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CRIANCAS

       O Brasil me aparece como o paraíso das crianças.
       Estranha-me o sorriso do garçom de um restaurante luxuoso tragicamente
atrapalhado no serviço por uma turma de meninos correndo entre as mesas. E
também que nenhum cliente pareça se incomodar com o barulho do qual não dava
para suspeitar que estivesse incluído no preço.
       Surpreende-me, durante uma festa em casa, a chegada de mais um casal
convidado, com crianças pequenas implicitamente não convidadas. Aqui é uma
graça. Na Europa, salvo laços de amizade férreos, seria uma imperdoável grosseria.
       Num hotel cinco estrelas é exigido que exista uma sala de jogos eletrônicos
para as crianças e que sejam previstas atividades infantis. Assusta-me a insistência
- pedagogicamente justificada com um requinte de rousseauísmo - sobre a
necessidade do lúdico na aprendizagem. Em algumas das melhores escolas
privadas decorar é considerado tortura. Assombra-me a importância que assume o
programa das crianças na vida cotidiana: os pedidos alimentares de pratos e
bebidas especiais, as saídas, as vindas dos amigos ... O adulto brasileiro parece
constantemente preocupado com o prazer das suas crianças.
       Brevemente: a criança é rei.
       Curioso, tanto mais num país cuja reputação no estrangeiro está
comprometida com legiões de crianças abandonadas na rua.

      Evidentemente toda educação - como Freud já apontou - é reacionária, pois
cada um não educa como foi educado, cada um pretende educar como os seus pais
imaginavam que os pais deles teriam pretendido educar. E, o mesmo valendo para
os avós, se entende que a educação seja sempre fundamentalmente restaurativa de
uma ordem passada, que por sinal nunca existiu.

        Esta constatação, porém, não é uma crítica, pois parece - ou pelo menos me
parece - que a restauração tentada desta ordem passada que nunca existiu é
justamente o que permite ao último chegado de encontrar, nesta ordem, um lugar.
Explico-me: foi-me contado que na infância de meu pai, as crianças, quando
excepcionalmente tomassem as suas refeições na mesa com os adultos,
precisavam ficar em pé, não lhes sendo permitido sentar. Pouco importa que esta
história seja verdadeira ou falsa, de fato presumo hoje que já fosse, para o meu
próprio pai, uma lenda do seu pai criança. Pouco importa também que ela possa
parecer a testemunha de um costume bárbaro. Pouco importa, pois, separando a
criança do adulto, esta lenda e outras similares constituem a mitologia possível de
uma ordem de filiação necessária para a criança. Por exemplo, o que mais pesou na
minha infância, ou seja, a subordinação de qualquer aspiração minha à paixão
incondicional do meu pai para as obras de arte (subordinação que transformou os
domingos e as férias da minha infância em passeatas artísticas e culturais quando
sonhava com piscinas, Beatles, beisebol e quadrinhos), tudo isso não acredito que
tenha sido trauma nenhum. Poderia alegar que devo a um tal aparente abuso de
autoridade paterna o meu gosto ela arte. Mas, bem além disso, acredito que o efeito
e um tal aparente abuso seja a sólida inserção num registro de filiação. O importante
não é tanto poder não nadar, escutar música e jogar beisebol, o importante é dispor
de um lugar a partir do qual poder pelo menos querer nadar etc., quer se possa ou
não. De fato, parece que o preço de um tal lugar - necessário à vida - seja
justamente uma interdição. O que me é proibido, os limites que me são impostos -
como criança é justamente o que me outorga e me permite reconhecer o meu lugar,
o lugar de filho.
        Um dia talvez, mas pode ser que já seja o caso, se concorde em dizer que
quem derrotou os Estados Unidos no Vietnã foi o Dr. Spock. Ou seja, que a
desistência da juventude americana relativamente à guerra no fim dos anos 60 não
foi o efeito de uma propaganda comunista sonhada por um novo McCarthy e aliás
estrangeira aos ideais norte-americanos da época, mas muito mais o efeito de uma
orientação pedagógica permissiva que corroeu as condições da idealidade, jogando
uma ou mais gerações fora da linha de filiação.
