles era masculino.
Antes que seus olhos pudessem se deter em qualquer
109
outra coisa que encontrasse pelo caminho, a mulher pe-
gou em sua mão e o conduziu para a outra sala. A porta
estava fechada e era possível ouvir um burburinho lá de
dentro. Quando ela girou a maçaneta, sem nenhuma ceri-
mônia, Carmelino viu dois homens e outra mulher, senta-
dos em torno de uma mesa redonda. A toalha branca pa-
recia emanar a única luz que iluminava o ambiente. Sem
janelas, o cômodo estava mergulhado numa penumbra ao
mesmo tempo assustadora e enigmática.
Um gesto sutil de um dos homens que estava à mesa
pedia a Carmelino para se juntar a eles. Ainda com receio,
mas curioso, ele tomou uma cadeira, sentou-se e seus
olhos, que antes varriam todo o local, como se estivesse
analisando cada canto, agora fitavam apenas o chão, fixos.
- Não se assuste. Estamos aqui apenas para o ajudar,
mas só se você quiser, claro – a mulher aventurou-se a
quebrar o silêncio. Carmelino ergueu a cabeça e, apesar
de não ter dito nada, sua expressão falava por ele.
* * *
Levou cerca de uma hora para que todos se apresentas-
sem a Carmelino e explicassem o que faziam e o porquê
de o terem chamado a se juntar àquele grupo. Pelo que
falaram, eles sentiam que Carmelino emanava uma sensi-
bilidade e queriam poder ajudá-lo a compreender os fenô-
110
menos que se passavam com ele.
Talvez tenha ficado entediado de ouvir tais baboseiras
e quisesse tê-los deixado falando sozinhos. Ele até cogi-
tou essa possibilidade por um momento: voltaria para o
seminário como se nada de anormal tivesse acontecido e
faria de seus livros o seu passatempo, como sempre. Mas
havia aquelas vozes que não o deixavam em paz e ele tinha
certeza de que não era louco, nem tinha esquizofrênico.
Às vezes, o som que chegava aos seus ouvidos abafava
até a voz de quem estivesse falando do seu lado. Ele nun-
ca comentava com ninguém sobre isso, exceto com a mãe,
quando criança. Mas quem acreditaria que um rapaz, qua-
se na idade adulta, sofresse com vozes que sopravam em
seu ouvido ou então falavam como se estivessem dentro
dele?
Ninguém conseguiria entender. Não era tão simples.
Era atormentador. Vozes desesperadas, lamentos, urros.
Como se estivessem aprisionados dentro de um sofrimen-
to sem fim e usassem dele para gritar ao mundo. Mas por
que ele?
Antes mesmo que tivesse coragem de fazer qualquer
pergunta, as pessoas da mesa começaram a dar explica-
ções sobre tudo o que vinha acontecendo com Carmelino
desde criança. Foi ali, rodeado de pessoas que nem sequer
lembrava o nome, que ele descobriu o que era: um mé-
111
dium.
O som daquela palavra ecoou em sua mente por muito
tempo. A impressão que tinha de si, a de ser uma aberra-
ção, não havia mudado nem um pouco, tinha apenas ga-
nhado um nome diferente. Médium. Ele não podia ser um.
Ele não queria ser um.
Carmelino queria gritar. Sua vontade era soltar a voz,
a plenos pulmões, para ter uma explicação, apenas o por-
quê ele, entre tantos, tinha de ser condenado a isso. Ele só
desejava ser uma pessoa como as outras, com uma vida
normal e não um médium, mesmo que ainda não soubesse
direito o que isso significava. Mas talvez por vergonha, re-
primiu o choro, a raiva e a voz pareceu ficar presa também.
Foi então que os anfitriões trouxeram um copo com
água para que ele se acalmasse e explicaram que ele não
era obrigado a frequentar as reuniões que promoviam,
nem a conviver com eles, mas que continuaria a ouvir vo-
zes para sempre e que essa não era vontade de um ou de
outro, mas uma espécie de missão à qual Carmelino fora
designado desde que nasceu. Desenvolver a mediunidade
era algo pelo qual ele podia optar, mas sobre a sensibilida-
de para os fenômenos espirituais não havia escolha.
Lembrar desse dia fazia Carmelino pensar que havia
seguido o caminho certo. Ele se recordava que depois que
o casal introduziu a ele alguns dos principais conceitos da
112
doutrina espírita, emprestaram-no uns livros em que cada
detalhe estaria discriminado minuciosamente. A partir da
leitura e reflexão, ele havia se decidido.
115
Depois do centro da cidade, o bairro São Geraldo foi um
dos primeiros espaços em que as construções começaram
a surgir, esboçando os traços iniciais da Pouso Alegre que,
mais tarde, abrigaria prédios, indústrias e se tornaria uma
cidade grande em crescimento. As casas, antes distantes
umas das outras, foram se multiplicando até que uma pai-
sagem essencialmente rural tornou-se uma comunidade
urbana.
A mudança veio até no nome. Era seis de junho de 1927
quando, por meio de uma resolução, o antigo Aterrado
passou a se chamar São Geraldo. A denominação anterior,
em vez de extinta, permaneceria em uso por muito tempo,
mas não como forma de resgate do antigo nome, mas sim,
Roda musical
116
traçando uma imagem pitoresca para denegrir a imagem
da comunidade.
Desde quando começou a ser povoado, o bairro São
Geraldo abrigou, em sua maioria, pessoas de classe mé-
dia baixa. Os poucos que se destacaram e conseguiram
alguma ascensão acabavam procurando espaços mais
nobres da cidade. Quem permanecia na região, escolhia a
avenida principal para firmar residência ou comércios. Os
moradores mais carentes começaram a ficar escondidos,
em segundo plano, atrás dos prédios que anteviam o pro-
gresso. Eles moravam no São Geraldo, aterrados aos olhos
de quem não conseguia olhar para outra direção senão o
topo.
Para a Igreja Católica, São Geraldo é o santo padroeiro
das mulheres grávidas. As bênçãos conquistadas por in-
termédio do mártir também são estendidas para as mães
e crianças pequenas. Talvez, o aumento populacional de
Pouso Alegre, em franca expansão, tenha sido o motivo da
nomeação do bairro.
Mais que um bairro, o São Geraldo podia ser considera-
do uma grande vila. Com o rio Mandu cortando a região, a
porta de entrada da comunidade era uma ponte.
Dois filhos de Carmelino Massafera escolheram este
bairro para morar, assim que se casaram. O pai, depois que
se empolgou em começar com as atividades de suinocul-
tura, não hesitou em encaixotar os móveis e mudar mais
117
uma vez.
Não foi preciso procurar muito para que encontrasse
uma casa ao lado dos filhos, o que, para ele, era motivo de
alegria dupla. Primeiro porque gostava de estar sempre
perto de toda a família; segundo, porque, caso precisas-
se de auxílio na nova atividade, teria mais pessoas para
ajudá-lo.
A casa de Carmelino ficava na avenida principal do
bairro. Talvez a cor branca das paredes externas tenha ir-
ritado dona Georgina, que possivelmente passaria horas
do dia lamentando ver as manchas de poeira que davam
nova cor à sua casa, por conta da rua, àquela época ainda
sem calçamento.
Na parte da frente, uma pequena varanda era um con-
vite perfeito para quem gostava da companhia de Carme-
lino. O ar aconchegante da construção era como um ímã
que fazia com que os amigos nunca deixassem de passar
por ali, principalmente nos fins de tarde, quando se reu-
niam para tocar.
Além de todos os ramos em que trabalhou, Carmelino
era habilidoso com instrumentos musicais. Quando não
estava na rotina de serviços ou numa leitura dos evange-
lhos, ele passava um tempo ouvindo o rádio. Quem olhasse
para ele nesses momentos, veria uma pessoa com olhar
vidrado, como que perdido nos próprios pensamentos,
mas, assim que a música acabava, Carmelino a reproduzia
118
com maestria em seu violino, no violão ou até mesmo no
bandolim, que aprendeu a tocar sozinho.
Entre suas canções favoritas, ele preferia o ritmo das
Csárdás. Também chamada de czardas, o estilo tem ori-
gem húngara e é composto por músicas vivas e alegres,
sempre acompanhadas de um conjunto de violinos. Car-
melino passava horas e horas ouvindo até mesmo com-
positores clássicos como Tchaikowisky, que usava o estilo
em suas melodias.
Com música, fé e trabalho, a semana na casa de Carme-
lino era intensa. Logo que ele acordava pela manhã, fazia
sua oração e ia até a cozinha. Do pequeno corredor que
dava acesso ao dormitório já podia sentir o cheiro do café
fresco que a mulher preparava na cozinha. Movido pela
fome, em poucos minutos ele já estava à mesa, com os ta-
lheres em riste, aguardando seu desjejum favorito: vira-
do de ovo. Apesar de ser um alimento um tanto pesado
se comparado ao café da manhã tradicional dos brasilei-
ros, Carmelino não abandonava seu hábito de ingerir, logo
cedo, um bom prato da refeição tipicamente americana.
Depois disso, rumava para os fundos da casa e ia tra-
tar dos seus porcos. Cuidar dos animais até que ficassem
rechonchudos para vender era a nova diversão e trabalho
de Carmelino. A suinocultura tinha sido apresentada por
um de seus amigos, que havia acompanhado a saga dele
em todos os trabalhos e sabia que era preciso algo mais
119
rentável e fácil.
A única dificuldade que teve para cuidar dos animais
foi desviar-se dos ataques de limpeza de dona Georgina.
Ela sempre procurou manter a casa o mais bem organi-
zada que podia, mesmo quando viviam em chão de terra
batida. Morando próximos ao centro da cidade, a preocu-
pação dela com o asseio do lar redobrava e as porquices
dos bichos não contribuíam em nada para que ela ficasse
satisfeita.
Além da sujeira feita pelo chiqueiro dos porcos, o barro
da olaria era outra razão que deixava dona Georgina de
cabelos em pé. Acostumado a ter diversas atividades ao
mesmo tempo, Carmelino também começou a fabricar ti-
jolos. O único jeito de manter a casa sempre pronta para
receber os amigos e sustentar a família era possuir quan-
tas fontes de renda ele pudesse conseguir.
O início da fabricação foi como teste. Ele mesmo busca-
va o barro próximo à beira do rio e trazia para os fundos
de sua casa numa perua. Mais tarde, quando conseguiu
comercializar os tijolos, Carmelino teve que contratar aju-
dantes. Os netos também auxiliavam na atividade, desde
que recebessem alguma quantia em dinheiro no final do
dia, que eles gastavam com brinquedos e guloseimas.
* * *
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De porta em porta

  • 1.
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 5. Livro-reportagem Jornalismo - Univás 2012 M. E. Borges De porta em porta
  • 6. 2012, Universidade do Vale do Sapucaí Textos: Márcio Boges Prefácio: Patrícia Marques Fotos: Márcio Borges Patrícia Marques Projeto gráfico: Márcio Borges Ilustrações: Murilo Braga Orientação: Profa. Ms. Patrícia do Prado Marques Cordeiro Banca examinadora: Profa. Ms. Maria Eunice de Godoy Machado Teixeira Profa. Ms. Vânia dos Santos Mesquita BORGES, Márcio Eduardo. De porta em porta Pouso Alegre, 2012 Livro-reportagem Trabalho de Conclusão de Curso Universidade do Vale do Sapucaí - Univás Curso de Comunicação Social - Jornalismo Palavras-chave: 1. livro-reportagem 2. romance-reporta- gem 3. Pouso Alegre 4. espiritismo
  • 7. A todos que acreditaram neste projeto.
  • 8.
  • 9. Agradecer é algo bastante descomplicado, o que não significa que seja fácil. Portanto, quero dispensar a habi- tual citação de nomes, para não correr o risco de esquecer alguém na infindável lista de pessoas que mantêm, cada uma à sua maneira, um espaço especial e marcante em minha vida. Portanto, gostaria de deixar registrado o meu “muito obrigado” a cada um que esteve do meu lado da ca- minhada inicial até onde estou. Cada palavra, momento ou ação compartilhada com vocês foi responsável por esculpir o que me tornei hoje: seja na família, no trabalho, na rua, nos lugares por onde passei. Cada pessoa que passa por nossas vidas, deixa um pouco de si conosco e leva um pouco de nós. Eu espero que o quer que tenham aprendido ou tomado de mim para vocês seja tão importante quanto o que adquiri de cada um. Sem vocês eu até poderia chegar, mas não seria Eu. Agradecimentos
  • 10.
  • 11. “Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte.” Carlos Ruiz Zafón
  • 12.
