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Verso e Reverso, XXIX(55):47-56, janeiro-abril 2010
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    Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis

                                   Some reflexions about cinema and social representations

                                                                                       Henrique Codato
    Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte,
                                                                        MG, Brasil. picega@hotmail.com




Resumo. Este artigo pretende relacionar o conceito     Abstract. This article intends to relate the concept
de representações sociais, entendido a partir de di-   of Social Representations, taken in several different
ferentes perspectivas, com os estudos do cinema,       aspects, to cinema studies, pointing some relevant
num esforço que visa apontar elementos que sirvam      elements to analyze it. This work has as aim to
para analisar a sétima arte no que tange seu caráter   present briefly the thoughts of Durkheim about the
representacional. Propomos, num primeiro momen-        genesis of the term representation and relate it to
to, apresentar o pensamento de Durkheim acerca da      some contributions offered by Serge Moscovici and
gênese de representação, relacionando-a às contri-     Denise Jodelet, both important names for the social
buições de Serge Moscovici e Denise Jodelet, impor-    psychology. Taking philosophy as maĴer, we try to
tantes nomes da psicologia social. Numa perspectiva    introduce Michel Foucault’s reflexions on the crisis
mais filosófica, buscamos apresentar as reflexões         of representation, connecting them to the ideas of
de Michel Foucault sobre a crise da representação,     Gilbert Durand and the symbolic imagination,
abrindo-nos também a horizontes teóricos mais plu-     besides the conception of mimesis as presented by
rais e agregando os pensamentos de Gilbert Durand      Paul Ricouer.
e a noção de imaginação simbólica, e de Paul Ricoeur
e sua concepção de mimese

Palavras-chave: cinema, representações sociais, es-    Key words: cinema, social representations, spectatorship.
pectador.
Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis




Introdução                                                 cida entre o sujeito filmado e o olho mecânico
                                                           da câmera, seja ele o desejo projetado daquele
    Este artigo é fruto do esforço de elaborar             a quem o filme quer seduzir, encantar ou fasci-
uma reflexão acerca do cinema, buscando                     nar, ou seja, o espectador.
entendê-lo a partir de seu diálogo com o con-                  Desta maneira é que se pretende entender
ceito de representações sociais. Sabe-se que os            esse entrecruzamento explicitado entre cine-
meios de comunicação de massa, esse univer-                ma e representações sociais. Este artigo pro-
so plural do qual o cinema também faz parte,               põe relacionar as idéias de Serge Moscovici e
ocupam um importante papel na organização                  Denise Jodelet, importantes nomes da psico-
e na construção de uma determinada realida-                logia social, com as perspectivas filosóficas de
de social. Eles tanto reproduzem essa realida-             Michel Foucault sobre a representação e abre-
de, representando-a através de seus diferentes             se a horizontes teóricos plurais, agregando
discursos, quanto a modificam, reconstruindo-               os pensamentos de Émile Durkheim acerca
a por meio de uma interferência direta em sua              da gênese do conceito de representação; de
dinâmica, em seu funcionamento. Nossa preo-                Gilbert Durand e a noção de imaginação sim-
cupação inicial é, portanto, a de compreender              bólica; e de Paul Ricoeur e sua concepção de
como a sétima arte pode servir de palco para a             mimese, por exemplo.
manifestação de tais representações e, ao mes-                 Há, nesses autores tão diversos, interesses
mo tempo, como elas são geradas, e difundi-                comuns, mas visadas notadamente diferentes,
das pelo discurso cinematográfico.                          olhares muitas vezes divergentes, e esse talvez
    O termo representar permite ser traduzido              seja o maior mérito deste trabalho: perceber
como o ato de criar ou recriar um determina-               e avaliar tais distinções. É necessário com-
do objeto, dando-lhe uma nova significação,                 preender que as representações sociais não
um outro sentido. As representações formam,                oferecem, elas mesmas, um conceito a priori.
segundo Jodelet (2001, p. 21), um sistema, e               Se o que interessa em relação ao cinema é a
quando partilhadas e compartilhadas pelos                  troca que estabelecem sujeito e câmera, o que
membros de um grupo, possibilitam o apare-                 importa aqui é que entendamos que as repre-
cimento de uma visão mais ou menos consen-                 sentações sociais são, na verdade, um processo
sual da realidade. Ora, se há uma visão que                dinâmico no qual indivíduo e sociedade apa-
decorre dessa nova apreensão da realidade,                 recem como pólos de um mesmo pêndulo.
há, forçosamente, para ela, uma imagem, en-
tendida aqui como elemento que busca no                    Visões clássicas sobre a
estatuto da imaginação seu próprio lugar de
articulação; uma consciência, que Deleuze
                                                           representação: a sociologia
(1985) conecta, no universo cinematográfico,                de Durkheim
ao papel da câmera.
    Traduzir ou substituir algo por meio de                    Como é sabido, o termo “representação
uma imagem propõe, entretanto, um dilema                   coletiva” foi proposto por Émile Durkheim
que, segundo CaseĴi e Di Chio (1998, p. 123),              na intenção de ressaltar a primazia do pensa-
condiciona qualquer tipo de processo analí-                mento social frente ao pensamento individual.
tico, pois vincular nossa compreensão a uma                Para Durkheim, assim como a representação
representação faz com que passemos a acei-                 individual deve ser considerada um fenôme-
tá-la como uma verdade. Porém, não seria o                 no psíquico autônomo e, portanto, não redu-
conceito de verdade também uma forma de                    tível à atividade cerebral que o fundamenta,
representação? É possível, no caso de nosso                a representação coletiva tampouco se reduzi-
objeto, identificarmos como premissa uma                    ria à soma das representações dos indivíduos
relação analogicamente construída entre o ci-              que compõem um grupo. Ao fazer creditar a
nema e o filme, estendida para além da dua-                 existência de uma suposta consciência coleti-
lidade do dispositivo e da projeção. Tanto na              va que organizaria o mundo sensível comum,
dinâmica interna como externa do filme – ou                 Durkheim afirma que as representações, ma-
seja, tanto dentro como fora da narrativa fíl-             nifestações dessa consciência comum, funda-
mica – uma espécie de “jogo” é instituído en-              mentam-se a partir de certos hábitos mentais;
tre câmera e olhar. Nessa dupla articulação, a             certas categorias que existiriam com relativa
representação desdobra-se, assumindo uma                   autonomia e que, ao atuarem entre si, se modi-
ambigüidade que tem como elemento funda-                   ficariam. Durkheim dá, a essas representações
dor o desejo, seja ele fruto da relação estabele-          coletivas, o nome de fato social.



Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
Henrique Codato




    O que ele chama de fato social, nomencla-           entendida enquanto processo de significação,
tura introduzida em seu trabalho As Regras do           que interessará importantes nomes das teorias
Método Sociológico, publicado em 1895, deve             do cinema do início do século XX, notadamen-
ser entendido a partir da premissa apresen-             te Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Apesar
tada acima. Preocupado com questões de                  de divergentes, ambos os autores revelaram a
cunho metodológico, o pensador tenta colo-              importância da montagem na compreensão do
car os estudos da sociologia no campo das               filme. Se há uma linguagem cinematográfica,
ciências empíricas e objetivas, insistindo em           ela pode ser conectada à idéia mesmo de mon-
considerar o fato social como “coisa”, dis-             tagem, que, segundo Comolli (2008, p. 46), é
tanciada de qualquer teleologismo. O estudo             “o procedimento pelo qual a ditadura do corte
da vida social buscava, então, construir um             e do fragmento impõe a aceleração do olhar
discurso científico que superasse as deficiên-            em detrimento da experiência da duração e da
cias encontradas no chamado senso comum,                continuidade”.
possibilitando investigar possíveis relações                É crucial notar esta confluência, presente
de causa e efeito a partir de fenômenos pre-            tanto no pensamento sociológico quanto nos
viamente definidos e elegendo a coletividade             estudos desenvolvidos sobre o cinema no fi-
como princípio para a compreensão do indi-              nal do século XIX, início do século XX, pois ele
víduo como ser social.                                  vem ressaltar algumas das mais importantes
    Ao assumir tal posição, Durkheim esfor-             questões que concernem às artes dramáticas e
ça-se para que as especificidades das repre-             pictóricas modernas, tais como a presença de
sentações ditas coletivas ultrapassassem o              pessoas comuns como protagonistas da cena;
substrato orgânico ou os fenômenos mentais,             o notável crescimento das grandes cidades
e propõe entendê-las como a própria essên-              ocidentais e, conseqüentemente, a necessida-
cia das consciências tanto individuais quan-            de de se repensar as relações espaciais entre
to coletivas. É possível identificar, a partir da        as diferentes classes sociais que emergiam de
ambigüidade apresentada pelo pensamento                 tal contexto. O cinema viria mesmo a servir
durkheimiano entre indivíduo e sociedade,               de importante ferramenta para as Ciências
uma das questões mais relevantes no que                 Sociais – notadamente a Antropologia – no
diz respeito a qualquer função artística, em            intuito de registrar o cotidiano de diferentes
especial, ao cinema: a questão da objetivida-           sociedades, transformando a própria imagem
de do olhar que filma versus a subjetividade             em objeto etnológico.
do olhar que se deixa filmar; do real da es-                 Dessa forma, uma nova dinâmica, tanto
critura fílmica versus a ilusão do espetáculo.          social quanto artística se estabelece, fazendo
Se a intenção maior do cinema é representar             com que o cinema seja pensado não apenas
uma determinada realidade, há, neste movi-              como uma máquina de registrar imagens do
mento, um caráter objetivo, uma preocupa-               cotidiano, mas como elemento ordenador de
ção em fazer valer o mundo da experiência,              um discurso que, muito mais do que mostrar
aquilo que Jean-Louis Comolli (2008) chama              imagens em movimento, serve também para
de ‘inscrição verdadeira’. Existe, na imagem            organizá-las, inaugurando uma forma de dis-
cinematográfica, uma presença indicial do                curso próprio, servindo também aos interesses
real que permite antever os corpos e os ges-            do pensamento científico.
tos, apreendidos no momento mesmo em                        Com a intenção de legitimar o cinema como
que se constitui a relação entre aquele que             uma nova forma de arte, Louis Delluc, crítico
filma e aquele que é filmado. Contudo, há                 de arte francês, lança, no início da década de
também, no cinema, algo que é da ordem da               1910, o termo “cineasta”. Tal termo, utilizado
subjetividade, que diz respeito à interpreta-           como sinônimo de um artista profissional in-
ção, à história de vida de cada um dos sujei-           teiramente responsável por sua obra, aparece
tos que assistem ao filme.                               em contradição ao termo “cinematografista”,
    Testemunhar a realidade sob a forma de              título dado ao técnico da imagem, àquele que
uma representação pressupõe, entretanto,                filmava sob as ordens de um estúdio ou de
uma ordenação, uma organização, um méto-                uma instituição. A partir dessa oposição, o
do. É interessante notar que o livro citado de          escritor italiano RicioĴo Canudo lança, na se-
Durkheim, As Regras do Método Sociológico, apa-         qüência, o “Manifesto das sete artes” (1911),
rece no mesmo ano em que os irmãos Lumière              no qual propunha que o cinema fosse entendi-
apresentam publicamente o cinematógrafo, ou             do como uma síntese de todas as outras artes,
seja, o ano de 1895. E é justamente a montagem,         a emergência de uma “arte total”.



Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010                                                49
Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis




A abordagem da psicologia social:                          das mediações. Assim, a noção de represen-
Moscovici e as representações sociais                      tação social passa a servir de suporte para
                                                           que essa troca, esse diálogo entre meios de
    Se a noção elaborada por Durkheim de re-               comunicação e realidade social, se estabeleça
presentações coletivas foi central para explicar           e ganhe força.
a dicotomia indivíduo/sociedade, possibili-                    Serge Moscovici apresenta um interessante
tando o nascimento da Sociologia e da Antro-               percurso histórico dos estudos das representa-
pologia, ela também será fundamental para a                ções sociais em seu artigo publicado em 1976,
Psicologia, servindo de base para esboçar os               intitulado “Das Representações Coletivas às
contornos de uma psicologia dita social que                Representações Sociais: Elementos para uma
toma como norte a idéia da representação,                  História” (in Jodelet, 2001), explicando que as
entendendo-a como uma passarela entre os                   representações dominantes na sociedade cau-
mundos individual e social, associada à pers-              sam pressão nos indivíduos, e é nesse meio,
pectiva de uma sociedade em transformação                  por conseqüência, que os sujeitos pensam e ex-
(Moscovici in Jodelet, 2001, p. 62). O conceito            primem seus sentimentos. Tal perspectiva for-
de representação social aparece como conse-                nece aos meios de comunicação de massa um
quência da mudança de paradigma que en-                    importante papel: é através dos discursos, das
frentam as Ciências Humanas a partir do final               imagens e das mensagens midiáticas que tais
da década de 1960, início de 1970. No que con-             representações circulam e é neles que aconte-
cerne a Psicologia, por exemplo, Jodelet (2001)            ce o que Jodelet (2001) chama de “cristalização
sugere que o declínio do Behaviorismo e do                 de condutas”. Essas condutas seriam materia-
Cognitivismo abre perspectivas fecundas de                 lizadas na linguagem e seriam estruturadas a
pesquisa e permitem encontrar no conceito de               partir da articulação de elementos tanto afeti-
representações sociais um elemento reunifica-               vos quanto mentais e sociais que, integrados,
dor da Psicologia e das Ciências Sociais.                  passariam a afetar, por sua vez, a realidade
    Também é possível estabelecer uma cone-                material, coletiva e ideativa.
xão entre o surgimento dessa nova perspec-                     Aqui, novamente abre-se um lugar para o
tiva e o fortalecimento dos estudos culturais.             cinema. Como todos sabemos, qualquer obra
Esses estudos constituem um ramo da socio-                 cinematográfica vem carregada de ideologia e
logia geral, mas têm uma grande relevância                 encontra um espectador que também carrega
para a comunicação a partir do momento em                  consigo toda uma história de vida, sua pró-
que se propõem a entender os meios de co-                  pria maneira de decodificar os sentidos pro-
municação como geradores de sentidos e me-                 duzidos pela obra; de compreender, assimilar
diadores na apreensão e na constituição da                 e reproduzir uma ideologia. É justamente na
cultura. Sua abordagem exige “novos tipos                  elaboração de um discurso particular possi-
de análise social das instituições e formações             bilitado pela relação da câmera com o sujeito,
especificamente culturais, e o estudo das re-               que podemos identificar os artifícios de uma
lações concretas entre estas e os meios mate-              linguagem própria à sétima arte e, conseqüen-
riais de produção cultural” (Williams, 1992, p.            temente, toda uma carga ideológica reprodu-
14). Algumas importantes teorias a propósito               zida por ela. Jodelet (2001) explica da seguinte
do cinema aparecem nesta época, influencia-                 forma o papel da comunicação na criação e na
das tanto pelas diretrizes da psicologia social,           reprodução das representações:
quanto pela corrente pós-estruturalista lidera-
da por Michel Foucault, entre outros autores.                      Primeiro, ela (a comunicação) é o vetor de trans-
    Politicamente, as minorias começam a ga-                       missão da linguagem, portadora em si mesma de
nhar espaço com a liberação sexual e o forta-                      representações. Em seguida, ela incide sobre os
                                                                   aspectos estruturais e formais do pensamento so-
lecimento dos movimentos feministas e dos
                                                                   cial, à medida que engaja processos de interação
negros americanos, passando a protagonizar                         social, influência, consenso ou dissenso e polêmi-
histórias no cinema e em outros meios de co-                       ca. Finalmente, ela contribui para forjar repre-
municação de massa. Stuart Hall (2000) fala                        sentações que, apoiadas numa emergência social,
desta perspectiva, afirmando que tanto o ci-                        são pertinentes para a vida prática e afetiva dos
nema quanto a televisão sempre foram ana-                          grupos (Jodelet, 2001, p. 32).
lisados como se apenas reproduzissem ou
transformassem as formas de produção cul-                     Segundo a pesquisadora, é o desejo de
tural, sem levar em conta a incorporação e a               completude que propicia o sentimento de
transformação de discursos produzidos fora                 identidade, assim como, paralelamente, o efei-



Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
Henrique Codato




to de literalidade ou unidade no domínio do                           elemento fundamental no funcionamento de
sentido. Dessa contradição entre identidade                           qualquer linguagem.
e reconhecimento versus alteridade, nasce um                              Em seu texto Tempo e Narrativa, publicado
movimento que distingue e ao mesmo tempo                              no início da década de 1980, Paul Ricoeur nos
integra o sujeito em relação ao outro, ao seu                         propõe uma detalhada análise da apreensão
diferente, ao seu Outro. E a mais explícita con-                      de sentidos do mundo a partir de sua transpo-
dição para a manifestação da imagem fílmica                           sição ao universo do texto. O pensador inter-
é a presença de seu espectador, sua alteridade                        roga a relação existente entre o tempo vivido
por excelência.                                                       e o tempo narrado e afirma que a percepção
    Este sujeito-espectador assumiria, então,                         humana se dá a partir de sua dimensão nar-
o papel de articulador da ordem dual condi-                           rativa. O mundo visto como um texto só pode
cionada pela imagem. Ele possibilita a emer-                          ser configurado pelo leitor a partir de sua po-
gência de um “terceiro olhar”, compondo uma                           rosidade, de sua falta de rigidez. Esse mundo
tríade no jogo estabelecido pelo eixo-de-ação1                        se abriria nos vazios que tal porosidade provo-
fílmico e assumindo a posição de “sujeito de-                         ca, deixando entrever possibilidades de confi-
sejante”, onipresença imperceptível, mediação                         gurar e de selecionar os elementos que nele se
que condiciona a própria existência da ima-                           apresentam. É justamente a distribuição des-
gem. O cinema requer um receptor que o vi-                            ses elementos e a relação que eles estabelecem
vencie, que complete sua significação, que lhe                         com o tempo da narrativa em sua dimensão
forneça sentido.                                                      episódica que interessam Ricoeur. O tempo,
                                                                      que perde seu caráter linear, é tomado em sua
Mimese e desejo: as colaborações de                                   dimensão estendida de presente, sendo o pas-
Paul Ricoeur e René Girard                                            sado uma forma de ‘presente da memória’,
                                                                      enquanto o futuro seria apenas uma ‘projeção’
    Há, no pensamento de Paul Ricoeur, uma                            do presente. Dessa forma, Paul Ricoeur tenta
notável mudança de perspectiva. Até então, re-                        categorizar a experiência, distinguindo três
levamos um caráter mais sociológico ou psico-                         movimentos diferentes, três momentos distin-
lógico das representações, que ganham, agora,                         tos para a mimesis.
uma reflexão que toma como base a filosofia                                  A chamada mimesis I é uma prefiguração do
da linguagem. Para Ricoeur, as representações                         campo da prática. Ela diz respeito a um ‘agir
constituem-se como objeto da linguagem, ou                            no mundo’, à trama conceitual que antecede
seja, são originárias de sua própria dinamicida-                      a própria linguagem e que orienta o agir tanto
de. Segundo o autor, os signos devem ser enten-                       daquele que produz o texto – o autor – quan-
didos como instâncias de mediação, traduzidas                         to daquele para quem o texto é produzido –
a partir de um hiato entre o referente e a maté-                      seu leitor. Já a mimesis II refere-se ao mundo
ria própria do signo. Esse hiato viria a constituir                   da mediação, da configuração da estrutura da
um espaço de diferença, uma instância produ-                          narrativa, portanto, é entendido como o espa-
tora daquilo que chamamos realidade.                                  ço da mediação entre essas duas instâncias de
    Para Ricoeur, é necessário que pensemos                           produção, no qual a imaginação ganha um ca-
a linguagem como um espelho da vida social,                           ráter sintético, possibilitando a construção de
portanto, um mundo aberto e incompleto, in-                           representações. Toda a produção sintética da
concluso. Um dos méritos de seu pensamento                            imaginação só aconteceria, segundo o autor,
talvez seja a ligação estabelecida entre a feno-                      por meio das implicações do que ele chama
menologia e a análise contemporânea da lin-                           de tradicionalismo – que poderia ser traduzi-
guagem, que, através dos estudos da metáfora                          do por mundo cultural –, condicionantes do
e do mito, legitima a narratividade como com-                         trabalho criador do texto e que permitem sua
ponente fundamental da linguagem humana.                              conexão com o mundo chamado social. A mi-
Desta forma, influenciado pelo pensamento                              mesis III seria, então, a refiguração que advém
aristotélico, Ricoeur propõe que o mundo seja                         da recepção do próprio texto, que só passa a
interpretado como um lugar instável, signo                            fazer sentido quando atinge seu leitor. É essa
aberto para a significação, o que vem a permi-                         refiguração que possibilita uma reorganização
tir sua articulação com o conceito de mimesis,                        do mundo do texto ao mundo do leitor, que