        Tanto melhor para o Vietnã, dir-se-á naturalmente e ainda que o Vietnã do Sul
não seja apenas o Vietcong. E, sobretudo, embora se possa pensar que a guerra
teria sido outra se os combatentes norte-americanos não fossem eles mesmos, pela
falta de idealidade que, acredito, parou a guerra, convertidos em sádicos
autorizados.
        Tudo isso para defender a ideia segundo a qual o que há de necessariamente
reacionário numa educação é mesmo o que permite que ela tenha o seu efeito
essencial: constituir uma filiação simbólica.
        Agora, que o Brasil seja o paraíso das crianças não implica necessariamente
que a educação seja um fracasso. Poderia imaginar que milagrosamente aqui se
consiga reconhecer à criança uma cidadania precoce, que frequentemente lhe é
negada na Europa. E que, também milagrosamente, o preço em interditos desta
cidadania, deste lugar reconhecido consiga aqui ser menor. Assisto com emoção
crianças de seis, sete anos encomendar o prato de sua escolha, comprar
mercadorias em lojas, quando sei que o simples ingresso de uma criança, mesmo
acompanhada, numa loja em Paris poderia ser considerado como uma ameaça, ou
então que na mesma loja uma criança sozinha veria negligenciar a sua vez na fila.
Mas a emoção cessa quando ouço uma criança de seis, sete anos convocar
imperiosamente o garçom: "Mooooooço!!" Algo me incomoda, e não sei bem o quê.
Certo, a licença sobre o corpo de uma adulto lembra um passado escravagista, onde
a diferença adulto/criança só podia valer no campo dos homens livres, o escravo
sendo escravo tanto para a criança quanto para o adulto. Mas há algo a mais na
imperiosidade do pedido infantil e na dedicação tanto parental quanto educacional e
geralmente social em responder a este pedido. Curiosamente, acredito que aquilo
que me incomoda deve ter algum laço com o exército de crianças ditas
abandonadas na rua. Pois é estranho, depois de tudo, que a criança seja rei e ao
mesmo tempo dejeto. Não acredito ou mesmo descuido e desconfio, neste caso, das
explicações sociológicas: se a criança dispusesse de um estatuto simbólico
particular, se fosse um sujeito precocemente reconhecido, isso valeria para qualquer
criança. E me interrogo sobre uma majestade cuja alternância com a dejeção
assinala que talvez ela não esteja fundada em uma excelência simbólica.

       Confrontado com uma criminalidade de menores e de menores muito jovens
inédita para mim, acabei estranhando a impunidade que o código reserva ao crime
do menor. Mas estranhei, sobretudo de estranhar, pois não há nisso nada de
especial e não conheço código que preveja uma responsabilidade penal para os
menores. Também me parece insuficiente considerar que se trate de uma reação
"normal", à vista da violência da criminalidade infantil.
       Por exemplo: escuto um dia um relato triste e espantoso que envolve uma
conhecida. Algumas criança de sete, oito anos, numa esquina paulistana, talvez por
ter-lhes sido recusado o troco que pediram, - cortam com uma gilete - aproveitando
o vidro aberto: - a garganta do bebê de poucos meses, na sua cadeirinha ao lado da
mãe. A minha reação indignada explode contra a impunidade, mas ao mesmo tempo
meu horror do crime, por grande que seja, não me parece justificar uma tal posição.
        Se cuidadoso como sempre sou da sociedade de direito, surpreendo-me
protestando para que a punição seja exemplar e sem atenuantes relativos à idade é
que a impunidade dos menores talvez seja aqui no Brasil outra coisa do que um
princípio de direito. A Febem, por exemplo, aparece, pelo menos na lenda popular,
mas também na página de crônica dos cotidianos, como o porto de mar de onde se
entra e sai seguindo os ventos. Tudo acontece como se a sociedade não soubesse,
mais por uma impossibilidade de estrutura do que por uma impotência, reprimir os
menores, as crianças. E quem não sabe reprimir, também não consegue reconhecer
um lugar e uma dignidade simbólicos.