  • 13. 13 Prefácio Escrever um livro é sempre um desafio, não somente pela dificuldade do ato da escrita, quem se dispõe a escrever um livro tem que entregar-se, mergulhar profundamente na história que está contando, enfim, doar-se a um mundo que inicialmente só existe em seu interior, em sua mente e, acima de tudo, acreditar que nas páginas do livro, de alguma forma, o leitor irá encontrar emoção, conflitos e, principalmente, algo que se identifique, que o faça ler o livro inteiro e ainda querer por mais. Foi assim que eu me senti ao ler De porta em porta. A cada palavra, a cada página, a cada história de Carmelino Massafera, sempre uma lição, sempre algo para refletir ou, até mesmo, colocar em prática. Márcio Borges conseguiu Patrícia Marques*
  • 14. 14 resgatar a história de um homem simples que por suas ações de caridade destacou-se em uma época onde o pre- conceito era predominante na região que morava. Com palavras de conforto e o seu dom mediúnico, Car- melino abriu portas para pessoas que estavam à beira da morte, da solidão, da sociedade. É indiscutível a sua im- portância para o desenvolvimento da doutrina espírita em Pouso Alegre, cidade que escolheu para viver com a sua família. De porta em porta, ele mostrou às pessoas que, independente do caminho que se escolhe para chegar até Deus, o importante é segui-lo praticando o bem e em paz com suas ações. De porta em porta é para ler, reler e pensar. Traz à tona um questionamento que vai além de qualquer posiciona- mento religioso: qual o verdadeiro sentido da palavra ca- ridade? Acredito que a resposta é facilmente encontrada neste livro, mais que palavras bonitas, Carmelino oferecia conforto e alimentos a quem precisasse. Sua ajuda não se limitava aos que o procuravam, De porta em porta, ele sempre ajudava o próximo. A singularidade de um livro-reportagem está na forma de se contar uma história real em um meio tão conhecido pelas histórias de ficção que geralmente traz em suas pági- nas. Ao reunir fragmentos da vida de Carmelino Massafe- ra, Márcio Borges nos conta histórias reais de um homem que parece ter saído dos livros de ficção por sua coragem,
  • 15. 15 sensibilidade e preocupação com o próximo, além, claro, da sua conexão com o universo sobrenatural dos espíritos. Márcio Borges, por meio de uma escrita impecável so- mada a uma sensibilidade jornalística surpreendente nos conduz a uma leitura que nos revela um jornalismo em profundidade, além da simples menção ao fato. Como diria o jornalista Marcelo Rech “olhos, ouvidos e, principalmen- te, coração aberto diante da informação em estado bruto”. É isso que o autor constrói em seu livro. Boa leitura! *Patrícia Marques é mestre pela Universidade do Vale do Sapucaí, instituição onde coordena o curso de Comunicação Social - Jorna- lismo. É a professora orientadora do livro-reportagem De porta em porta.
  • 16.
  • 17. 17 Das vertentes de trabalho que o jornalismo possibilita, nunca tive dúvidas que me enveredaria mais para o lado do perfil: humano, biográfico, com uma boa dose de pa- rágrafos literários e uma visão autoral que a prática das redações diárias impossibilita. Dessa forma, a única certeza que tive quando entrei pela primeira vez na sala de aula da graduação foi que sai- ria de lá como um profissional capacitado o bastante para atuar em [por que não?] todas as áreas jornalísticas, mas que meu produto final, aquele que seria o responsável pelo título de bacharel em comunicação social – jornalis- mo, seria um livro-reportagem. Foi uma escolha às avessas. Em geral, o aluno ou equipe Apresentação
  • 18. 18 levanta um tema e, a partir dele, determina em qual veí- culo aquela proposta melhor se enquadra. No meu caso, o desafio seria encontrar a temática. Eu desejava sentir o gosto inebriante de ver meu nome impresso na capa de um livro, um sentimento ora egocêntrico ora contumaz. Carmelino Massafera surgiu em minha vida por meio de uma conversa informal com a professora Patrícia que, mais tarde, seria a orientadora do projeto que trouxe à luz De porta em porta. Tive receio no início. Eu teria que ir à caça da história de um homem que muita gente sabia quem era, mas poucos tinham riqueza de detalhes para contar. Poucos, mas que foram o bastante. Talvez, essa te- nha sido minha principal dificuldade e, ao mesmo tempo, sorte. Quando comecei a remontar parte da história de Car- melino, me peguei pensando que gostaria de tê-lo co- nhecido, porque a maneira com que falavam dele deixava visível o quão importante e inesquecível ele foi. A partir desta questão é que arquitetei os capítulos do De porta em porta: um homem que lutou contra o preconceito por ser espírita e, ironicamente ou não, partiu como um alguém respeitado. Viveu setenta e oito anos e foi mascate, funcio- nário da prefeitura, comerciante, dono de olaria, suinocul- tor, músico e líder espiritual. A principal proposta é que não seja um livro históri- co, repleto de datas e acontecimentos, academicamente
  • 19. 19 descritos. Também não gostaria que vissem como um li- vro voltado somente para o espiritismo. Assim, busquei na linguagem literária uma forma de deixar a leitura mais atraente. Outro artifício, além da forma como o livro é escrito, é a própria estrutura: em formato de bolso, De porta em por- ta convida o leitor a levá-lo para qualquer lugar, por ser prático de carregar. As ilustrações de capa e das páginas internas foram desenvolvidas pelo artista plástico Murilo Braga, exclusivamente para o projeto, e remetem à simpli- cidade de Carmelino, sem deixar de ser original. O nome, De porta em porta, foi escolhido por manter uma relação estreita entre autor, obra e leitor. Eu visitei diversos lugares, entre casas de parentes e museu, para registrar a história de Carmelino. O próprio personagem realizou verdadeiras sagas entre o trabalho de vender e o de ajudar as pessoas e, por fim, os desenhos das portas que antecedem cada capítulo pedem que o leitor as ultra- passe e mergulhe na história daquele homem. De porta em porta é uma viagem na história de um per- sonagem que muita gente conheceu e poucos se lembram. Não é um livro de ficção, pois os fatos narrados são frutos de depoimentos de pessoas que conviveram de perto com Carmelino Massafera. Não é jornalismo convencional, pois vai além da proposta de responder a meia dúzia de per- guntas do lead tradicional.
  • 20. 20 De porta em porta é um romance-reportagem. Pode pa- recer um termo estranho, mas é o que melhor define esse conjunto de páginas dividido em dez capítulos. O livro-reportagem De porta em porta é voltado, sobre- tudo, para adeptos da doutrina espírita, familiares, ami- gos e conhecidos do biografado, o que não impede que ele atinja um público formado por pessoas interessadas na história de Pouso Alegre, no espiritismo na cidade e tam- bém leitores que se afeiçoam por reportagens que traba- lham com uma linguagem humanizada. De porta em porta não é apenas o resultado de um Pro- jeto Experimental. É um resgate de histórias que, antes es- palhadas, agora estarão guardadas no mesmo lugar. É me- mória de uma gente que já não conseguia guardar consigo tudo o que sabia sobre Carmelino e tinha sede de contar para o mundo, mas não sabia como fazer. O importante para mim não foi detalhar o que fez Car- melino Massafera em cada dia de sua vida, mas mostrar o que ele representou para a geração que viveu com ele. Há viabilidade? Claro. Um homem que fez os outros sorrirem, que ajudou a por comida no prato de quem já não sabia quando ia fazer a próxima refeição, que consolou corações desesperados e que, simplesmente, foi pai, marido, avô, filho, irmão e amigo merece ter sua história registrada. Assim, quando esquecermos o que é ser pai, marido, avô, filho, irmão e amigo tenhamos uma fonte de informações
  • 21. 21 e saibamos como recomeçar. Para que, quando negarmos ajuda a quem só precisa de um sorriso tenhamos a certeza de que ainda irá existir um Carmelino para fazer o bem por nós, porque os Carmeli- nos estão por toda a parte, onde nossos olhos não alcan- çam, porque estamos ocupados demais olhando para nós mesmos.
  • 22.
  • 23. 23 O livro-reportagem De porta em porta ambienta-se na ci- dade de Pouso Alegre do fim do século XIX e início do XX. O município, ainda com poucas décadas de existência, vivia uma fase de mudanças constantes: novas leis eram apro- vadas, o trem começava a funcionar e os comércios, pe- quenas indústrias e os automóveis já davam os primeiros passos para o crescimento que viria décadas mais tarde. Nesse cenário, Carmelino, nascido em Borda da Mata no dia 30 de maio de 1896, começava seus estudos para tornar-se padre. A iniciativa para o sacerdócio tinha vin- do dos pais, descendentes italianos que acreditavam ser o único meio de livrar o filho das alucinações que ele sofria. Desde pequeno, Carmelino ouvia vozes. Às vezes a in- Introdução
  • 24. 24 tensidade daquela comunicação era tão forte que lhe cau- sava dores pelo corpo. Receosos da saúde do filho ser pre- judicada, os dois não tiveram dúvida em mandá-lo para Pouso Alegre. Mesmo rodeado por padres e textos religiosos, Car- melino não deixou de ouvir as vozes que, ora o atormen- tavam, ora o intrigavam. Então, quando decidiu procurar uma mulher, que havia conhecido furtivamente na rua, ele pôde compreender o que se passava consigo. Era um mé- dium. A doutrina espírita é uma das crenças na qual a mediu- nidade está presente. O espiritismo teve seu auge por vol- ta dos anos 1857, quando Allan Kardec, lançou, na França, O livro dos espíritos. Depois dessa obra, outros quatro vo- lumes compuseram a base do kardecismo e Kardec ficou conhecido como o Codificador. No Brasil, a doutrina espírita está inserida em três ver- tentes principais: religiosidade, ciência e misticismo, em- bora a primeira seja a dominante. Depois que deixou o se- minário e procurou a mulher, Carmelino passou a estudar e desenvolver de forma correta os seus dons. Assim como em outros lugares, Pouso Alegre também estava arraigada na dificuldade em aceitar o que era novo. No início, o pequeno grupo de pessoas que se reunia em sessões espíritas na cidade o fazia escondido. A Igreja Ca- tólica, dominante na época, usava de seu periódico oficial,
  • 25. 25 o jornal Semana Religiosa para persuadir os fiéis a mante- rem-se afastados de qualquer menção ao espiritismo ou Kardec. Além do engajamento na crença que escolheu para sua vida, Carmelino desempenhou diversas atividades profis- sionais para cuidar da mulher e dos doze filhos. Sempre que possível, ele ainda saía com um grupo de amigos do centro para pedir donativos, com os quais montavam ces- tas básicas e doavam para famílias carentes. Quando o preconceito em torno do espiritismo dimi- nuiu e as pessoas passaram a aceitar outras crenças, os trabalhos de Carmelino frente ao centro cresceram e, a partir daí, ele se tornou um verdadeiro Chico Xavier de Pouso Alegre, como o definiu a Revista do Ano 88, 14 anos após o seu falecimento. Além da personagem central, De porta em porta con- templa algumas histórias de pessoas que ele auxiliou e pequenas cenas cotidianas que foram resgatadas da me- mória de parentes e amigos. O que deveria compreender os anos de 1896 e 1974, acaba se estendendo até os dias atuais, isso porque a força das lembranças deixadas pelo personagem permanecem vívidas.
  • 26.
  • 27. 27 O silêncio seria quase absoluto, não fossem os cachorros que remexiam o lixo na porta das casas ou o correr das águas do Mandu, rio que atravessa o bairro. Carmelino despertou de um sono sem sonhos e estava inquieto. Ao abrir os olhos pôde intuir que a madrugada ainda impera- va lá fora, embora as primeiras réstias de luz, daquilo que seriam raios de sol, já ensaiassem, tímidas, sua aparição pela fresta da janela. Pegou o velho rádio-relógio ao lado da cama, que fazia, às vezes, de despertador, só para confirmar que o menor ponteiro ainda indicava o número quatro. Como o sono não ia aparecer de novo e a semana começaria de fato dentro de duas horas, ele resolveu adiantar as atividades Prólogo
  • 28. 28 daquela segunda-feira. Deixou o quarto sem fazer muito barulho. Ainda na porta, segurando no batente, ele virou-se e contemplou a esposa dormindo. Poderia ficar parado ali por horas a fio, velando seu sono e recordando a vida que os dois compar- tilharam. Foram mais de cinquenta anos juntos e, apesar de conhecê-la em cada gesto e ter adquirido a capacidade de compreender qualquer coisa que ela sentia, ainda que não pronunciasse uma palavra, Carmelino tinha a certeza de que havia uma Georgina que ele e ninguém poderiam conhecer. Receoso para não acordá-la com algum movimento brusco, ele fechou a porta e, ao caminhar até os fundos da casa, se deteve diante de um papel pregado na parede. O calendário, ainda novo, revelava o quatro de fevereiro, sem o “x” com o qual os outros dias estavam marcados. Antes que sua mente fosse ocupada pelos receios e inseguranças que aquela data lhe causava, desvencilhou- -se de seus pensamentos e continuou à frente. Resolveu dar comida aos porcos e organizar algumas ferramentas na olaria. Se os netos ou a esposa o vissem fazendo esses tipos de tarefas iam brigar, com certeza. Podia até ouvir as palavras da mulher: “Mas homem, esqueceu que você teve um infarto e tem mais de 70?”. Ao pensar na cena, imaginou que esboçaria um sorriso e continuaria as atividades, sem dar importância ao gênio
  • 29. 29 da esposa. Mas, naquela madrugada, talvez apenas deixas- se a vassoura de lado e fosse aproveitar o dia. Pouco mais de uma hora bastaria para que deixasse tudo em ordem. Os porcos só precisavam ser alimentados de manhã e no fim da tarde e a produção na olaria estava baixa. Seria melhor deixar tudo pronto, já que não queria ninguém em casa durante a tarde. Sempre que pensava no quatro de fevereiro, imaginava como seria aquele dia. Sabia que, quanto mais esforço fi- zesse para parecer como uma segunda-feira qualquer, me- nos natural sairiam seus gestos, ações e palavras. Nunca havia sido um homem nervoso. Mesmo quando enfrentava grandes dificuldades ou momentos que qual- quer sentimental desabaria em lágrimas, mantinha-se fir- me. Não porque fosse insensível ou frio, mas porque sabia que o desespero não resolveria nenhuma situação. Queria acreditar que ninguém notaria nada fora do co- mum. No entanto, o mais provável seria que, ao voltar à cozinha, encontraria a mulher parada em frente ao fogo, preparando o que comer. Ao vê-la e ao sentir o doce aroma de um café forte, talvez conseguisse banir o sabor amargo dos pensamentos nostálgicos. Possivelmente ela se espantaria ao vê-lo acordado tão mais cedo que o habitual e por não ter sido desper- tada com os sussurros dele pronunciando os conhecidos fragmentos da prece de Cáritas1 . Carmelino tinha uma fé
  • 30. 30 muçulmana: os horários de sua oração, ao acordar, no de- correr da tarde e ao deitar, eram sagrados. A cena mais comum da casa era vê-lo ajoelhado aos pés da cama agra- decendo, pedindo ou simplesmente tomando uma fração de seu tempo para alimentar a força interior que, ao con- trário do físico de 78 anos, era de um jovem. Então ele retornaria ao quarto e, antes mesmo de ter- minar a última frase de sua oração, já ouviria o tilintar dos talheres na cozinha anunciando mais uma segunda que havia começado na casa dos Massafera. Carmelino terminaria sua oração e se uniria aos outros para a primeira refeição do dia. Os filhos notariam que algo estava fora do lugar, pois apesar de sua postura ser a mesma com a qual estavam habituados, algum vestígio acabaria escapando. Ele poderia até imaginar que o olha- riam pelo canto dos olhos e depois para a mãe. Ficaria fá- cil, até mesmo, supor o diálogo que se seguiria. - Sei muito bem que estão me observando. Há alguma coisa que queiram me contar? - Se um pássaro cantador deixa sua melodia de lado de uma hora para outra, há de se fazer notar – adiantaria-se 1 Cáritas era um espírito que se comunicava através de uma da médium Mme. W. Krell - em um grupo de Bordeaux (França), uma das maiores psicógrafas da História do Espiritismo. A prece de Cáritas foi psicografada na noite de Natal, 25 de dezembro, do ano de 1873.