1
    Linha imaginária que interliga os olhares de duas ou mais pessoas em cena.




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Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis




encontra, na dinâmica da cultura, o próprio                       ponto de vista mais subjetivo e fenomenológi-
sentido das representações.                                       co. Percebe-se que o termo imaginário aparece
    Percebemos uma forte inclinação estrutural                    como uma contraposição à idéia de ideologia,
no pensamento ricoeuriano, no sentido de criar                    conceito marxista bastante utilizado nesta mes-
categorias que possam explicar a realidade do                     ma época para explicar as diferenças de classe
texto como uma metáfora da realidade social.                      e a dominação do capital. Como nos aponta
Entretanto, é digno de se notar que Ricoeur,                      Clifford Geertz (1978, p. 163), o termo ideolo-
contrariamente a outros autores ditos estrutu-                    gia acabara transformando-se num sistema
ralistas, não vê a linguagem como um conceito                     cultural fechado, tornando-se, ele mesmo, total-
limitante ou limitador. Ele dá à linguagem um                     mente ideológico. Neste sentido, o conceito de
caráter dinâmico, tentando apanhar seu movi-                      imaginário para Durand reflete uma relação de
mento, seu fluxo. Assim, seu pensamento foge                       consciência com o mundo, possibilitada de for-
da rigidez característica do pensamento estru-                    ma direta pela intervenção dos sentidos frente
turalista, ultrapassando-a de forma a vislum-                     a ele e, indiretamente, pela intervenção daquilo
brar, na troca entre autor e leitor, o verdadeiro                 que comumente chamamos de signos, elemen-
sentido da significação.                                           tos que compõem o universo das mediações.
    A relação entre o cinema e a literatura não é                     Afastando-se das concepções de Peirce acer-
recente. Os estudos cinematográficos do início                     ca dos signos, Durand busca as reflexões de
do século XX já aproximavam essas duas artes.                     Cassirer como norte, assumindo uma perspec-
A expressão Caméra-stylo2 lançada por Astruc                      tiva de cunho antropológico. A apreensão indi-
e os estudos críticos de Bazin são provas dis-                    reta do mundo, aquela que é construída a partir
so. Metz (in Xavier, 1983, p. 116) afirma que o                    da ausência do objeto, dar-se-á, para Durand,
filme é exibicionista assim como era o roman-                      a partir da intervenção de três categorias dis-
ce clássico do século XIX com suas intrigas e                     tintas representadas na consciência da imagem: o
seus personagens, modelo que o cinema imita                       signo, a alegoria e o símbolo, elemento que nos
semiologicamente, prolonga historicamente                         interessa particularmente neste artigo.
e substitui sociologicamente. É possível, no                          O símbolo, em sua dimensão significante,
que tange à História, traçar um paralelo entre                    não é arbitrário nem convencional. Ele teria,
o fortalecimento da análise do discurso e da                      segundo Durand, um caráter exclusivista e
narratologia e sua aplicabilidade no campo                        parabólico, o que o possibilitaria recondu-
dos estudos do cinema, o que acontece justa-                      zir à significação. No que diz respeito ao seu
mente no final da década de 1970, início dos                       significado, ele nunca pode ser captado dire-
1980. A comunicação vem apropriar-se destas                       tamente pelo pensamento e sua percepção é
ferramentas metodológicas, utilizando-as no                       dada a partir de um processo simbólico, ma-
intuito de aclarar os sentidos produzidos pelos                   nifesto por meio do que o autor chama de epi-
diversos produtos culturais da comunicação                        fania. Ele não se reduz, contudo, a um único
de massa, visando compreender como são (re)                       sentido, mas apresenta um campo de signifi-
produzidas e construídas as representações                        cado amplo e movediço. Poderíamos, numa
sociais em torno de um determinado objeto,                        metáfora, entendê-lo como a porta de entrada
no caso, o discurso cinematográfico.                               para o mundo dos sentidos. Desta maneira,
                                                                  as representações ganham um caráter formal,
                                                                  a partir do qual os indivíduos percebem o
Por uma antropologia da imagem:                                   mundo, se relacionam com ele. Para o autor,
a imaginação simbólica de Gilbert                                 sempre que abordamos o símbolo e os proble-
Durand                                                            mas de sua decifração, encontramo-nos em
                                                                  presença de uma ambigüidade fundamental:
    Tomando questões mais subjetivas como                         “Não só o símbolo tem um duplo sentido, um
ponto de partida, Gilbert Durand lança, em                        concreto, preciso, outro alusivo e figurado,
1964, sua conhecida obra A Imaginação Sim-                        como também a classificação dos símbolos
bólica. Num estreito diálogo com a psicologia                     nos revela ‘regimes’ antagônicos sob os quais
junguiana e a filosofia de Bachelard, Durand                        as imagens vêm ordenar-se”, nos explica Du-
propõe entender a imaginação a partir de um                       rand (1971, p. 97).


2
 Câmera-caneta. (N.T.) Expressão lançada pelo crítico de cinema francês Alexandre Astruc em 1948 que servia justamente para com-
parar o Cinema à Literatura, o que serviu posteriormente para fundar a idéia de autoria nos estudos cinematográficos.




Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
Henrique Codato




     A partir deste antagonismo, Durand traça           pertence a eterna infância, a eterna aurora”
uma genealogia do mecanismo do imaginário               (1971, p. 98), desembocando numa teofania.
face à idéia de símbolo, apontando uma série                O universo da imagem é o universo da fi-
de forças opositivas que tomam o senso co-              guração. Entretanto, seu papel não é da ordem
mum e o racionalismo cartesiano como extre-             da reprodução, mas da produção de sentidos. Du-
mos. De tal genealogia, em primeira instância,          rand nos fala da ação da imagem como função
manifestam-se o que Durand chama de “her-               instauradora da realidade, assim como também
menêuticas redutivas”, tais como a Psicanálise          parece fazer Ricoeur, sem, no entanto, rejeitar
de Freud, que via nos símbolos representações           nenhuma das duas hermenêuticas apresenta-
fantasmagóricas, e a Antropologia de Lévi-              das por Durand. É através do imaginário simbó-
Strauss, que os reduz a simples projeções da            lico que um grupo ou uma coletividade designa
vida social. Porém, em contraposição, o autor           sua identidade ao elaborar uma representação
aponta outra perspectiva, assinalando os tra-           de si; portanto, a imaginação se traduziria em
balhos de Cassirer, de Jung e de Bachelard, nos         uma experiência aberta e inacabada, dinâmica,
quais o símbolo ganha um caráter vivificador,            mas com uma realidade e essência próprias. O
presença irrefutável do sentido, batizando-a            simbolismo é, para o autor, cronológica e onto-
como “hermenêuticas instaurativas” justa-               logicamente anterior a qualquer significância
mente por terem o poder de instaurar uma or-            audiovisual; sua estruturação está na raiz de
dem para a vida social.                                 qualquer pensamento.
     De Cassirer, Durand apreende a pregnân-                A noção de imaginário nos auxilia a pensar
cia simbólica que permeia os mitos e símbolos           o cinema. O cinema é uma representação de
em sua função de condutores de sentidos. Do             imagens em movimento, imagens que colo-
pensamento de Jung, Durand toma a noção de              cam em relação o real e o imaginário através
arquétipo, entendido como núcleo simbólico              de um mecanismo que permite uma dupla ar-
de estrutura organizadora, sentido vazio pre-           ticulação da consciência, no qual o espectador
enchido por formas dinâmicas; uma espécie de            percebe a ilusão, mas também o dinamismo
centro invisível de forças. Quanto a Bachelard,         da realidade. A imagem em movimento rela-
Durand ressalta a distinção construída pelo             tiviza o tempo histórico, dando-lhe um caráter
filósofo a propósito de dois mundos, dois re-            atemporal. Ela torna-se um suporte que co-
gimes que tomam o símbolo como potência,                necta o espectador ao tempo do filme, enfati-
como força criadora. O primeiro deles, chama-           zando o vivido e buscando, para significá-lo,
do de “Diurno”, diz respeito às imagens que             elementos do simbólico. Dito isso, é possível
podem ser expressas “à luz do dia”, enquanto            verificar dois eixos de compreensão que, ao
o segundo, dito “Noturno”, fala das imagens             interagirem, buscam apreender a complexida-
que restam latentes, sem expressão, escondi-            de do imaginário cinematográfico: um deles,
das. Ao conectar tal bipartição com o pensa-            da ordem da pragmática, permite perceber o
mento nietzschiano, recorrendo à origem da              cinema como produto de um meio cultural
tragédia, poderíamos associar o primeiro regi-          no qual está inserido; o outro, lhe condiciona
me a Apolo e o segundo a Dionísio, distinguin-          a um determinado processo que é da ordem
do os dois pólos do discurso do trágico.                do subjetivo, que “projeta”, por meio da re-
     Percebe-se, portanto, uma essência dialéti-        presentação, mitos e símbolos, produtos deste
ca do símbolo que, segundo Durand, faz sentir           imaginário do qual nos fala Durand. O cinema
seus benefícios pelo menos em quatro setores            torna-se, assim, lugar de recepção e de revivi-
da vida social. Em sua determinação imedia-             fação do símbolo.
ta, o símbolo surgiria como restabilizador do               A mise en scène cinematográfica coloca em
equilíbrio vital devido a seu caráter espontâ-          dúvida o mundo, nos afirma Comolli (2008).
neo. Pedagogicamente, ele seria utilizado para          Esconde e subtrai mais do que “mostra”. A
o restabelecimento do equilíbrio psicossocial;          conservação da parte da sombra é sua con-
enquanto que em sua dimensão antropológica,             dição inicial. Sua ontologia está relacionada
a simbólica viria a estabelecer um equilíbrio em        à noite e ao escuro de que toda imagem tem
relação à negação da assimilação racista da es-         necessidade para se constituir. Filmar é, pois,
pécie humana a uma pura animalidade. Final-             sempre colocar em cena, mas enquadrar pres-
mente, em última instância, o símbolo erigiria          supõe uma escolha que coloca em relação,
“[...] face à entropia positiva do universo, o do-      numa alegoria ao pensamento de Durand, re-
mínio do valor supremo e equilibra o universo,          gimes diurno e noturno. A câmera é essa “má-
que passa por um Ser que não passa, ao qual             quina” que permite (re) materializar o corpo



Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010                                               53
Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis




e simbolizar o olhar, fazer dele essa “porta de            um outro lugar para o olhar, um desdobra-
entrada da significação” apontada pelo pensa-               mento da representação.
dor. É sua condição onipresente que permite                    Foucault atrela a noção de representação à
a entrada e a saída dos sentidos, num movi-                questão da identidade. Ela permite o apareci-
mento relacional de troca, possibilitando re-              mento da alteridade, do “Outro”, objeto por
viver uma nova representação do mundo, re-                 excelência das ciências humanas. Esse desdo-
construir uma mesma narrativa de inúmeras                  bramento de sentidos provocado pela tela de
maneiras. É justamente dessa mise en abyme de              Velásquez serve de metáfora para essa cone-
sentidos que nos fala Michel Foucault ao ana-              xão. Não é a princesa Margarida e o grupo de
lisar “As Meninas”, obra-prima de Velásquez,               aias, anões ou animais que vemos em primei-
numa exemplar arqueologia da imagem e da                   ro plano o verdadeiro objeto do quadro. Este
representação.                                             “verdadeiro objeto” esconde-se por trás do
                                                           reflexo de um espelho que aparece na profun-
Michel Foucault e a crise                                  didade, na extensão da tela, disperso, quase
da representação                                           confundido entre outras telas que aparecem
                                                           representadas. É desta dispersão, desse vazio
    Em sua obra As Palavras e as Coisas (1966),            que se abre que o pintor consegue, segundo
Foucault nos fala das transformações dos mo-               Foucault, retirar o valor essencial de sua obra:
dos de saber das ciências sociais e aponta uma             o desaparecimento do sujeito.
virada epistemológica decorrente do impacto                    É neste aspecto que seu pensamento deve
do surgimento das ciências humanas no final                 ser tomado. Percebemos que três elemen-
do século XIX, apontando-nos novos desafios                 tos distintos são representados no quadro de
epistêmicos. Tal virada reflete uma crise no                Velásquez: (i) Os reis e o que é visto por eles
campo das ciências ditas modernas, que pas-                (objeto representado), (ii) o pintor (sujeito
sam a reservar, para as ciências humanas, um               representante) e, por conseguinte, (iii) aque-
lugar peculiar que advém do imbricamento do                le para quem tal representação é construída
humanismo com o positivismo, do senso co-                  (o espectador). A tela exibe o próprio pro-
mum com o empirismo.                                       cesso de representação, muito mais do que
    Cada momento da história se caracteriza-               uma cena comum ou um momento singular,
ria por um campo epistemológico particular,                transformando-o em “representação de uma
segundo Foucault. O autor nos lembra que o                 representação”. É possível nomear, descrever,
conceito de episteme é, em si mesmo, históri-              falar sobre o quadro, mas as ferramentas da
co, e que é a partir dele que as diversas ciên-            linguagem nada dizem sobre o real, elas são
cias sociais se constituem. Ao levar em consi-             e sempre serão apenas reflexo da realidade. A
deração a linguagem, a vida e o trabalho como              palavra estabelece uma profunda relação com
modelos epistemológicos, o autor tenta traçar              as coisas, mas resta somente uma sombra da-
uma reflexão sobre as teorias da representa-                quilo que querem significar. Representar, pois,
ção, oferecendo, como alegoria, uma genial                 permite inaugurar três instâncias distintas que
desconstrução de “As Meninas” de Velásquez.                assumem um papel fundamental no que tan-
Para Foucault, é a noção de representação que              ge à nova condição de sujeito: a semelhança, a
funda o princípio que organizaria os saberes               similitude e a simulação. A consciência do li-
na idade clássica e é justamente sua transfor-             mite, da incompletude da linguagem, lugar do
mação que nos permitiria avaliar esses novos               arbitrário, é o prêmio do sujeito face ao apare-
desafios epistêmicos apontados por ele.                     cimento das ciências modernas.
    O pensador indica uma espécie de “pon-                     Ao trabalhar com a idéia de uma episte-
to-cego” que comporta toda visão, tentando                 me, Foucault aborda as condições históricas
trazê-lo à luz. Para tanto, toma os elementos              daquilo que é possível dizer e ver em uma
invisíveis que estruturam o quadro, revelan-               determinada época. É o hiato, o espaço im-
do a mise en abyme criada pelo pintor espanhol             preenchível entre estas duas ações que nos
que redimensiona o olhar do espectador e, por              permite pensar o conceito de diferença, de
conseqüência, a sua mise en scène. Se o lugar              simulacro, de negação da semelhança. Se um
clássico do espectador é o de fruir esteticamen-           enunciado mostra algo, ele também esconde
te de uma obra artística, tendo como função                ao mesmo tempo. Neste sentido é que pode-
interpretá-la, no caso de “As Meninas” há um               mos entrecruzar o pensamento de Foucault
movimento inverso que se desenha: a obra é                 acerca da representação e o papel do cinema
quem interpreta o espectador. Há, portanto,                na composição de um novo sujeito que se vê



Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
Henrique Codato




representado nas telas. Para Comolli (2008),                           em relação os sentidos do real por meio de sua
que evoca no título de sua obra o trabalho Vi-                         transformação em imagem em movimento.
giar e Punir3, o cinema é encarregado de reve-                             Percebemos que, desde Durkheim, há uma
lar os limites do poder ver, designando o não                          preocupação em estabelecer um lugar comum
visível como condição daquilo que vemos. A                             para o pensamento do sujeito contemporâ-
sétima arte desloca o visível no tempo e no                            neo em relação à representação. Seja tomada
espaço, subtraindo mais do que mostrando. A                            em sua dimensão sociológica, a partir da di-
máquina do cinema produziria, segundo Co-                              cotomia indivíduo/sociedade; seja através da
molli (2008), tanto luz quanto sombra, tanto                           tentativa de estabelecer-se como uma ciência
um fora de campo quanto um campo, como                                 fundada na psicologia social; ou ainda, em
o faz também “As Meninas” e é esse um dos                              seu aspecto simbólico e subjetivo, a noção de
aspectos principais levados em consideração                            representação estabelece-se como potência
pela análise foucaultiana.                                             maior da imagem cinematográfica, revelando
                                                                       os mecanismos que se encontram por trás da
           Esquecemos o que mais sabemos: que o quadro                 impressão da realidade, da inscrição verdadei-
           é antes de tudo uma máscara e o fora-de-campo               ra reivindicada por Comolli.
           mais potente que o campo. É tudo isso que o cine-
                                                                           O conceito de representações sociais é tão
           ma convoca ainda hoje: o não visível como o que
           acompanha, margeia e penetra o visível; o visível
                                                                       instável e plural quanto o é a própria represen-
           como fragmento ou narrativa ou leitura do não               tação. É necessário compreendê-lo não mais
           visível do mundo – e, como tal, historicamente              como ferramenta de descrição, mas utilizá-lo
           determinado e politicamente responsável; o visív-           para explicar os mecanismos de transformação
           el como episódio de uma história que ainda está             que sofre o sujeito moderno frente ao universo
           por ser contada; o visível como lugar do engodo             de imagens no qual ele vive.
           renovado quando quero acreditar que verdadeira-                 A alteridade é a condição para que o dese-
           mente vejo (Comolli, 2008, p. 83).                          jo estético se manifeste, pois é no outro que se
                                                                       ancora e que se espelha o meu próprio desejo,
   A parte da sombra, aquilo que não se dei-                           num jogo onde sujeito e objeto se confundem
xa ver, tornar-se-ia, portanto, o desafio e o                           no desejo de se fundirem. Analogicamente, a
agente da representação. É ela, ainda segundo                          imagem cinematográfica pode ser entendida
Comolli (2008), que permite que a imagem se                            como a expressão do desejo do outro, pois ela
abra para o espectador como a possibilidade                            é a apreensão do olhar alheio. Melhor dizendo,
de perceber e entender o que não se deixa ob-                          ela é a representação de seu desejo, que uma
servar, o que escapa ao concreto da represen-                          vez reproduzida na tela de uma sala escura,
tação, confrontando-o com os próprios limites                          se transforma em objeto que se pode simboli-
do ver, exigindo-lhe uma nova visada, tiran-                           camente possuir. Assim, a principal função da
do-o de seu confortável lugar e inquirindo-lhe                         imagem é seduzir o olhar a fim de buscar, na
acerca do espetáculo da representação, por-                            representação, sentido e significação.
tanto, da simulação. Finalmente, é o desejo de                             Este artigo não tem a intenção de exaurir o
encontrar-se no simulacro que faz com que a                            assunto das representações sociais conjugado
experiência estética se modifique.                                      à sétima arte, mas acreditamos que os cami-
                                                                       nhos apontados por meio de nossas reflexões
Considerações finais                                                    abrem uma possibilidade ímpar no sentido
                                                                       de construir, para a comunicação, e em espe-
    As representações sociais, em seus mais                            cial às teorias da imagem, um lugar de estu-
variados aspectos, servem de chave conceitual                          do das relações que o ser humano estabelece
para os estudos da comunicação. Este traba-                            com o Outro, aqui representado, justamente,
lho, como dito na introdução, é uma tentati-                           pelo cinema.
va de aproximar os pensamentos de diversos
autores a propósito desta noção, verificando,                           Referências
seja em seu viés histórico, social ou estético,
uma confluência com o cinema, entendido                                 CASETTI, F.; DI CHIO, F. 1991. Cómo analizar un
aqui em seu potencial artístico ou industrial,                            film. Barcelona, Buenos Aires, México,
riquíssimo meio de representação que coloca                            Paidós, 278 p.