        Confirma-se, dessa forma, a dúvida que o lugar de majestade que a criança
parece ocupar não seja uma excelência simbólica, mas algum tipo de incondicional
exaltação fantasmática da criança. O que aliás explicaria como, quando esta
exaltação fantasmática não a sustenta, a criança seja um simples dejeto.
        É como se, faltando um reconhecimento simbólico, frente à sua impotência a
garantir para cada criança o paraíso, a sociedade deva escolher deixar impunes as
tentativas criminais (de ter acesso ao paraíso) das crianças as quais os pais não
poderiam garantí-Io.
        Mas a questão se desloca: o que é, de onde surge esta aparente
impossibilidade de reprimir, que parece testemunhar um verdadeiro fantasma
relativo à infância?

Clinicando no Brasil, encontrei, é certo, uma quantidade impressionante de
exemplos de promiscuidade doméstica. O acesso das crianças à cama parental é
frequente, até épocas tardias, assim como a extrema tolerância de fobias e enureses
noturnas. A psicologização ajuda por sinal a desaconselhar uma sonora interdição,
que seria salutar. É curioso também como, na gestão do lazer da criança, o gozo
prima: é raro que, quando uma criança descobre que, por exemplo, aprender piano,
inglês, balé, tênis, hipismo, xadrez etc. não cai do céu, ela encontre a injunção
necessária para considerar com interesse o gozo limitado e trabalhoso de uma
aprendizagem. A alternativa parece ser aceita pelo adulto assim como criança a
coloca: ou dá para gozar na hora ou então -: vale a pena.
         ''Le gout de l'effort", literalmente "o gosto pelo esforço", "o prazer da
dificuldade": não parece haver expressão consagrada que possa traduzir esta peça
chave da pedagogia européia, onde o que se trata transmitir é uma espécie de
espírito olímpico permanente; importa participar, não ganhar. Qual o interesse do
"gout de l'effort"? Ele vale como princípio pedagógico num quadro simbólico
claramente organizado ao redor de um impossível interditado: o do corpo materno é
impossível e o gozo que te é permitido é relativo ao exercício dos teus esforços
(vãos) para atingí-Io. E a excelência de uma vida é relativa, à nobreza dos esforços:
ser alguém, ou seja, um filho digno, é se distinguir no esforço, não é alcançar. Por
isso, aliás, na Europa a manifestação aparente do gozo - signos externos de
riqueza, como os define o Estado que os penaliza fiscalmente - ainda não enobrece
o sujeito.
         Mas se o colonizador veio para gozar, não para exceler no exercício da língua
paterna, mas para tentar com ela o acesso a um corpo não interditado, o "goút de
l'effort" aqui não tem valor. Só vale gozar.
Talvez o paraíso das crianças testemunhe um cuidado do colonizador, triste e
decepcionado: o gozo que ele veio procurar e que necessariamente não encontrou,
sonha para seus filhos. Na transmissão desta esperança de gozo, o colonizador
desiste como pai. Se ser pai é sustentar um interdito sobre o corpo materno, que de
repente permita à criança se situar e ser reconhecida como filha ou filho, a coisa
parece difícil desde que à criança é delegado nada menos que o fantasma paterno
de um gozo sem limites.

      O projeto de um paraíso para as crianças pode assim virar um inferno, onde -
sem interdito - a criança receberia uma injunção nada irrisória: goza tu, meu filho,
pelo menos tu, é isso que eu quero.

       Responder ao mandamento paterno seria então paradoxalmente burlar a lei,
qualquer lei, numa inevitável desintegração do tecido social. E para quem, por
criança que fosse, as portas do paraíso estivessem fechadas, restaria ser dejeto. A
impunidade, neste quadro, corresponde à única legitimidade reconhecida: responder
a um mandamento de gozo.
       Se considerarmos que um significante nacional poderia se transmitir e valer
como qualquer significante paterno, ou seja, como um traço ideal inspirador, que
abre um campo de possíveis a partir dos limites que coloca, é curioso notar que,
para a criança do colonizador, ser brasileiro significaria ter que realizar o sonho
paterno ou ancestral de um gozo sem limites. E o gozo sem limites é um projeto que
implica o desrespeito de qualquer significante paterno ...