  • 31. 31 dona Georgina, sentindo falta do habitual show de asso- bios do marido. - Que dia é hoje? – soltaria, em resposta à mulher. - Quatro de fevereiro. - A idade chega e leva alguns velhos hábitos, lembran- ças e forças embora – diria, olhando para a jovem que sen- tava ao seu lado. A filha, Maria de Lourdes, seria a única com quem po- deria compartilhar um gesto de segredo, que ele compro- varia piscando para ela. Talvez, depois disso, a jovem con- tinuasse sua refeição sem se importar, mas o provável é que esqueceria como comer, brincando com a xícara numa mão e o pão em outra. - Ora, deixe de conversa fiada que o dia hoje vai ser cheio. Eu preciso que... Carmelino interromperia a esposa, antes que ela come- çasse a fazer o ritual de distribuição de tarefas domésti- cas para todos. Seria a oportunidade de pedir para que os filhos fossem fazer alguns favores no centro da cidade, o que ocuparia praticamente o dia todo. Para a mulher, po- deria sugerir que fosse visitar os amigos em Santa Rita do Sapucaí. Ela pestanejaria quanto pudesse, mas seria ven- cida pela insistência dele. Ele sempre ganhava. Com a casa vazia, talvez Carmelino tenha percorrido todos os cômodos, sem barulho e sem ter que driblar as vassouras que a mulher insistia em passar, ainda que tudo
  • 32. 32 estivesse limpo. Seu olhar, distante, como quem se recorda de uma vida em segundos, talvez parecesse triste ou cansado. Se deita- ria em sua cama, como de costume, e dormiria. - É hoje – pronunciaria para si, antes de cair no sono. Grafira, a menina que a família acolheu como filha, veio visitá-los naquela tarde. Ao verificar que o pai dormia, foi até a cozinha, lavou o que ainda estava sujo do almoço e aproveitou para preparar um bolo, pois sabia que Carme- lino acordaria com fome e não iria dispensar uma bela fa- tia. Já eram quase três da tarde e a porta do quarto conti- nuava fechada. O bolo já estava frio debaixo do pano de prato. Como o pai não dava sinal de levantar-se da sesta, Grafira resolveu bater à porta. Silêncio. Abriu devagar e, ao ver o braço dele estendido, quase tocando o chão, ela percebeu que o bolo continuaria na cozinha, intocável.
  • 33.
  • 34.
  • 35. 35 As poucas vias que formavam o centro de Pouso Alegre foram, por anos, tomadas pelo barulho de crianças que di- vidiam seu tempo entre os estudos e as brincadeiras de rua. Os espaços que ainda eram de terra viviam cheios de pequenos sulcos, feitos pela ponta dos piões e o céu divi- dia espaço entre seu azul e o colorido das pipas. Mas a expansão dos bairros e a industrialização fizeram com que o barulho nas ruas fosse substituído por carros e homens engravatados, vestindo-se como os europeus, na expectativa de que o pequeno município pudesse, algum dia, ombrear-se aos grandes centros do estrangeiro. Era para esse cenário, com intuitos de progresso, que Carmelino foi enviado pelos pais, para estudar no Semi- Vozes do Seminário
  • 36. 36 nário Diocesano. As terras, que hoje formam a cidade de Borda da Mata, não ofereciam nada além de uma vida que se resumisse ao trabalho no campo para os homens e a cuidar da casa e da família para as mulheres. Além disso, ter um filho sacerdote poderia render à família uma vida de graças, ou pelo menos era o que pensavam. Carmelino estava às vésperas de viver seu décimo oita- vo 30 de maio, quando o lar de padres e seminaristas tor- nou-se sua nova casa. Seus dias passaram a se resumir em orações e um debruçar constante sobre livros de teologia, textos de filosofia e outros tantos escritos de pensadores que, a seu ver, escreviam sem sequer terem passado pelas situações às quais falavam de forma tão particular e com propriedade. Apesar da rotina monótona e cercada do rudimento que os senhores da igreja impunham, Carmelino distraía- -se nas conversas que mantinha com os colegas de quarto ou os vizinhos de corredor. Embora os assuntos sobre os quais falassem não fossem mais empolgantes que a pró- pria vida do celibato, eles ainda tentavam sonhar com um futuro melhor por detrás daqueles muros protegidos pelo Pai-Nosso e Ave-Maria. Mesmo cumprindo suas tarefas com determinação e pontualidade, Carmelino tinha a sensação de que os dias se arrastavam a passos mais lentos que a leitura dos tex- tos menos atrativos do seminário. Por vezes, pensou em
  • 37. 37 deixar aquele lugar, afinal de contas, o celibato era uma vontade dos pais, não sua. Só à noite, longe do farfalhar constante de batinas que se ouvia pelos corredores durante o dia, é que ele conse- guia dar voz a seus pensamentos. Desde muito pequeno, quando a idade ainda podia ser contada nos dedos das mãos, Carmelino parecia ter um ar mais introspectivo do que qualquer criança que dividisse os dias de brincadei- ras. A inclinação para a reflexão não atrapalhou a infância feliz que teve em Borda da Mata, em meio às esperanças de melhoria de vida que ainda tomavam conta dos cora- ções de imigrantes, desde o primeiro momento em que pisaram em terras brasileiras. A chegada deles tinha sido difícil. Navios que cruza- vam os mares levando especiarias e outros sinônimos de riqueza do início do século XIX começaram a transportar pessoas. Homens, mulheres e crianças dividiam o mesmo local. Talvez, a maior disputa entre eles não fosse por um espaço para deitar-se, mas sim, contra as inúmeras enfer- midades que dizimavam italianos, holandeses, portugue- ses e mais gente de outras nacionalidades. O novo mundo descoberto durante as Grandes Navega- ções abria um verdadeiro leque de possibilidades, dúvidas e medos. Deixar de lado os costumes, a terra materna, a língua e aprender a viver num país de riquezas em explo- ração era um desafio. Até mesmo o sobrenome perdera
  • 38. 38 sua forma: Mazzafera na Itália. Massafera no Brasil. A família italiana de Carmelino vivia na Calábria, uma região ao sul do país em forma de bota. Com montanhas altas e mar de um azul impossível, a península é berço de antigas civilizações e palco de monumentos históricos e ruínas arqueológicas. Antes que a vida, desestruturada pela falta de emprego, tivesse o mesmo destino destroçado das construções anti- gas, que foram arruinadas por guerras e disputas de espa- ço, eles vieram buscar no antigo Pindorama uma oportu- nidade que não era mais possível em terras italianas, onde a miséria batia à soleira da porta. Até conseguirem um pedaço de terra e uma moradia fixa, os dias foram de intenso trabalho. Eles não estavam no Brasil para serem senhores, mas para servi-los. Foi as- sim que cuidaram dos filhos. Foi por isso que insistiram para Carmelino estudar em um seminário, na expectativa de que a vida dele pudesse ser menos penosa. Talvez tenha sido esse histórico de lutas, perdas e ga- nhos de seus pais o grande responsável por mantê-lo no claustro. Pelo menos antes de tudo se intensificar. Acontecia com frequência. Quase toda noite. Quando tentava dormir, ouvia vozes sem rosto falarem palavras inaudíveis em seus ouvidos. Era como se fosse outro idio- ma ou talvez estivessem apenas querendo ser notadas e não compreendidas.
  • 39. 39 Já havia sentido a mesma sensação inúmeras vezes en- quanto criança. A mãe, confiante na crença dos benzedo- res, tentava aliviar as sensações do filho com a ajuda de curandeiros, orações e amuletos. Nada adiantava. Às vezes ele pensava que a insistência para que se tor- nasse um padre ia além da tentativa de uma vida melhor. Carmelino se perguntava se a família sabia o que estava acontecendo com ele e estivesse tentando mantê-lo longe de seus próprios problemas. Em meio a esse conflito interior, Carmelino perdeu seus pais. Habituados a trabalhar na lavoura, sob sol quen- te e por horas a fio, tiveram sua saúde sucumbida precoce- mente por doenças. Desde que os pais morreram, ele e os irmãos ficaram sob os cuidados de Dona Amélia, parenta próxima da fa- mília. Ela tinha uma bondade sem limites e não poupava esforços para ajudar quando necessário. Cuidou de Car- melino e seus irmãos da mesma maneira como cuidou de sua filha, Carmelina. Ele procurava não comentar com os religiosos, tam- pouco com os colegas de estudos sobre o que ouvia. Tinha receio de que pudesse não ser aceito no local e o expulsas- sem. A ideia de incomodar Dona Amélia com suas alucina- ções o atormentava ainda mais do que as próprias vozes. A qualidade de vida no início do século XX começava a dar os primeiros passos de avanço. Os pesquisadores das
  • 40. 40 ciências médicas trabalhavam com afinco na busca por cura de doenças que, há um par de anos, assolava uma co- munidade e levava à morte famílias inteiras. A escassez de higiene fazia com que os habitantes de uma cidade fossem reduzidos aos milhares. Mas nem os novos métodos de tratamento da medicina puderam impedir que os pais de Carmelino o deixassem órfão antes mesmo de terminar os estudos, que por influ- ência deles havia começado. O dia em que os dois partiram poderia estar iluminado por um sol resplandecente num céu sem nuvens, daqueles em que o calor intenso é compensado pela brisa leve que toca o rosto, mas seu coração estaria cinza como uma ma- nhã nublada que anoitece antes da hora. Durante quatro estações do ano, Carmelino estabele- ceu uma rotina de estudos e orações mais intensa que a dos colegas. Apesar da leitura não ser uma atividade pela qual ele demonstrasse um extremo interesse, era a manei- ra que encontrava de não ficar a sós consigo. Ele acabou se afeiçoando às histórias bíblicas. Os textos sagrados passaram a ser seu livro de cabeceira. Do início ao fim, Carmelino perdia-se na história da criação do uni- verso, imaginando se sua vida estaria, naquele momento, mais próxima do Gênesis ou do Apocalipse. Numa das noites em que estudava, vozes tornaram a ensurdecer seus ouvidos. Ele tentou concentrar-se no tex-
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  • 42. 42 to, mas as letras desprendiam-se do livro, confusas, sem sentido. Estreitou os olhos sobre os papeis, mas só serviu para que uma dor lancinante tomasse conta de sua cabe- ça. Os sussurros foram aumentando, até que ele passou a ouvi-los aos berros. Eram gritos que abafariam até mesmo uma tempestade que pudesse fustigar suas janelas. Saiu do quarto, pensando que se livraria daquilo, mas, mesmo depois de alcançar os corredores, os lamentos continuavam. A dor fazia a vista ficar embaçada, mas con- seguiu chegar até a cozinha. Um dos padres ainda estava acordado e, quando o viu, pálido e com as mãos na cabeça, veio em seu encontro. - Você não ouve? – foi só o que Carmelino pôde dizer antes de perder os sentidos.
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  • 45. 45 A ansiedade tomava conta de Pouso Alegre na manhã de vinte e cinco de maio de 1892. Os senhores da vida pú- blica, que mandavam e desmandavam naquelas terras e nos distritos vizinhos, tinham um motivo a mais para se aprumarem logo cedo, vestidos em ternos do melhor teci- do, as botas ou sapatos mais lustrados e o chapéu que os deixasse mais destacados em meio à multidão que certa- mente se formaria no centro da cidade. Pareciam sentir o cheiro inebriante do progresso a cada novo documento que liam ou assinavam em seus escritó- rios. As montanhas brancas de papel borrado, com letras que muitos deles mal liam ou compreendiam, espalha- vam-se sobre a mesa de seus gabinetes cotidianamente. Adeus, Itália
  • 46. 46 Há quase três anos, Pouso Alegre tinha dado um de seus primeiros passos mais importantes para a chegada do tal progresso. Era 1892 quando a cidade ganhou uma importante aliada: a 1ª Lei Orgânica do Município. Um compêndio quase infindável de artigos, incisos, parágra- fos e mais tantos termos jurídicos que aparentavam escri- tos em outra língua. No discurso da cerimônia que narrou o feito, os sor- risos, de orelha a orelha, valiam por todos os outros pre- sentes, que não tinham no rosto outra expressão senão a dúvida que a tal lei, anunciada com tanta euforia e bem dizer, fosse mesmo mudar alguma condição na vida deles, ou seria apenas uma comemoração por uns pares de fo- lhas a menos para ler e assinar na montanha do escritório. Sem maiores novidades, três longos anos se arrasta- ram para o povo que não tinha outra tarefa, senão dividir seu tempo entre o trabalho na agricultura, no comércio e nos serviços de casa. A falta de atividades voltadas ao la- zer e ao incentivo à educação e cultura, fazia crescer uma cidade sem muito planejamento, com ruas, casas e ideais tão mal desenvolvidos quanto os nomes dos poucos que conseguiam desenhá-los no papel. O calor do final de maio anunciava a chegada das pri- meiras brisas geladas, que acompanhariam a cidade até o inverno ceder lugar ao perfume doce e suave das flores que nasceriam com a primavera.
