Este documento discute o conceito de cardiopatias complexas e sua evolução. Define cardiopatias complexas como aquelas com associações de defeitos cardíacos difíceis de corrigir cirurgicamente ou com evolução pós-operatória inadequada. Descreve exemplos de cardiopatias complexas e discute as abordagens cirúrgicas paliativas e corretivas funcionais, destacando a importância do tratamento precoce nestas patologias.
Cardiopatias complexas: conceito, evolução e tratamento
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Cardiopatias Complexas. Do Conceito à Evolução
Editorial
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP
Correspondência: Edmar Atik - Incor -
Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP
Recebido para publicação em 3/7/96
Aceito em 14/8/96
Adesignação“cardiopatiacomplexa”é,muitasvezes,
confundidaemalinterpretada,napráticaclínicadacardio-
logia pediátrica, uma vez que a existência de cardiopatias
simples, com quadro clínico exuberante, e a ocorrência de
um complexo de defeitos, com quadro clínico equilibrado,
fazem certamente alterar o seu real significado.
Por isso, independente do quadro clínico, com maior
ou menor descompensação cardíaca e/ou hipoxemia arte-
rial e independente, ainda de aspectos evolutivos naturais,
estes brandos ou abruptos ou, ainda, rápidos ou lentos, a
conceituação de cardiopatias complexas pode ser orienta-
da à presença mesmo de simples associações de defeitos,
cuja correção cirúrgica anatômica seja de difícil execução
e com conseqüente evolução pós-operatória inadequada.
Talvezsejaesteoelementocapitaldadefiniçãodeuma
cardiopatia complexa, partindo-se, assim, da premissa ci-
rúrgica, face hoje às amplas possibilidades da criança com
cardiopatiaeapesardepossíveisimbricaçõescomaspectos
etiopatogênicos, genéticos e outros, ainda, mas difíceis de
serem precisados.
Na literatura, o termo cardiopatia complexa tem sido
orientado às cardiopatias nas quais há associações de ano-
malias das drenagens venosas sistêmica e pulmonar, das
conexõesatrioventriculareseventrículo-arteriaisecomde-
feitos intracardíacos diversos, como o encontrado nos
isomerismos atriais 1
.
No entanto, particularmente no isomerismo atrial es-
querdo,asassociaçõesdedefeitossãofactíveisdecorreção
cirúrgica, muitas vezes simples e, por outro lado, há outras
associaçõesmesmoemcardiopatiasconhecidas,comonão
complexas,nasquaisacorreçãoémaisdifícilcomchances
somenteaoperaçõespaliativas.Nestasanomalias,pelore-
parodificultado,defeitosresiduaissãofreqüenteseasexe-
qüíveisoperaçõespaliativasoucorretivasfuncionaispressu-
põem evolução pós-operatória desfavorável a longo prazo.
Acresce-sequenessasanomalias,faceàassociaçãode
defeitos,adinâmicacardíacatorna-setãomodificada,mes-
mo na vida intra-uterina que a dimensão de um dos ventrí-
culospermaneceemestadoevolutivoincipientee,porisso,
hipoplásico, sendo este um aspecto anatômico primordial,
na conceituação.
Dentrodestecontexto,atécardiopatiasacianogênicas
podemserincluídascomocomplexas,quandodapresença
de hipoplasia de um dos ventrículos, quer por falta de de-
senvolvimento, esta ligada à complacência alterada, quer
pordesviosacentuadosdesangue.Nesseínterim,estariam
classificadas a estenose pulmonar e aórtica valvar associ-
adasàfibroelastoseendocárdicaecavidadescardíacascor-
respondentes hipoplásicas, a síndrome de Shone (estenose
mitral e subaórtica além da coartação da aorta) associada à
fibroelastose endocárdica ou não, mas com ventrículo es-
querdo (VE) hipoplásico, cortriatriatum e drenagem anô-
mala parcial de veias pulmonares (DAPVP) com VE
hipoplásico, interrupção do arco aórtico e comunicação
interventricular (CIV) com ventrículo direito (VD)
hipoplásico, comunicação interatrial (CIA) e hipoplasia
mitral com VE hipoplásico, persistência do canal arterial
e DAPVP com VE hipoplásico, transposição corrigida das
grandes artérias e anomalia obstrutiva de Ebstein com
hipoplasia de VD, defeito total do septo atrioventricular
(DTSAV) e VE hipoplásico, dentre as principais.