        Mas concluir apressadamente aqui que faltaria no Brasil função paterna seria
uma besteira, pois seria esquecer a esperança do colono que veio para encontrar
um pai e cujo discurso é o contraponto do discurso do colonizador.
        O mesmo Brasil paraíso das crianças, sonho de impunidade do menor
criminoso, é também um lugar onde a maior esperança parece estar depositada na
instância pedagógica. Como já mencionei, a pedagogia dominante é vagamente
rousseauísta e parece desconfiar de uma transmissão do "gout de l'effort". Mas, de
qualquer forma, dos progressos da escola todo mundo espera o milagroso
surgimento de um cidadão novo. Jules Ferry e todos os artífices da escola
obrigatória européia no começo do século seriam aqui bem-vindos, pois se respira
uma verdadeira fé nos efeitos possíveis do ensino. É o colono certamente quem
espera que o ensino constitua magicamente para seus filhos o nome que ele não
encontrou nesta etapa Brasil da sua viagem.
        Deste ponto de vista, aliás, para ambos, colonizador e colono, a criança é
portadora de um fantasma de esperança. Que as decepções dos dois sejam
diferentes e, portanto, que os fantasmas delegados à criança também sejam, pouco
importa. Não deixa de ser preocupante um ingresso na filiação nacional no qual
pareça decisivo responder, ou melhor, ser encarregado de responder a uma
frustração ancestral, seja aqueIa do colonizador ou aquela do colono.
        Os psicanalistas sabem que quanto mais um sujeito cuida das suas
frustrações (que são também aquelas que lhe foram transmitidas), tanto menos ele
consegue propriamente exercer o seu desejo. Normalmente, a palavra paterna que -
interditando - outorga um lugar, ajuda a desejar. Mas o que acontece quando a
palavra paterna transmite privilegiadamente a tarefa de realizar gozando o sonho
paterno? Acontece, no mínimo, que ela se abstém de interditar por medo de frustrar
a criança, ou seja, sobretudo de frustrar o próprio sonho do pai.
Criancas   contardo caligaris

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Domm 1697 - 12 05 16 edital de pedagogia 2
 

Criancas contardo caligaris

  • 1. CRIANCAS O Brasil me aparece como o paraíso das crianças. Estranha-me o sorriso do garçom de um restaurante luxuoso tragicamente atrapalhado no serviço por uma turma de meninos correndo entre as mesas. E também que nenhum cliente pareça se incomodar com o barulho do qual não dava para suspeitar que estivesse incluído no preço. Surpreende-me, durante uma festa em casa, a chegada de mais um casal convidado, com crianças pequenas implicitamente não convidadas. Aqui é uma graça. Na Europa, salvo laços de amizade férreos, seria uma imperdoável grosseria. Num hotel cinco estrelas é exigido que exista uma sala de jogos eletrônicos para as crianças e que sejam previstas atividades infantis. Assusta-me a insistência - pedagogicamente justificada com um requinte de rousseauísmo - sobre a necessidade do lúdico na aprendizagem. Em algumas das melhores escolas privadas decorar é considerado tortura. Assombra-me a importância que assume o programa das crianças na vida cotidiana: os pedidos alimentares de pratos e bebidas especiais, as saídas, as vindas dos amigos ... O adulto brasileiro parece constantemente preocupado com o prazer das suas crianças. Brevemente: a criança é rei. Curioso, tanto mais num país cuja reputação no estrangeiro está comprometida com legiões de crianças abandonadas na rua. Evidentemente toda educação - como Freud já apontou - é reacionária, pois cada um não educa como foi educado, cada um pretende educar como os seus pais imaginavam que os pais deles teriam pretendido educar. E, o mesmo valendo para os avós, se entende que a educação seja sempre fundamentalmente restaurativa de uma ordem passada, que por sinal nunca existiu. Esta constatação, porém, não é uma crítica, pois parece - ou pelo menos me parece - que a restauração tentada desta ordem passada que nunca existiu é justamente o que permite ao último chegado de encontrar, nesta ordem, um lugar. Explico-me: foi-me contado que na infância de meu pai, as crianças, quando excepcionalmente tomassem as suas refeições na mesa com os adultos, precisavam ficar em pé, não lhes sendo permitido