  • 47. 47 A movimentação que antecedia o evento em Pouso Ale- gre também mexia com a imaginação e a curiosidade de quem morava nos distritos pertencentes à cidade-sede. Naquela manhã, em Borda da Mata, Carmine e Blandi- na desfrutaram de uma hora a mais de sono. Desde que tinham aportado em terras brasileiras, a hora de acordar era, invariavelmente, às cinco da manhã. Do primeiro can- tar do galo até a lua desenhar no céu sua aparição, o verde e marrom das lavouras coloriam o cenário de suas vidas. Vieram da Itália com a mesma esperança que trouxe- ram outras centenas de famílias com as quais dividiram o porão dos navios. O cheiro de homens, mulheres, crianças e suas necessidades só não era mais fétido do que o aro- ma da miséria que deixaram para trás, quando decidiram subir no primeiro meio de transporte que tiveram opor- tunidade. Já tinham ouvido falar das riquezas do Brasil, por al- guns vizinhos de outras nacionalidades, que conseguiram prosperar no país tropical do Novo Mundo. Mas, a reali- dade que encontraram por aqui, não foi muito diferente da que deixaram para trás. Ao menos, tinham encontrado um trabalho. Pesado, contínuo. Mas estavam conseguindo cuidar dos filhos. Os dois estavam dispensados do trabalho naquele dia, assim como todos os outros funcionários da lavoura, do comércio e do funcionalismo público. Estranharam quan-
  • 48. 48 do o patrão os reuniu no dia anterior para informar do descanso, já que não deixavam de renovar os calos das mãos, muitas vezes, nem mesmo em feriados santos. Só descobriram o motivo de tamanho alarde quando partiram para o centro da cidade naquele dia. O evento parecia mesmo ser muito importante, pois, à frente de um amontoado de pessoas, todos trajando suas roupas de domingo, o número de senhores de terno e gravata havia multiplicado. Como o som da voz do orador que se pronunciava che- gava aos sussurros no lugar onde estavam, só conseguiram saber o que acontecia pelos cochichos de outras pessoas. Souberam da presença de representantes do governo do estado de Minas Gerais e homens da imprensa. Pelo que ouviram, a cidade agora faria parte da Rede Mineira de Viação e aquela comemoração toda era para celebrar o início do funcionamento da ferrovia, que leva- ria os pouso-alegrenses para as cidades vizinhas com o mesmo conforto, rapidez e segurança dos quais desfruta- vam os moradores da capital. A partir daquele dia, o barulho do atrito entre as rodas e o trilho, além do apito agudo, que insistia em ser ouvido, mesmo a grandes distâncias, se tornaria a trilha sonora de uma cidade que sonhava com o progresso. Levando cargas e pessoas, a Maria Fumaça seria como uma celebridade. Durante uma viagem até o Porto de Sapucaí, primeira
  • 49. 49 estação depois do centro de Pouso Alegre, o maquinista reparou que a extensão da locomotiva estava menor que a habitual. Foi então que notou falta em dois vagões. Bu- fando de insatisfação, teve de engatar a ré e voltar até o ponto de partida para buscar a carga e os passageiros que, àquela hora e com todo o atraso, já deviam estar soltando todo o tipo de xingamentos. Tamanha a impaciência que tinham adquirido pela Rede Mineira de Viação, criaram, inclusive, uma frase para referir-se à qualidade dos servi- ços: “Ruim..., mas vai.” * * * Carmine e Blandina, apesar de não entenderem menos que a metade das expressões de enaltecimento que os di- rigentes da cidade dispensavam para os convidados, es- boçaram o mesmo sorriso de quando conseguiram subir a bordo do navio, ainda na Itália. Era como se uma cha- ma de esperança, quase nula, voltasse a ter força. Naquela manhã, eles voltaram a acreditar que pudessem embarcar nos trilhos de um trem e suas vidas pudessem dar um sal- to ao progresso, assim como pensavam que a cidade faria. Mas, seus sonhos se dispersaram tão rápido quanto a fumaça que saíra do trem em sua primeira viagem. Com o novo meio de transporte, os fazendeiros puderam ven- der mais de seus produtos e aumentar os lucros. Para os
  • 50. 50 descendentes de italianos também houve crescimento. De trabalho. De cansaço. De dores. De filhos. Desde que vieram da Europa, foram obrigados a pas- sar pelas mais diversas adaptações. Aprender o português não foi tarefa fácil. Mas, talvez, o mais doloroso tenha sido ver suas origens tornarem-se mais longínquas, como se a distância que os separava de sua terra aumentasse a cada nova palavra, expressão ou costume aprendido. Por diversas vezes sentiam-se como estranhos em um mundo que não lhes pertencia. Era como se estivessem famintos. Não pela falta do que comer. Mas com fome de serem o que já foram, o que, como intuíam, jamais volta- riam a ser. A perda constante de identidade não poupou nem mesmo a única coisa que poderiam chamar de seu. O so- brenome ganhara dois ‘s’ no lugar antes ocupado pelo mesmo som da pizza. Ao contrário deles, os filhos possu- íam nomes cujas raízes pertenciam muito mais ao Brasil. * * * Um ano depois que os primeiros apitos da Maria Fuma- ça foram ouvidos por toda Pouso Alegre, os resmungos de dor de Blandina passaram a ser o barulho que dominava sua casa. A família dos Massafera ganhava um novo mem- bro.
  • 51. 51 Carmelino nasceu quando o mês das mães começava a se despedir, com o frio castigando os trabalhadores rurais que, desde o primeiro despontar do sol, ficavam com os dedos enregelados do trabalho na lavoura. O nome, que podia ser entendido como uma forma de mistura entre o da mãe e do pai, possuía um significado que talvez os dois nunca tenham tido conhecimento. De origem hebraica, Carmelino significa “jardim de Deus”. Aquele bebê pequeno que a mãe segurava em seus bra- ços foi o grande responsável por aquecer seu coração do inverno que se iniciava e por fazê-la ter forças para lutar quando perderia o marido, quatro anos mais tarde. Carmelino cresceu junto aos irmãos em Borda da Mata. A região, à época um distrito de Pouso Alegre, era essen- cialmente rural. Além dos costumes do homem do campo, ele também foi criado com as superstições, lendas e tabus nos quais todos acreditavam. Certa tarde, enquanto a mãe trabalhava no campo, Car- melino divertia-se com os irmãos e alguns amigos, depois de terem ajudado nas tarefas de casa. Sem bola ou brin- quedos, o esconde-esconde tornava-se a brincadeira mais atrativa. Era a vez dele fechar os olhos, enquanto os outros se esconderiam. A região onde moravam era dominada pelo verde das plantações. Os grossos troncos das árvores frondosas, que limitavam a propriedade, também eram ótimos lugares
  • 52. 52 para esconderijos. Os meninos marotos se arranhavam passando pelas cercas estreitas e subindo nos galhos mais altos. As meninas espremiam-se debaixo das camas ou atrás de móveis, dentro de casa. A contagem que, como haviam combinado, deveria ir até os cinquenta, não passou dos trinta, quando Carmeli- no começou a ouvir uma voz que ditava os números junto com ele. - Você não vai se esconder? – perguntou, sem tirar os olhos para ver quem era. Como não obteve resposta, continuou a contar e outra vez percebeu que não estava sozinho. Pensou que estavam tentando pregar uma peça nele. Dessa vez, sem aviso pré- vio e pronto para dar um susto em quem estivesse atrás, ergueu a cabeça de súbito. Ninguém. Sabia que tinha amigos ágeis, mas nunca havia pensado que pudessem se superar desse modo. Riu consigo quan- do pensou que estava ouvindo vozes e foi procurá-los. Me- nos de cinco minutos bastou para que os encontrasse, um a um. Agora só faltava um irmão. Antônio. Pôs a mão na cabeça para olhar na direção do sol e pro- curar na copa das árvores. Foi atrás do monte de tijolos da reforma que o pai não teve tempo para fazer. Procurou perto de onde a mãe trabalhava. Nada.
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  • 54. 54 Já ia voltando pronto para desistir quando ouviu: - Debaixo da sua cama. - Antônio? – chamou o irmão, girando o corpo à procura do dono da voz que ouvira. Novamente percebeu que não havia ninguém perto dele e os outros estavam todos sen- tados à espera da hora que a brincadeira fosse recomeçar. - Que cara é essa? – soltou um dos amigos, quando viu Carmelino voltar. Estava tão atordoado que sequer ouviu a pergunta. Sem saber direito o que estava fazendo, entrou em casa, foi até seu quarto e qual não foi sua surpresa ao ver o ir- mão encolhido, segurando o riso, debaixo da cama. Correu. Mas no lugar de ir até os outros para avisar que o jogo podia recomeçar, desceu até as plantações. Em seu rosto seria impossível ler se havia mais medo ou curiosidade. Só o que conseguiu fazer foi gritar, a plenos pulmões. - Mãããããããe.
  • 55.
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  • 57. 57 Quando acordou estava deitado em sua cama, a camiseta empapada de suor frio. Uma roda de homens de batina se fazia ver em torno dele, todos com o olhar preocupado. Apenas um deles estava menos apreensivo que os outros e foi o primeiro a se manifestar. - Convulsão. É só o que pode ser. Na falta de um médico para realizar os procedimen- tos de exame clínico, o diagnóstico do sacerdote foi acei- to como correto e não falaram mais sobre o assunto até o amanhecer. Quando uma pessoa era acometida por algum mal que ninguém sabia definir a causa, consequência ou trata- mento rotulavam como convulsão, loucura e, até mesmo, O bilhete da fuga
  • 58. 58 esquizofrenia, principalmente a igreja, que condenava práticas que fugissem ao ritual da missa, de seu culto aos santos mártires e seus dogmas, como o curandeirismo ou práticas das quais algumas pessoas falavam, que difundia a ideia de comunicação com o mundo espiritual. Carmelino levantou-se ainda trôpego, apenas para trocar de roupa e voltou a deitar-se. O sono não tardou a encontrar-se com ele. Sonhou que reencontrava os pais num campo tão bran- co que chegava a doer a vista. Percebeu que sorriam para ele, gesticulavam e falavam coisas que ele não entendia. Só conseguia enxergar os lábios deles se mexerem e um som sibilante e indistinto chegar aos seus ouvidos. Desejou estender a mão para tocá-los, mas percebeu que uma parede invisível os separava; tentou gritar, mas não o ouviam. Acordou tão rápido quanto dormiu. Esticou as mãos até sentir a Bíblia em cima da mesa de cabeceira. Este livro agora era o seu refúgio. Sempre que algo o incomodava ou a vontade de abandonar a vida que levava o afligia de maneira extrema, voltava a seguir os passos de Jesus e das personagens que ilustram os evan- gelhos. Abriu despretensiosamente numa página, quando per- cebeu que um papel caíra. Sentou na cama e tateou o chão à procura do bilhete. Estava dobrado em quatro partes e
  • 59. 59 trazia um endereço. Enquanto seus olhos percorriam a caligrafia, lembrou o dia em que ganhou aquele papel. Foi há poucos meses antes de ter deixado a casa dos pais e vindo para o semi- nário. Tinha ido com a mãe até a casa de um senhor. Não se recordava do nome, talvez porque estivesse assustado demais para ter prestado atenção ou porque realmente queria esquecer aquele momento. A casa dele ficava em Pouso Alegre. Era simples. Mari- do, mulher e dois filhos dividiam dois quartos, uma cozi- nha, um banheiro e um pequeno cômodo que faziam de sala de estar. Esse último era tomado por imagens dos mais variados santos, feitas de barro, madeira, gesso e quaisquer outros materiais em que conseguissem perso- nificar a fé daquela gente. Era domingo e a mãe de Carmelino o havia levado até aquele homem por insistência de amigos. Ela vinha de uma família que não acreditava no poder curativo ou sensitivo dos quais se gabavam tantos homens e mulheres conhe- cidos por benzedeiros. No entanto, rendeu-se à tentativa depois de não conseguir conter as constantes reclamações do filho sobre as vozes de pessoas invisíveis que conver- savam com ele. O ritual foi bem simples. O homem trajava uma roupa que lembrava vestimentas de um mendigo, mas limpas e sem furos. Empunhava ramos de alguma erva numa das
  • 60. 60 mãos, enquanto a outra sobrepunha a cabeça de Carme- lino. A boca pronunciava uma oração quase inaudível. Ele só conseguiu entender palavras como “afasta”, “mal”, “ex- pulso”. Quando saíram da casa, uma mulher que os observava do outro lado da rua veio ao alcance dos dois e um menear de cabeça sugeriu um cumprimento sutil. Blandina conhecia aquela mulher dos comentários que seus vizinhos faziam. Ouvira dizer, certa vez, que ela era membro de um grupo secreto de pessoas. Ao que parecia, eles se encontravam em reuniões fechadas para fazer ex- periências bizarras, que incluíam práticas de exorcismo e contato com os mortos. Mesmo quando estava na Itália, em reuniões da igreja, tinha ouvido algo a respeito desses trabalhos. O auge foi por volta de 1857, quando um francês escreveu uma série de livros a respeito do assunto. Ela lembrava muito bem dos conselhos dos sacerdotes para não ler nada, não pro- curar e não crer em tais barbaridades. Foi o que fez. Antes de a conhecida pronunciar qualquer palavra, ela adiantou-se e se colocou à frente de Carmelino, um típico gesto maternal, como se estivessem diante de um perigo e ela precisasse proteger seu filho. A mulher percebeu o medo e a fúria que emanavam dos olhos de Blandina e procurou se afastar; não sem an-
  • 61. 61 tes estender a mão a Carmelino com um pedaço de papel. O rapaz foi mais rápido que a mãe e, desvencilhou-se da tentativa dela de pegar o bilhete, fingiu que o jogava fora, colocando-o no bolso da calça. Ao retornarem, as ocupações de dona de casa da mãe impossibilitaram que ela tivesse tempo para pensar em tudo que havia acontecido. A mulher, o bilhete e todo o resto sumiram de sua mente tão rápido quanto a lenha que queimava no fogão enquanto preparava o jantar. * * * De volta ao presente, Carmelino lembrou que estavam próximos de um feriado, comemorado no início da sema- na. Como não era dia santo e as obrigações com os estudos estavam cumpridas, decidiu que ia procurar a mulher. A semana transcorreu relativamente calma. As ativida- des não foram diferentes do que estava acostumado: a ro- tineira série de orações e textos sagrados e filosóficos. Por diversas vezes se perguntou se aqueles autores sabiam realmente sobre o que escreviam ou se apenas colocavam no papel suposições nas quais as pessoas acreditavam ce- gamente. Apesar da tranquilidade, Carmelino estava em conflito interno. A ideia de visitar uma desconhecida, anos depois, sem sequer saber direito com que propósito o faria, era
  • 62. 62 assustadora. No tempo de uma semana encorajou-se e de- sistiu de ir infinitas vezes. Quis o acaso que Carmelino recebesse a recomendação de participar de uma missa na igreja do centro da cidade, a última que seria celebrada antes do feriado, a oportuni- dade perfeita para a execução de sua fuga.