Por sua vez, a inclusão das cardiopatias cianogênicas
na categoria de cardiopatia complexa é mais numerosa,
desde que haja hipoplasia de um dos ventrículos. Seriam
aqui incluídos a transposição das grandes artérias (TGA)
comVDhipoplásico,atresiadasvalvasatrioventriculares,
direitaouesquerda,anomaliadeEbsteinobstrutiva,atresia
da valva pulmonar (AP) com e sem CIV, tétrade de Fallot
com VD hipoplásico, dupla via de saída de VD (DVSVD),
sendo este hipoplásico, criss-cross heart com VD
hipoplásico, síndrome de hipoplasia do coração esquerdo,
dupla via de entrada ventricular e culminando com as
cardiopatias complexas propriamente ditas, as que se
acompanham de isomerismos atriais, direito e esquerdo 1
.
Nestas últimas cardiopatias, a associação de defeitos
é obrigatória, predominando os acianogênicos (CIV,
DAPVP, CIA, defeito parcial do septo atrioventricular) no
isomerismo esquerdo - polisplenia e os cianogênicos
(DVSVD, TGA, dupla via de entrada ventricular, DATVP,
AP, átrio único) além do DTSAV no isomerismo direito -
asplenia 1
.
Acomplexidade,nosisomerismosatriais,édecorrên-
cia da existência de associações de defeitos que se iniciam
nas conexões venosas sistêmicas com discordâncias
hepato-atriais,agenesiadaveiacavainferiorcomcontinu-
ação pela ázigos, posicionamento dúbio das veias supra-
hepáticas, veia cava superior bilateral, e ainda na conexão
atrioventricular e ventrículo-arterial, no retorno venoso
pulmonar e em lesões obstrutivas pulmonares, além da
malposição cardíaca.
Edmar Atik
São Paulo, SP
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volume 67, (nº 6), 1996
AtikE
Cardiopatias complexas. Do conceito à evolução
Nessas cardiopatias complexas a evolução é geral-
mente desfavorável, face à grande repercussão
hemodinâmica e ademais à existência de padrão
imunológicoinadequado,emespecialnoisomerismoatrial
direito,queseacompanhadeaspleniaem70a80%dosca-
sos.
O interesse pelo assunto cresce graças à alta freqüên-
ciadessascardiopatias,especialmentenoperíodoneonatal
e nos primeiros meses de vida que, segundo a experiência
do INCOR-FMUSP, corresponde a cerca de 10% do total
dascardiopatiascongênitasatendidasnesteperíodoetário,
ocupando o segundo lugar em prevalência e certamente o
de maior mortalidade e morbidade clínico-cirúrgica. As-
sim,desde1985até1993,60cardiopatiascomplexasforam
atendidascomidadeatétrêsmeses,commortalidadeclíni-
co-cirúrgica de aproximadamente 40%. Traz à baila a ne-
cessidade de melhorar o cuidado a essas cardiopatias no
período neonatal, apesar da diminuição da mortalidade a
cercade25%,nosdoisúltimosanos,atravésaexecuçãode
operações paliativas, tipo bandagem pulmonar e
anastomose sistêmico-pulmonar, principalmente conside-
rando-semelhorperspectivadadaaausênciademortalida-
de observada em idades maiores nas cirurgias corretivas
funcionais, tipo variantes de Fontan.
Oprotótipodascardiopatiascomplexasatendidaspre-
cocementerelaciona-seàquelecomisomerismoatrialdirei-
to, no qual as associações de átrio e ventrículo únicos, saí-
da isolada da artéria sistêmica, atresia pulmonar, vaso
sistêmico-pulmonar,freqüentemente,oprópriocanalarte-
rial e DATVP obstrutiva expressam a gravidade anátomo-
funcionaleaperspectivasombria2
.Porvezes,oquadroclí-
nicopodesemostrarinicialmentefavorável,desdequehaja
balanceamentodefluxospulmonaresistêmico,commanu-
tenção de certo grau de hipertensão pulmonar. No entanto,
com o fechamento do vaso sistêmico-pulmonar ou através
da elevação da pressão arterial pulmonar, hipoxemia cres-
cente se exterioriza.
Apesar dos recursos terapêuticos - prostaglandina-E1
principalmente-apenascercade10a20%dessescasossobre-
vivem a esse período após a correção da DATVP eda feitura
de anastomose sistêmico-pulmonar, tipo Blalock-Taussig2
.
Outro grupo de associações, menos grave, não se
acompanhadeobstruçãoàdrenagemanômalatotaldeveias
pulmonares, havendo também ventrículo único ou dupla
via de saída de VD hipoplásico e, ainda, com CIV não re-
lacionada e/ou atresia pulmonar com alterações da drena-
gem do sistema venoso sistêmico, incluindo-se anomalias
de retorno das veias supra-hepáticas.
Operaçõespaliativasprecoces,tipoanastomosesistê-
mico-pulmonar, preparam estes pacientes para a correção
funcional, tipo Fontan, na evolução 2
.