sentar. Pouco importa que esta história seja verdadeira ou falsa, de fato presumo hoje que já fosse, para o meu próprio pai, uma lenda do seu pai criança. Pouco importa também que ela possa parecer a testemunha de um costume bárbaro. Pouco importa, pois, separando a criança do adulto, esta lenda e outras similares constituem a mitologia possível de uma ordem de filiação necessária para a criança. Por exemplo, o que mais pesou na minha infância, ou seja, a subordinação de qualquer aspiração minha à paixão incondicional do meu pai para as obras de arte (subordinação que transformou os domingos e as férias da minha infância em passeatas artísticas e culturais quando sonhava com piscinas, Beatles, beisebol e quadrinhos), tudo isso não acredito que tenha sido trauma nenhum. Poderia alegar que devo a um tal aparente abuso de autoridade paterna o meu gosto ela arte. Mas, bem além disso, acredito que o efeito e um tal aparente abuso seja a sólida inserção num registro de filiação. O importante não é tanto poder não nadar, escutar música e jogar beisebol, o importante é dispor de um lugar a partir do qual poder pelo menos querer nadar etc., quer se possa ou não. De fato, parece que o preço de um tal lugar - necessário à vida - seja justamente uma interdição. O que me é proibido, os limites que me são impostos -
  • 2. como criança é justamente o que me outorga e me permite reconhecer o meu lugar, o lugar de filho. Um dia talvez, mas pode ser que já seja o caso, se concorde em dizer que quem derrotou os Estados Unidos no Vietnã foi o Dr. Spock. Ou seja, que a desistência da juventude americana relativamente à guerra no fim dos anos 60 não foi o efeito de uma propaganda comunista sonhada por um novo McCarthy e aliás estrangeira aos ideais norte-americanos da época, mas muito mais o efeito de uma orientação pedagógica permissiva que corroeu as condições da idealidade, jogando uma ou mais gerações fora da linha de filiação. Tanto melhor para o Vietnã, dir-se-á naturalmente e ainda que o Vietnã do Sul não seja apenas o Vietcong. E, sobretudo, embora se possa pensar que a guerra teria sido outra se os combatentes norte-americanos não fossem eles mesmos, pela falta de idealidade que, acredito, parou a guerra, convertidos em sádicos autorizados. Tudo isso para defender a ideia segundo a qual o que há de necessariamente reacionário numa educação é mesmo o que permite que ela tenha o seu efeito essencial: constituir uma filiação simbólica. Agora, que o Brasil seja o paraíso das crianças não implica necessariamente que a educação seja um fracasso. Poderia imaginar que milagrosamente aqui se consiga reconhecer à criança uma cidadania precoce, que frequentemente lhe é negada na Europa. E que, também milagrosamente, o preço em interditos desta cidadania, deste lugar reconhecido consiga aqui ser menor. Assisto com emoção crianças de seis, sete anos encomendar o prato de sua escolha, comprar mercadorias em lojas, quando sei que o simples ingresso de uma criança, mesmo acompanhada, numa loja em Paris poderia ser considerado como uma ameaça, ou então que na mesma loja uma criança sozinha veria negligenciar a sua vez na fila. Mas a emoção cessa quando ouço uma criança de seis, sete anos convocar imperiosamente o garçom: "Mooooooço!!" Algo me incomoda, e não sei bem o quê. Certo, a licença sobre o corpo de uma adulto lembra um passado escravagista, onde a diferença adulto/criança só podia valer no campo dos homens livres, o escravo sendo escravo tanto para a criança quanto para o adulto. Mas há algo a mais na imperiosidade do pedido infantil e na dedicação tanto parental quanto educacional e geralmente social em responder a este pedido. Curiosamente, acredito que aquilo que me incomoda deve ter algum laço com o exército de crianças ditas abandonadas na rua. Pois é estranho, depois de tudo, que a criança seja rei e ao mesmo tempo dejeto. Não acredito ou mesmo descuido e desconfio, neste caso, das explicações sociológicas: se a criança dispusesse de um estatuto simbólico particular, se fosse um sujeito precocemente reconhecido, isso valeria para qualquer criança. E me interrogo sobre uma majestade cuja alternância com a dejeção assinala que talvez ela não esteja fundada