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  • 64.
  • 65. 65 Fazia apenas vinte e cinco dias que os pouso-alegrenses haviam comemorado a chegada de 1919 quando Carme- lino e Georgina tornaram-se um só, perante a lei de Deus. O casamento foi celebrado em Pouso Alegre e, logo depois, foram viver em Borda da Mata, local em que ele tinha nas- cido e crescido, antes de vir para o seminário. A união dos dois jovens não teve nenhum empecilho da família, embora os pais da noiva não fossem complacentes com a ideia de o genro manter contato com o grupo que praticava a doutrina espírita. Mas como Carmelino nunca demonstrou nenhuma mudança em seu comportamento, não impediram o enlace. Os pais de Georgina também eram imigrantes italianos, Preconceito e revolução
  • 66. 66 vindos da Toscana, outra região do país sul europeu e, en- quanto ela havia herdado o temperamento forte daquele povo, na maneira de expressar com gestos, não economi- zando verbos de escárnio contra desordeiros e não levan- do desaforo para casa, Carmelino era o oposto. A voz grave e o andar firme eram uma verdadeira más- cara do homem calmo, complacente, atencioso e, em cujo rosto, o sorriso só desaparecia para dar lugar aos assobios com os quais saudava familiares e amigos, a todo o mo- mento. Depois que abandonou os estudos para se tornar um sacerdote, poucos meses antes de se casar, Carmelino ain- da recordava como havia sido difícil a vida no seminário. Às vezes, quando ficava sozinho, lembrava os inúmeros momentos em que sofreu calado, por falta de informação e por medo do que pudessem pensar. Seria eternamente grato à família que o ofereceu auxílio e apresentou um ca- minho para compreender o que se passava consigo. Ago- ra, seus dons não o preocupavam, nem afligiam, apenas contribuíam para que pudesse amar e ajudar ao próximo. Era engraçado pensar que continuava sendo um homem de Deus, mas sem a batina. Mesmo fora do catolicismo, Carmelino manteve uma amizade bastante próxima de ex-colegas de seminário. Embora as conversas que tinham não passassem de sin- gelos cumprimentos corriqueiros e uma troca de palavras
  • 67. 67 previsíveis, dava para perceber como havia um vínculo que os mantinha unidos. Talvez fosse a fé, as dificuldades divididas na escola de padres, ou então, apenas o respeito que devotavam um pelo outro. Mas esse contato era vela- do, quase às escondidas, sobretudo depois que se tornou público seu envolvimento com o grupo de espíritas na ci- dade que, toda vez, ao ser citado, vinha acompanhado dos piores adjetivos. O preconceito que rondava a sociedade do início do sé- culo XX estava alvoroçado. Quase três décadas já haviam se passado da assinatura da Lei Áurea e os negros ainda eram eternos escravos do preconceito, vivendo à margem dos direitos e separados do resto do mundo, como se fos- sem a razão dos males que qualquer um enfrentasse. Não era diferente na religião. Com o monopólio de fiéis, a Igreja Católica tinha tanta força como um poder cons- tituído. Com isso, qualquer grupo que se mostrasse insa- tisfeito com os dogmas que ela pregava era impedido de frequentar não apenas os seus domínios, mas quase que toda a sociedade. Quando começou a estudar sobre a doutrina espírita, Carmelino passou a entender a origem dos fenômenos que o acometiam desde a infância. As dúvidas, inseguran- ças e medos foram sanados a cada página lida e refletida. Além do material elaborado por Allan Kardec, ele nunca deixava de lado seu livro favorito, que aprendeu a gostar
  • 68. 68 desde o seminário: a Bíblia. Companheira constante, ela era até motivo de discussão entre Carmelino e a esposa, sobretudo quando ele a encontrava lendo alguma revista de fotonovela. - Vá ler o Evangelho, mulher – reclamava. * * * O preconceito contra raça ou religião não era o úni- co mal que assombrava o mundo naquela época. Depois de terem acompanhado os horrores da Primeira Guerra Mundial, os brasileiros viam seu país sendo destroçado, de região em região, por grupos que lutavam contra o go- verno, por salários e condições de trabalho melhores ou por autonomia em suas decisões políticas. Foi numa dessas batalhas, em 1932, que Carmelino Massafera marcou a vida de dezenas de pessoas. O país assistia São Paulo rebelar-se contra o governo da época, no episódio que ficou conhecido como a Revolução Cons- titucionalista. A insatisfação dos revolucionários era com o governo provisório do presidente Getúlio Vargas. Eles também rei- vindicavam uma constituição. Os combates avançaram os limites do estado paulista e chegaram até Pouso Alegre. Em Borda da Mata, Carmelino arriscava-se ao ajudar fe- ridos.
  • 69. 69
  • 70. 70 - Têm crianças, feridas, ensanguentadas. Não posso fi- car sem fazer nada – era o que dizia, toda vez que chegava em casa com algum novo ferido para que a mulher e as filhas ajudassem a tratar. Em meio à guerra, Carmelino não escolheu um lado para lutar, foi em defesa dos dois. Mesmo correndo sérios riscos de ser pego, torturado ou morto, ele não deixou de se arriscar e contribuir como podia para mostrar que, em meio ao ódio, ainda havia esperança de paz. Dona Georgina não se queixava pelo trabalho de dar banho e cuidar de machucados e hematomas profundos de homens e meninos que, às vezes, apareciam até mes- mo mutilados. Sua maior preocupação era que o marido pudesse ser acusado de algum envolvimento com o grupo revoltante e detido pelos militares. Mas no lugar do governo vir à procura de Carmelino Massafera, quem veio a seu encontro foi outra figura que se tornou um aliado importante em todas as ações dele.
  • 71.
  • 72.
  • 73. 73 Depois de colocar um filho no mundo, os pais passam a ter uma responsabilidade eterna. É preciso ensinar a falar, a comer, a andar, a comportar-se. O novo membro da fa- mília necessita, sobretudo, de proteção e carinho. Os pais também são responsáveis por transmitir os valores e as tradições. Apesar de terem vindo como imigrantes da Itália, a crença religiosa dos Massafera não era diferente da maio- ria da população brasileira. Os fiéis católicos cultuavam a Deus participando das missas e celebrações na igreja e seguiam, alguns à risca, outros nem tanto, os dez manda- mentos e o que mais o clero e a Bíblia pedissem. Mas, diferente da religião dominante, um grupo se Quatro de fevereiro
  • 74. 74 destacava por sua peculiar maneira de entender a vida, a morte e a relação do humano com o divino. Formado por pessoas do comércio, da música e alguns poucos intelectu- ais, essas pessoas estudavam a obra escrita por Hippolyte Léon Denizard Rivail. O pedagogo francês interessou-se pelo fenômeno das mesas girantes que se alastrava como chamas acaloradas por toda a Europa. A possibilidade de contato com pesso- as que já haviam deixado de habitar a terra, a ciência e a crença por trás disso fascinaram o estudioso. Não demo- rou muito para que ele começasse a se debruçar sobre o assunto e, com o pseudônimo de Allan Kardec, publicou uma série de cinco livros e passou a ser conhecido como o Codificador da Doutrina Espírita. Os ensinamentos pregados pelo espiritismo foram tão aceitos quanto os negros na sociedade, logo após a abo- lição da escravatura. Os rumores sobre o que diziam e o que praticavam as pessoas que seguiam a doutrina eram abafados pela Igreja Católica, que usava de seu periódico oficial para combater tudo o que incitasse aos conceitos espíritas. Era no jornal Semana Religiosa que os padres reforça- vam todos os conselhos que faziam questão de enfatizar nas missas e celebrações. Ocupando manchetes inteiras ou pequenas notas de página, sempre havia um texto referindo-se ao espiritismo como loucura ou brincadeira
  • 75. 75 com consequências desagradáveis. A Igreja interferia até mesmo no que as pessoas viam na televisão ou cinema, in- dicando filmes que não deveriam ser vistos por católicos. Mesmo com toda a repressão, as sessões espíritas eram realizadas normalmente, ainda que quase às escondidas. A curiosidade das pessoas acabou atraindo mais gente para a doutrina, do que as proibições da Igreja afastavam. Mas, diferente dos curiosos, Carmelino Massafera pro- curou o espiritismo como forma de libertação ou redesco- berta de si. O local onde se reunia com o grupo ficava numa rua no centro da cidade. Como o preconceito estava impregnado no ar, os encontros eram quase secretos e falar sobre es- piritismo na rua era como infringir os dez mandamentos de uma só vez. A cada novo encontro, Carmelino compreendia melhor os fenômenos incomuns que ocorriam com ele. Começava a encontrar soluções para os seus problemas espirituais. Enfim, conseguia entender o que se passava dentro de si. Com a dedicação à leitura e a assiduidade nas sessões que o grupo realizava, se tornou um membro respeitado do Centro Espírita Amor e Humildade, onde chegou a ser presidente por mais de uma vez consecutiva. Enquanto frequentador do centro, Carmelino desen- volveu uma sensibilidade tão apurada que, de ajudante nas sessões a líder espiritual foram apenas poucos meses.
  • 76. 76 Além do dom natural que ficava evidente a cada pas- se2 realizado por ele, Carmelino ainda tinha uma forma de falar grave, mas calmo e um ar tão tranquilizador que as pessoas passaram a procurá-lo até mesmo fora do cen- tro, muitas delas, às vezes, apenas para conversar ou pedir conselhos. Quem conhecia Carmelino, o queria bem. Além dos ne- tos, que passavam a maior parte de suas tardes na com- panhia do avô, outras crianças também o faziam, como João Antônio Reis. Conhecido por Nenê, o menino passou sua infância rodeado dos Massafera e, depois de adulto, encheu-se de orgulho ao conceder entrevista para uma reportagem que falou sobre Carmelino. “Todos queriam bem a Carmelino. Eu era menino, mas gostava de procurá- -lo e me sentia muito bem ao lado dele”. Essas foram as palavras de Nenê que ficaram registradas no periódico. Além dos amigos de espiritismo, Carmelino passou a receber uma ajuda especial, que o auxiliou em diversos momentos de dúvida. As lembranças de como o índio Ubi- ratã entrou em sua vida partiram com ele, quando deixou de viver na Terra, talvez porque Carmelino achasse desne- 2 Define-se como uma espécie de transfusão de energias espirituais, que são transferidas do passista para quem recebe o passe, tanto mais quanto mais este esteja numa situação de receptividade. E tudo isso através da imposição das mãos, como fazia Jesus.