3
    O livro de Comolli se chama Ver e Poder, clara alusão à obra supracitada de Foucault.




Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010                                                               55
Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis



COMOLLI, J-L. 2008. Ver e poder: a inocência perdida:      HALL, S. 2000. A identidade cultural na pós-moderni-
   cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Hori-         dade. Rio de Janeiro, DP&A, 102 p.
   zonte, UFMG, 373 p.                                     JODELET, D. 2001. As representações sociais. Rio de
DELEUZE, G. 1985. A imagem-tempo. São Paulo, Bra-             Janeiro, UERJ, 420 p.
   siliense, 338 p.                                        ORLANDI, E. P. 2002. Análise do Discurso: princípios
DURKHEIM, E. 2007. Sociologia e filosofia. São Paulo,           e procedimentos. Campinas, Pontes, 100 p.
   Ícone, 120 p.                                           RICOEUR, P. 1994. Tempo e narrativa. Campinas, Pa-
DURAND, G. 1998. A imaginação simbólica. São                  pirus, 228 p.
   Paulo,Cultrix, 185 p.                                   XAVIER, I. (org.). 1983. A experiência do cinema. Rio
FOUCAULT, M. 2002. As palavras e as coisas. São               de Janeiro, Edições Graal, 484 p. (Col. Arte e
   Paulo, Martins Fontes, 391 p.                              Cultura, n. 5).
GEERTZ, C. 1978. A Interpretação das culturas. Rio de      WILLIAMS, R. 1992. Cultura. São Paulo, Paz e Terra, 240 p.
   Janeiro, Zahar, 214 p.
GIRARD, R. 2006. Mensonge romantique et vérité ro-                                     Submetido em: 25/09/2009
   manesque. Paris, HacheĴe LiĴératures, 351 p.                                           Aceito em: 13/12/2009




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Sociologia e Sociedade - Prof.Altair Aguilar.
 