em uma excelência simbólica. Confrontado com uma criminalidade de menores e de menores muito jovens inédita para mim, acabei estranhando a impunidade que o código reserva ao crime do menor. Mas estranhei, sobretudo de estranhar, pois não há nisso nada de especial e não conheço código que preveja uma responsabilidade penal para os menores. Também me parece insuficiente considerar que se trate de uma reação "normal", à vista da violência da criminalidade infantil. Por exemplo: escuto um dia um relato triste e espantoso que envolve uma conhecida. Algumas criança de sete, oito anos, numa esquina paulistana, talvez por ter-lhes sido recusado o troco que pediram, - cortam com uma gilete - aproveitando
  • 3. o vidro aberto: - a garganta do bebê de poucos meses, na sua cadeirinha ao lado da mãe. A minha reação indignada explode contra a impunidade, mas ao mesmo tempo meu horror do crime, por grande que seja, não me parece justificar uma tal posição. Se cuidadoso como sempre sou da sociedade de direito, surpreendo-me protestando para que a punição seja exemplar e sem atenuantes relativos à idade é que a impunidade dos menores talvez seja aqui no Brasil outra coisa do que um princípio de direito. A Febem, por exemplo, aparece, pelo menos na lenda popular, mas também na página de crônica dos cotidianos, como o porto de mar de onde se entra e sai seguindo os ventos. Tudo acontece como se a sociedade não soubesse, mais por uma impossibilidade de estrutura do que por uma impotência, reprimir os menores, as crianças. E quem não sabe reprimir, também não consegue reconhecer um lugar e uma dignidade simbólicos. Confirma-se, dessa forma, a dúvida que o lugar de majestade que a criança parece ocupar não seja uma excelência simbólica, mas algum tipo de incondicional exaltação fantasmática da criança. O que aliás explicaria como, quando esta exaltação fantasmática não a sustenta, a criança seja um simples dejeto. É como se, faltando um reconhecimento simbólico, frente à sua impotência a garantir para cada criança o paraíso, a sociedade deva escolher deixar impunes as tentativas criminais (de ter acesso ao paraíso) das crianças as quais os pais não poderiam garantí-Io. Mas a questão se desloca: o que é, de onde surge esta aparente impossibilidade de reprimir, que parece testemunhar um verdadeiro fantasma relativo à infância? Clinicando no Brasil, encontrei, é certo, uma quantidade impressionante de exemplos de promiscuidade doméstica. O acesso das crianças à cama parental é frequente, até épocas tardias, assim como a extrema tolerância de fobias e enureses noturnas. A psicologização ajuda por sinal a desaconselhar uma sonora interdição, que seria salutar. É curioso também como, na gestão do lazer da criança, o gozo prima: é raro que, quando uma criança descobre que, por exemplo, aprender piano, inglês, balé, tênis, hipismo, xadrez etc. não cai do céu, ela encontre a injunção necessária para considerar com interesse o gozo limitado e trabalhoso de uma aprendizagem. A alternativa parece ser aceita pelo adulto assim como criança a coloca: ou dá para gozar na hora ou então -: vale a pena. ''Le gout de l'effort", literalmente "o gosto pelo esforço", "o prazer da dificuldade": não parece haver expressão consagrada que possa traduzir esta peça chave da pedagogia européia, onde o que se trata transmitir é uma espécie de espírito olímpico permanente; importa participar, não ganhar. Qual o interesse do "gout de l'effort"? Ele vale como princípio pedagógico num quadro simbólico claramente organizado ao redor de um impossível interditado: o do corpo materno é impossível e o gozo que te é permitido é relativo ao exercício dos teus esforços (vãos) para atingí-Io. E a excelência de uma vida é relativa, à nobreza dos esforços: ser alguém, ou seja, um filho digno, é se distinguir no esforço, não é alcançar. Por isso, aliás, na Europa a manifestação aparente do gozo - signos externos de riqueza, como os define o Estado que os penaliza fiscalmente - ainda não enobrece o sujeito. Mas se o colonizador veio para gozar, não para exceler no exercício da língua paterna, mas para tentar com ela o acesso a um corpo não interditado, o "goút de l'effort" aqui não tem valor. Só vale gozar.