  • 77. 77 cessário que todos soubessem de um detalhe tão particu- lar de sua vida espiritual, ou ainda, porque tenha confiado suas histórias a pessoas que guardaram tão bem que até se esqueceram. Mais que um mentor, Ubiratã foi responsável por auxi- liar Carmelino a traçar sua própria vida, quando revelou a ele o quatro de fevereiro de 1974 como o dia em que deixaria de habitar o mundo material. Assim como Em- manuel, o guia do mais célebre médium brasileiro, Chico Xavier, o índio Ubiratã também contribuiu com Carmelino durante toda sua jornada terrena. Aquela revelação o pegou de surpresa. Antes vivia uma vida regada de amor e carinho que devotava a Deus, à fa- mília e amigos, trabalhava para manter a casa, buscava ajudar, como podia, todos que o procurassem. A humilda- de e a doação que a doutrina pregava eram princípios que nunca deixava de lado, mas depois da revelação, era como se seu tempo estivesse mais limitado do que o de qualquer pessoa. Carmelino só encontrou sentido para prosseguir quan- do percebeu o quanto era importante para as pessoas a seu redor. Cada sorriso de agradecimento que recebia era como se ganhasse algumas horas a mais de vida. * * *
  • 78. 78 Pouso Alegre começava a dar os primeiros passos para se tornar uma cidade referência no sul do estado. A região privilegiada, com passagem obrigatória para o eixo Belo Horizonte – São Paulo, fez o município atrair investimen- tos importantes. O crescimento era proporcional. Aumen- tavam a população, as empresas, as riquezas, mas também a pobreza. Preocupado em auxiliar os mais necessitados, Carmeli- no chegou a fazer sua casa de albergue, acolhendo pessoas que estivessem passando por dificuldades, até que resol- vessem seus problemas e voltassem a ter condições de an- dar com as próprias pernas. Quando se tornou inviável levar moradores temporá- rios para dividir seu teto, Carmelino engajou-se em cam- panhas para angariar fundos. Junto dele, outros colegas espíritas percorriam ruas e ruas pedindo donativos com os quais montavam cestas básicas e entregavam para fa- mílias carentes. Esta peregrinação, em busca de alimentos para doar, fazia as pessoas se lembrarem da época em que Carmelino vendia tecidos. Se antes ele ia de porta em por- ta para conseguir o próprio sustento, agora ele refazia os mesmos caminhos para ajudar o próximo. Como já era conhecido pelo período em que foi mascate e por pedir doações para as cestas básicas, não demorou para que a fama do Carmelino médium também se espa- lhasse. Com poucos recursos em habitação e um desen-
  • 79. 79 volvimento longe de se tornar emergente, as cidadezinhas daquela época possuíam, em sua maioria, um sistema de comunicação tão eficaz que faria concorrência acirrada com qualquer empresa avançada de telecomunicações: a língua do povo. As conversas na beira da rua, nos portões ou entre os muros e cercas que separavam as casas, faziam as notí- cias circularem mais rápido que os poucos periódicos que existiam à época. Foi assim que Carmelino Massafera ficou conhecido pelos dons de mediunidade. Mas, o preconcei- to que rondava os praticantes da doutrina fazia com que muitas pessoas o procurassem às escondidas. Mesmo vi- vendo sua crença sem qualquer segredo, Carmelino aca- bava auxiliando pessoas com discrição, para que elas não se complicassem com a família ou com suas próprias cren- ças. Como foi o caso de uma família tradicional de Pouso Alegre. Um homem muito educado começou a ter feridas pelo corpo, vomitar e xingar. Os parentes, desesperados pela situação em que ele se encontrava e depois de terem insistido para que procurassem um benzedeiro, por fim, resolveram chamar por Carmelino. Quando havia algum problema que pensavam ser de origem espiritual, ele era a pessoa em quem confiavam ter a solução. A família foi contra seus próprios preconceitos e os impedimentos da Igreja.
  • 80. 80 Ao chegar na casa da família, Carmelino começou os trabalhos rezando a Prece de Cáritas. Escondida atrás da porta, Elza, sobrinha do homem, ouviu a risada fazer coro com a oração, a voz só não era mais assustadora do que a aparência dele. O rosto estava coberto de feridas; no olhar, apesar de estar vidrado, era possível ler um pedido de so- corro. Quando Carmelino terminou sua oração não teve dúvi- das: espíritos parasitas e opressores haviam tomado con- ta do corpo do homem e só um exorcismo poderia salvá- -lo. Com a permissão dos familiares que ali estavam, ele invocou seu guia e juntos conseguiram expulsar do corpo do homem todo o mal que o possuía. O trabalho não foi fácil. Os espíritos eram fortes, riam e zombavam de Carmelino, lembravam-no de episódios tristes da vida dele, na tentativa de enfraquecê-lo e impe- dir que ele obtivesse sucesso. No dia seguinte, as lembranças de tudo haviam presen- ciado era a única coisa que restou da cena e o homem es- tava normal. Elza assistiu toda a ação de Carmelino e nem podia imaginar que ele era o avô daquele que, anos mais tarde, seria seu marido. Os mais céticos desacreditavam que um homem que se mostrava tão sábio e correto como ele pudesse estar envolvido com este tipo de atividade. Mas, na falta de cora- gem para questioná-lo, continuavam agindo como se nada
  • 81. 81
  • 82. 82 estivesse fora do normal. Porém, Carmelino não tinha receio de agir conforme o que a doutrina ensinava, tam- pouco tinha vergonha ou medo de falar sobre espiritismo com qualquer pessoa. A partir do momento em que perce- beram que a doutrina era fundamentada muito mais em princípios de caridade, a intolerância foi cedendo espaço à aceitação. Quando Carmelino se tornou conhecido, as atividades no Centro Espírita Amor e Humildade começaram a se intensificar. Até mesmo pessoas de cidades vizinhas apa- reciam nas sessões para falar com ele e, quando tinham algum problema, não hesitavam em pedir para que ele fos- se visitá-las, independente do dia ou horário que solicitas- sem, ele sempre estava disponível. Foi assim que ampliou seu círculo de amigos em Santa Rita do Sapucaí. Para viajar, contava com os serviços da Rede Mineira de Viação. Mais tarde, Carmelino ganhou o apoio do Dito Brito e Juarez, dois amigos que possuíam automóveis e que passaram a se sentir verdadeiros discípulos de um homem que viajava pregando o evangelho, a humildade e o temor a Deus.
  • 83.
  • 84.
  • 85. 85 Depois que os horrores da Revolução Constitucionalista passaram, as lembranças da guerra ainda transformavam muitas noites de sono em verdadeiros pesadelos épicos, em que homens fardados lutavam sem cessar, muitas ve- zes até a morte. O pior não era dividir as trincheiras com corpos inertes, mas sim ocupar o mesmo espaço arenoso e íngreme com verdadeiros cadáveres em vida. Com isso, não demorou muito para que Carmelino to- masse a decisão de voltar para Pouso Alegre. Os amigos que conquistou por lá não tardaram a se manifestar e, logo que retornou, já havia um emprego e uma casa à sua espe- ra. Pela amizade que teve com o então prefeito da cidade, Tuany Toledo, Carmelino foi convidado para trabalhar na Vá com Deus
  • 86. 86 bomba de energia elétrica. O serviço, apesar de parecer simples, tomava a maior parte de seu dia. Era preciso cuidar para que a bomba fun- cionasse corretamente. Ela consistia em um mecanismo engenhoso no qual o movimento da água gerava energia elétrica suficiente para abastecer a maior parte da cidade. Uma distração e Carmelino poderia sofrer algum acidente. Foi o que aconteceu certa manhã de trabalho, enquanto ele manipulava as alavancas e fiações da bomba. Distraiu- -se por alguns segundos e acabou levando um choque elé- trico. De imediato, nada aconteceu com a saúde dele, mas os impactos daquela corrente de energia percorrendo seu corpo seriam sentidos mais tarde. A rotina na casa dos Massafera era bem delimitada. Dona Georgina tinha a ajuda dos filhos para manter os cô- modos em ordem. Tão exigente ela era que passava quase o dia inteiro com vassoura e espanador na mão, prontos para serem usados, ainda que nada estivesse fora do lugar. Hercília, a filha mais velha, era quem se encarregava de ficar com os irmãos. A menina cuidava dos outros sem reclamar muito, mas detestava ser responsabilizada pelas artes que os pequenos aprontavam. Já Carmelino era fiel às suas orações e ao trabalho. Le- vantava bem cedo e a primeira ação do dia era prostrar-se de joelhos aos pés da cama e conversar com Deus. A admi- ração pela Bíblia, ainda no seminário, e o conhecimento
  • 87. 87 trazido pelos amigos da doutrina só fizeram aumentar sua devoção por Àquele que considerava o grande responsá- vel pelo mistério da vida e do universo. Quando os joelhos tocavam o solo e as mãos impu- nham-se para rezar, a voz que falava era a do coração. Mais que um momento de agradecer, era o tempo que tinha para refletir sobre a vida, ajustar os sentimentos, pensar nas tarefas inacabadas, conhecer mais ao Pai e a si. Tão importantes eram esses momentos que os tinha, categori- camente, três vezes ao dia. Dai-nos a força de ajudar o progresso a fim de subirmos até Vós. Dai-nos a caridade pura. Dai-nos a fé e a razão. Dai-nos a simplicidade que fará de nossas almas Um espelho onde se refletirá a Vossa santa e misericordiosa imagem. Às vezes, esses eram alguns dos versos que o ar fur- tava de sua prece e carregava por toda a casa. A calma e a paz que sua voz transmitia pronunciando-as poderiam ser capazes de aquietar grandes preocupações. Carmelino parecia emanar uma energia positiva por onde quer que passasse, era o que os amigos diziam. Talvez por isso, vez ou outra, sua casa ficava ainda mais cheia, pois, além da
  • 88. 88 família, muitos conhecidos o visitavam com frequência, para jogar conversa fora ou simplesmente ouvir Carmeli- no falar sobre a vida e o evangelho, conhecimentos que ele aprendeu com o tempo e adorava compartilhar com quem pudesse. Só depois de renovada sua fé é que o seu dia realmente começava. Tomava um café da manhã rápido e partia para o trabalho. Mesmo morando numa parte da cidade que era praticamente rural, Carmelino vestia-se com certa forma- lidade. As roupas de domingo e as que usava durante toda a semana não tinham muita diferença ou novidade. Era uma calça de linho, azul, de preferência, ou preta, uma ca- misa versátil o bastante para que pudesse usá-la no inver- no ou verão e seus sapatos. Se havia um hábito que ele não tinha era o de andar descalço; a ideia de que a sola dos pés tocasse o chão mais tempo que o necessário o repugnava. Ele só mudou um pouco o modo de vestir quando co- meçou a cultivar arroz próximo à sua casa. Como morava perto do trabalho e havia um espaço onde ele percebeu ser possível plantar, não pensou duas vezes em iniciar o plantio do cereal. O que colhia era o suficiente para suprir as necessidades de casa. Toda a parte que ainda sobrava ele distribuía para os irmãos e conhecidos. Carmelino não pensava duas vezes antes de dividir. Uma das maiores ale- grias de sua vida era contribuir com o que precisassem. Além de alimentos, Carmelino também se doava.
  • 89. 89 Assim transcorriam as semanas da família, entre o tra- balho, a plantação, as conversas entre amigos, as orações e as noites em que dormiam cedo porque estavam cansa- dos, ou mesmo pela falta de outra atividade que pudesse mantê-los distraídos por um tempo maior. Era apenas nos finais de semana e dias de folga que a rotina saía um pouco do convencional. Carmelino pegava esposa e filhos pelos braços e os levavam para uma ver- dadeira aventura: subiam montes, se espremiam entre cercas, desviando de poças de lama e valas. Com um facão numa das mãos e um embornal nos ombros, eles passa- vam quase todo o dia à procura de plantas medicinais. Ele conhecia uma infinidade delas e sabia identificá-las pela forma, cor e cheiro. As plantas medicinais que colhia serviam para o prepa- ro de chás e para Carmelino entregar às mães de crianças que ele benzia, para que elas também preparassem a bebi- da, ou então, para banhos. Com certeza, Carmelino ficava bastante atento aos fi- lhos para que não colhessem qualquer tipo de mato. Afinal de contas, nem tudo o que cresce na terra faz bem, a mes- ma natureza que oferece tanto alimento, também coloca à disposição coisas que podem levar à enfermidade. Carme- lino sabia muito bem disso. O mundo das plantas era como o mundo do ser humano, cheio de pessoas da melhor e pior espécie, há aqueles que ajudam, ouvem, curam, mas
  • 90. 90 também os que atrapalham, ferem, matam. * * * Não demorou para que uma companhia tomasse para si o trabalho de iluminar Pouso Alegre, principalmente, porque a energia elétrica vinda da bomba já não era sufi- ciente para fornecer a demanda de luz que a cidade come- çava a precisar. Quando isso aconteceu, a rotina dos Massafera mudou de endereço e sofreu algumas modificações. Carmelino e Georgina já eram chamados de vô e vó por crianças que nasceram após o casamento dos filhos mais velhos, mas que continuaram a viver com os pais por algum tempo. Das proximidades da bomba, Carmelino foi morar com a família numa chácara. O local só formaria um bairro anos mais tarde, resultado do crescimento da cidade, e levaria o nome de Jardim Yara. A região era uma imensa área verde. À frente, um quin- tal de terra batida servia como parque de diversões para as crianças travessas. Nos fundos, uma mina d’água jorra- va o líquido cristalino direto da fonte. A casa deles era a única moradia naquelas bandas. O aspecto negativo da chácara ficava por conta das cheias em época de chuva intensa. A proximidade com áreas alagáveis despertava um certo receio na família, so-
  • 91. 91 bretudo entre os meses de dezembro e fevereiro, quando as águas do verão apareciam. Enquanto morava próximo a seu antigo trabalho, Car- melino nunca ficava apenas com a família em casa. Os amigos iam visitá-lo para conversar, pedir conselhos e até mesmo alguma ajuda. Mas, após a mudança, a distância que as pessoas teriam de percorrer para chegar até ele, também fez com que as constantes visitas que recebia ti- vessem uma queda considerável. Nessa época, Carmelino já era bastante conhecido por seus dons. O preconceito em torno do espiritismo conti- nuava presente, mas os amigos e conhecidos não acredita- vam que ele seria capaz de se envolver em atividades que fossem fazer mal a qualquer pessoa. O problema de enchentes no período chuvoso, a falta que as visitas dos amigos faziam, o desejo de continuar ajudando as pessoas com seu dom e o crescimento da fa- mília fizeram com que Carmelino mudasse mais uma vez de endereço. Eles foram para o centro da cidade, na rua que, mais tarde, levaria o nome de Coronel José Inácio. Na nova casa, os netos que nasceram puderam ter um amplo espaço para brincar, dona Georgina pôde cultivar suas plantas e ele pôde voltar a se alegrar com os amigos o vi- sitando. Quando souberam que Carmelino estava de casa nova e de acesso mais fácil que a anterior, voltaram a pro- curar pela ajuda dele com mais frequência.