Cinema e representações sociais

  • 1. Verso e Reverso, XXIX(55):47-56, janeiro-abril 2010 © 2010 by Unisinos - doi: 10.4013/ver.2010.24.55.06 Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis Some reflexions about cinema and social representations Henrique Codato Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha, 31270-901, Belo Horizonte, MG, Brasil. picega@hotmail.com Resumo. Este artigo pretende relacionar o conceito Abstract. This article intends to relate the concept de representações sociais, entendido a partir de di- of Social Representations, taken in several different ferentes perspectivas, com os estudos do cinema, aspects, to cinema studies, pointing some relevant num esforço que visa apontar elementos que sirvam elements to analyze it. This work has as aim to para analisar a sétima arte no que tange seu caráter present briefly the thoughts of Durkheim about the representacional. Propomos, num primeiro momen- genesis of the term representation and relate it to to, apresentar o pensamento de Durkheim acerca da some contributions offered by Serge Moscovici and gênese de representação, relacionando-a às contri- Denise Jodelet, both important names for the social buições de Serge Moscovici e Denise Jodelet, impor- psychology. Taking philosophy as maĴer, we try to tantes nomes da psicologia social. Numa perspectiva introduce Michel Foucault’s reflexions on the crisis mais filosófica, buscamos apresentar as reflexões of representation, connecting them to the ideas of de Michel Foucault sobre a crise da representação, Gilbert Durand and the symbolic imagination, abrindo-nos também a horizontes teóricos mais plu- besides the conception of mimesis as presented by rais e agregando os pensamentos de Gilbert Durand Paul Ricouer. e a noção de imaginação simbólica, e de Paul Ricoeur e sua concepção de mimese Palavras-chave: cinema, representações sociais, es- Key words: cinema, social representations, spectatorship. pectador.
  • 2. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis Introdução cida entre o sujeito filmado e o olho mecânico da câmera, seja ele o desejo projetado daquele Este artigo é fruto do esforço de elaborar a quem o filme quer seduzir, encantar ou fasci- uma reflexão acerca do cinema, buscando nar, ou seja, o espectador. entendê-lo a partir de seu diálogo com o con- Desta maneira é que se pretende entender ceito de representações sociais. Sabe-se que os esse entrecruzamento explicitado entre cine- meios de comunicação de massa, esse univer- ma e representações sociais. Este artigo pro- so plural do qual o cinema também faz parte, põe relacionar as idéias de Serge Moscovici e ocupam um importante papel na organização Denise Jodelet, importantes nomes da psico- e na construção de uma determinada realida- logia social, com as perspectivas filosóficas de de social. Eles tanto reproduzem essa realida- Michel Foucault sobre a representação e abre- de, representando-a através de seus diferentes se a horizontes teóricos plurais, agregando discursos, quanto a modificam, reconstruindo- os pensamentos de Émile Durkheim acerca a por meio de uma interferência direta em sua da gênese do conceito de representação; de dinâmica, em seu funcionamento. Nossa preo- Gilbert Durand e a noção de imaginação sim- cupação inicial é, portanto, a de compreender bólica; e de Paul Ricoeur e sua concepção de como a sétima arte pode servir de palco para a mimese, por exemplo. manifestação de tais representações e, ao mes- Há, nesses autores tão diversos, interesses mo tempo, como elas são geradas, e difundi- comuns, mas visadas notadamente diferentes, das pelo discurso cinematográfico. olhares muitas vezes divergentes, e esse talvez O termo representar permite ser traduzido seja o maior mérito deste trabalho: perceber como o ato de criar ou recriar um determina- e avaliar tais distinções. É necessário com- do objeto, dando-lhe uma nova significação, preender que as representações sociais não um outro sentido. As representações formam, oferecem, elas mesmas, um conceito a priori. segundo Jodelet (2001, p. 21), um sistema, e Se o que interessa em relação ao cinema é a quando partilhadas e compartilhadas pelos troca que estabelecem sujeito e câmera, o que membros de um grupo, possibilitam o apare- importa aqui é que entendamos que as repre- cimento de uma visão mais ou menos consen- sentações sociais são, na verdade, um processo sual da realidade. Ora, se há uma visão que dinâmico no qual indivíduo e sociedade apa- decorre dessa nova apreensão da realidade, recem como pólos de um mesmo pêndulo. há, forçosamente, para ela, uma imagem, en- tendida aqui como elemento que busca no Visões clássicas sobre a estatuto da imaginação seu próprio lugar de articulação; uma consciência, que Deleuze representação: a sociologia (1985) conecta, no universo cinematográfico, de Durkheim ao papel da câmera. Traduzir ou substituir algo por meio de Como é sabido, o termo “representação uma imagem propõe, entretanto, um dilema coletiva” foi proposto por Émile Durkheim que, segundo CaseĴi e Di Chio (1998, p. 123), na intenção de ressaltar a primazia do pensa- condiciona qualquer tipo de processo analí- mento social frente ao pensamento individual. tico, pois vincular nossa compreensão a uma Para Durkheim, assim como a representação representação faz com que passemos a acei- individual deve ser considerada um fenôme- tá-la como uma verdade. Porém, não seria o no psíquico autônomo e, portanto, não redu- conceito de verdade também uma forma de tível à atividade cerebral que o fundamenta, representação? É possível, no caso de nosso a representação coletiva tampouco se reduzi- objeto, identificarmos como premissa uma ria à soma das representações dos indivíduos relação analogicamente construída entre o ci- que compõem um grupo. Ao fazer creditar a nema e o filme, estendida para além da dua- existência de uma suposta consciência coleti- lidade do dispositivo e da projeção. Tanto na va que organizaria o mundo sensível comum, dinâmica interna como externa do filme – ou Durkheim afirma que as representações, ma- seja, tanto dentro como fora da narrativa fíl- nifestações dessa consciência comum, funda- mica – uma espécie de “jogo” é instituído en- mentam-se a partir de certos hábitos mentais; tre câmera e olhar. Nessa dupla articulação, a certas categorias que existiriam com relativa representação desdobra-se, assumindo uma autonomia e que, ao atuarem entre si, se modi- ambigüidade que tem como elemento funda- ficariam. Durkheim dá, a essas representações dor o desejo, seja ele fruto da relação estabele- coletivas, o nome de fato social. Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
  • 3. Henrique Codato O que ele chama de fato social, nomencla- entendida enquanto processo de significação, tura introduzida em seu trabalho As Regras do que interessará importantes nomes das teorias Método Sociológico, publicado em 1895, deve do cinema do início do século XX, notadamen- ser entendido a partir da premissa apresen- te Dziga Vertov e Sergei Eisenstein. Apesar tada acima. Preocupado com questões de de divergentes, ambos os autores revelaram a cunho metodológico, o pensador tenta colo- importância da montagem na compreensão do car os estudos da sociologia no campo das filme. Se há uma linguagem cinematográfica, ciências empíricas e objetivas, insistindo em ela pode ser conectada à idéia mesmo de mon- considerar o fato social como “coisa”, dis- tagem, que, segundo Comolli (2008, p. 46), é tanciada de qualquer teleologismo. O estudo “o procedimento pelo qual a ditadura do corte da vida social buscava, então, construir um e do fragmento impõe a aceleração do olhar discurso científico que superasse as deficiên- em detrimento da experiência da duração e da cias encontradas no chamado senso comum, continuidade”. possibilitando investigar possíveis relações É crucial notar esta confluência, presente de causa e efeito a partir de fenômenos pre- tanto no pensamento sociológico quanto nos viamente definidos e elegendo a coletividade estudos desenvolvidos sobre o cinema no fi- como princípio para a compreensão do indi- nal do século XIX, início do século XX, pois ele víduo como ser social. vem ressaltar algumas das mais importantes Ao assumir tal posição, Durkheim esfor- questões que concernem às artes dramáticas e ça-se para que as especificidades das repre- pictóricas modernas, tais como a presença de sentações ditas coletivas ultrapassassem o pessoas comuns como protagonistas da cena; substrato orgânico ou os fenômenos mentais, o notável crescimento das grandes cidades e propõe entendê-las como a própria essên- ocidentais e, conseqüentemente, a necessida- cia das consciências tanto individuais quan- de de se repensar as relações espaciais entre to coletivas. É possível identificar, a partir da as diferentes classes sociais que emergiam de ambigüidade apresentada pelo pensamento tal contexto. O cinema viria mesmo a servir durkheimiano entre indivíduo e sociedade, de importante ferramenta para as Ciências uma das questões mais relevantes no que Sociais – notadamente a Antropologia – no diz respeito a qualquer função artística, em intuito de registrar o cotidiano de diferentes especial, ao cinema: a questão da objetivida- sociedades, transformando a própria imagem de do olhar que filma versus a subjetividade em objeto etnológico. do olhar que se deixa filmar; do real da es- Dessa forma, uma nova dinâmica, tanto critura fílmica versus a ilusão do espetáculo. social quanto artística se estabelece, fazendo Se a intenção maior do cinema é representar com que o cinema seja pensado não apenas uma determinada realidade, há, neste movi- como uma máquina de registrar imagens do mento, um caráter objetivo, uma preocupa- cotidiano, mas como elemento ordenador de ção em fazer valer o mundo da experiência, um discurso que, muito mais do que mostrar aquilo que Jean-Louis Comolli (2008) chama imagens em movimento, serve também para de ‘inscrição verdadeira’. Existe, na imagem organizá-las, inaugurando uma forma de dis- cinematográfica, uma presença indicial do curso próprio, servindo também aos interesses real que permite antever os corpos e os ges- do pensamento científico. tos, apreendidos no momento mesmo em Com a intenção de legitimar o cinema como que se constitui a relação entre aquele que uma nova forma de arte, Louis Delluc, crítico filma e aquele que é filmado. Contudo, há de arte francês, lança, no início da década de também, no cinema, algo que é da ordem da 1910, o termo “cineasta”. Tal termo, utilizado subjetividade, que diz respeito à interpreta- como sinônimo de um artista profissional in- ção, à história de vida de cada um dos sujei- teiramente responsável por sua obra, aparece tos que assistem ao filme. em contradição ao termo “cinematografista”, Testemunhar a realidade sob a forma de título dado ao técnico da imagem, àquele que uma representação pressupõe, entretanto, filmava sob as ordens de um estúdio ou de uma ordenação, uma organização, um méto- uma instituição. A partir dessa oposição, o do. É interessante notar que o livro citado de escritor italiano RicioĴo Canudo lança, na se- Durkheim, As Regras do Método Sociológico, apa- qüência, o “Manifesto das sete artes” (1911), rece no mesmo ano em que os irmãos Lumière no qual propunha que o cinema fosse entendi- apresentam publicamente o cinematógrafo, ou do como uma síntese de todas as outras artes, seja, o ano de 1895. E é justamente a montagem, a emergência de uma “arte total”. Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010 49
  • 4. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis A abordagem da psicologia social: das mediações. Assim, a noção de represen- Moscovici e as representações sociais tação social passa a servir de suporte para que essa troca, esse diálogo entre meios de Se a noção elaborada por Durkheim de re- comunicação e realidade social, se estabeleça presentações coletivas foi central para explicar e ganhe força. a dicotomia indivíduo/sociedade, possibili- Serge Moscovici apresenta um interessante tando o nascimento da Sociologia e da Antro- percurso histórico dos estudos das representa- pologia, ela também será fundamental para a ções sociais em seu artigo publicado em 1976, Psicologia, servindo de base para esboçar os intitulado “Das Representações Coletivas às contornos de uma psicologia dita social que Representações Sociais: Elementos para uma toma como norte a idéia da representação, História” (in Jodelet, 2001), explicando que as entendendo-a como uma passarela entre os representações dominantes na sociedade cau- mundos individual e social, associada à pers- sam pressão nos indivíduos, e é nesse meio, pectiva de uma sociedade em transformação por conseqüência, que os sujeitos pensam e ex- (Moscovici in Jodelet, 2001, p. 62). O conceito primem seus sentimentos. Tal perspectiva for- de representação social aparece como conse- nece aos meios de comunicação de massa um quência da mudança de paradigma que en- importante papel: é através dos discursos, das frentam as Ciências Humanas a partir do final imagens e das mensagens midiáticas que tais da década de 1960, início de 1970. No que con- representações circulam e é neles que aconte- cerne a Psicologia, por exemplo, Jodelet (2001) ce o que Jodelet (2001) chama de “cristalização sugere que o declínio do Behaviorismo e do de condutas”. Essas condutas seriam materia- Cognitivismo abre perspectivas fecundas de lizadas na linguagem e seriam estruturadas a pesquisa e permitem encontrar no conceito de partir da articulação de elementos tanto afeti- representações sociais um elemento reunifica- vos quanto mentais e sociais que, integrados, dor da Psicologia e das Ciências Sociais. passariam a afetar, por sua vez, a realidade Também é possível estabelecer uma cone- material, coletiva