  • 4. Talvez o paraíso das crianças testemunhe um cuidado do colonizador, triste e decepcionado: o gozo que ele veio procurar e que necessariamente não encontrou, sonha para seus filhos. Na transmissão desta esperança de gozo, o colonizador desiste como pai. Se ser pai é sustentar um interdito sobre o corpo materno, que de repente permita à criança se situar e ser reconhecida como filha ou filho, a coisa parece difícil desde que à criança é delegado nada menos que o fantasma paterno de um gozo sem limites. O projeto de um paraíso para as crianças pode assim virar um inferno, onde - sem interdito - a criança receberia uma injunção nada irrisória: goza tu, meu filho, pelo menos tu, é isso que eu quero. Responder ao mandamento paterno seria então paradoxalmente burlar a lei, qualquer lei, numa inevitável desintegração do tecido social. E para quem, por criança que fosse, as portas do paraíso estivessem fechadas, restaria ser dejeto. A impunidade, neste quadro, corresponde à única legitimidade reconhecida: responder a um mandamento de gozo. Se considerarmos que um significante nacional poderia se transmitir e valer como qualquer significante paterno, ou seja, como um traço ideal inspirador, que abre um campo de possíveis a partir dos limites que coloca, é curioso notar que, para a criança do colonizador, ser brasileiro significaria ter que realizar o sonho paterno ou ancestral de um gozo sem limites. E o gozo sem limites é um projeto que implica o desrespeito de qualquer significante paterno ... Mas concluir apressadamente aqui que faltaria no Brasil função paterna seria uma besteira, pois seria esquecer a esperança do colono que veio para encontrar um pai e cujo discurso é o contraponto do discurso do colonizador. O mesmo Brasil paraíso das crianças, sonho de impunidade do menor criminoso, é também um lugar onde a maior esperança parece estar depositada na instância pedagógica. Como já mencionei, a pedagogia dominante é vagamente rousseauísta e parece desconfiar de uma transmissão do "gout de l'effort". Mas, de qualquer forma, dos progressos da escola todo mundo espera o milagroso surgimento de um cidadão novo. Jules Ferry e todos os artífices da escola obrigatória européia no começo do século seriam aqui bem-vindos, pois se respira uma verdadeira fé nos efeitos possíveis do ensino. É o colono certamente quem espera que o ensino constitua magicamente para seus filhos o nome que ele não encontrou nesta etapa Brasil da sua viagem. Deste ponto de vista, aliás, para ambos, colonizador e colono, a criança é portadora de um fantasma de esperança. Que as decepções dos dois sejam diferentes e, portanto, que os fantasmas delegados à criança também sejam, pouco importa. Não deixa de ser preocupante um ingresso na filiação nacional no qual pareça decisivo responder, ou melhor, ser encarregado de responder a uma frustração ancestral, seja aqueIa do colonizador ou aquela do colono. Os psicanalistas sabem que quanto mais um sujeito cuida das suas frustrações (que são também aquelas que lhe foram transmitidas), tanto menos ele consegue propriamente exercer o seu desejo. Normalmente, a palavra paterna que - interditando - outorga um lugar, ajuda a desejar. Mas o que acontece quando a palavra paterna transmite privilegiadamente a tarefa de realizar gozando o sonho paterno? Acontece, no mínimo, que ela se abstém de interditar por medo de frustrar a criança, ou seja, sobretudo de frustrar o próprio sonho do pai.