  • 92. 92 Carmelino percebia que, mesmo com Pouso Alegre em vias de um notável crescimento, com o cenário urbano em expansão, tomando conta de todas as regiões, sua vida pa- recia sempre levá-lo para locais onde podia manter con- tato com a natureza e ficava extremamente satisfeito com isso. Em sua nova residência não foi diferente. Como dona Georgina sempre gostou de cultivar plantas, a varanda da casa ficava repleta de flores. Ela ouvia o marido brincar, de vez em quando, que estava ansioso, à espera do dia em que aparecesse alguma onça ou outro animal silvestre para habitar aquela verdadeira selva. Dentro de casa, a mesa da copa era como a do refeitório de uma corporação de militares: extensa, para comportar toda a família, que só crescia. Carmelino teve doze filhos e os netos, ele parou de contar. Além dos parentes, ele che- gou a abrigar muitas pessoas que o procuravam por sua ajuda e ficavam hospedados em sua casa por alguns dias, até que resolvessem suas vidas. A panela em cima do fo- gão estava sempre cheia. - Se chegar dez, dez comem - era o que ele dizia com frequência. De frente para a mesa ficava uma janela grande e bem baixa. Qualquer um que estivesse no quintal poderia saber se a comida já estava à mesa ou então espiavam para ver se algum espertinho havia corrido na frente, para comer
  • 93. 93 antes dos outros. O lar dos Massafera vivia cheio. Ele abrigava pessoas, sonhos, esperanças. Carmelino jamais permitiu que a es- posa, os filhos, os netos e os amigos tivessem fome, física ou espiritual. Na tentativa de oferecer uma profissão aos filhos, Car- melino tentou montar uma oficina de conserto de sapatos e fabricação de chinelos. Seu empreendedorismo fez com que o negócio fosse aberto, mas a falta de vontade dos fi- lhos em manter a atividade acabou baixando as portas. Os sapatos de quem dependesse dos filhos Massafera conti- nuariam sem conserto. Para sustentar a casa sempre cheia, Carmelino investiu na venda de tecidos. Viajava de trem até as cidades vizi- nhas e trazia uma grande quantidade de panos de quali- dade inegável. Inicialmente ele construiu uma prateleira em casa para que seus clientes, na maioria mulheres, en- cantadas com a diversidade de cores e tecidos para seus vestidos, pudessem ver, sentir e comprar. Mais tarde, Car- melino passou a inovar e levou os tecidos até seus com- pradores. De porta em porta, trabalhou como mascate: o homem dos tecidos. O jeito de andar, balançando os braços de um lado para outro, o rosto sempre estampado com um sorriso daque- la felicidade serena eram inconfundíveis. Carmelino tinha uma presença tão notável que, às vezes, compravam mes-
  • 94. 94 mo sem precisarem de tecidos. Com a profissão de mascate ele ampliou seu círculo de amizades e construiu um público fiel que sentiu falta quando ele deu por encerrada sua carreira de vendedor de tecidos e migrou para outro ramo. * * * Antes de iniciar as novas atividades, Carmelino teve de lutar para manter-se forte. Poucas vezes o sorriso sumiu do olhar dele. Ligado à família e aos amigos de maneira intensa, sentia-se impotente nos momentos em que não havia ação que fizesse para mudar o destino que estava para ser cumprido. Um dos episódios que mais o marca- ram foi com o filho que levou seu nome. Quando uma mulher fica grávida, o instinto materno toma conta dela. O desejo de proteger a criança vai além dos nove meses em que ela o carrega em seu ventre, nu- trindo-a e preparando o mundo para receber seu mais novo integrante. Ao homem, menos sensível por nature- za, cabe a função de estruturar um lar e todos os recursos que mãe e bebê possam precisar. Uma das únicas emoções mais fortes, que dividem com as esposas, é causada pela dúvida se o bebê será um menino ou menina. Na casa de Carmelino, assim como em outros lares, dar o nome do pai ao filho era uma prática comum. Foi assim
  • 95. 95 que a família Massafera recebeu Carmelino, o filho. Com o instinto empreendedor do pai e um pouco do gênio da mãe, Carmo, como o chamavam em casa, estava com dezessete anos quando se apaixonou por uma meni- na que morava próxima à casa deles, no centro da cidade. Era um amor adolescente, daqueles que faz com que os pensamentos sejam completamente dominados pela pes- soa amada, que as pernas tremam quando se está perto e o estômago se revire com as tais borboletas. Certa tarde, enquanto voltava para a casa, avistou a moça caminhando sozinha na rua. No tempo de um mi- nuto, ensaiou uma conversa, deu alguns passos na direção dela, mas retrocedia. Pensou bem. Ele tinha que criar cora- gem, afinal de contas ela poderia aceitar um convite para que os dois pudessem sair juntos e tomar um sorvete ou apenas sentar na pracinha. Encheu-se de iniciativa e foi. A menina podia apenas ter dito não, mas preferiu fazer com que a negativa fosse acompanhada de uma enxurra- da de palavras que Carmo não estava preparado e sequer precisava ouvir. Do jeito que ela o tratou, era como se ele fosse alguém que ela odiasse e não quisesse ver em sua frente. Decepcionado, voltou para casa com uma decisão to- mada: não ficaria mais em Pouso Alegre. Longe do pai e da mãe, entrou em contato com uns conhecidos dele, que moravam em São Paulo. Já que a menina que o seu coração
  • 96. 96 decidiu amar não o queria por perto, ele ia partir para evi- tar encontrá-la e sofrer todos os dias ao saber que jamais ficariam juntos. Uma noite em que estava no quarto organizando do- cumentos e outros papéis, Carmelino entrou sem bater e sentou-se na cama, ao lado do filho. Ele já sabia o que ia acontecer. Estava claro que o filho pretendia deixá-los. Assim, dispensou qualquer pergunta introdutória e foi di- reto ao assunto. - Sei que quer se mudar, meu filho. Eu não vou me opor, mas sabe muito bem que sua mãe vai fazer de tudo para que você mude de ideia e, mesmo que eu converse com ela e explique a importância de permitir que você siga o desti- no que escolheu, ela não vai aceitar de bom grado. Sem saber o que dizer ao pai, Carmo apenas desviou-se do olhar paterno e voltou a mexer com seus papéis. Car- melino continuou aos pés da cama por alguns minutos, ab- sorvido pela calma com que o filho organizava suas coisas. Naquele momento, ele estava orgulhoso por seu menino estar tão seguro de suas ações. Ele se via um pouco em Carmo. Lembrou da semana que antecedeu sua saída do seminário. Não tinha sido uma decisão fácil abandonar o celibato e correr o risco de magoar toda a família. A vida é como um livro de páginas em branco, em que cada dia se escreve um novo capítulo. Às vezes, como numa história fantástica, o enredo parece conduzir para
  • 97. 97 um final previsível, mas surpreende. Se o filho pretendia começar seu novo capítulo longe de Pouso Alegre, Carme- lino não poderia colocar um ponto final, interrompendo o fluxo do verdadeiro autor e não o fez. Apenas a alguns meses de completar os dezoito anos e sem sequer ter se alistado no serviço militar, Carmelino Massafera, o filho, deixava a família e partia em busca de um novo começo na cidade de São Paulo. A partida não tinha sido fácil. Assim como combinou com o pai, o rapaz só comunicou a mãe quando as passa- gens e a moradia já estavam arrumadas. Dona Georgina chorou e não esperavam outra atitude dela. Apesar de pa- recer durona a maior parte do tempo, o sentimentalismo sempre tomava conta quando o assunto era sua família. Mas Carmelino estava com ela, como sempre esteve. Ele a convenceu de que era necessário permitir que o filho fosse em busca da concretização de seus sonhos, onde quer que estivessem. * * * São Paulo. O céu da cidade grande exibia uma cortina cinza encobrindo o azul original, formada pela fumaça das indústrias e os poluentes dos automóveis, que se multipli- cavam pelas ruas daquela que viria a ser a maior cidade do país.
  • 98. 98 Fazia pouco mais de três meses que Carmo havia mu- dado para lá. Deixou Pouso Alegre, os pais e a menina que poderia ter sido sua namorada, mas não foi, por algum motivo que ele desconhecia. Tinha acordado bem disposto naquela manhã. Ia apro- veitar o ar fresco para sair de casa e procurar um empre- go, pois suas economias não durariam por muito tempo e não teria outra forma de se manter na cidade se não fosse trabalhando. Antes de iniciar a jornada em busca dos anúncios de “precisa-se”, permitiu-se parar numa padaria e comprar algo para comer. Antes de pedir um café, notou que havia uma movimentação na rua, perto de onde estava. As pes- soas, curiosas, começavam a se aglomerar em pequenos grupos e o burburinho que saía de todos eles, juntos, im- possibilitava que ele compreendesse o que estava aconte- cendo. Desistiu de tentar entender, pediu seu café, foi até o ou- tro lado do balcão com a ficha presa entre os dedos. Ao estender a mão para pegar a bebida, ouviu um barulho ensurdecedor aproximando-se de seus ouvidos, como se um foguete tivesse estourado ao seu lado. A xícara caiu de sua mão, partindo-se em mil pedaços de porcelana branca e ensopando de café o chão no qual, segundos depois, ja- zeria seu corpo, inerte, com uma bala atravessada em sua cabeça. Era o fim de um capítulo que mal havia começado.
  • 99. 99 A aglomeração nas ruas da cidade comentava sobre um assalto cometido há pouco numa localidade próxima. A polícia perseguia os bandidos e uma troca de tiros entre os militares e os infratores não demorou a começar. As ba- las atingiram muros de casas, carros e o filho de Carmelino Massafera, que comprava seu café naquela trágica manhã. * * * - Ele cumpriu seu destino. Carmelino repetia isso a todo o momento. Talvez qui- sesse amenizar a dor que a mulher sentia ou quisesse con- vencer a si de que aquela era a única razão por perder seu filho, aquele em quem havia dado seu nome. Foi um dos episódios de sua vida em que ele mais quis se agarrar aos ensinamentos da doutrina, como forma de superar a dor. Afinal de contas, mesmo para ele, que acreditava na continuação da vida após a morte do corpo físico, não era fácil saber que do filho só restariam as lem- branças. * * * A cidade de Pouso Alegre celebrou seu primeiro cen- tenário nos anos finais da década de 40. Menos de trinta mil habitantes viviam na sede, enquanto outras centenas
  • 100. 100 moravam em Congonhal e Estiva, na época, ainda perten- centes ao município. São Geraldo, Faisqueira e São João eram os três bairros principais. Apesar de urbanizadas, essas regiões dividiam espaço entre as atividades do comércio, das poucas deze- nas de indústrias que começavam a surgir e da agricultura e pecuária, ainda muito presentes. Carmelino ouviu de alguns amigos que a suinocultura era a atividade do momento. Os porcos eram animais fá- ceis de criar e deles praticamente tudo se aproveitava e a preços muito bons no mercado. Como vender tecidos rendia muito mais amizades do que riqueza em espécie, ele decidiu consultar mais uma pessoa sobre o assunto. Não que tivesse dúvidas sobre o que queria, porque, quando colocava uma ideia na cabeça, só desistia ao vê-la concretizada. Procurou Antônio, seu irmão. Da família, era com quem Carmelino mantinha mais contato. Os dois sempre esta- vam perto um do outro, dividindo horas de lazer. Ao con- trário das crises e brigas entre irmãos, os dois foram a personificação da amizade que pode ser construída entre pessoas do mesmo sangue. Antônio trabalhou, por muitos anos, no Palácio Episco- pal de Pouso Alegre, cuidando do lar dos bispos e arcebis- pos da cidade. Ele, assim como toda a família, era de uma fé católica fervorosa, mas não se opôs ao caminho que o
  • 101. 101
  • 102. 102 irmão decidiu tomar, apesar de sempre ouvir dos homens da igreja que o tal kardecismo estava tentando tomar con- ta da cidade. Eles também procuravam levar as pessoas a acreditarem que estudar o espiritismo era errado e fazia mal. Quando procurou por Antônio, Carmelino já estava muito tentado a criar porcos. Como o irmão também gos- tou da ideia, a decisão estava mais que tomada. No entan- to, o único impedimento era o lugar. A casa onde morava não oferecia suporte nenhum para que pudesse colocar uma meia dúzia de animais no quintal. Entre conversas e acertos, Carmelino conseguiu trocar seu imóvel por uma casa no bairro São Geraldo, na mesma rua e ao lado dos dois filhos que já moravam lá. Era um novo capítulo que ia começar para os Massafera.
  • 103.
  • 104.