e ideativa. xão entre o surgimento dessa nova perspec- Aqui, novamente abre-se um lugar para o tiva e o fortalecimento dos estudos culturais. cinema. Como todos sabemos, qualquer obra Esses estudos constituem um ramo da socio- cinematográfica vem carregada de ideologia e logia geral, mas têm uma grande relevância encontra um espectador que também carrega para a comunicação a partir do momento em consigo toda uma história de vida, sua pró- que se propõem a entender os meios de co- pria maneira de decodificar os sentidos pro- municação como geradores de sentidos e me- duzidos pela obra; de compreender, assimilar diadores na apreensão e na constituição da e reproduzir uma ideologia. É justamente na cultura. Sua abordagem exige “novos tipos elaboração de um discurso particular possi- de análise social das instituições e formações bilitado pela relação da câmera com o sujeito, especificamente culturais, e o estudo das re- que podemos identificar os artifícios de uma lações concretas entre estas e os meios mate- linguagem própria à sétima arte e, conseqüen- riais de produção cultural” (Williams, 1992, p. temente, toda uma carga ideológica reprodu- 14). Algumas importantes teorias a propósito zida por ela. Jodelet (2001) explica da seguinte do cinema aparecem nesta época, influencia- forma o papel da comunicação na criação e na das tanto pelas diretrizes da psicologia social, reprodução das representações: quanto pela corrente pós-estruturalista lidera- da por Michel Foucault, entre outros autores. Primeiro, ela (a comunicação) é o vetor de trans- Politicamente, as minorias começam a ga- missão da linguagem, portadora em si mesma de nhar espaço com a liberação sexual e o forta- representações. Em seguida, ela incide sobre os aspectos estruturais e formais do pensamento so- lecimento dos movimentos feministas e dos cial, à medida que engaja processos de interação negros americanos, passando a protagonizar social, influência, consenso ou dissenso e polêmi- histórias no cinema e em outros meios de co- ca. Finalmente, ela contribui para forjar repre- municação de massa. Stuart Hall (2000) fala sentações que, apoiadas numa emergência social, desta perspectiva, afirmando que tanto o ci- são pertinentes para a vida prática e afetiva dos nema quanto a televisão sempre foram ana- grupos (Jodelet, 2001, p. 32). lisados como se apenas reproduzissem ou transformassem as formas de produção cul- Segundo a pesquisadora, é o desejo de tural, sem levar em conta a incorporação e a completude que propicia o sentimento de transformação de discursos produzidos fora identidade, assim como, paralelamente, o efei- Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
  • 5. Henrique Codato to de literalidade ou unidade no domínio do elemento fundamental no funcionamento de sentido. Dessa contradição entre identidade qualquer linguagem. e reconhecimento versus alteridade, nasce um Em seu texto Tempo e Narrativa, publicado movimento que distingue e ao mesmo tempo no início da década de 1980, Paul Ricoeur nos integra o sujeito em relação ao outro, ao seu propõe uma detalhada análise da apreensão diferente, ao seu Outro. E a mais explícita con- de sentidos do mundo a partir de sua transpo- dição para a manifestação da imagem fílmica sição ao universo do texto. O pensador inter- é a presença de seu espectador, sua alteridade roga a relação existente entre o tempo vivido por excelência. e o tempo narrado e afirma que a percepção Este sujeito-espectador assumiria, então, humana se dá a partir de sua dimensão nar- o papel de articulador da ordem dual condi- rativa. O mundo visto como um texto só pode cionada pela imagem. Ele possibilita a emer- ser configurado pelo leitor a partir de sua po- gência de um “terceiro olhar”, compondo uma rosidade, de sua falta de rigidez. Esse mundo tríade no jogo estabelecido pelo eixo-de-ação1 se abriria nos vazios que tal porosidade provo- fílmico e assumindo a posição de “sujeito de- ca, deixando entrever possibilidades de confi- sejante”, onipresença imperceptível, mediação gurar e de selecionar os elementos que nele se que condiciona a própria existência da ima- apresentam. É justamente a distribuição des- gem. O cinema requer um receptor que o vi- ses elementos e a relação que eles estabelecem vencie, que complete sua significação, que lhe com o tempo da narrativa em sua dimensão forneça sentido. episódica que interessam Ricoeur. O tempo, que perde seu caráter linear, é tomado em sua Mimese e desejo: as colaborações de dimensão estendida de presente, sendo o pas- Paul Ricoeur e René Girard sado uma forma de ‘presente da memória’, enquanto o futuro seria apenas uma ‘projeção’ Há, no pensamento de Paul Ricoeur, uma do presente. Dessa forma, Paul Ricoeur tenta notável mudança de perspectiva. Até então, re- categorizar a experiência, distinguindo três levamos um caráter mais sociológico ou psico- movimentos diferentes, três momentos distin- lógico das representações, que ganham, agora, tos para a mimesis. uma reflexão que toma como base a filosofia A chamada mimesis I é uma prefiguração do da linguagem. Para Ricoeur, as representações campo da prática. Ela diz respeito a um ‘agir constituem-se como objeto da linguagem, ou no mundo’, à trama conceitual que antecede seja, são originárias de sua própria dinamicida- a própria linguagem e que orienta o agir tanto de. Segundo o autor, os signos devem ser enten- daquele que produz o texto – o autor – quan- didos como instâncias de mediação, traduzidas to daquele para quem o texto é produzido – a partir de um hiato entre o referente e a maté- seu leitor. Já a mimesis II refere-se ao mundo ria própria do signo. Esse hiato viria a constituir da mediação, da configuração da estrutura da um espaço de diferença, uma instância produ- narrativa, portanto, é entendido como o espa- tora daquilo que chamamos realidade. ço da mediação entre essas duas instâncias de Para Ricoeur, é necessário que pensemos produção, no qual a imaginação ganha um ca- a linguagem como um espelho da vida social, ráter sintético, possibilitando a construção de portanto, um mundo aberto e incompleto, in- representações. Toda a produção sintética da concluso. Um dos méritos de seu pensamento imaginação só aconteceria, segundo o autor, talvez seja a ligação estabelecida entre a feno- por meio das implicações do que ele chama menologia e a análise contemporânea da lin- de tradicionalismo – que poderia ser traduzi- guagem, que, através dos estudos da metáfora do por mundo cultural –, condicionantes do e do mito, legitima a narratividade como com- trabalho criador do texto e que permitem sua ponente fundamental da linguagem humana. conexão com o mundo chamado social. A mi- Desta forma, influenciado pelo pensamento mesis III seria, então, a refiguração que advém aristotélico, Ricoeur propõe que o mundo seja da recepção do próprio texto, que só passa a interpretado como um lugar instável, signo fazer sentido quando atinge seu leitor. É essa aberto para a significação, o que vem a permi- refiguração que possibilita uma reorganização tir sua articulação com o conceito de mimesis, do mundo do texto ao mundo do leitor, que 1 Linha imaginária que interliga os olhares de duas ou mais pessoas em cena. Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010 51
  • 6. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis encontra, na dinâmica da cultura, o próprio ponto de vista mais subjetivo e fenomenológi- sentido das representações. co. Percebe-se que o termo imaginário aparece Percebemos uma forte inclinação estrutural como uma contraposição à idéia de ideologia, no pensamento ricoeuriano, no sentido de criar conceito marxista bastante utilizado nesta mes- categorias que possam explicar a realidade do ma época para explicar as diferenças de classe texto como uma metáfora da realidade social. e a dominação do capital. Como nos aponta Entretanto, é digno de se notar que Ricoeur, Clifford Geertz (1978, p. 163), o termo ideolo- contrariamente a outros autores ditos estrutu- gia acabara transformando-se num sistema ralistas, não vê a linguagem como um conceito cultural fechado, tornando-se, ele mesmo, total- limitante ou limitador. Ele dá à linguagem um mente ideológico. Neste sentido, o conceito de caráter dinâmico, tentando apanhar seu movi- imaginário para Durand reflete uma relação de mento, seu fluxo. Assim, seu pensamento foge consciência com o mundo, possibilitada de for- da rigidez característica do pensamento estru- ma direta pela intervenção dos sentidos frente turalista, ultrapassando-a de forma a vislum- a ele e, indiretamente, pela intervenção daquilo brar, na troca entre autor e leitor, o verdadeiro que comumente chamamos de signos, elemen- sentido da significação. tos que compõem o universo das mediações. A relação entre o cinema e a literatura não é Afastando-se das concepções de Peirce acer- recente. Os estudos cinematográficos do início ca dos signos, Durand busca as reflexões de do século XX já aproximavam essas duas artes. Cassirer como norte, assumindo uma perspec- A expressão Caméra-stylo2 lançada por Astruc tiva de cunho antropológico. A apreensão indi- e os estudos críticos de Bazin são provas dis- reta do mundo, aquela que é construída a partir so. Metz (in Xavier, 1983, p. 116) afirma que o da ausência do objeto, dar-se-á, para Durand, filme é exibicionista assim como era o roman- a partir da intervenção de três categorias dis- ce clássico do século XIX com suas intrigas e tintas representadas na consciência da imagem: o seus personagens, modelo que o cinema imita signo, a alegoria e o símbolo, elemento que nos semiologicamente, prolonga historicamente interessa particularmente neste artigo. e substitui sociologicamente. É possível, no O símbolo, em sua dimensão significante, que tange à História, traçar um paralelo entre não é arbitrário nem convencional. Ele teria, o fortalecimento da análise do discurso e da segundo Durand, um caráter exclusivista e narratologia e sua aplicabilidade no campo parabólico, o que o possibilitaria recondu- dos estudos do cinema, o que acontece justa- zir à significação. No que diz respeito ao seu mente no final da década de 1970, início dos significado, ele nunca pode ser captado dire- 1980. A comunicação vem apropriar-se destas tamente pelo pensamento e sua percepção é ferramentas metodológicas, utilizando-as no dada a partir de um processo simbólico, ma- intuito de aclarar os sentidos produzidos pelos nifesto por meio do que o autor chama de epi- diversos produtos culturais da comunicação fania. Ele não se reduz, contudo, a um único de massa, visando compreender como são (re) sentido, mas apresenta um campo de signifi- produzidas e construídas as representações cado amplo e movediço. Poderíamos, numa sociais em torno de um determinado objeto, metáfora, entendê-lo como a porta de entrada no caso, o discurso cinematográfico. para o mundo dos sentidos. Desta maneira, as representações ganham um caráter formal, a partir do qual os indivíduos percebem o Por uma antropologia da imagem: mundo, se relacionam com ele. Para o autor, a imaginação simbólica de Gilbert sempre que abordamos o símbolo e os proble- Durand mas de sua decifração, encontramo-nos em presença de uma ambigüidade fundamental: Tomando questões mais subjetivas como “Não só o símbolo tem um duplo sentido, um ponto de partida, Gilbert Durand lança, em concreto, preciso, outro alusivo e figurado, 1964, sua conhecida obra A Imaginação Sim- como também a classificação dos símbolos bólica. Num estreito diálogo com a psicologia nos revela ‘regimes’ antagônicos sob os quais junguiana e a filosofia de Bachelard, Durand as imagens vêm ordenar-se”, nos explica Du- propõe entender a imaginação a partir de um rand (1971, p. 97). 2 Câmera-caneta. (N.T.) Expressão lançada pelo crítico de cinema francês Alexandre Astruc em 1948 que servia justamente para com- parar o Cinema à Literatura, o que serviu posteriormente para fundar a idéia de autoria nos estudos cinematográficos. Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