No isomerismo esquerdo, por sua vez, defeitos passí-
veisdecorreçãoexpressamquadroclínicodeinsuficiência
cardíaca congestiva, controlada com medicação anticon-
gestiva que pospõe a operação para época mais oportuna,
em geral no decurso do primeiro ano de vida.
A correção de defeitos do septo atrioventricular, total
ou parcial, da DAPVP e da CIV apresenta como óbice à
cura a presença de arritmias supraventriculares freqüentes
equedecorremdaausênciadonódulosinusal,nestetipode
isomerismo atrial1
.
Aindanoisomerismoesquerdo,anomaliasdoretorno
venoso sistêmico, com discordância entre a posição do fí-
gado e do átrio venoso, em presença da concordância
ventrículo-arterial (constância anatômica no isomerismo
esquerdo)podeexteriorizarquadrosemelhanteaodatrans-
posição das grandes artérias cuja correção de
direcionamentodefluxosaonívelatrial,similaràoperação
de Senning, induz à normalização do quadro do ponto de
vista anatômico e funcional.
Namaioriadessesdefeitoscomplexoseaindanosde-
mais já mencionados e que requerem a correção funcional,
tipoFontan,éfreqüenteanecessidadeconjuntadacorreção
de insuficiência de valvas atrioventriculares, direita e/ou
esquerda, geralmente por plástica, além do reparo de
DATVP não obstrutiva, de estenoses e atresias de artérias
pulmonares, dentre outras anomalias.
Dadaaobediência,hoje,aosconhecidoscritériospara
acorreçãodeFontan,amortalidadetemdiminuídoultima-
mente e de maneira expressiva (dos 26 pacientes operados
nos dois últimos anos no INCOR-FMUSP apenas um fale-
ceu por congestão sistêmica exagerada e incontrolável).
Ademais pressente-se que a evolução a longo prazo
seja mais adequada após as modificações técnicas impos-
tas às variantes iniciais, à atriopulmonar e à
atrioventricular. A variante cavopulmonar 3
com
fenestração atrial tem mostrado que os fenômenos
congestivossistêmicosalongoprazosãodemenormagni-
tude a permitir evolução mais favorável do que a evidenci-
ada por outras técnicas, nas quais fatores adversos obscu-
reciamosresultados,ocasionandomortalidadede25%dos
pacientes operados após cerca de 15 anos da operação 4
.
Pensamentológicodeutilizaçãodosdoisventrículos,
sempre que possível, tem orientado para a correção de de-
feitos complicados, como a DVSVD, em discordância
atrioventriculareCIVnãorelacionadaatravéstúneisintra-
cardíacos ou mesmo por tubos o que alenta no manejo atu-
al.
Portudo,valeumareflexãovisandoofuturodacardio-
logia pediátrica como um todo, em especial acerca dessas
cardiopatiascomplexasquecontinuam,aindahoje,adesa-
fiar a argúcia clínica e a perícia cirúrgica. O
direcionamento,filosóficooupragmáticoseráabússolado
amanhã. No primeiro, através a eliminação da vida intra-
uterina, aliás já praticada hoje em países do primeiro mun-
do e, o outro, na continuação da procura das soluções, da
etiologia, da profilaxia, das técnicas mais acuradas a me-
lhorar, mais ainda, esta nossa realidade atual.
Acreditamos que em linhas gerais, afora o desenvol-
vimento e conhecimento genético, bioquímico e celular
mais amplos, úteis para a profilaxia e tratamento das
cardiopatias congênitas, caso haja defeitos corrigíveis, a
correção anatômica deva ser realizada ainda no período
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1. Sapire DW - Atrial isomerism. In: Anderson RH, Macartney FJ, Shinebourne
EA,TynanM-PaediatricCardiology.NewYork:ChurchillLivingstone,1987;
473.
2. SadiqM,StumperO,DeGiovanniJVetal-Managementandoutcomeofinfantsand
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Circulation1990;81:1520-36.
Arq Bras Cardiol
volume 67, (nº 6), 1996
AtikE
Cardiopatias complexas. Do conceito à evolução
neonatal, a fim de se evitar os fenômenos adquiridos que
possam obscurecer os resultados.Por sua vez, face a defei-
tos não corrigíveis, como ocorre com a maioria das
cardiopatias complexas citadas, em especial as com
isomerismo atrial direito, a solução talvez possa ser mais
radical, como o transplante cardíaco.
A expectativa da cura sempre permanece viva, desde
que a busca continue a solucionar os aspectos etiopato-
gênicos, profiláticos e à conduta mais adequada na cardio-
logia pediátrica em geral, cujos progressos inegáveis alen-
tam o manejo, hoje, da criança com cardiopatia.