  • 105. 105 A decisão Quando decidiu desenvolver sua mediunidade, Carmelino mostrou-se muito dedicado e fiel a tudo que o ensinavam. Uma das orientações que recebeu, logo no início, era a de manter-se afastado das atividades espíritas quando não estivesse no centro. A medida era importante para que Carmelino não fos- se enganado por sua imaginação, tampouco caísse em obsessão pelos fenômenos, característica que sucumbiu grandes potenciais espíritas a uma vida desregrada, longe dos princípios da humildade e que acabaram por usufruir de seus dons para prejudicar outras pessoas e até mesmo para fins comerciais. O preconceito que rondava as práti- cas também fazia com que muitas das atividades tivessem
  • 106. 106 de ser veladas. Mesmo sem realizar procedimentos como o passe mag- nético fora das sessões espíritas, Carmelino não deixou de praticar a caridade, outro conceito prioritário da doutrina que só começou a ser praticado com maior intensidade depois que ele se tornou membro do centro. Os frequen- tadores antigos não ousavam organizar nenhum tipo de ação em prol de pessoas necessitadas, pois tinham medo ou vergonha da rejeição. Mas Carmelino não se importava com os “nãos” que poderia ouvir, ia de porta em porta con- quistando doações. Por sua dedicação, pela rapidez com que ia absorvendo todos os conceitos pregados pela doutrina, pela sensibi- lidade que lhe era aflorada e por sua coragem e ousadia, não demorou muito para que Carmelino se tornasse um dos líderes espirituais do centro. Fora das sessões e dos encontros semanais que tinha junto a seus colegas de doutrina, Carmelino dividia seu tempo entre as atividades de trabalho, as orações e a uma leitura minuciosa dos escritos de Kardec. Por vezes, ele parava em determinado trecho e deixava o olhar absorver o vazio de seu quarto, da sala ou de qualquer outro cômo- do onde estivesse livre o bastante para ler e refletir, sem interrupções. Numa determinada noite, Carmelino se preparava para dormir. Quando as cortinas balançavam, dava para ver
  • 107. 107 a luz bruxuleante dos poucos postes que iluminavam as ruas lá fora e uma brisa fria esfriava o quarto. Sem cerimônia, ele ajoelhou-se, posicionou as mãos, como sempre fazia, enquanto a boca mexia-se sucinta- mente revelando a oração. Enquanto repetia os versos que tão bem conhecia, Carmelino deteve-se em lembranças. No dia em que resolveu deixar o seminário, quase dois anos depois de iniciar os estudos para tornar-se um padre, ele procurou a mulher que havia dado a ele o papel com um endereço. Ele lembrava com certa amargura desse mo- mento, pois havia mentido para os padres, prática que ele nunca havia feito, mas, naquele dia tinha sido necessário. A rua que a caligrafia da mulher indicava o levou até o centro de Pouso Alegre, a uma via estreita, como quase todas as outras. A formação daquele lugar era, no mínimo, curiosa: uma casa, mato, casa e assim seguia até a rua ter- minar com um barzinho na esquina. Carmelino estava tão nervoso que quase não notou o número pregado numa parede, idêntico àquele escrito no papel que trazia consigo. Ele estava eufórico, com um pou- co de medo, afinal de contas, não sabia o que iria dizer, nem quem encontraria. Era loucura, pensou. Girou corpo numa meia volta, pronto para retornar ao seminário e confessar sua men- tira para que se livrasse daquela culpa que o castigava a todo segundo.
  • 108. 108 Foi então que a porta se abriu. Antes que Carmelino tivesse tempo de decidir se afun- daria o rosto lá dentro para ver ou se dava continuidade à sua desistência, uma mulher surgiu e, ao vê-lo, deu um sorriso de tamanho contentamento que fez o jovem enru- bescer. Pelo visto, ela ainda se lembrava dele, mesmo que bons pares de meses tivessem passado. - Esperávamos por você, Carmelino. Mesmo que estivesse disposto a ser o mais cordial pos- sível e cumprimentá-la, não conseguiria. Ele tentou dizer algo, mas o som parecia ter esquecido como sair de sua boca. Apenas estendeu à mulher o bilhete que tinha nas mãos e a seguiu, quando ela entrou indicando para que ele fizesse o mesmo. Diferente do que havia pensado minutos antes, a casa era até bastante aconchegante. Uma sala de estar simples, com sofá, uma poltrona e uma mesa de centro dividia es- paço com uma prateleira com algumas fotografias e uma baixela de porcelana, daquelas que só se vê em casa de pessoas de bom poder aquisitivo, ou então que se ganha como presente de casamento. Caminhando mais um pouco, Carmelino reparou num quarto. Supôs que a mulher fosse casada, pois a cama era de casal e embaixo dela havia dois pares de sapato, um deles era masculino. Antes que seus olhos pudessem se deter em qualquer
  • 109. 109 outra coisa que encontrasse pelo caminho, a mulher pe- gou em sua mão e o conduziu para a outra sala. A porta estava fechada e era possível ouvir um burburinho lá de dentro. Quando ela girou a maçaneta, sem nenhuma ceri- mônia, Carmelino viu dois homens e outra mulher, senta- dos em torno de uma mesa redonda. A toalha branca pa- recia emanar a única luz que iluminava o ambiente. Sem janelas, o cômodo estava mergulhado numa penumbra ao mesmo tempo assustadora e enigmática. Um gesto sutil de um dos homens que estava à mesa pedia a Carmelino para se juntar a eles. Ainda com receio, mas curioso, ele tomou uma cadeira, sentou-se e seus olhos, que antes varriam todo o local, como se estivesse analisando cada canto, agora fitavam apenas o chão, fixos. - Não se assuste. Estamos aqui apenas para o ajudar, mas só se você quiser, claro – a mulher aventurou-se a quebrar o silêncio. Carmelino ergueu a cabeça e, apesar de não ter dito nada, sua expressão falava por ele. * * * Levou cerca de uma hora para que todos se apresentas- sem a Carmelino e explicassem o que faziam e o porquê de o terem chamado a se juntar àquele grupo. Pelo que falaram, eles sentiam que Carmelino emanava uma sensi- bilidade e queriam poder ajudá-lo a compreender os fenô-
  • 110. 110 menos que se passavam com ele. Talvez tenha ficado entediado de ouvir tais baboseiras e quisesse tê-los deixado falando sozinhos. Ele até cogi- tou essa possibilidade por um momento: voltaria para o seminário como se nada de anormal tivesse acontecido e faria de seus livros o seu passatempo, como sempre. Mas havia aquelas vozes que não o deixavam em paz e ele tinha certeza de que não era louco, nem tinha esquizofrênico. Às vezes, o som que chegava aos seus ouvidos abafava até a voz de quem estivesse falando do seu lado. Ele nun- ca comentava com ninguém sobre isso, exceto com a mãe, quando criança. Mas quem acreditaria que um rapaz, qua- se na idade adulta, sofresse com vozes que sopravam em seu ouvido ou então falavam como se estivessem dentro dele? Ninguém conseguiria entender. Não era tão simples. Era atormentador. Vozes desesperadas, lamentos, urros. Como se estivessem aprisionados dentro de um sofrimen- to sem fim e usassem dele para gritar ao mundo. Mas por que ele? Antes mesmo que tivesse coragem de fazer qualquer pergunta, as pessoas da mesa começaram a dar explica- ções sobre tudo o que vinha acontecendo com Carmelino desde criança. Foi ali, rodeado de pessoas que nem sequer lembrava o nome, que ele descobriu o que era: um mé-
  • 111. 111 dium. O som daquela palavra ecoou em sua mente por muito tempo. A impressão que tinha de si, a de ser uma aberra- ção, não havia mudado nem um pouco, tinha apenas ga- nhado um nome diferente. Médium. Ele não podia ser um. Ele não queria ser um. Carmelino queria gritar. Sua vontade era soltar a voz, a plenos pulmões, para ter uma explicação, apenas o por- quê ele, entre tantos, tinha de ser condenado a isso. Ele só desejava ser uma pessoa como as outras, com uma vida normal e não um médium, mesmo que ainda não soubesse direito o que isso significava. Mas talvez por vergonha, re- primiu o choro, a raiva e a voz pareceu ficar presa também. Foi então que os anfitriões trouxeram um copo com água para que ele se acalmasse e explicaram que ele não era obrigado a frequentar as reuniões que promoviam, nem a conviver com eles, mas que continuaria a ouvir vo- zes para sempre e que essa não era vontade de um ou de outro, mas uma espécie de missão à qual Carmelino fora designado desde que nasceu. Desenvolver a mediunidade era algo pelo qual ele podia optar, mas sobre a sensibilida- de para os fenômenos espirituais não havia escolha. Lembrar desse dia fazia Carmelino pensar que havia seguido o caminho certo. Ele se recordava que depois que o casal introduziu a ele alguns dos principais conceitos da
  • 112. 112 doutrina espírita, emprestaram-no uns livros em que cada detalhe estaria discriminado minuciosamente. A partir da leitura e reflexão, ele havia se decidido.
  • 113.
  • 114.
  • 115. 115 Depois do centro da cidade, o bairro São Geraldo foi um dos primeiros espaços em que as construções começaram a surgir, esboçando os traços iniciais da Pouso Alegre que, mais tarde, abrigaria prédios, indústrias e se tornaria uma cidade grande em crescimento. As casas, antes distantes umas das outras, foram se multiplicando até que uma pai- sagem essencialmente rural tornou-se uma comunidade urbana. A mudança veio até no nome. Era seis de junho de 1927 quando, por meio de uma resolução, o antigo Aterrado passou a se chamar São Geraldo. A denominação anterior, em vez de extinta, permaneceria em uso por muito tempo, mas não como forma de resgate do antigo nome, mas sim, Roda musical
  • 116. 116 traçando uma imagem pitoresca para denegrir a imagem da comunidade. Desde quando começou a ser povoado, o bairro São Geraldo abrigou, em sua maioria, pessoas de classe mé- dia baixa. Os poucos que se destacaram e conseguiram alguma ascensão acabavam procurando espaços mais nobres da cidade. Quem permanecia na região, escolhia a avenida principal para firmar residência ou comércios. Os moradores mais carentes começaram a ficar escondidos, em segundo plano, atrás dos prédios que anteviam o pro- gresso. Eles moravam no São Geraldo, aterrados aos olhos de quem não conseguia olhar para outra direção senão o topo. Para a Igreja Católica, São Geraldo é o santo padroeiro das mulheres grávidas. As bênçãos conquistadas por in- termédio do mártir também são estendidas para as mães e crianças pequenas. Talvez, o aumento populacional de Pouso Alegre, em franca expansão, tenha sido o motivo da nomeação do bairro. Mais que um bairro, o São Geraldo podia ser considera- do uma grande vila. Com o rio Mandu cortando a região, a porta de entrada da comunidade era uma ponte. Dois filhos de Carmelino Massafera escolheram este bairro para morar, assim que se casaram. O pai, depois que se empolgou em começar com as atividades de suinocul- tura, não hesitou em encaixotar os móveis e mudar mais
  • 117. 117 uma vez. Não foi preciso procurar muito para que encontrasse uma casa ao lado dos filhos, o que, para ele, era motivo de alegria dupla. Primeiro porque gostava de estar sempre perto de toda a família; segundo, porque, caso precisas- se de auxílio na nova atividade, teria mais pessoas para ajudá-lo. A casa de Carmelino ficava na avenida principal do bairro. Talvez a cor branca das paredes externas tenha ir- ritado dona Georgina, que possivelmente passaria horas do dia lamentando ver as manchas de poeira que davam nova cor à sua casa, por conta da rua, àquela época ainda sem calçamento. Na parte da frente, uma pequena varanda era um con- vite perfeito para quem gostava da companhia de Carme- lino. O ar aconchegante da construção era como um ímã que fazia com que os amigos nunca deixassem de passar por ali, principalmente nos fins de tarde, quando se reu- niam para tocar. Além de todos os ramos em que trabalhou, Carmelino era habilidoso com instrumentos musicais. Quando não estava na rotina de serviços ou numa leitura dos evange- lhos, ele passava um tempo ouvindo o rádio. Quem olhasse para ele nesses momentos, veria uma pessoa com olhar vidrado, como que perdido nos próprios pensamentos, mas, assim que a música acabava, Carmelino a reproduzia
  • 118. 118 com maestria em seu violino, no violão ou até mesmo no bandolim, que aprendeu a tocar sozinho. Entre suas canções favoritas, ele preferia o ritmo das Csárdás. Também chamada de czardas, o estilo tem ori- gem húngara e é composto por músicas vivas e alegres, sempre acompanhadas de um conjunto de violinos. Car- melino passava horas e horas ouvindo até mesmo com- positores clássicos como Tchaikowisky, que usava o estilo em suas melodias. Com música, fé e trabalho, a semana na casa de Carme- lino era intensa. Logo que ele acordava pela manhã, fazia sua oração e ia até a cozinha. Do pequeno corredor que dava acesso ao dormitório já podia sentir o cheiro do café fresco que a mulher preparava na cozinha. Movido pela fome, em poucos minutos ele já estava à mesa, com os ta- lheres em riste, aguardando seu desjejum favorito: vira- do de ovo. Apesar de ser um alimento um tanto pesado se comparado ao café da manhã tradicional dos brasilei- ros, Carmelino não abandonava seu hábito de ingerir, logo cedo, um bom prato da refeição tipicamente americana. Depois disso, rumava para os fundos da casa e ia tra- tar dos seus porcos. Cuidar dos animais até que ficassem rechonchudos para vender era a nova diversão e trabalho de Carmelino. A suinocultura tinha sido apresentada por um de seus amigos, que havia acompanhado a saga dele em todos os trabalhos e sabia que era preciso algo mais
  • 119. 119 rentável e fácil. A única dificuldade que teve para cuidar dos animais foi desviar-se dos ataques de limpeza de dona Georgina. Ela sempre procurou manter a casa o mais bem organi- zada que podia, mesmo quando viviam em chão de terra batida. Morando próximos ao centro da cidade, a preocu- pação dela com o asseio do lar redobrava e as porquices dos bichos não contribuíam em nada para que ela ficasse satisfeita. Além da sujeira feita pelo chiqueiro dos porcos, o barro da olaria era outra razão que deixava dona Georgina de cabelos em pé. Acostumado a ter diversas atividades ao mesmo tempo, Carmelino também começou a fabricar ti- jolos. O único jeito de manter a casa sempre pronta para receber os amigos e sustentar a família era possuir quan- tas fontes de renda ele pudesse conseguir. O início da fabricação foi como teste. Ele mesmo busca- va o barro próximo à beira do rio e trazia para os fundos de sua casa numa perua. Mais tarde, quando conseguiu comercializar os tijolos, Carmelino teve que contratar aju- dantes. Os netos também auxiliavam na atividade, desde que recebessem alguma quantia em dinheiro no final do dia, que eles gastavam com brinquedos e guloseimas. * * *