  • 7. Henrique Codato A partir deste antagonismo, Durand traça pertence a eterna infância, a eterna aurora” uma genealogia do mecanismo do imaginário (1971, p. 98), desembocando numa teofania. face à idéia de símbolo, apontando uma série O universo da imagem é o universo da fi- de forças opositivas que tomam o senso co- guração. Entretanto, seu papel não é da ordem mum e o racionalismo cartesiano como extre- da reprodução, mas da produção de sentidos. Du- mos. De tal genealogia, em primeira instância, rand nos fala da ação da imagem como função manifestam-se o que Durand chama de “her- instauradora da realidade, assim como também menêuticas redutivas”, tais como a Psicanálise parece fazer Ricoeur, sem, no entanto, rejeitar de Freud, que via nos símbolos representações nenhuma das duas hermenêuticas apresenta- fantasmagóricas, e a Antropologia de Lévi- das por Durand. É através do imaginário simbó- Strauss, que os reduz a simples projeções da lico que um grupo ou uma coletividade designa vida social. Porém, em contraposição, o autor sua identidade ao elaborar uma representação aponta outra perspectiva, assinalando os tra- de si; portanto, a imaginação se traduziria em balhos de Cassirer, de Jung e de Bachelard, nos uma experiência aberta e inacabada, dinâmica, quais o símbolo ganha um caráter vivificador, mas com uma realidade e essência próprias. O presença irrefutável do sentido, batizando-a simbolismo é, para o autor, cronológica e onto- como “hermenêuticas instaurativas” justa- logicamente anterior a qualquer significância mente por terem o poder de instaurar uma or- audiovisual; sua estruturação está na raiz de dem para a vida social. qualquer pensamento. De Cassirer, Durand apreende a pregnân- A noção de imaginário nos auxilia a pensar cia simbólica que permeia os mitos e símbolos o cinema. O cinema é uma representação de em sua função de condutores de sentidos. Do imagens em movimento, imagens que colo- pensamento de Jung, Durand toma a noção de cam em relação o real e o imaginário através arquétipo, entendido como núcleo simbólico de um mecanismo que permite uma dupla ar- de estrutura organizadora, sentido vazio pre- ticulação da consciência, no qual o espectador enchido por formas dinâmicas; uma espécie de percebe a ilusão, mas também o dinamismo centro invisível de forças. Quanto a Bachelard, da realidade. A imagem em movimento rela- Durand ressalta a distinção construída pelo tiviza o tempo histórico, dando-lhe um caráter filósofo a propósito de dois mundos, dois re- atemporal. Ela torna-se um suporte que co- gimes que tomam o símbolo como potência, necta o espectador ao tempo do filme, enfati- como força criadora. O primeiro deles, chama- zando o vivido e buscando, para significá-lo, do de “Diurno”, diz respeito às imagens que elementos do simbólico. Dito isso, é possível podem ser expressas “à luz do dia”, enquanto verificar dois eixos de compreensão que, ao o segundo, dito “Noturno”, fala das imagens interagirem, buscam apreender a complexida- que restam latentes, sem expressão, escondi- de do imaginário cinematográfico: um deles, das. Ao conectar tal bipartição com o pensa- da ordem da pragmática, permite perceber o mento nietzschiano, recorrendo à origem da cinema como produto de um meio cultural tragédia, poderíamos associar o primeiro regi- no qual está inserido; o outro, lhe condiciona me a Apolo e o segundo a Dionísio, distinguin- a um determinado processo que é da ordem do os dois pólos do discurso do trágico. do subjetivo, que “projeta”, por meio da re- Percebe-se, portanto, uma essência dialéti- presentação, mitos e símbolos, produtos deste ca do símbolo que, segundo Durand, faz sentir imaginário do qual nos fala Durand. O cinema seus benefícios pelo menos em quatro setores torna-se, assim, lugar de recepção e de revivi- da vida social. Em sua determinação imedia- fação do símbolo. ta, o símbolo surgiria como restabilizador do A mise en scène cinematográfica coloca em equilíbrio vital devido a seu caráter espontâ- dúvida o mundo, nos afirma Comolli (2008). neo. Pedagogicamente, ele seria utilizado para Esconde e subtrai mais do que “mostra”. A o restabelecimento do equilíbrio psicossocial; conservação da parte da sombra é sua con- enquanto que em sua dimensão antropológica, dição inicial. Sua ontologia está relacionada a simbólica viria a estabelecer um equilíbrio em à noite e ao escuro de que toda imagem tem relação à negação da assimilação racista da es- necessidade para se constituir. Filmar é, pois, pécie humana a uma pura animalidade. Final- sempre colocar em cena, mas enquadrar pres- mente, em última instância, o símbolo erigiria supõe uma escolha que coloca em relação, “[...] face à entropia positiva do universo, o do- numa alegoria ao pensamento de Durand, re- mínio do valor supremo e equilibra o universo, gimes diurno e noturno. A câmera é essa “má- que passa por um Ser que não passa, ao qual quina” que permite (re) materializar o corpo Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010 53
  • 8. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis e simbolizar o olhar, fazer dele essa “porta de um outro lugar para o olhar, um desdobra- entrada da significação” apontada pelo pensa- mento da representação. dor. É sua condição onipresente que permite Foucault atrela a noção de representação à a entrada e a saída dos sentidos, num movi- questão da identidade. Ela permite o apareci- mento relacional de troca, possibilitando re- mento da alteridade, do “Outro”, objeto por viver uma nova representação do mundo, re- excelência das ciências humanas. Esse desdo- construir uma mesma narrativa de inúmeras bramento de sentidos provocado pela tela de maneiras. É justamente dessa mise en abyme de Velásquez serve de metáfora para essa cone- sentidos que nos fala Michel Foucault ao ana- xão. Não é a princesa Margarida e o grupo de lisar “As Meninas”, obra-prima de Velásquez, aias, anões ou animais que vemos em primei- numa exemplar arqueologia da imagem e da ro plano o verdadeiro objeto do quadro. Este representação. “verdadeiro objeto” esconde-se por trás do reflexo de um espelho que aparece na profun- Michel Foucault e a crise didade, na extensão da tela, disperso, quase da representação confundido entre outras telas que aparecem representadas. É desta dispersão, desse vazio Em sua obra As Palavras e as Coisas (1966), que se abre que o pintor consegue, segundo Foucault nos fala das transformações dos mo- Foucault, retirar o valor essencial de sua obra: dos de saber das ciências sociais e aponta uma o desaparecimento do sujeito. virada epistemológica decorrente do impacto É neste aspecto que seu pensamento deve do surgimento das ciências humanas no final ser tomado. Percebemos que três elemen- do século XIX, apontando-nos novos desafios tos distintos são representados no quadro de epistêmicos. Tal virada reflete uma crise no Velásquez: (i) Os reis e o que é visto por eles campo das ciências ditas modernas, que pas- (objeto representado), (ii) o pintor (sujeito sam a reservar, para as ciências humanas, um representante) e, por conseguinte, (iii) aque- lugar peculiar que advém do imbricamento do le para quem tal representação é construída humanismo com o positivismo, do senso co- (o espectador). A tela exibe o próprio pro- mum com o empirismo. cesso de representação, muito mais do que Cada momento da história se caracteriza- uma cena comum ou um momento singular, ria por um campo epistemológico particular, transformando-o em “representação de uma segundo Foucault. O autor nos lembra que o representação”. É possível nomear, descrever, conceito de episteme é, em si mesmo, históri- falar sobre o quadro, mas as ferramentas da co, e que é a partir dele que as diversas ciên- linguagem nada dizem sobre o real, elas são cias sociais se constituem. Ao levar em consi- e sempre serão apenas reflexo da realidade. A deração a linguagem, a vida e o trabalho como palavra estabelece uma profunda relação com modelos epistemológicos, o autor tenta traçar as coisas, mas resta somente uma sombra da- uma reflexão sobre as teorias da representa- quilo que querem significar. Representar, pois, ção, oferecendo, como alegoria, uma genial permite inaugurar três instâncias distintas que desconstrução de “As Meninas” de Velásquez. assumem um papel fundamental no que tan- Para Foucault, é a noção de representação que ge à nova condição de sujeito: a semelhança, a funda o princípio que organizaria os saberes similitude e a simulação. A consciência do li- na idade clássica e é justamente sua transfor- mite, da incompletude da linguagem, lugar do mação que nos permitiria avaliar esses novos arbitrário, é o prêmio do sujeito face ao apare- desafios epistêmicos apontados por ele. cimento das ciências modernas. O pensador indica uma espécie de “pon- Ao trabalhar com a idéia de uma episte- to-cego” que comporta toda visão, tentando me, Foucault aborda as condições históricas trazê-lo à luz. Para tanto, toma os elementos daquilo que é possível dizer e ver em uma invisíveis que estruturam o quadro, revelan- determinada época. É o hiato, o espaço im- do a mise en abyme criada pelo pintor espanhol preenchível entre estas duas ações que nos que redimensiona o olhar do espectador e, por permite pensar o conceito de diferença, de conseqüência, a sua mise en scène. Se o lugar simulacro, de negação da semelhança. Se um clássico do espectador é o de fruir esteticamen- enunciado mostra algo, ele também esconde te de uma obra artística, tendo como função ao mesmo tempo. Neste sentido é que pode- interpretá-la, no caso de “As Meninas” há um mos entrecruzar o pensamento de Foucault movimento inverso que se desenha: a obra é acerca da representação e o papel do cinema quem interpreta o espectador. Há, portanto, na composição de um novo sujeito que se vê Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010
  • 9. Henrique Codato representado nas telas. Para Comolli (2008), em relação os sentidos do real por meio de sua que evoca no título de sua obra o trabalho Vi- transformação em imagem em movimento. giar e Punir3, o cinema é encarregado de reve- Percebemos que, desde Durkheim, há uma lar os limites do poder ver, designando o não preocupação em estabelecer um lugar comum visível como condição daquilo que vemos. A para o pensamento do sujeito contemporâ- sétima arte desloca o visível no tempo e no neo em relação à representação. Seja tomada espaço, subtraindo mais do que mostrando. A em sua dimensão sociológica, a partir da di- máquina do cinema produziria, segundo Co- cotomia indivíduo/sociedade; seja através da molli (2008), tanto luz quanto sombra, tanto tentativa de estabelecer-se como uma ciência um fora de campo quanto um campo, como fundada na psicologia social; ou ainda, em o faz também “As Meninas” e é esse um dos seu aspecto simbólico e subjetivo, a noção de aspectos principais levados em consideração representação estabelece-se como potência pela análise foucaultiana. maior da imagem cinematográfica, revelando os mecanismos que se encontram por trás da Esquecemos o que mais sabemos: que o quadro impressão da realidade, da inscrição verdadei- é antes de tudo uma máscara e o fora-de-campo ra reivindicada por Comolli. mais potente que o campo. É tudo isso que o cine- O conceito de representações sociais é tão ma convoca ainda hoje: o não visível como o que acompanha, margeia e penetra o visível; o visível instável e plural quanto o é a própria represen- como fragmento ou narrativa ou leitura do não tação. É necessário compreendê-lo não mais visível do mundo – e, como tal, historicamente como ferramenta de descrição, mas utilizá-lo determinado e politicamente responsável; o visív- para explicar os mecanismos de transformação el como episódio de uma história que ainda está que sofre o sujeito moderno frente ao universo por ser contada; o visível como lugar do engodo de imagens no qual ele vive. renovado quando quero acreditar que verdadeira- A alteridade é a condição para que o dese- mente vejo (Comolli, 2008, p. 83). jo estético se manifeste, pois é no outro que se ancora e que se espelha o meu próprio desejo, A parte da sombra, aquilo que não se dei- num jogo onde sujeito e objeto se confundem xa ver, tornar-se-ia, portanto, o desafio e o no desejo de se fundirem. Analogicamente, a agente da representação. É ela, ainda segundo imagem cinematográfica pode ser entendida Comolli (2008), que permite que a imagem se como a expressão do desejo do outro, pois ela abra para o espectador como a possibilidade é a apreensão do olhar alheio. Melhor dizendo, de perceber e entender o que não se deixa ob- ela é a representação de seu desejo, que uma servar, o que escapa ao concreto da represen- vez reproduzida na tela de uma sala escura, tação, confrontando-o com os próprios limites se transforma em objeto que se pode simboli- do ver, exigindo-lhe uma nova visada, tiran- camente possuir. Assim, a principal função da do-o de seu confortável lugar e inquirindo-lhe imagem é seduzir o olhar a fim de buscar, na acerca do espetáculo da representação, por- representação, sentido e significação. tanto, da simulação. Finalmente, é o desejo de Este artigo não tem a intenção de exaurir o encontrar-se no simulacro que faz com que a assunto das representações sociais conjugado experiência estética se modifique. à sétima arte, mas acreditamos que os cami- nhos apontados por meio de nossas reflexões Considerações finais abrem uma possibilidade ímpar no sentido de construir, para a comunicação, e em espe- As representações sociais, em seus mais cial às teorias da imagem, um lugar de estu- variados aspectos, servem de chave conceitual do das relações que o ser humano estabelece para os estudos da comunicação. Este traba- com o Outro, aqui representado, justamente, lho, como dito na introdução, é uma tentati- pelo cinema. va de aproximar os pensamentos de diversos autores a propósito desta noção, verificando, Referências seja em seu viés histórico, social ou estético, uma confluência com o cinema, entendido CASETTI, F.; DI CHIO, F. 1991. Cómo analizar un aqui em seu potencial artístico ou industrial, film. Barcelona, Buenos Aires, México, riquíssimo meio de representação que coloca Paidós, 278 p. 3 O livro de Comolli se chama Ver e Poder, clara alusão à obra supracitada de Foucault. Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010 55
  • 10. Cinema e representações sociais: alguns diálogos possíveis COMOLLI, J-L. 2008. Ver e poder: a inocência perdida: HALL, S. 2000. A identidade cultural na pós-moderni- cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Hori- dade. Rio de Janeiro, DP&A, 102 p. zonte, UFMG, 373 p. JODELET, D. 2001. As representações sociais. Rio de DELEUZE, G. 1985. A imagem-tempo. São Paulo, Bra- Janeiro, UERJ, 420 p. siliense, 338 p. ORLANDI, E. P. 2002. Análise do Discurso: princípios DURKHEIM, E. 2007. Sociologia e filosofia. São Paulo, e procedimentos. Campinas, Pontes, 100 p. Ícone, 120 p. RICOEUR, P. 1994. Tempo e narrativa. Campinas, Pa- DURAND, G. 1998. A imaginação simbólica. São pirus, 228 p. Paulo,Cultrix, 185 p. XAVIER, I. (org.). 1983. A experiência do cinema. Rio FOUCAULT, M. 2002. As palavras e as coisas. São de Janeiro, Edições Graal, 484 p. (Col. Arte e Paulo, Martins Fontes, 391 p. Cultura, n. 5). GEERTZ, C. 1978. A Interpretação das culturas. Rio de WILLIAMS, R. 1992. Cultura. São Paulo, Paz e Terra, 240 p. Janeiro, Zahar, 214 p. GIRARD, R. 2006. Mensonge romantique et vérité ro- Submetido em: 25/09/2009 manesque. Paris, HacheĴe LiĴératures, 351 p. Aceito em: 13/12/2009 Verso e Reverso, vol. XXIV, n. 55, janeiro-abril 2010